Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
90/04.7TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: ILICITUDE
DANO
TERCEIRO
COISA IMÓVEL
Data do Acordão: 11/24/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1305º, 1344º, Nº 1, 1348º DO C.CIV..
Sumário: I – A ilicitude consiste em se surpreender, no facto, um desvalor para com o direito, podendo traduzir-se na violação de um direito subjectivo (um direito de outrem) ou na violação de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios.

II – As disposições destinadas a proteger interesses alheios são, geralmente, normas que tutelam interesses públicos mas que visam em simultâneo proteger determinados interesses particulares, podendo tratar-se p. ex. de normas incriminadoras – mas mesmo nestes casos a ilicitude apura-se observando se a norma de interesse público foi violada em concreto ou não.

III – Ainda neste subsegmento da ilicitude cabem as regras que protegem interesses particulares mas que não chegam a atribuir um direito subjectivo ao respectivo titular para não ferirem um outro interesse particular mais qualificado, mas não já as que visam proteger certos interesses gerais e colectivos embora da sua aplicação possam beneficiar reflexamente determinados interesses particulares.

IV – Ao lado destes casos de ilicitude acrescenta-se o “abuso de direito” que, embora não versando a violação de um direito de outrem ou a ofensa de uma norma que tutele um interesses alheio, cobre a sua justificação no facto de se revelar num exercício anormal de um direito próprio, exercício esse reprovado pela lei.

V – A defesa dos direitos alheios relativamente a coisas imóveis têm como pressuposto que os danos provocados por aquela se tenha produzido em terceiros e fora dos limites determinados pelos artºs 1305º e 1344º, nº 1, do C. Civ., que regulam o exercício da propriedade pelo seu dono.

VI – Quer isto dizer que se um terceiro invade a propriedade alheia sem conhecimento e/ou sem autorização do proprietário não pode reclamar a existência de facto ilícito traduzido na existência de um buraco aberto por aquele na propriedade, se nessa invasão sofrer algum dano decorrente de nele ter caído – artº 1348º C. Civ..

Decisão Texto Integral:      Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

No 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu, A..., divorciada, residente na ..., intentou a presente acção de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra “B...”, com sede na ...., pedindo a condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de € 29.445,91, sendo € 7.000,00 de danos não patrimoniais e o restante de danos patrimoniais, quantias acrescidas dos juros legais que se vierem a vencer até integral e efectivo pagamento desde a citação.

Para tanto, alegou que no dia 15/11/2000, pelas 17h50m, transitava a pé num terreno descampado, sito à ....., localizado no gaveto entre a Rotunda ... e os prédios da ...., onde está em construção um edifício propriedade da Ré, quando caiu num buraco, percorridos dois metros, tendo ficado presa no buraco até ao baixo ventre, tendo sido socorrida por pessoas, mas apenas retirada do mesmo com a chegada dos bombeiros. Imputa a queda sofrida à ausência de sinalização do buraco referido, sendo de noite, com má visibilidade. Mais refere que tal buraco ali não existia no período da manhã quando tinha passado no local, tendo sido aberto durante a tarde, para colocação de taipais no terreno, por parte da Ré. Anteriormente a tal construção, o edifício era um descampado que, durante mais de uma década, foi utilizado como parque de estacionamento de automóveis bem como para trânsito a pé pelos moradores dos prédios vizinhos, apresentando vários caminhos a atravessá-lo, os quais estavam devidamente marcados no solo por sinais visíveis e permanentes. Mais refere que não existia iluminação pública no terreno mas apenas nas ruas com as quais o mesmo confronta, nunca tendo ali havido acidentes, pelo que a Autora, diariamente e ao longo de vários anos, atravessou a pé o dito terreno para se deslocar de casa para o emprego e ao contrário, identificando o caminho percorrido. Em consequência da queda, sofreu lesões, tendo sido assistida no Hospital de C... de Viseu, sofrendo fractura do tornozelo esquerdo, escoriações e hematomas, tendo sido operada ao pé, e ficado internada até 29/11/2000, mais ficando com a perna e pé engessados durante mais de 3 meses e com necessidade de apoio de canadianas durante um ano. Assim, desde a data do acidente sofre dores, estando impossibilitada de fazer serviços com esforço nos membros inferiores, sendo anteriormente à queda mulher saudável e exercendo a profissão de cozinheira, auferindo 70.000$00 à época, tendo ficado impossibilitada de trabalhar durante seis meses, recebendo apenas subsídio de doença durante tal período. Invoca ter ficado a padecer de IPP de 20%.

Na contestação a Ré invocou a prescrição do direito da Autora, suscitou a intervenção acessória provocada de “D....” a quem a Ré havia adjudicado a obra de escavação dos lotes, e que teria assumido as responsabilidades referentes a tal empreitada bem como a celebração de contrato de seguro de responsabilidade civil que protegesse danos provocados em terceiros durante a execução da obra. Impugnou os factos alegados por desconhecimento e os danos sofridos por igual motivo, referindo ainda que as pessoas que atravessavam o prédio faziam-no indiscriminadamente sem qualquer caminho.

A autora replicou defendendo a tempestividade da propositura da acção

O Centro Distrital de Segurança Social de Viseu deduzir pedido de reembolso referente ao subsídio de doença pago à Autora entre 15/11/2000 e 25/03/2001, no total de € 1.584,56.

Foi admitida a intervenção acessória da sociedade “ D....”, ordenando-se a citação da chamada e indeferida a pretensão da Autora quanto à intervenção acessória provocada do Estado, em razão da incompetência absoluta deste Tribunal para apreciar o pedido.

A chamada “ D....” apresentou o seu articulado invocando a prescrição do direito da Autora; aceitando ter realizado obras por conta da Ré, nas quais não se incluíam a execução de pequenos buracos como aquele onde a Autora diz ter caído, sendo certo que os trabalhos de vedação foram executados pela própria Ré. Impugnou os factos alegados considerando os montantes peticionados exagerados. Suscitou a intervenção acessória provocada da Seguradora.

Admitida a intervenção acessória da sociedade “E...Companhia de Seguros,  veio esta apresentar o seu articulado, impugnando por desconhecer os factos alegados e referindo que a sua responsabilidade estaria afastada já que no buraco não havia sinalização, o que importa culpa grave da chamada e consequente exclusão da responsabilidade da seguradora, nos termos contratados.

Proferido despacho saneador e seleccionada a matéria assente e a que da Base Instrutória, realizou-se julgamento e veio a ser proferida sentença que considerou a acção totalmente improcedente, por não provada, absolvendo a Ré do pedido.

Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a autora concluindo que:

[…]

A recorrida contra alegou sustentando o acerto da decisão Apelada.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

O tribunal de primeira instância deu como provada a seguinte matéria de facto:

[…]

… …

Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil), nem criar decisões sobre matéria nova, a questão suscitada pela recorrente é a de saber se a matéria de facto provada preenche os requisitos legais da responsabilidade civil extra contratual.

A sentença recorrida entendeu que, perante os factos provados, não se encontrava verificada a ilicitude, a culpa e o nexo de causalidade, tendo julgado improcedente a acção.

Iniciando a apreciação do recurso no que se refere à ilicitude, sublinhamos que esta numa definição breve, consiste em se surpreender, no facto, um desvalor para com o direito, podendo traduzir-se na violação de um direito subjectivo (um direito de outrem) ou na violação de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios.

Pires de Lima e Antunes Varela sublinham que estes direitos subjectivos são “principalmente os direitos absolutos, nomeadamente os direitos sobre coisas ou direitos reais, os direitos de personalidade e a propriedade intelectual”[1], acrescentando ainda que, se a violação de um direito de outrem só é ilícita quando for reprovada pelo direito, isso significa que não procedem ilicitamente aqueles que actuam no exercício regular de um direito.

Quanto às disposições destinadas a proteger interesses alheios, estas são geralmente normas que tutelam interesses públicos mas que visam em simultâneo proteger determinados interesses particulares, podendo tratar-se por exemplo de normas incriminadoras. Mas mesmo nestes casos a ilicitude apura-se observando se a norma de interesse público foi violada em concreto ou não.

Ainda neste subsegmento da ilicitude cabem “as regras que protegem interesses particulares mas que não chegam a atribuir um direito subjectivo ao respectivo titular para não ferirem um outro interesse particular mais qualificado”[2] , mas não já as que visam proteger certos interesses gerias e colectivos embora da sua aplicação possam beneficiar reflexamente determinados interesses particulares.

Ao lado destes casos de ilicitude acrescenta-se o abuso de direito que, embora não versando a violação de um direito de outrem ou a ofensa de uma norma que tutele um interesse alheio, cobre a sua justificação no facto de se revelar num exercício anormal de um direito próprio, exercício esse reprovado pela lei.

Está provado que num espaço que era um descampado e que durante mais de uma década foi utilizado como parque de estacionamento de veículos automóveis, alguns moradores de prédios vizinhos transitavam por esse local a pé, sempre que se dirigissem de e para o centro da cidade de Viseu apresentando por isso o terreno vários caminhos a atravessá-lo.

Era do conhecimento, pelo menos das pessoas que utilizavam esse espaço para nele transitarem, que ele servia de estacionamento automóvel e para o trânsito de pessoas.

A ré A Ré B.... mandou preparar o terreno para ali realizar uma construção e mandou também colocar taipais nos limites do terreno e junto à Av..... de modo a ser vedado o dito terreno e impedido o acesso e trânsito de quaisquer pessoas ou veículos no interior do mesmo.

Em 15/11/2000 foi aberto um buraco com a largura de cerca de 30 centímetros e profundidade de, pelo menos, 50 centímetros, com vista à colocação de taipais nos limites do terreno e junto à dita Av. Comandante Afonso Cerqueira.

A primeira interrogação que importa fazer é a de saber se a abertura do buraco referido nas condições e finalidade para que foi feito constitui ou não um facto ilícito que tenha a reprovação do direito.

Não estamos ainda a questionar a existência de culpa mas tão só, autonomamente, como deve ser feito, a indagar da ilicitude do acto que, como sabemos, consiste na abertura de um buraco com as dimensões referidas dentro de um terreno particular.

Embora a sentença tenha discorrido e em nosso entender com acerto, sobre o direito de os proprietários taparem os seus terrenos para evitarem que o mesmo não seja devassado e, bem assim, a não existência de uma obrigação para assim agirem, o que mais interessa à decisão não é tanto o saber se esses proprietários estavam ou não obrigados a tapar o seu terreno mas antes o decidir se alguma actividade/obra que eles realizem dentro dos limites da sua propriedade ode ser caracterizada como facto ilícito gerador da obrigação de indemnizar.

Julgamos que deve ficar fora do âmbito da discussão a aplicação do art. 493 do CCivil que reporta a danos causados por coisas, animais ou actividades e isto porque manifestamente o que está em causa é a existência objectiva de um buraco que não pode ser considerada como uma coisa ou um animal. Por outro lado, saber se a realização desse buraco é um acto ilícito é questão diversa da de apurar se a actividade concreta para o realizar foi ou não perigosa. Isto é, não está em causa qualquer actividade mas sim o que resultou dela.

Para uma solução, teremos de ter presente que “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas” (art. 1305 do CCivil).

Acresce que “a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico “ (art. 1344 nº1 do CCivil).

Com este padrão de definição percebemos que a defesa dos direitos alheios relativamente a coisas imóveis têm como pressuposto que os danos provocadas por aquelas se tenham produzido em terceiros e fora dos limites determinados pelos preceitos citados que regulam o exercício da propriedade pelo seu dono.

Quer isto dizer que se um terceiro invade a propriedade alheia sem conhecimento e/ou sem autorização do proprietário não pode reclamar a existência de facto ilícito traduzido na existência de um buraco aberto por aquele na propriedade, se nessa invasão sofrer algum dano decorrente de nele ter caído.

Veja-se neste domínio que o art. 1348º do C.Civil prevê-se: “1. O proprietário tem a faculdade de abrir no seu prédio minas ou poços e fazer escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra. 2. Logo que venham a padecer danos com as obras feitas, os proprietários vizinhos serão indemnizados pelo autor delas, mesmo que tenham sido tomadas as precauções julgadas necessárias.”.

Porém, não sendo a situação em estudo a de abertura de um poço, mesmo assim, nesses casos a previsão é a de lesões de terceiros, designadamente os proprietários vizinhos, nos seus prédios confinantes e não por danos causados no próprio terreno das escavações, numa confirmação do entendimento que sustentámos.

A circunstância de o proprietário poder usar e fruir em exclusividade a sua propriedade sobre um coisa imóvel não lhe impõe que se abstenha, dentro dos limites dela, de poder abrir um buraco sem sinalizar essa abertura ou sem que previamente tenha vedado o terreno.

Se assim é, teremos também de anotar que a situação se altera quando, com autorização e/ou conhecimento do proprietário, o terreno seja transitado por outras pessoas, porquanto neste caso, ele que tem conhecimento e consente que no seu terreno passem outras pessoas ainda que sem direito algum, é responsável por não pôr em causa a segurança delas com a abertura de um buraco no terreno[3].

Não estando ainda no domínio da culpa mas tão só da ilicitude, cremos que a existência desse conhecimento ainda que sem autorização, determinaria que se considerasse ilícito o exercício desse direito que sendo normal se cobre de ilicitude em função de o conhecimento possuído o tornar abusivo.

Fixando o art. 334 do CC uma concepção objectiva do abuso de direito no sentido de não ser necessária a consciência de se terem excedido os limites da boa fé dos bons costumes ou do fim económico ou social do direito, o conhecimento que apontámos como exigido funciona como um facto subjectivo a que se deve socorrer, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se exorbitou do fim social ou económico do direito[4].

Numa formulação mais simples, à semelhança de ter de se considerar ilícita a abertura de um buraco por parte de um particular num caminho público ou mesmo no leito de uma servidão constituída num terreno que lhe pertencesse, a circunstância de ele abrir um buraco numa propriedade sua num lugar em que ele soubesse que por lá passavam particulares, determinaria que também se devesse considerar ilícita essa abertura.

Ora, a prova realizada nos autos e que serve a decisão, não permite que se conclua que a Ré sabia que pelo terreno descampado passava quem quer que fosse e nem este conhecimento pode seguramente presumir-se (em termos de presunção judicial) de se saber que esse descampado era utilizado há mais de uma década como parque de estacionamento de veículos automóveis e por algumas dezenas de moradores de prédios vizinhos que o transitavam para se dirigirem de e para o centro da cidade de Viseu apresentando por isso o terreno vários caminhos a atravessá-lo.

Veja-se que a Autora nunca alegou que a Ré tivesse conhecimento do trânsito e parqueamento que se realizava pelo terreno mas sim, que “era do conhecimento geral da população da cidade de Viseu e das entidades públicas do Município, designadamente da Câmara Municipal de Viseu, que aquele local servia de estacionamento automóvel e de trânsito de pessoas” (vd . art. 6 da pi) tendo sido nessa sequência que, quesitado tal facto na BI, lhe veio a ser respondido, restritivamente, que “Provado que era do conhecimento geral , pelo menos das pessoas referidas em 5), que aquele local servia de estacionamento automóvel e para trânsito de pessoas  (resposta ao quesito 8º da BI), esclarecendo-se que essas pessoas referidas em 5) eram precisamente aquelas que por ele transitavam . 

Não cremos pois que se possa afirmar, para garantir a existência do conhecimento por parte da Ré que o terreno tinha essa utilização, que perante as evidências físicas registadas (o parqueamento, o trânsito de pessoas e a existência de caminhos) a Ré tinha a obrigação de saber e que esse conhecimento mesmo que não demonstrado, tem de se lhe imputar tacitamente.

Em nosso entender, cabendo o ónus da prova do facto ilícito à Autora, o conhecimento por parte da Ré, de que pelo terreno passavam há vários anos dezenas de pessoas e ali parqueavam automóveis, exigia pelo menos que se tivesse provado que a Ré (através de representantes seus) havia verificado essa situação ou que havia sido informada disso.

Mesmo que podendo acreditar-se que seria muita difícil que a Ré não soubesse dessa circunstância, certo é que entre o que ficou provado e uma tal conclusão de conhecimento não existe, segundo as regras de experiência comum, a possibilidade de afirmar com segurança que desses factos provados a conclusão de conhecimento só não resultaria se entre uns e outra ocorresse uma circunstância de todo inabitual e improvável.

Porém, basta pensar que é totalmente possível que um proprietário possa não exercer qualquer atenção sobre um imóvel seu durante anos e que possa mandar realizar obras nele sem ter conhecimento do estado em que o mesmo se encontra, para ter de concluir-se, como o fazemos, que não pode considerar-se provado que a Ré soubesse que o terreno era utilizado por terceiros e, como assim, para se ter de concluir pela não verificação de existência de um facto ilícito gerador da obrigação de indemnizar.

Se a falta de verificação do pressuposto da ilicitude faria improceder a procedência da acção, colhem também fundamento as considerações que a sentença recorrida tece quanto à culpa e ao nexo de causalidade.

Sendo a culpa o juízo de reprovabilidade pessoal através do qual se certifica que nas circunstâncias concretas do caso o agente podia e devia ter agido de forma diferente, de acordo com aquilo que a lei exigia, e que só assim não actuou por razões imputáveis á sua vontade que livremente dominava, pode dizer-se que o acidente em causa foi determinado por uma actuação da autora que invadiu propriedade alheia, de noite, não existindo no local iluminação pública sendo na altura noite escura e com má visibilidade.

A colocação de uma delimitação física à volta do buraco, não sendo exigida por lei como o afirmámos a propósito da ilicitude, de acordo com a prova obtida nos autos não se impunha a nenhum dos Réus como dever de diligência, tanto assim que se desconhece se estes sabiam que o local era transitado por pessoas. Mas mesmo assim, como defende a sentença recorrida “ nem assim ficariam eliminadas em absoluto as fontes de perigo que continuariam a persistir e que tanto passavam pela entrada no terreno que não era de uso público, como poderiam ter passado pela ultrapassagem de barreiras colocadas (veja-se que parte do perímetro estava vedado) ou por qualquer outra situação de perigo ligada ao terreno. E tanto mais assim que não se demonstrou que a Autora fizesse o percurso habitual no carreiro que utilizava habitualmente e, por isso, que fosse no mesmo que se encontrasse o buraco (veja-se a resposta restritiva ao art. 17º da Base Instrutória). Sendo certo ainda que se demonstrou que o buraco foi aberto para colocação de taipais nos limites do terreno e junto à Avenida ....de modo a ser vedado o terreno e impedido o acesso e trânsito de pessoas e veículos ao interior do mesmo (resposta positiva aos arts. 35º e 36º da Base Instrutória). Ou seja, a vedação estaria nos limites do terreno, não ficando demonstrado que fosse no caminho seguido habitualmente pela Autora no local.

E não se poderá dizer que o proprietário tinha o dever de prever que a sua propriedade poderia vir a ser violada por pessoas através da passagem. É certo que se demonstrou que o terreno referido era um grande descampado que durante mais de uma década foi utilizado como parque de estacionamento de veículos automóveis (art. 4º da Base Instrutória), e que era também utilizado por alguns dos moradores dos prédios vizinhos, designadamente moradores do denominado....e dos prédios sitos à.... para por ele transitarem a pé sempre que se dirigissem de e para o centro da cidade de Viseu (resposta ao art. 5º da Base Instrutória), apresentando vários caminhos a atravessá-lo (art. 6º da Base Instrutória), os quais estavam marcados no solo por piso batido pelo trânsito das pessoas (resposta ao art. 7º da Base Instrutória), sendo do conhecimento geral, pelo menos dos moradores dos prédios vizinhos, que aquele local servia de estacionamento automóvel e para o trânsito de pessoas (resposta ao art. 8º da Base Instrutória). Mas não se demonstrou que o buraco destinado à vedação estivesse situado no percurso de tais caminhos.

 Face ao circunstancialismo exposto, julgamos que não era exigível que um proprietário medianamente inteligente e prudente previsse o que veio a acontecer. Pois não é exigível que se preveja a actuação ilícita e a imprudência de terceiros nestas circunstâncias,(…)”

 Em resumo, não se encontra demonstrado nos autos a existência do facto ilícito, de culpa e, por consequência lógica, a do nexo de causalidade que impunha a existência da qualificação do facto como ilícito improcedendo na totalidade as conclusões de recurso.

… …

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a Apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas pela Apelante.

[1] Vd. C.Civil Anotado , vol. I, 2ª ed. p.417
[2] Vd. op. cit . p. 418 que refere neste âmbito a previsão do art. 1391 do CC

[3] Antunes Varela conclui pela ausência de responsabilidade nos casos em que se tenha verificado a violação de uma postura administrativa que manda iluminar determinados recintos para protecção dos operários que laboram em certas fábricas ou das crianças que frequentam certa escola, se o acidente vem a afectar alguém que indevidamente circula no recinto (Das Obrigações em Geral, 7ª ed., vol. I, pág. 532).
[4] Vd. Pires de Lima e Antunes Varela, C.Civil Anotado , vol. I, 2ª ed. p. 227.