Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
23/04.OTAVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 10/08/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2º Nº4, 50º DO CP, 371º- A DO CPP
Sumário: 1. A eliminação da menção ao caso julgado no n.º4 do art.2.º do Código Penal não deixa dúvidas de que o trânsito em julgado da sentença não impede a aplicação da lei penal mais favorável ao arguido.

2. A norma constante do art.371.º-A do C.P.P. não implica uma reapreciação de todos os acórdãos condenatórios proferidos , mas só daqueles em que o condenado formular um pedido de reabertura da audiência.

3. Na reabertura da audiência, que deverá seguir os princípios que regem a fase de julgamento, não se questiona já a culpa, não faculta o regresso à fase da questão da culpabilidade, mas tão só a punibilidade menos severa, em virtude da entrada em vigor da lei nova mais favorável.

4. Os artigos 2.º, n.º 4 do C.P. e 371.º-A do C.P.P. , não restringem a aplicação do regime de lei penal mais favorável à execução de pena e “efeitos penais de condenação”.

5. Sempre que a lei penal posterior à condenação com trânsito em julgado for abstractamente mais favorável à aplicada na condenação e não tenha sido determinado a cessação da execução da pena , sendo a sua aplicação, invocada pelo requerente, deverá ter lugar a reabertura da audiência.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em Conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

        Relatório

            Por despacho de folhas 655 a 657, proferido pela Ex.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Ourém, na acta de audiência de julgamento de 14 de Maio de 2008, foi decidido que a única questão que haverá a debater nessa audiência será a eventual suspensão de pena já imposta ao arguido JF, atenta a nova redacção introduzida pela Lei 59/07 ao art.50.º do Código Penal e, consequentemente, não se procederá nem à audição do ofendido, nem à realização da perícia às faculdades mentais do arguido.

            Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Colectivo, por acórdão proferido a 21 de Maio de 2008, decidiu indeferir o requerido pelo arguido JF e, em consequência, determinam o cumprimento efectivo da pena de três anos e seis meses de prisão que, por acórdão proferido, nestes autos, em 9 de Novembro de 2005, lhe foi imposta, como pena única, resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares que lhe foram impostas, pela prática, como autor material, em concurso real, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.172.º, n.º1 do CP, (pena de dois anos e seis meses de prisão) e de um crime de violação, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 164.º, n.º l, 22.º, 23.º e 73.º do CP (pena de dois anos de prisão).

            Inconformado com o despacho proferido de folhas 655 e seguintes e com o acórdão proferido a 21 de Maio de 2008,, deles interpôs recurso o arguido JF, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

a) O art.2/4 do C. P., anterior redacção, já previa a aplicação da lei penal mais favorável, até ao trânsito em julgado da sentença.

b) O art.2/4 do C.P., na actual redacção, prevê a aplicação da lei penal mais favorável, mesmo após o trânsito em julgado;

c) A disposição inovadora do artigo 371‑A CPP visa permitir uma audiência, de acordo com as normas legais, a fim de aplicar lei penal mais favorável.

d) Para aplicar a lei penal mais favorável o Tribunal tem que aplicar o "novo" direito aos factos dados como provados,

e) Não pode limitar‑se a analisar a verificação ou não dos pressupostos de que depende a suspensão da execução da pena;

f) Por ser esse o entendimento a extrair da última parte do artigo 2/4 do C. P.

g) A douta decisão em recurso interpretou e aplicou, incorrectamente, o disposto do art.2/4 C.P. e 371‑A, 343 e 345, do Código de Processo Penal

h) A interpretação e aplicação deveria ter sido no sentido de possibilitar declarações sobre os factos, por parte do arguido e testemunhas,

i) E, após, aplicar a nova lei aos factos.

Razão porque se requer seja a mesma revogada e substituída por outra que proceda à realização de audiência e aplicação da nova lei aos factos.

            O Ministério Público na Comarca de Ourém respondeu ao recurso pugnando pela manutenção do acórdão proferido na sequência da reabertura da audiência.

            O Ex. Procurador Geral Adjunto  neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e manutenção das decisões recorridas.

            Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

            Colhidos os vistos cumpre decidir.

      Fundamentação

            É o seguinte o teor do despacho recorrido:

« No seu requerimento para reabertura de audiência nos termos e para os efeitos do art.371.º A, do C.P.P., o arguido JF suscitou, além do mais, as seguintes questões:

1ª ‑ A eventual aplicação da lei penal no tempo, face às alterações introduzidas no Código Penal, pela Lei 59/07, de 04 de Setembro, e consequentemente à eventual nova configuração dos crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punível à data pelo art.172.º, n.º 1, e ao crime de violação p. e p. à data pelo art.164.º, n.º 1;

2ª ‑ A alegada inimputabilidade do arguido.

O Acórdão em lª Instância foi proferido no dia 9 de Novembro de 2005 (fls. 243 a 264).

Por Acórdão proferido no Tribunal da Relação de Coimbra em 12 de julho de 2006 (fls. 337 a 349) foi confirmada a condenação proferida em lª Instância.‑

            Por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 22 de Fevereiro de 2007 (fls. 411 a 421) foi julgado inadmissível o recurso que o arguido interpôs daquele outro Acórdão da Relação de Coimbra.‑

O código penal na redacção introduzida pela Lei 59/07 de 04 de Setembro, refere no seu art. 2.º, n.º 4, prevê a possibilidade da alteração da decisão, transitada em julgado, por efeito da sucessão de leis penais no tempo, restrita, exclusivamente, à execução de pena e aos efeitos penais de condenação, de harmonia , aliás, com o disposto com o arto 371.º A, C.P.P., que apenas permite a reabertura da audiência para aplicação da lei mais favorável em concreto, resultante de alteração às leis penais, mas apenas e só quanto à execução da pena já imposta. Nem de outro modo se compaginaria esta possibilidade com o princípio do caso julgado.‑

De qualquer forma, as alterações legislativas consagradas na Lei 59/07 só entraram em vigor no dia 15 de Setembro do mesmo ano, portanto, cerca de 7 meses depois do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça nestes autos.‑

Nesta sequência, e pela mesma ordem de razões também não haver lugar à apreciação da inimputabilidade do arguido.

A condenação que lhe foi imposta nestes autos traduziu‑se na imposição de 2 penas de prisão, cumuladas na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, o que pressupõe, a vontade livre e consciente do arguido, ou seja a imputabilidade.‑

Transitada que se encontra nesta parte a decisão, não pode este tribunal voltar a apreciar a susceptibilidade do arguido ser sujeito da aplicação de uma pena.‑

Assim sendo, por força do que fica exposto e das disposições conjugadas do art. 2.º, n.º 4, do Código Penal e 371.º A, do C.P.P., nas suas actuais redacções, a única questão que haverá a debater nesta audiência será a eventual suspensão de pena já imposta, atenta a nova redacção introduzida pela Lei 59/07, ao art.50.º do C.Penal e, consequentemente, não se procederá nem à audição do ofendido, nem à realização da perícia às faculdades mentais do arguido.

Notifique.».

                                                                               *

A matéria de facto apurada e respectiva convicção constante do acórdão recorrido é a seguinte:

Factos provados

1. Em 9 de Novembro de 2005, o arguido foi condenado como autor material, em concurso real, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172.º n.ºl do CP, na pena de dois anos e seis meses e de um crime de violação, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 164.º n.ºl ; 22.º; 23.º e 73.º do CP, na pena de dois anos de prisão e, em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de três anos e seis meses de prisão;

2. Os factos integradores de tais crimes foram praticados em dia não apurado do mês de Setembro de 2002 e em Setembro de 2003;

3. Na mesma decisão, foi condenado a pagar ao lesado a quantia de € 5.055,08, a título de compensação por danos não patrimoniais e de indemnização por danos patrimoniais;

4. O arguido foi julgado na ausência;

5. Estando, à data do julgamento efectuado nestes autos, a viver em França;

6. Embora tenha tomado conhecimento, quer da realização da audiência de discussão e julgamento, quer da condenação que se lhe seguiu;

7. Porque, segundo o que ele próprio referiu, «nunca levou este caso a sério»;

8. Ainda não efectuou quaisquer diligências, no sentido de iniciar o pagamento da indemnização que lhe foi imposta, nestes autos;

9. Continua a afirmar‑se inocente;

10. Trabalha desde os 12 anos de idade;

11. Tendo estado a trabalhar, durante quatro anos, em Angola, num estabelecimento de café;

12. Durante cerca de dez anos, em França, em contratos sazonais, para prestação de trabalhos agrícolas;

13. Após o que esteve emigrado na Alemanha, durante cerca de quatro anos;

14. Onde trabalhou, na construção civil;

15. Regressou a Portugal, onde viveu durante algum tempo, após o que regressou a França, desta feita, para trabalhar como pedreiro;

16. Voltou a Portugal, passados três meses, em virtude de a sua mulher ter adoecido;

17. Tendo aqui permanecido, para lhe dar assistência;

18. Até à morte desta, em Maio ou Junho de 2005;

19. Logo após o que voltou para França;

20. Onde foi detido, para cumprir a pena que lhe foi imposta, neste processo;

2 1. Começou a consumir álcool quando tinha 19 anos de idade;

22. Bebia, em média, por dia, entre 3 a 5 litros de vinho;

23. Entretanto, deixou de beber;

24. Situação em que se mantém, desde há dois anos e meio;

25. Vive com uma companheira e com a filha desta, de 16 anos, desde há um ano e dois meses;

26. Antes de preso, havia retomado a sua actividade de pedreiro;

27. Auferindo cerca de 1300 euros, por mês;

28. Completou a 4 a classe;

29. Sabe ler e escrever;

30. Após o falecimento da sua mulher, passou por um período de desorientação pessoal e profissional;

3 1. É respeitado na F……;

32. Sendo alvo de estima e respeito pelas pessoas que o conhecem;

33. É considerado pessoa trabalhadora.

            Convicção do Tribunal

A matéria de facto acima dada como provada, teve por base, no que se refere aos factos descritos nos n's 1. a 4., o acórdão de fis. 243 a 261 e as actas de fis. 229 a 23 1; 237 a 242; 263 e 264; quanto aos descritos em 5. a 29., as declarações do próprio arguido e, em relação aos descritos em 30. a 33, a análise conjugada dos depoimentos das testemunhas AA e AM, amigos de infância do arguido; JG, que foi colega do arguido na construção civil; JF, irmão do arguido; NF, sobrinho do arguido; AL, vizinho do arguido há mais de vinte anos"­e PA, filha da actual companheira do arguido.

Para além do que fica exposto, haverá, ainda, que atender à matéria de facto fixada no acórdão condenatório.

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                                                                       *
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] ).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação do recorrente arguido JF a questão a decidir é a seguinte:

- se  a decisão recorrida interpretou e aplicou incorrectamente o disposto nos artigos 2.º, n.º 4 do C.P. e 371.º-A, 343.º e 345.º do C.P.P. ao ter-se limitado a analisar a verificação dos pressupostos de que depende a suspensão da execução da pena, sem possibilitar declarações sobre os factos por parte do arguido e das testemunhas e consequente aplicação da nova lei aos factos.

            Passemos ao conhecimento da questão.

O art.29.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa estabelece que « Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se rectroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.».

Do princípio aqui consagrado resulta , por um lado, a proibição da aplicação retroactiva da lei penal desfavorável ao arguido e, por outro, a obrigação de aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido.

O princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável ao arguido assenta substancialmente no princípio da necessidade das penas, da tutela penal ou da máxima restrição das penas.

A legitimidade das penas criminais depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, para a protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados.

Deste modo, se uma lei nova eliminar o facto que era punível segundo a lei vigente no momento da sua prática, esse facto deixa de ser punível e se já tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais ( art.2.º, n.º 2 do Código Penal).

Já relativamente à aplicação da lei nova concretamente mais favorável ao arguido, quando não afasta a incriminação do facto, o art.2.º, n.º4 do Código Penal, na redacção do DL n.º 400/82, de 23 de Setembro, determinava o seguinte: « Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado , por sentença transitada em julgado.».       

Os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira defendem que « não faz sentido que alguém continue a cumprir uma pena por um crime que, entretanto deixou de o ser ou que passou a ser punido com pena mais leve », quando a Constituição não estabece qualquer excepção à aplicação retroactiva da lei penal mais favorável [4],  e os Profs. Jorge Miranda e Rui Medeiros concluiam que o limite do caso julgado estabelecido no art.2.º, n.º4 do Código Penal deve ser considerado inconstitucional por violação dos « princípios constitucionais da igualdade perante a lei (art.13.º, n.º 1, 2ª parte), sendo fonte de injustiças materiais relativas; viola o princípio da mínima restrição possível dos direitos e liberdades fundamentais ( art.18.º, n.º 2, 2ª parte), princípio do qual a 2.ª parte do n.º4 do artigo.29.º é uma emanação e concretização.» [5].    

O Tribunal Constitucional , em diversos acórdãos, pronunciou-se pela inconstitucionalidade da última parte do n.º4 do art.2.º do Código Penal , na redacção do DL n.º 400/82, de 23 de Setembro, nos sentidos normativos aplicados que vedaram a aplicação da lei mais favorável pela formação do caso julgado[6].

O legislador não foi insensível à doutrina e jurisprudência citada.

Assim, a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que entrou em vigor no dia 15 do mesmo mês, passou a estabelecer o seguinte no art.2.º, n.º 4 do Código Penal:

« Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.».

A eliminação da menção ao caso julgado no n.º4 do art.2.º do Código Penal não deixa dúvidas de que o trânsito em julgado da sentença não impede a aplicação da lei penal mais favorável ao arguido.  

Sobre esta problemática referia-se na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, esclareceu que « No Título I da Parte Geral, referente à lei penal reforça-se a aplicação retroactiva da lei mais favorável, em cumprimento do disposto no art.29.º, n.º 4 da Constituição.Assim, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, cessarão a execução e os efeitos penais quando o arguido tiver cumprido uma pena concreta igual ou superior ao limite máximo da pena prevista em lei anterior ( artigo 2.º, n.º 4).Esta solução é materialmente análoga à contemplada no n.º 2 do artigo 2.º para a hipótese de lei nova descriminalizadora ou despenalizante e a sua efectivação prescinde de uma reponderação da responsabilidade do agente do crime à luz do novo regime sancionatório mais favorável.».

Para aplicação do novo regime penal mais favorável ao condenado, sempre que a lei mais favorável não tenha determinado a cessação da execução da pena, a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que entrou em vigor a 15 de Setembro do mesmo ano, aditou ao Código de Processo Penal o art.371.º-A, com a seguinte redacção:

« Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.».          

Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 109/X9 [7], que está na base da Lei n.º 48/2007, referia-se que « Esta solução é preferível à utilização espúria do recurso extraordinário de revisão ou à subversão dos critérios de competência funcional ( que resultaria da atribuição de competência para julgar segundo a nova lei ao tribunal de execução de penas.».

A norma constante do art.371.º-A do C.P.P. não implica uma reapreciação de todos os acórdãos condenatórios proferidos , mas só daqueles em que o condenado formular um pedido de reabertura da audiência.

Por outro lado, afigura-se-nos que na reabertura da audiência, que deverá seguir os princípios que regem a fase de julgamento, não se questiona já a culpa, mas tão só a punibilidade menos severa, em virtude da entrada em vigor da lei nova mais favorável.

Nessa audiência poderá ser necessária, ou não, a produção da prova para aplicação da pena  por crime que passou a ser menos severamente punido do que era no momento da sua prática.

Se for necessária a indagação de factos novos, deverá realizar-se produção de prova em audiência de julgamento.

Em qualquer caso, o que terá sempre de ser observado é o contraditório.

O Tribunal Constitucional pronunciou-se já sobre este novo preceito processual penal , tendo decidido « Não julgar inconstitucional a norma constante do art.371.º-A do Código de Processo Penal, na redacção aditada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de permitir a reabertura de audiência para aplicação de nova lei penal que aumenta o limite máximo das penas concretas a considerar, para efeitos de suspensão de execução de pena privativa da liberdade[8]

Posto isto, importa fazer uma breve referência à sequência processual que levou às decisões objecto de recurso.

Por acórdão proferido em 9 de Novembro de 2005, o arguido JF, foi condenado como autor material, em concurso real, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172.º n.ºl do CP, na pena de dois anos e seis meses e de um crime de violação, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 164.º n.ºl, 22.º e 23.º do CP, na pena de dois anos de prisão. Em cúmulo jurídico foi‑lhe imposta a pena única de três anos e seis meses de prisão. - (cfr. fls 243 a 261).

Inconformado com a decisão dela interpôs recurso o arguido , sendo que uma das questões suscitadas era a nulidade insanável prevista na al. c) do art.119.º do C.P.P. , por a audiência ter decorrido na sua ausência. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão proferido em 12 de Julho de 2006 confirmou o acórdão recorrido.- (cfr. fis. 337 a 348).

Com o trânsito em julgado do acórdão do STJ proferido em 22 de Fevereiro de 2007, que julgou legalmente inadmissível o recurso interposto pelo arguido do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 12 de Julho de 2006 (cfr. fls. 411 a 421), foram emitidos mandados de detenção para cumprimento da pena imposta ao arguido, ao abrigo da Lei 65/2003 de 23.08., em virtude de o arguido se encontrar em França - (cfr. despacho judicial de fis. 493 e 494).

Tal mandado de detenção europeu foi cumprido em 17 de Fevereiro de 2008 (cfr. fis. 538 e fis. 542 a 559).

Em 3 de Abril de 2008, o arguido veio requerer a reabertura da audiência de discussão e julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no art. 371.º- A do CPP., requerendo:

- que lhe sejam aplicadas as alterações do Código Penal introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que lhe são mais favoráveis, pois delas resulta que os factos que integravam o crime tipificado pelo art.172.º, n.º 1 do C.P. na redacção vigente quando foi condenado, agora integram a previsão do art.171.º, n.º3, al. a) do C.P., e os factos que integravam os artigos 164.º, 22.º e 23.º do C.P. na redacção vigente quando foi condenado, agora integram a previsão do art.173.º, do C.P.; e

- que se declare que o arguido sofria de anomalia psíquica ao tempo dos factos, sendo inimputável nos termos do art.20.º do C.P. e se ordene o seu internamento em estabelecimento adequado, nos termos dos artigos 501.º e 470.º do C.P.P., requerendo para este efeito que seja ouvido , que sejam inquiridas duas testemunhas e realizadas diligências.

O Ex.mo Juiz do processo ordenou , por despacho de 4 de Abril de 2008, que “para os efeitos requeridos pelo arguido”, vão os autos ao Ex.mo Juiz de Círculo.- cfr. folhas 605.

A Ex.ma Juíza de Círculo, em despacho de 8 de Abril de 2008 – não notificado ao arguido nem ao M.P. –  indicou a data para julgamento acrescentando que se lhe afigura que “ quanto à questão da imputabilidade do arguido suscitada a fls. 592 e seguintes , transitada em julgado que se encontra a condenação em pena de prisão, não é legalmente admissível a respectiva apreciação nestes autos.”. – cfls. folhas 607.

 Declarada reaberta a audiência de julgamento ao abrigo do art.371.º-A do C.P.P. foi proferido o despacho agora objecto de recurso, em que a Ex.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo ,  decidiu - em síntese - não debater na audiência a “eventual nova configuração” dos crimes de abuso  sexual de crianças, p. e p. à data dos factos pelo art.172.º, n.º 1,do C.P. , bem como o crime de violação p. e p. à mesma data pelo art.164.º, n.º 1 do mesmo Código, pois o art. 2.º, n.º 4 do C.P., na redacção introduzida pela Lei 59/07 de 04 de Setembro, prevê a possibilidade da alteração da decisão, transitada em julgado, por efeito da sucessão de leis penais no tempo, restrita, exclusivamente, à execução de pena e aos efeitos penais de condenação, de harmonia , aliás, com o disposto com o arto 371.º- A, C.P.P., que apenas permite a reabertura da audiência para aplicação da lei mais favorável em concreto, resultante de alteração às leis penais, mas apenas e só quanto à execução da pena já imposta, pois “nem de outro modo se compaginaria esta possibilidade com o princípio do caso julgado.”. Acrescentou ainda que nesta sequência, e pela mesma ordem de razões também não haver lugar à apreciação da inimputabilidade do arguido, pois a condenação que lhe foi imposta nestes autos pressupõe a vontade livre e consciente do arguido, ou seja a imputabilidade, pelo que transitada que se encontra nesta parte a decisão, não pode este tribunal voltar a apreciar a susceptibilidade do arguido ser sujeito da aplicação de uma pena.

O recorrente impugna este despacho alegando, em síntese, que tendo suscitado no seu requerimento de reabertura da audiência que a tipificação dos factos dados como provados têm , à luz da actual redacção do Código Penal, um diferente enquadramente jurídico e que à data dos factos padecia de anomalia psíquica, não podia o Tribunal ter restringido a reabertura da audiência à eventual suspensão da pena que resulta do novo regime do C.P., impedindo o arguido/recorrente de contraditar os argumentos e conclusões da acusação em relação aos factos que lhe eram imputados.

Vejamos.

São dois os motivos que levaram o arguido JF a requerer a abertura da audiência.

O primeira deles, que leva o arguido a  requerer a abertura da audiência, é o seu entendimento de que a tipificação dos factos dados como provados terão, à luz da actual redacção do Código Penal introduzida pela Lei n.º 59/2007, um diferente enquadramento jurídico, que lhe é mais favorável a nível de punição.

Como já vimos , o Tribunal , no despacho recorrido, interpretando restritivamente os art.s 2.º, n.º 4 do C.P. e 371.º-A do C.P.P. e invocando o caso julgado, optou por não debater na audiência, já reaberta, a questão que lhe havia sido suscitada, fixando apenas nesse momento como objecto de debate na audiência um outro motivo, não requerido pelo arguido, qual seja a da eventual suspensão da execução da pena aplicada ao arguido.

Salvo o devido respeito, os artigos 2.º, n.º 4 do C.P. e 371.º-A do C.P.P. , não restringem a aplicação do regime de lei penal mais favorável  à execução de pena e “efeitos penais de condenação”.

Sempre que a lei penal posterior à condenação com trânsito em julgado for abstractamente mais favorável à aplicada na condenação e não tenha determinado a cessação da execução da pena , sendo a sua aplicação, invocada pelo requerente, uma solução minimamente plausível , deverá ter lugar a reabertura da audiência.

No caso em apreciação, e em abstrato, as concretas normas penais que o arguido indica no seu requerimento como preenchendo actualmente os factos dados como provados, apresentam uma moldura penal menos severa do que a moldura das normas penais que o Tribunal teve como preenchidas quando condenou o arguido nas penas que está a cumprir.

A parte da pena que se encontra cumprida pelo arguido JF não atingiu o limite máximo das penas previstas nas normas penais indicadas pelo arguido ( art.2.º, n.º 4, 2ª parte do Código Penal).

Estando reaberta a audiência, a pedido do arguido JF, entendemos que o Tribunal recorrido deveria, em obediência ao disposto nos artigos 2.º, n.º 4 do C.P. e 371.º-A do C.P.P. e princípio do contraditório, ter ouvido os argumentos dos sujeitos processuais sobre a questão suscitada de sucessão de leis no tempo e, a final, proferir decisão sobre a aplicabilidade aos factos provados, ou não, do novo enquadramento jurídico penal pretendido pelo arguido como mais favorável.

Não tendo assim decidido entendemos que o despacho recorrido violou, nesta parte, o disposto nos art.s 2.º, n.º 4 do C.P. e 371.º-A do C.P.P., pelo que não pode o mesmo subsistir e, consequentemente, impõe-se também revogar o acórdão recorrido.

Quanto ao segundo motivo invocado pelo arguido para requerer a reabertura da audiência  - discutir a sua inimputabilidade à data dos factos, em razão de anomalia psíquica, a que alude o art.20.º do Código Penal - , temos como manifesto que ele não pode proceder.

O legislador não pretendeu com o art. 371.º-A do C.P.P. proceder a um segundo julgamento tendo em vista colmatar deficiências que o arguido/requerente entende que se verificaram na sentença já transitada em julgado, reabrindo a apreciação da matéria de facto com vista à sua modificação[9], designadamente a nível de culpabilidade ou da sua falta.

O art. 371.º-A do C.P.P. não faculta o regresso à fase da questão da culpabilidade.

Por outro lado, a reabertura da audiência, ao abrigo do disposto no art.371.º-A do C.P.P., tem como pressuposto a entrada em vigor de uma lei penal abstractamente mais favorável do que aquela pela qual o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado. Ora, o art.20.º do Código Penal, relativo à inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, não sofreu qualquer alteração legislativa posteriormente à data da condenação do arguido. Não se coloca aqui qualquer aplicação retroactiva de lei penal mais favorável.

Assim, o despacho recorrido, na parte em que decidiu que não havia que debater na reabertura da audiência ao abrigo do art. 371.º-A do C.P.P., a pretensa inimputabilidade do arguido à data dos factos, decidiu bem e é de manter o mesmo.

            Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido JF e, consequentemente:

- revogar o despacho recorrido, na parte em que não conheceu se os factos pelos quais o arguido foi condenado e que integravam os crimes p. e p. pelos art.s 172.º, n.º 1 e 164.º, ( este na forma tentada ) do Código Penal , integram em face das alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, a previsão, respectivamente, dos art.s 171.º, n.º3, al. a) e 173.º, do Código Penal, nesta última redacção;

- manter no mais o despacho recorrido; e

- revogar o acórdão recorrido proferido a 21 de Maio de 2008.

            Custas pelo recorrente, fixando em 3 Ucs a taxa de justiça.


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4] Constituição da República Portuguesa anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, pág. 496.
[5] Constituição da República Portuguesa anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 330.
[6] Cfr. , entre outros , os acórdaõs n.ºs 677/98 ( DR., II, n.º 53, de 4-3-1999) e 205/03 ( DR., II, n.º 40, de 17-2-2004).
[7] - cfr. www.mj.gov.pt
[8] Acórdão n.º 164/2008, in www.tribunal constitucional.pt
[9]  cf. neste sentido também o acórdão da Rel. do Porto de 10-12-2007, CJ, n.º 202, pág. 294.