Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
46/09.3TBNLS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: ALIMENTOS
MENORES
FUNDO DE GARANTIA
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.189 OTM, LEI Nº 75/98 DE 19/11, DL Nº 164/99 DE 13/5, REGULAMENTO (CE) Nº 4/2009 DE 18/12/2008
Sumário: I - A impossibilidade da satisfação pelo devedor das quantias em dívida, enquanto requisito para que o Estado, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGDAM) suporte as prestações de alimentos devidos a menor residente em Portugal, traduzindo a necessidade de uma tutela urgente e eficaz a cargo do Estado, verifica-se quando da factualidade provada resulta que não é viável com o recurso a procedimento previsto no art. 189º da O.T.M. obter a cobrança coerciva das prestações alimentares vencidas e vincendas (“incidente de descontos” intra-processual).

II - Não é requisito da lei (Lei nº 75/98 de 19/11 e DL nº 164/99 de 13/5) – para que o Estado pague através do F.G.A.D.M. a prestação devida pelo obrigado alimentos – que seja impossível a cobrança coerciva mediante recurso a uma acção executiva, quer em sede de execução especial por alimentos, quer em sede de cobrança de alimentos de estrangeiro, ao abrigo de Convenção Internacional (v. g. da Convenção de Nova Iorque de 20-06-1956) ou de instrumento normativo comunitário (Regulamento (CE) nº 4/2009 de 18/12/2008 ).

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

                                                                       *

            1 - RELATÓRIO

Por apenso aos autos de regulação do exercício do poder paternal relativo ao menor T (…), nascido a 06/12/1997, filho de N (…) e sendo desconhecida a identidade do progenitor, no âmbito da qual em conferência de pais havia o dito menor ficado à guarda e cuidados dos avós maternos, ficando a progenitora obrigada a contribuir com a quantia de € 100,00 por mês a título de alimentos ao menor, foi processado incidente de Incumprimento das Responsabilidades Parentais, na vertente alimentar, deduzido pelo avô materno do menor, J (…), contra a dita N (…), nele se decidindo:
a)   Julgo   o   incidente   de   incumprimento   de   alimentos   procedente,   e   em consequência, condeno  a requerida  N (…) a pagar  ao requerente J (…)  em  representação  do  menor  T (…),  a  quantia  de € 3.615,00 ( três mil seiscentos e quinze euros), a título de alimentos devidos ao menor, respeitante às pensões de alimentos de Maio de 2009 a Abril de 2012;

b) Determino que o Estado, através do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, assegure a prestação de alimentos devida ao menor T (…) que se fixa no montante de € 130,00 (cento e trinta euros) mensais, actualizável de acordo com a taxa de inflação disponibilizada pelo INE, enquanto se verificarem as condições subjacentes  à  sua  concessão  e  até  que  cesse  a  obrigação  a  que  a  devedora esteja obrigada, a remeter directamente ao avó do menor, a partir do mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal.

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Inconformada com essa decisão, dela interpôs recurso o dito Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, o qual finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:

Não consta da douta sentença recorrida a verificação de um dos requisitos cumulativos que a Lei nº 75/98 de 19/11 exige para que as prestações de alimentos possam ser atribuídas nos termos que preconiza, designadamente o requisito identificado na alínea c) do ponto 5 das presentes alegações.

Com efeito, da sentença afere-se que seja possível a satisfação pelo devedor das quantias em dívida previstas no art. 189º da O.T.M., contrariamente ao que nela se refere.

Com efeito, o art. 189º da O.T.M. dispõe, no seu nº1, al.b) que:

Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos, não satisfizer as quantias em dívida dentro de 10 dias depois do vencimento, se for empregado ou assalariado, ser-lhe-ão deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respectiva entidade patronal, que ficará na situação de fiel depositária.”

A sentença recorrida refere expressamente que a progenitora /devedora se encontra a trabalhar em França, sendo conhecida a sua morada de residência!

A mesma decisão ao concluir, porém, que não é possível tornar efectiva a prestação de alimentos através dos meios estabelecidos no art. 189º da O.T.M. não teve em consideração:

a) o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, publicado no Jornal Oficial nº L 012de 16/01/2001, em vigor desde 1 de Março de 2002, que prevê que as decisões proferidas num Estado-Membro e que tenham força executiva podem ser executadas noutro Estado-Membro depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer parte interessada – art. 38º.0.

b) que a fim de ver satisfeita a dívida, o avô do menor, em representação do neto, pode recorrer à Autoridade Central Portuguesa em Matéria de Cobrança de Alimentos Devidos a Menores no Estrangeiro (cf. arts. 1º e 3º da Convenção de Nova Iorque, de 20-06-1956, isto é, à Direcção Geral da Administração da Justiça.

            A decisão recorrida também não procurou saber junto da administração tributária, qual a situação fiscal da requerida, designadamente se é proprietária de algum imóvel em Portugal.

            O apelante considera, pois, que in casu, não estão preenchidos os pressupostos necessários ao pagamento pelo Fundo de Garantia, dos alimentos devidos ao menor T (…)

            É imprescindível a existência dos vários requisitos cumulativos, uma vez que a prestação de alimentos só se mantém enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão (e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado).

            A intervenção do apelante tem natureza subsidiária.

            10º Não se verificando a existência de um dos requisitos (in casu o da alínea d) do nº5 das presentes alegações) não estão, pois, preenchidos todos os pressupostos necessários para que o Estado, por intermédio do FGADM assegure e suporte as prestações de alimentos devidas ao menor T (…), até que a obrigada às mesmas, inicie o efectivo cumprimento da obrigação – arts. 1º da Lei nº 75/98 de 19 de Novembro e 2º, nº2, 3º nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 164/99 de 13 de Maio – vide entre outros Ac. Trib. Relação de Coimbra de 18 de Maio de 2010.

---- Termos em que deve ser considerado procedente o presente recurso de apelação e, consequentemente, revogada a a douta sentença recorrida, com os devidos e legais efeitos, pois só assim se fará INTEIRA JUSTIÇA!

                                                                       *

Por sua vez, a Exma. Magistrada do M.º P.º, formulou, nas suas alegações, as seguintes conclusões:

Encontra-se preenchido o requisito previsto na 2ª parte da alínea a) do nº1 do art. 3º do DL nº 164/99 de 13 de Maio, ou seja, não “ser possível a satisfação pelo credor das quantias em dívida, pelas formas previstas no art. 189º da O.T.M.”;

Ainda que o devedor de prestações de alimentos resida no estrangeiro, tal não inviabiliza que o FGA suporte as prestações de alimentos devidas a menor;

O meio previsto no art. 189º da O.T.M. é um meio específico de cobrança que só atinge os rendimentos auferidos pelo devedor, sendo que para atingir outros bens do mesmo, ter-se-á de seguir pela acção executiva e inerente penhora;

Encontram-se preenchidos todos os pressupostos do art. 1º da Lei 75/98 de 19.11 e art. 3º, nº1, al.a) do DL nº 164/99 de 13.05., devendo assim ser mantida a decisão proferida pelo tribunal a quo.  

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            Finalmente, pelo Requerente J (…) foram também apresentadas contra-alegações, as quais finalizou pela seguinte forma:

A) A DOUTA SENTENÇA INDICA O PREENCHIMENTO DE TODOS OS REQUISITOS PARA QUE POSSA SER ACCIONADO O FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES, O QUE FAZ DE FORMA CLARA, FUNDAMENTADA E DE ACORDO COM OS ELEMENTOS DE PROVA QUE CONSTAM DO PROCESSO;

B) O RECORRENTE AO APRESENTAR AS SUAS ALEGAÇÕES DECERTO NÃO CONSULTOU O PROCESSO E OS ELEMENTOS DE PROVA QUE DO MESMO CONSTAM, NOMEADAMENTE PESQUISAS DE BENS E RENDIMENTOS DA REQUERIDA SEM ÊXITO E RELATÓRIOS SOCIAIS ELABORADOS;

C) ESTÃO PREENCHIDOS IN CASU TODOS OS REQUISITOS QUE DE FORMA CUMULATIVA A LEI IMPOE PARA QUE SE VERIFIQUE O PAGAMENTO DA PRESTAÇÃO ALIMENTICIA PELO RECORRENTE;

D) NÃO PODE O RECORRIDO ATRAVÉS DO DISPOSTO NO ARTIGO 189 DA OTM E DO REGULAMENTO (CE) N.º 44/2001 DO CONSELHO DE 22.12.2000, COM RECURSO À DIRECÇÃO GERAL DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA, CONSEGUIR O CUMPRIMENTO COERCIVO DA SENTENÇA JUDICIAL QUE REGULOU O EXERCICIO DO PODER PATERNAL;

E) E NÃO O PODE DESDE LOGO PORQUANTO A MAE DO MENOR ESTÁ NUMA SITUAÇÃO DE DESEMPREGO EM FRANÇA, COMO CONSTA DE FORMA EXPRESSA DO RELATÓRIO SOCIAL;

F) E NÃO O PODE PORQUE O RENDIMENTO QUE É APONTADO COMO SENDO RECEBIDO PELA MESMA MENSALMENTE NO VALOR DE € 834,00 É UM MONTANTE IMPENHORÁVEL, NA MEDIDA EM QUE SE TRATA DE VALOR PAGO PELO ESTADO FRANCÊS PARA APOIO AO CIDADÃO CARENCIADO E PORQUE MANIFESTAMENTE INFERIOR AO SALÁRIO MINIMO NACIONAL NAQUELE PAIS QUE É DE € 1.337,70;

G) RESULTA DOS AUTOS QUE O AVÔ DO MENOR INTENTOU O PROCESSO DE INCUMPRIMENTO EM MARÇO DE 2010 E DESDE ENTÃO NÃO FOI POSSIVEL RECEBER QUALQUER TIPO DE QUANTIA, PESE EMBORA TODOS OS PEDIDOS APRESENTADOS E DILIGÊNCIAS CONSTANTES DO PROCESSO;

H) TRATA-SE DE UMA SITUAÇÃO EM QUE CLARAMENTE A JUSTIÇA PASSA PELA SUBSTITUIÇÃO DO OBRIGADO A ALIMENTOS PELO ESTADO PORTUGUÊS, COM A CONTRIBUIÇÃO DO RECORRENTE PARA A SOBREVIVÊNCIA DIGNA DO NECESSITADO DE ALIMENTOS – O MENOR;

I) O TONY É UM ADOLESCENTE QUE NÃO TEM PAI REGISTADO, QUE NÃO TEM MÃE QUE CONSIGO CONTACTE, E QUE ESTÁ DESDE SEMPRE ENTREGUE AOS CUIDADOS E AO AMOR DOS AVÓS MATERNOS;

J) O RECORRIDO E A ESPOSA SÃO PESSOAS DE ALGUMA IDADE QUE TÊM UMA MUITO DIFICIL SITUAÇÃO ECONOMICA QUE OS LEVA MESMO A SER BENEFICIÁRIOS DO RSI;

K) NEGAR A ESTE AVÔ E A ESTE MENOR O DIREITO A COMEÇAR A PODER CONTAR COM UM VALOR A TITULO DE PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS É DE FACTO UMA GRAVE INJUSTIÇA;

L) COLOCAR A POSSIBILIDADE DE ESSE VALOR SER COBRÁVEL ATRAVÉS DE NOTIFICAÇÕES FEITAS PELA DGAJ AO ESTADO FRANCÊS COMO PAGADOR DE UM APOIO SOCIAL A UMA CIDADÃ PORTUGUESA QUE RESIDE EM FRANÇA É QUERER PROLONGAR O NÃO PAGAMENTO DE UMA OBRIGAÇÃO A ESTE MENOR;

M) O RECORRENTE TEM DE INTERVIR COM O PROCESSAMENTO DOS PAGAMENTOS DAS PRESTAÇÕES DE ALIMENTOS E DEVE SER OBRIGADO A ESSE PAGAMENTO DESDE O MÊS SEGUINTE Á NOTIFICAÇÃO DA SENTENÇA PROFERIDA EM PRIMEIRA INSTÂNCIA;

N) TRATA-SE DE UMA MÃE RESIDENTE NO ESTRANGEIRO, SEM EMPREGO, E CONHECEM-SE BEM OS OBSTÁCULOS E AS IMPOSSIBILIDADES DE NA PRÁTICA SE OBTER IN CASU UM PAGAMENTO COERCIVO ATRAVÉS DE UM RENDIMENTO INFERIOR AO SMN FRANCÊS E QUE NÃO É PROVENIENTE DO TRABALHO DA MÃE DO MENOR;

O) DO PRÓPRIO GUIA PRÁTICO DA SEGURANÇA SOCIAL DISPONÍVEL NA INTERNET PARA ESTE TIPO DE SITUAÇÕES SE PREVÊ COMO PREENCHIMENTO DO REQUISITO EM CAUSA A SITUAÇÃO DE DESEMPREGO E A RESIDÊNCIA NO ESTRANGEIRO;

P) VERIFICANDO-SE O PREENCHIMENTO CUMULATIVO DOS REQUISITOS DE QUE A LEI FAZ DEPENDER O PAGAMENTO DAS PRESTAÇÕES DE ALIMENTOS PELO ESTADO PORTUGUÊS, ATRAVÉS DO FGADM, IMPÕE-SE QUE O RECORRENTE ASSEGURE E SUPORTE O PAGAMENTO DE ALIMENTOS DEVIDOS AO MENOR T (…)

Q) MANTER-SE A DECISÃO PROFERIDA EM SEDE DE TRIBUNAL DE COMARCA, E APÓS TODO O TEMPO DECORRIDO DESDE A ENTRADA DA PETIÇÃO INICIAL, E TODAS AS DILIGÊNCIAS LEVADAS A CABO PELO TRIBUNAL QUE NÃO PERMITIRAM A COBRANÇA COERCIVA DE VALORES E ANTES CONFIRMARAM A INEXISTENCIA DE BENS E RENDIMENTOS DA DEVEDORA DE ALIMENTOS, SERÁ A DECISÃO JUSTA E A ÚNICA QUE DEFENDE O SUPERIOR INTERESSE DO MENOR.

---- NESTES TERMOS, NOS MELHORES DE DIREITO, E COM O SEMPRE MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE SER CONSIDERADO IMPROCEDENTE O RECURSO DE APELAÇAO APRESENTADO, MANTENDO-SE A SENTENÇA RECORRIDA E DETERMINANDO-SE QUE AS PRESTAÇÕES DE ALIMENTOS SÃO DEVIDAS DESDE O MÊS SEGUINTE À NOTIFICAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA EM PRIMEIRA INSTÂNCIA E QUE DESTE MODO É MANTIDA, ASSIM SE FAZENDO COMO SEMPRE A ACOSTUMADA E INTEIRA JUSTIÇA!         

                                                                       *

Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                           *

            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do C.P.Civil e, por via disso, a questão a decidir é:

- se se encontrava ou não “in casu” preenchido o requisito previsto na 2ª parte da alínea a) do nº1 do art. 3º do DL nº 164/99 de 13 de Maio.

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade que interessa ao conhecimento do presente recurso é a que foi alinhada na decisão sob recurso, a que se aditará um facto que cremos apenas por lapso não foi então considerado, pois que constava do “relatório social da mãe” (cf. fls. 42 a 45) que foi expressamente invocado na correspondente “motivação”, donde:

1. O menor T (…), nasceu em 06/12/1997, em França, e é filho da requerida, N (…), desconhecendo-se a identidade do progenitor.

2. O requerente, J (…), é avô do menor e pai da requerida.

3. A progenitora em 1998, por ocasião de uma viagem a Paris, teve uma oportunidade profissional e acabou por decidir ficar em França, tendo o menor ficado com os avós.

4. Desde então o T (…), vive com os avós, tendo frequentado o Jardim-de-infância em Vilar Seco desde um ano de idade, depois a Escola primária e actualmente frequenta a Escola EB 2,3, em Nelas.

5. A progenitora continuou em França, onde constituiu nova família, tendo inclusivamente uma filha, (…).

6. Desde 2006 que a progenitora não vê o seu filho, não existindo também qualquer contacto entre ambos.

7. Na conferência de pais realizada em 21 de Abril de 2009, no âmbito da regulação do poder paternal, fixou-se o seguinte regime provisório:

- O menor ficou à guarda e cuidados dos avós maternos, aos quais foi atribuido o exercício do poder paternal;

- A mãe ficou obrigada a contribuir com a quantia de €100,00, por mês, a título de alimentos ao menor, com início no dia 08 do mês seguinte.

8. Sucede que, a progenitora, nunca efectuou qualquer pagamento.

9. Por sentença proferida em 07 de Julho de 2011, fixou-se um regime definitivo, mantendo-se o menor entregue aos avós e a obrigação da progenitora de efectuar o pagamento de €100,00, valor que passou a ser actualizável de acordo com a taxa de inflação publicada pelo INE.

10. O agregado familiar onde o menor se insere é constituído apenas pelos avós.

11. O rendimento do agregado depende do trabalho do requerente, que trabalha na empresa J (…) Unipessoal Lda., na agricultura e recebe uma remuneração de acordo com os dias de trabalho, sendo que ronda o valor de €302,40.

12. A esposa do requerente é beneficiária do rendimento social de inserção e recebe mensalmente o valor de € 167,70.

13. O menor recebe abono de família no montante de €29,19.

14. De despesas no agregado familiar despendem cerca de €60,00 mensais em electricidade e € 22,00 em água.

15. Em despesas escolares os avós despenderam no ano de 2011, em papelaria o valor de € 26,90 e em despesas com refeições € 82,70.

                                                           *

16. A progenitora trabalha em França, auferindo um salário que ronda os € 994,00 ilíquidos mensalmente. 

                                                                       *                   

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

            Trata-se então no presente caso de apreciar e decidir se se encontrava ou não “in casu” preenchido o requisito previsto na 2ª parte da alínea a) do nº1 do art. 3º do DL nº 164/99 de 13 de Maio, particularmente face à situação da progenitora obrigada a alimentos que reside e trabalha num país estrangeiro – França – o que passa pela interpretação a dar à remissão para o inciso “formas previstas no art. 189º da O.T.M.”, designadamente se tal contempla a possibilidade de recorrer à Autoridade Central Portuguesa em Matéria de Cobrança de Alimentos Devidos a Menores no Estrangeiro e/ou averiguar junto da administração tributária qual a situação fiscal da dita progenitora, mormente se é proprietária de algum imóvel em Portugal.

Consabidamente, a Lei nº 75/98, de 19.11., regulamentada pelo DL nº 164/99, de 15.05., criou o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores (gerido pelo Instituto de Gestão Financeira e Social) e preceitua no seu artigo 1º que:

Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º do Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda de encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação”.

 É, assim, através do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores (doravante FGADM) que o Estado assegura essas prestações.

E para que o FGADM em substituição do devedor, pague uma prestação alimentar ao menor, é necessário, nos termos do arts. 1º e 2º do DL 75/98 e art. 3º n.º 3 do DL n.º 164/99, supra citados, que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:

a) existência de sentença que fixe os alimentos devidos a menor;

b) residência do menor em território nacional;

c) inexistência de rendimentos líquidos do alimentando superiores ao salário mínimo nacional;

d) que o alimentado não beneficie, na mesma quantidade, de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre;

e) não pagamento por parte do devedor, das quantias em dívida através de uma das formas previstas no artigo 189º da OTM. [1]

Tenha-se presente que é o próprio preâmbulo do DL n.º 164/99, de 13.05., que regulamentou a citada Lei n.º 75/98, que admite a necessidade do Estado assegurar esses direitos das crianças constitucionalmente consagrados e expressamente refere que “de entre os factores que relevam para o não cumprimento da obrigação de alimentos assumem frequência significativa a ausência do devedor e a sua situação sócio-económica.”

Igualmente importa não olvidar que os arts. 6º n.º 3 da Lei 75/98 e 5º n.º1 do DL 164/99, estabelecem que “o Fundo fica sub-rogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso” e, por isso, nas situações em que o obrigado a alimentos tiver património o Estado poderá sempre ser reembolsado das prestações pagas em substituição do devedor.

Donde, e considerando a finalidade dos referidos diplomas – Lei n.º 75/98 e DL 164/99 – assegurar o direito aos menores de condições de subsistência mínimas – pode e deve concluir-se “ser apenas relevante para a intervenção do Fundo que não seja possível a satisfação pelo devedor das quantias em dívidas através dos meios previstos no art.189º do O.T.M., único meio que assegura a celeridade necessária para que a cobrança dos alimentos devidos ao menor garanta a sua sobrevivência[2].

Ora, neste artigo 189º estatui-se, na parte que ora releva, o seguinte:

Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida dentro de dez dias depois do vencimento, observar-se-á o seguinte:

a) Se for funcionário público, ser-lhe-ão deduzidas as respectivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade competente;

b) Se for empregado ou assalariado, ser-lhe-ão deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respectiva entidade patronal, que ficará na situação de fiel depositária”.

Neste particular cremos ser de seguir o entendimento de que neste dispositivo estão em causa “mecanismos pré-executivos”, isto é, contempla-se um "procedimento pré-executivo", que tem por finalidade específica a cobrança coerciva de alimentos devidos a menores, processando-se, por razões de celeridade e simplicidade processual, incidentalmente no próprio processo em que foi proferida decisão a fixar os alimentos e em que foi proferida decisão a condenar o devedor ao seu pagamento.

Trata-se do chamado “incidente de descontos[3], incidente que, por razões de celeridade e simplicidade processual, atendendo à premência na obtenção dos alimentos, corre termos no próprio processo, em vez do recurso a uma acção executiva autónoma.

Ora, estando a originária devedora da prestação de alimentos a residir em França, onde trabalha (em concretas condições que até se desconhecem!), não é possível recorrer ao preceituado no artigo 189.°, nº 1, aI. b) da O.T.M. para tornar efectiva a prestação de alimentos devida ao menor, pois que, como doutamente sustentado na decisão sob recurso, não é legalmente possível ordenar nesta acção à entidade patronal/entidade empregadora sediada em França que desconte nos salários as quantias necessárias para garantir o pagamento das prestações alimentares vencidas ou vincendas[4].

Na verdade, mesmo com o recurso ao Regulamento (CE) nº 4/2009 de 18-12-2008 que entrou em vigor em 18/06/2011, apenas um tribunal francês pode decidir adjudicar os rendimentos ou bens do devedor de alimentos auferidos naquele país ao menor, por via de um requerimento executivo dirigido às respectivas autoridades: o que, além de estar nos antípodas da celeridade e simplicidade processual visadas pelo dito artigo 189º, mostra a impossibilidade de cobrança dos alimentos pelos meios previstos pelo artigo 189.° da O.T.M….

Daí que já tenha sido sustentado que “Quando o menor pretende obter o pagamento dos alimentos através de outros bens do devedor terá de intentar acção executiva autónoma, com processo especial previsto nos artigos 1118 e segs. do CPC.
Como é sabido, as acções executivas são normalmente morosas e, por isso, a Lei n.º 75/98 e também o DL 164/99 não exigiram que o alimentado a ela recorresse para cobrar os alimentos em dívida, como requisito da obrigação do Estado garantir os alimentos ao menor, precisamente porque essa exigência acabaria por inviabilizar a satisfação em tempo útil desse direito a alimentos, constitucionalmente consagrado no artigo 69º da Lei Fundamental e pressuposto necessário dos demais direitos, incluindo do direito à vida (art.24º da CRP).
[5]

Argumentação que, “mutatis mutandis”, vale para a possibilidade – que se reconhece em tese existir – quer de recorrer à Autoridade Central Portuguesa em Matéria de Cobrança de Alimentos Devidos a Menores no Estrangeiro quer de penhorar, sendo disso caso, no decurso de uma acção executiva autónoma, algum imóvel em Portugal de que a progenitora obrigada a alimentos se detectasse ser proprietária.

Pois que tudo isso constituiria procedimentos morosos, sempre extra-processuais (com o sentido de fora do condicionalismo previsto no art. 189º da O.T.M.) e de resultado final imprevisível!

O que torna perfeitamente legítima a conclusão de que no caso vertente a progenitora e aqui Requerida/Recorrida, não satisfez ou estava em condições de satisfazer as quantias em dívida pelas formas previstas no art. 189º da O.T.M., sendo nesse contexto e por força de tal que teve lugar a condenação do FGADM.

Pois que não é requisito da lei (Lei nº 75/98 e DL nº 164/99) – para que o Estado pague através do F.G.A.D.M. a prestação devida pela requerida – que seja impossível a cobrança coerciva mediante recurso a uma acção executiva, quer em sede de execução especial por alimentos, quer em sede de cobrança de alimentos de estrangeiro, ao abrigo de Convenção Internacional (v. g. da Convenção de Nova Iorque de 20-06-1956) ou de instrumento normativo comunitário (Regulamento (CE) nº 4/2009 que entrou recentemente em vigor)...

Nesta mesma linha de entendimento já foi sustentado que “Não é preciso que o requerente mostre que, em execução especial por alimentos (art.º 1118º e segs. do C.P.C.), não foi possível realizar coactivamente a prestação de alimentos.”[6]

Na verdade, considera-se tal dispensável, em atenção a que “não nos oferece a menor duvida que das normas e dos princípios constitucionais que consagram o direito à segurança social e a protecção da infância e do desenvolvimento integral das crianças, a cargo do Estado, se infere seguramente a necessidade de uma tutela urgente e eficaz que garanta adequadamente a satisfação das prestações alimentares devidas a menores, nos casos de incumprimento pelos progenitores do dever fundamental de proverem à subsistência e educação dos seus filhos – de onde decorre que sempre teria imposição constitucional a implementação legislativa de um regime de garantia do direito à subsistência básica dos menores, privados do apoio que prioritariamente lhes deveria ser prestado no âmbito da família, semelhante, nos seus traços fundamentais, ao que emerge da Lei nº75/98.”[7]

Improcede assim totalmente e sem necessidade maiores considerações, a apelação interposta pelo FGADM.

                                                                       *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I - A impossibilidade da satisfação pelo devedor das quantias em dívida, enquanto requisito para que o Estado, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGDAM) suporte as prestações de alimentos devidos a menor residente em Portugal, traduzindo a necessidade de uma tutela urgente e eficaz a cargo do Estado, verifica-se quando da factualidade provada resulta que não é viável com o recurso a procedimento previsto no art. 189º da O.T.M. obter a cobrança coerciva das prestações alimentares vencidas e vincendas (“incidente de descontos” intra-processual).

II - Nada tendo tal requisito que ver sequer com a demonstração do insucesso da tentativa de cobrança dos alimentos devidos, quer em execução especial por alimentos (do art.º 1118º e segs. do C.P.C.), quer através dos mecanismos previstos no Regulamento (CE) nº 4/2009 de 18-12-2008 (que entrou em vigor em 18/06/2011), e na medida em que ao abrigo destes últimos se torna necessário dirigir um requerimento executivo às respectivas autoridades de França, país onde reside e trabalha a progenitora/devedora, sempre pondo em causa a celeridade e simplicidade processual que a criação do FGDAM visou tutelar e assegurar. 

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, julga-se a apelação totalmente improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Sem custas, por delas estar isento o Recorrente FGDAM.

                                                                       *

                                  

                                   Luís Filipe Cravo ( Relator )

                                   Maria José Guerra

                                   Albertina Pedroso


[1] Cf., neste sentido, REMÉDIO MARQUES, in “Algumas Notas Sobre Alimentos Devidos a Menores”, págs. 221 e 222.
[2] Como vincado no Ac. do T.R.do Porto de 20-01-2011, proc. nº  660/07.1TBAMT.P1, acessível in www.dgsi.pt/jtrp.
[3] Assim vem doutamente qualificado no recente Ac. do T.R. de Coimbra de 09-10-2012, proc. nº  105/05.1TBTNV-C., acessível in www.dgsi.pt/jtrc.
[4] Cf. mais desenvolvidamente sobre a questão REMÉDIO  MARQUES, no estudo “Aspectos sobre o cumprimento coercivo das obrigações de alimentos”, a fls. 668 da obra “Comemorações dos 35 anos do Código Civil”.
[5] Citámos, mais uma vez, o Ac. do T.R.do Porto de 20-01-2011, proc. nº  660/07.1TBAMT.P1, acessível in www.dgsi.pt/jtrp, aliás doutamente invocado nas contra-alegações de recurso da Exma. Magistrada do MºPº no Tribunal a quo, e com referência a uma situação com bastante paralelismo com a ajuizada.
[6] Citámos o Ac. do T.R. de Lisboa de 13-10-2011, proc. nº 148-A/2002.L1-2, acessível in www.dgsi.pt/jtrl.
[7] Citámos o Ac. do S.T.J. de 07-04-2011, proc. nº  9420-06.6TBCSC.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt.