Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
509/10.8TAVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CORREIA PINTO
Descritores: RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
VIOLÊNCIA
ACÇÃO DIRECTA
Data do Acordão: 05/08/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 31.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA B) E 347.º, DO CP; ARTIGO 336.º DO CC.
Sumário: I - O crime de resistência e coacção sobre funcionário constitui um crime de perigo, ou seja, para a sua verificação não é necessária a efectiva lesão do bem jurídico que lhe está subjacente, mas apenas a possibilidade ou a probabilidade da correspondente conduta típica vir a afectar os interesses protegidos.

II - A violência exigida no tipo de crime previsto no artigo 347.º, do CP, concretiza-se em todo o acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das forças armadas, militarizadas ou de segurança, sem que tenha de ser necessariamente grave ou de consistir em agressão física.

III - Mostra-se preenchido o tipo objecto do crime de resistência e coacção sobre funcionário se o arguido, na sequência de uma acção de fiscalização legitimamente exercida por fiscais municipais, acompanhados por elementos da GNR, com a finalidade de impedirem a apreensão de objectos que se encontravam na via pública, usou da força física para com um dos elementos fiscalizadores, tendo-lhe, inclusivamente, rasgado o bolso da camisa, atitude que só terminou com a intervenção de um dos agentes do referido corpo militarizado.

IV - Nos termos do artigo 336.º do Código Civil, a acção directa, tendo em vista assegurar um direito, exige a respectiva indispensabilidade, desde logo pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais para evitar a inutilização desse direito.

V - No caso dos autos, não se verifica essa causa de exclusão da ilicitude [cfr. artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do CP], porquanto:

- Os fiscais actuaram no cumprimento, legítimo, das respectivas funções de fiscalização; e

- Estando também presentes na operação de fiscalização dois agentes da GNR, não pode afirmar-se a impossibilidade de o arguido a eles imediatamente recorrer, para, dessa forma, evitar a ineficácia do seu eventual direito.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I)

Relatório

1.                No âmbito do processo comum singular n.º 509/10.8TAVNO.C1, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Ourém, foi deduzida acusação contra o arguido, A..., filho de (...) e de (...), natural de (...), Batalha, casado, gerente, residente na (...) Fátima, sendo-lhe aí imputada (fls. 44 e seguintes) a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punível pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal e de dois crimes de injúria agravada, previstos e puníveis pelo artigo 184.º do Código Penal, com referência aos artigos 181.º e 183.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma legal.

Em audiência de julgamento, perante as desistências de queixa e a aceitação do arguido, foi julgado extinto o procedimento criminal relativamente aos crimes de injúria agravada (cf. teor de fls. 112).

Proferida sentença (fls. 172 e seguintes), aí se decidiu condenar o arguido, como autor material do aludido crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena de oito meses de prisão, substituída pela pena de 240 dias de multa à taxa diária de € 15,00.

2.                O arguido, não se conformando com a decisão proferida, veio interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

a) A publicação do Despacho com eficácia externa, em causa não foi efectuada legalmente, pois apenas o foi através de Edital e na internet no Portal do Município.

b) Como condição de executoriedade do Despacho com eficácia externa a notificação é obrigatória, procedimento que não se verificou, nem aquando do momento da sua execução.

c) No caso, o mesmo tem conteúdo restritivo de direitos dos particulares e estes são obviamente individualizáveis,

d) Embora o rigor não seja nenhum, pois a fiscalização deve ser igual para todos e não mais grave na Cova da Iria.

e) O Edital é fundamentado com base em regulamentos municipais e não tem fundamentação de facto.

f)                  O Edital consubstancia um acto administrativo e o Despacho proferido é de conteúdo lesivo de interesses individuais.

g) Por isso foi determinada a sua publicação, com carácter de urgência, através de edital, como condição da sua eficácia.

h) Além deste Edital, foi ainda proferido um novo despacho só para os Serviços, determinando o modo de actuação.

i) Foi com fundamento nestes dois actos administrativos e no conhecimento dos mesmos pelo arguido, que foi assente a sua condenação.

j) Se os actos referidos não forem válidos, então a Sentença fica em crise, abalando-se um dos seus pilares.

k) O acto administrativo está dependente de notificação ou de publicitação, sendo certo que a publicação não substitui a notificação.

l) Como medida de polícia tem pelo menos de ser notificada, nem que seja no momento da execução.

m) A queixosa e Acusação deveriam ter provado que foi feita a notificação ao arguido, o que não aconteceu.

n) Se se optasse por publicação esta tinha de ser feita em Diário da República e não foi feita.

o) Se a hipótese for de notificação, esta tem de ser provada.

p) Não foi junto aos autos certificação de que o Edital esteve publicado, onde e em que período.

q) Não se sabendo por isso se os fiscais estavam ou não a coberto da legalidade do acto administrativo ou se houve abuso de poder e excesso de força.

r) Podendo por isso o arguido opor-se por acção directa.

s) A notificação não se presume só podendo ser provada documentalmente pelo que a Acusação deveria ter junto ao processo como prova essa certificação de publicidade, o que não fez.

t) Por outro lado podia ainda a Acusação ter feito prova de que os fiscais tinham feito a notificação na ocasião no início da execução, o que também não aconteceu.

u) Ficou apenas provado que os fiscais falaram com a mulher e com a empregada e que o Arguido não estava na loja da altura do início da apreensão.

v) A publicação ou a mera publicidade não é suficiente para a CRP como notificação do ato administrativo com eficácia externa potencialmente lesivo.

w) No âmbito dos Editais também se aplica a regra geral da notificação por via postal ou pessoal prevista no art. 70.º do CPA e exigida pelo art.º 268º n.º 3 da CRP.

x) O Edital, pretendendo configurar inegavelmente uma notificação, violou de forma clara e frontal os artigos 66.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), além de não fazer prova do dia que é afixado.

y) A internet não estando acessível a todos os interessados e a não existência de procedimento estabelecido e do conhecimento dos comerciantes e lojistas de Fátima com o intuito de os alertar para a publicação faz com que esse não seja o meio de divulgação de qualquer edital.

z) Através da publicação na internet não se consegue fazer prova que o arguido tenha tido conhecimento do edital.

aa) O douto Tribunal a quo valorizou a prova documental constante dos autos, respeitante à certificação pelos responsáveis dos dois serviços no que respeita às coimas e apreensão, sem atender à ilegalidade da notificação.

bb) Mesmo que agora fosse junto um documento comprovativo da publicação seria da lavra da própria Participante, que mais não constituem do que um depoimento escrito da própria parte, inadmissível in casu, além de nada provarem quanto à data de afixação, valendo apenas como mero depoimento de parte, por isso irrelevantes.

cc) A Acusação não logrou demonstrar materialmente que a afixação do Edital tenha efectivamente ocorrido na medida em que não consta o acto que o certifica e atesta.

dd) O acto afixação teria de estar datado, o que não está, e a correspondente certificação de afixação teria de lhe ser contemporânea para que pudesse relevar.

ee) Só assim se poderia considerar assente que a afixação havia ocorrido. Não demonstrando documentalmente a Entidade Demandada que a afixação ocorreu efectivamente, nunca poderia, pois,

ff) mesmo que a CRP não exigisse outra coisa, fazer a apreensão por intempestividade, pois que a invocada publicação através da intranet ou internet, por não prevista na Lei em apreciação, nem na lei, não relevará, igualmente, para efeito de notificação, tendo efeitos meramente informativos.

gg) A decisão administrativa deve ser notificada aos seus interessados, nos termos dos artigos 268.º da CRP e 66.º do CPA. Desta norma resulta que a notificação do acto administrativo é obrigatória,

hh) A forma que deve revestir esta notificação, diz-nos aquele preceito constitucional que é a forma prevista na lei (CPA). E não num mero regulamento administrativo ou Edital.

ii) Conforme decidido pelo Tribunal Constitucional no douto Acórdão n.º 383/2005, de 13/7/2005, não constitui, assim, acto de notificação constitucionalmente relevante a publicação ou publicitação do acto administrativo através da afixação do Edital em local público, ou em Internet ou portal do Município, pois assim não se garante a certeza jurídica da sua cognoscibilidade pelos seus destinatários individuais.

jj) A falta de prova da notificação deve invalidar todo o processo e a pena atribuída, pois viola a Constituição e a Lei.

kk) Ficou provado que os Fiscais Municipais não se identificaram, nem vestiam uniforme

ll) O que deviam ter feito, como era seu dever legal.

mm) Não se sabe se a camisola estava em espaço interdito e se houve violência ou ameaça, e por isso não se sabe a legalidade da actuação da fiscalização, da gravidade da actuação do arguido.

nn) No tocante ao tipo subjectivo de ilícito, exige-se uma perfeita congruência entre este e o tipo objectivo. A estrutura do crime em análise não é a de um delito de tendência ou de intenção, bastando para o seu preenchimento o dolo eventual.

oo) Porém, o facto que se insere na alínea supra respeita ao elemento subjectivo do tipo de ilícito em causa. Quanto ao elemento objectivo, de prévio conhecimento por parte do recorrente de que os aludidos agentes pretendiam exercer “acto próprio das suas funções e visasse obstar ao respectivo cumprimento”, a decisão recorrida é completamente omissa e contraditória.

pp) Não constando da matéria de facto provada o conhecimento por parte do ora recorrente que os fiscais municipais e os agentes da GNR

qq) pretendessem fazer a apreensão, pois não foi provada a notificação deste, (elemento intelectual do dolo), não é possível concluir, como se faz na alínea i) e j) da douta Sentença recorrida, pela verificação do seu elemento volitivo, na medida em que este último pressupõe a existência do primeiro.

rr) Ora, o artº 49º do Dec-Lei n.º 433/82 de 23.10, na redacção introduzida pelo Dec-Lei 244/95 de 14.9 atribui às autoridades policiais competência para exigir ao agente de uma contra-ordenação a respectiva identificação.

ss) Contudo, não estabelecendo a LCC qual o formalismo a observar na identificação de um suspeito da prática de uma contra-ordenação, por força do disposto no artº 41º do mesmo diploma, deverão as entidades policiais observar o disposto no artº 250º do C.P.P. (como direito subsidiário).

tt) Não resulta da matéria de facto provada nem do auto de notícia que as autoridades tenham comunicado ao arguido as circunstâncias que fundamentam a obrigação de se identificar e os meios pelo qual o poderia fazer

uu) Para se poder concluir que o arguido era suspeito da prática de um crime ou mesmo de uma contra-ordenação a qualquer regulamento ou edital, necessário seria que a entidade policial tivesse precedido a sua actuação da competente notificação e a tivesse dado a conhecer ao arguido recorrente, o que não consta que tivesse efectuado.

vv) Nos termos do artigo 21º da CRP os cidadãos “têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.”

ww) Provou-se que estavam seis fiscais municipais e dois GNRs presentes, o que diminui ou inibe a violência.

xx) Do elenco de factos dados como provados na douta Sentença recorrida não consta que os fiscais municipais, na altura da acção de fiscalização eram seis homens e estavam acompanhados por uma patrulha da GNR, aliás conforme determinação do próprio despacho 45/2010, junto ao processo e referenciado na alínea d) destes mesmos factos.

yy) Provou-se que os fiscais não vestiam uniforme e que no início da apreensão o arguido não se encontrava na loja.

zz) As testemunhas disseram que os Fiscais falaram com a mulher e com a empregada do arguido, mas não falaram directamente com este.

aaa) São elementos constitutivos do crime de resistência e coacção sobre funcionário do tipo objectivo que o agente se oponha a que a autoridade pública exerça as suas funções, usando para tanto, de violência;

bbb) Do tipo subjectivo o dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal.

ccc) A acção violenta tanto pode ser física, absoluta ou relativa, como psíquica e pode ser exercida quer sobre pessoas quer sobre coisas.

ddd) E não releva que essa resistência visasse defender um direito do próprio agente, pois o art.º 21 da Constituição parece legitimar apenas a resistência para defesa dos direitos do agente que resiste.

eee) O Tribunal não respondeu a esta questão, mas podia tê-lo feito, pois a Câmara encarregou-se de juntar ao processo serodiamente o auto de apreensão do material recolhido na Loja do arguido e lá constam as camisolas,

fff) o que significa que não houve qualquer resultado da acção do arguido, quer dizer que este não impediu de nenhuma forma a acção do funcionário.

ggg) A sentença viola os comandos normativos do artigo 347.º do Código Penal, na interpretação do Acórdão do STJ, de 07.10.2004, na medida em que não fixou que o facto tenha atingido os destinatários, de forma a impedir que tenham atingido o fim visado.

hhh) A Sentença violou a norma jurídica, pois não considerou a presença de oito homens na operação, dois GNRs e seis fiscais,

iii) Que nunca poderiam ser amedrontados ou impedidos na sua acção pela acção única do arguido,

jjj) Que foi imediatamente imobilizado e não impediu de forma alguma que o material, todo, fosse apreendido.

kkk) A Sentença violou a Constituição da República Portuguesa nos seus artigos 21.º e 268.º n.º 3; o C.P.Administrativo nos seus artigos 66.º e seguintes, violou o Decreto-lei 58/98; o artigo 250.º do C.P.P., ex-vi do artigo 41.º do DL 433/82 e o artigo 347.º do Código Penal.

Termina afirmando que a sentença recorrida deve ser revogada, por inconstitucionalidade e ilegalidade, na forma atrás descrita, substituindo-a pela respectiva absolvição.

2.2 O Ministério Público, em 1.ª instância, apresentou resposta à motivação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

1.ª A circunstância de que os Fiscais Municipais eram seis homens e se encontravam acompanhados por uma Patrulha da GNR, esta composta por dois agentes, sendo que essa circunstância foi referida pelos agentes da GNR e consta da motivação da sentença recorrida, não deve considerar-se nem relevante nem imprescindível na apreciação da conduta do arguido, a qual lhe foi indiferente e não o desmobilizou de agir como agiu.

2.ª Assim, a referida circunstância não assume a favor do arguido o efeito supostamente pretendido de atenuar a respectiva medida da pena.

3.ª Pelo exposto, considerando que a circunstância em apreço não consubstancia uma omissão factual, nem imprescindível nem relevante, mas antes inócua não há necessidade de a mesma ser incluída no conjunto dos factos dados como provados.

4.ª Inexiste, pois qualquer omissão nos factos dados como provados.

5.ª Por outro lado, não corresponde à realidade que os factos constantes das als. a), b), e d) não tenham qualquer prova de sustentação, pois desde logo, resultam das próprias declarações das testemunhas Fiscais Municipais que depuseram em Julgamento, para além de resultarem do próprio Edital n.º 82/2010, cuja cópia consta a fls. 7.

6.ª Ora, não há dúvida de que no seu âmbito e com a sua eficácia o edital publicitou a matéria em apreço.

7.ª Se o seu conteúdo deveria ainda ser complementado com a notificação individual de cada comerciante é questão que não cabe apreciar nestes autos nem neste recurso, na nossa perspectiva.

8.ª Com efeito, o arguido expende tal tipo de argumentação para justificar o seu alegado desconhecimento do tipo de intervenção dos Fiscais Municipais.

9.ª Porém, afigura-se-nos não assistir razão ao recorrente, por três razões:

- primeiro, porque a situação pretendida e visada pela CMO foi publicitada através do Edital n.º 82/2010, cuja cópia consta a fls. 7, que precisamente tem um amplo efeito de notificação, dirigindo-se a todos os comerciantes que se encontrassem na situação nele prevista.

-segundo, porque o arguido antes da intervenção pelos Fiscais Municipais objecto dos autos já havia sido alvo de seis autos de contra-ordenação igualmente pela exposição de objectos para venda na via pública.

-terceiro, porque não se vislumbra, do ponto de vista do cidadão médio que fosse notória a ilegalidade ou ilegitimidade dos actos que se encontravam a ser praticados pelos Fiscais Municipais.

10.ª Afigura-se-nos que em relação aos factos dados como provados nas als. a), b) e d) inexistiu qualquer erro notório na apreciação dos factos, impondo-se, aliás concluir, como se concluiu na douta sentença recorrida quanto à fixação da matéria de facto em apreço como provada.

11.ª O facto de resultar do auto de apreensão que, no dia dos factos, ou seja, em 19/08/12, foram apreendidas camisolas não permite extrapolar que foi o funcionário Fiscal Municipal B..., visado pela conduta do arguido, quem concretizou essa apreensão e se esta ocorreu antes ou depois da intervenção do arguido, o qual não se encontrava no local dos factos desde o início da fiscalização para eventual apreensão a que os autos se reportam.

12.ª Acresce, que tendo-se a acção do arguido dirigido em particular contra o Fiscal Municipal B... e estando no local mais cinco Fiscais Municipais os quais não foram atacados pelo arguido, certamente estes desempenharam as suas funções e procederam às apreensões que se lhes mostraram oportunas, atento o quadro da respectiva actuação.

13.ª Em termos de apreciação jurídico-penal da conduta do arguido não é relevante que tenham ocorrido apreensões, relativamente às quais como já se disse, se desconhece em concreto, se foram realizadas antes ou depois da apreensão, mas sim, que nos termos dados como provados na al. g) e não colocados em crise pelo arguido, este agiu desse modo sobre um dos Fiscais Municipais o qual se encontrava no desempenho das suas funções e para obstar a tal desempenho, o que se verificou, tanto que foi necessária a intervenção de um dos agentes da GNR presentes no local.

14.ª Existe, pois um resultado concreto da actuação violenta do arguido, diferentemente do que pretende o mesmo, pois que, se aproximou do Fiscal Municipal B... e o agarrou pela camisa, na zona do peito, puxando-a, fazendo com que ficasse com o bolso descosido e dois botões arrancados.

15.ª Como já referido, o recorrente estava perfeitamente ciente da situação que, na data dos factos objecto dos autos, ocorria em frente ao seu estabelecimento traduzida na exposição, na via pública, de material para venda e que a mesma justificava a intervenção dos Fiscais Municipais para efeitos de retirada desse material da via pública mediante apreensão respectiva.

16.ª Tal como já referido anteriormente, o Edital n.º 82/2010, dirigiu-se a todos os lojistas e comerciantes de Fátima, nos quais se inclui o arguido.

17.ª Acresce que ante os seis anteriores processos de contra-ordenação, precisamente instaurados ao arguido por exposição de material para venda na via pública carece, pela base e à saciedade, de sustentação a tese do arguido, o qual tinha perfeito conhecimento das circunstâncias em que os fiscais intervinham junto do seu estabelecimento.

18.ª Não se resulta dos seguintes factos contradição na fundamentação da sentença:

gg) ficou provado que os Fiscais Municipais não se identificaram nem vestiam uniforme

hh) o que deviam ter feito, como era seu dever legal, pois que não foram determinantes da actuação do arguido.

19.ª Também não é fundamento contradição na fundamentação da sentença decorrente da circunstância de se ter provado que estavam seis fiscais municipais e dois agentes da GNR presentes o que diminui ou inibe a violência usada pelo arguido, uma vez que, ainda assim, o arguido não se coibiu de recorrer à violência.

20.ª De igual modo não resulta contradição na fundamentação da sentença decorrente do facto de, embora não se ter dado como provado na sentença, mas constar do auto de apreensão junto pela CMO que as camisolas e restante material foram apreendidos, se vir depois a concluir que a acção do arguido surtiu efeito e coibiu a acção da fiscalização.

21.ª Efectivamente, ao contrário do pretendido pelo recorrente resulta da sua própria conduta que o mesmo manifesta e concretamente reagiu à intervenção do Fiscal Municipal B....

22.ª Em face do exposto, salvo o devido respeito por posição contrária não se vislumbra que exista qualquer contradição e, desde logo, insanável, na fundamentação da sentença recorrida, sendo que só esta é relevante em sede do recurso interposto pelo recorrente.

23.ª Quando o arguido chegou ao local já os Fiscais Municipais se encontravam no desenvolvimento das suas funções, no caso da apreensão superiormente determinada

24.ª O arguido que se encontrava no interior do seu carro, do lado oposto da via, acedeu às imediações/exterior do seu estabelecimento onde se encontravam os Fiscais Municipais e dois Agentes da GNR, estando os primeiros a proceder às apreensões e os segundos a salvaguardar a segurança daqueles.

25.ª Das regras da experiência resulta que o arguido teve perfeita noção do que se estava a passar no local e, não, como referiu na sua contestação de que se tratava de um “assalto”.

26.ª Tendo sido o arguido quem chegou por último ao local, quando já decorria a missão atribuída aos Fiscais Municipais, cabia ao arguido, se alguma dúvida tinha solicitar informação ou pedir esclarecimentos para se inteirar da situação e não adoptar a conduta dada como provada e nunca colocada em crise por si próprio.

27.ª Daí que era possível dar como provado o teor das alíneas i) e j), referentes ao dolo do recorrente.

28.ª Por outro lado, também não se extrai da actuação dos Fiscais Municipais que a mesma tenha sido ilegítima ou que tivesse extravasado o que lhes foi determinado e que desse modo se encontre justificada a conduta do arguido.

29.ª Efectivamente, a actuação dos Fiscais Municipais não era notoriamente ilegítima, nem para os Fiscais Municipais que cumpriam ordens nem para o arguido pelo que a actuação do mesmo colocou, de modo particularmente grave, em crise a autonomia intencional do Estado e a função pública desenvolvida por aqueles.

30.ª Outrossim, o que sucedeu foi que o arguido agiu em manifesto afronto e desrespeito e com atitude vexatória à intervenção dos Fiscais Municipais e, designadamente em relação ao Fiscal Municipal visado, sendo que todos se apresentaram no local para cumprimento das ordens que lhes foram dadas.

31.ª O disposto no art. 21.º da CRP aplica-se a situações irreparáveis e que, portanto, justificam a intervenção do agente para obstar a essa irremediabilidade, sendo que não é essa a situação dos autos e a da conduta do arguido, o qual discordando da intervenção dos Fiscais Municipais, em representação da Câmara Municipal de Ourém, tinha outros meios e, desde logo, jurídicos, de reagir a essa actuação.

32.ª Conclui-se, pois que a conduta do arguido violou, quer do ponto de vista dos elementos objectivos quer do ponto de vista dos elementos subjectivos, o bem jurídico protegido, a autonomia intencional do Estado pelo tipo de crime de resistência e coação sobre funcionário p. e p. pelo art. 347.º, n.º 1 do CP.

33.ª Uma vez que a douta sentença recorrida não violou qualquer preceito legal deve ser mantida e confirmada.

2.3              Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público teve vista nos autos; acompanhando genericamente a resposta dada em primeira instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

2.4              O arguido respondeu, refutando o entendimento expresso no parecer e reiterando a motivação do recurso.

3.                Colhidos os vistos e remetidos os autos a conferência, cumpre apreciar a matéria que é objecto de recurso e decidir.

O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso, nomeadamente as que estão previstas nos artigos 379.º e 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Tendo presentes as conclusões formuladas pelo recorrente, o objecto do presente recurso consubstancia-se na apreciação das seguintes questões:

§ A impugnação da matéria de facto, onde se inclui a omissão de factos e erro na fixação da matéria de facto.

§ A verificação dos pressupostos da prática do crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punível pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, aqui se apreciando a alegada existência de contradição da sentença.

II)

Fundamentação

1.                Factos relevantes.

Com interesse para a decisão a proferir, importa considerar os factos que foram julgados provados e não provados na sentença recorrida e a respectiva motivação – elementos que integralmente se transcrevem.

«2.1 - Os Factos.

2.1.1 – Factos Provados.

Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:

a) A Câmara Municipal de Ourém através do Edital n.º 82/2010, datado de 10/08/10, dirigido aos lojistas e comerciantes de Fátima, em especial com estabelecimentos comerciais na Cova da Iria ou em Aljustrel, determinou aos comerciantes, para além do mais, que não colocassem nos passeios, na via pública ou em corredores de circulação objectos individualizados ou agrupados em cestos, em bancadas, em expositores, cavaletes ou demais objectos, com o objectivo de vender, publicitar ou prestar serviços.

b) Na sequência desta determinação foi concedido um prazo de 48 h para reposição de situações em conformidade, sob pena de, não ficando desimpedidos os espaços públicos e/ou da circulação pública se proceder, para além do mais, à apreensão dos bens que se encontrassem nessa situação.

c) O arguido é proprietário de um estabelecimento comercial sito na Rua (...), Fátima, neste concelho e comarca, denominado “ (...)”, onde aquele vende artigos religiosos e outros.

d) Na sequência da publicação do referido edital e ainda do despacho do Presidente da Câmara Municipal de Ourém, datado de 17/08/10, no dia 19/08/10, a Fiscalização Municipal procedeu a acção de fiscalização, para eventual apreensão, de artigos que estivessem em cestos, em bancadas, em expositores, cavaletes ou demais objectos, para venda ao público e que se encontrassem colocados nos passeios, na via pública ou em corredores de circulação objectos individualizados ou agrupados em cestos em bancadas, em expositores, cavaletes ou demais objectos.

e) Quando a Fiscalização Municipal, na ocasião integrada pelos Fiscais Municipais B..., C..., D... e E..., se deslocou para junto do estabelecimento do arguido os diversos elementos que a constituíam identificaram-se referiram os motivos da sua presença no local.

f) Nesse contexto, o Fiscal Municipal C...agarrou num expositor que se encontrava no passeio para o apreender, tendo-se o arguido agarrado ao mesmo, puxando-o e atirando-o para o interior do seu estabelecimento, impedindo a sua apreensão.

g) Após, o Fiscal Municipal B... começou a puxar umas camisolas que se encontravam penduradas nuns cabides, no exterior do estabelecimento e sobre o passeio, altura em que o arguido para evitar que o Fiscal B... procedesse à apreensão das referidas camisolas se aproximou do mesmo e o agarrou pela camisa, na zona do peito, puxando-a, fazendo com que ficasse com o bolso descosido e dois botões arrancados.

h) Nessa altura, o arguido foi imobilizado por um dos agentes da GNR de Fátima, designadamente o Cabo F..., tendo o primeiro ainda dito ao Fiscal Municipal E..., por modo sério e determinado: “Tu também levas!”.

i) Sabia o arguido que, com a conduta supra-descrita, por meio da força física, agia sobre o Fiscal Municipal B... para impedir que o mesmo concretizasse a apreensão das aludidas camisas expostas no exterior do seu estabelecimento, sobre o passeio, na via pública, o que o visado fazia no estrito cumprimento das suas funções de fiscalização e do que lhe fora superiormente determinado.

j) Quis agir deste modo.

k) Sabia que a sua conduta lhe estava vedada e era punida pela Lei Penal e, não obstante, actuou livre, deliberada e conscientemente.

Mais se provou que:

l) Os fiscais camarários não vestiam qualquer uniforme mas eram conhecidos do arguido.

m) Na altura do início da apreensão o arguido não se encontrava no interior da sua loja.

n) Do CRC do arguido não constam quaisquer antecedentes criminais.

o) O arguido foi condenado pela prática de seis contra-ordenações por colocação de material em exposição na via pública nos processos n.º 093/2009, 129/2009, 028/2010, 056/2010, 057/2010 e 118/2010.

p) A apreensão efetuada em 19 de Agosto de 2010 deu origem ao auto de contra-ordenação n.º 0145/2010.

q) Os processos referidos em o) e p) deram origem a uma coima única no valor de € 199,50 acrescida de sanção acessória de perda do material apreendido.

r) No ano de 2010 o arguido e a sua esposa declararam em sede de IRS os seguintes rendimentos:

-         um lucro tributável de 17 680,88€.

-         rendimentos provenientes de rendas no valor de € 15 529,96.

-         13 imóveis, sendo 6 urbanos e 7 rústicos com o valor patrimonial global de € 305 542,65.

2.1.2 -Factos não provados:

Com relevo para a decisão da causa não se provou que:

1- Os fiscais camarários se tenham identificado ao arguido.

2- Os agentes da GNR apenas tenham chegado ao local cerca de 5 minutos após o início da apreensão.

3- O arguido tenha pensado que os fiscais municipais eram ladrões.

2.1.3.Motivação:

A convicção do tribunal assentou essencialmente:

- nas declarações da testemunha B..., fiscal do Município de Ourém e que, com isenção e credibilidade, descreveu ao Tribunal a fiscalização efetuada por aquela edilidade, na qual participou, bem como as atitudes do arguido aquando da mesma.

Mencionou que aquando de tal apreensão ia acompanhado de outros colegas, bem como de dois elementos da GNR que tinham por missão assegurar a segurança dos fiscais do Município. Acrescentou que o arguido, no intuito de impedir o seu trabalho de apreensão do material que se encontrava na via pública, puxou-o pela camisa, rasgando-a, situação que determinou a intervenção de um dos militares da GNR que imobilizou o arguido pelas costas.

Mais disse que se identificaram aos responsáveis da loja como fiscais da Câmara e que, anteriormente àquela data houve 7 autos de contra-ordenação movidos contra o arguido por situações idênticas.

- nas declarações da testemunha C..., fiscal do Município de Ourém, e que, de igual modo, com isenção e credibilidade descreveu ao Tribunal a fiscalização efetuada por aquela edilidade, na qual participou, bem como as atitudes do arguido aquando da mesma.

Mencionou que o arguido, com intuito de impedir o fiscal B... de apreender produto exposto na via pública, agarrou-o pela camisa, levando à intervenção de um dos militares da GNR presentes no local.

Acrescentou que no local da fiscalização estavam quatros fiscais do Município e dois militares da GNR.

- nas declarações da testemunha E..., fiscal do Município de Ourém,  e que, de igual modo, com isenção e credibilidade descreveu ao Tribunal a fiscalização efetuada por aquela edilidade, na qual participou, bem como as atitudes do arguido aquando da mesma.

Frisou a presença dos elementos da GNR aquando da apreensão, bem como a identificação deles próprios junto da esposa do arguido.

Mencionou que o arguido chegou de imediato e começou logo a impedir o trabalho dos fiscais, agarrando num expositor de onde esta testemunha, bem como a testemunha C..., estavam a retirar material para apreender e atirando-o para dentro da loja. Descreveu a forma como o arguido tentou impedir a apreensão de uma camisola por parte do fiscal B..., situação que determinou o rasgar da camisa daquele.

- nas declarações da testemunha D..., fiscal do Município de Ourém,  e que, de igual modo, com isenção e credibilidade descreveu ao Tribunal a fiscalização efetuada por aquela edilidade, na qual participou.

Referiu que se identificaram à esposa e funcionária do arguido, dando-lhes a conhecer a sua intenção de proceder à recolha do material exposto na via pública.

Viu a camisa rasgada da testemunha B....

- nas declarações da testemunha F..., militar da GNR e que com isenção e credibilidade descreveu ao Tribunal que acompanhou os fiscais do Município na ação de apreensão do material que se encontrava a ocupar a via pública.

Referiu que um dos fiscais foi agarrado pelo arguido, altura em que a testemunha teve de intervir.

Esclareceu que a força da GNR no local era bem visível e que o arguido com as atitudes que teve tentava impedir a apreensão que estava a ser efetuada.

Mencionou que os fiscais do município aguardaram a chegada da GNR para realizarem o serviço.

Mais disse que de forma alguma o arguido pode ter equacionado que se tratava de um assalto uma vez que para além de estarem no local os militares da GNR, os fiscais do município são conhecidos do arguido.

- nas declarações da testemunha G..., militar da GNR e que participou na segurança dos fiscais do Município na data dos factos. Mencionou que um dos fiscais falou com a esposa do arguido relativamente aos artigos que estavam na via pública e que teriam de ser apreendidos e que o arguido reagiu quando o fiscal apreendia uma camisola, agarrando-o e rasgando-lhe a camisa. Acrescentou que foi preciso separar o arguido do fiscal, o que foi feito pelo cabo F....

O tribunal atendeu ainda ao CRC de fls. 49.

A situação económica do arguido teve por base a documentação junta aos autos pelo serviço de finanças.

As contra-ordenações mencionadas nos factos provados tiveram subjacentes a certidão camarária de fls. 118 a 139, bem como o IRS do arguido (onde é mencionada a coima paga).

Os factos não provados tiveram por base a ausência de prova ou a prova em sentido contrário.

Com efeito, as declarações do arguido, em face das declarações prestadas pelas testemunhas supra mencionadas, conjugadas com as regras da experiência comum, não poderão ser valorizadas.

Na verdade, não se poderá aceitar que o arguido, como ele próprio refere, tenha confundido uma fiscalização do Município com um assalto quando os fiscais estavam acompanhados de perto por elementos da GNR, estes devidamente uniformizados.

De facto, ainda que o arguido possa ter equacionado tal hipótese de assalto, o que nos parece no mínimo caricato, sempre teria a opção de perguntar à GNR do porquê da passividade destes em relação aquela actuação.

Por outro lado, provou-se que o arguido conhecia os fiscais do Município, situação perfeitamente normal numa localidade de pequena dimensão onde toda a gente se conhece e pelo facto de o arguido já ter sido alvo de outras fiscalizações. Assim sendo, os ficais do município, ainda que não uniformizados, não eram pessoas estranhas para o mesmo, situação que aliás ele próprio confirmou, bem como a sua esposa.

Negou o contacto físico com a GNR, situação mencionada por esta força e demais presentes.

Por fim, as declarações do arguido quanto à sua situação económica não mereceram credibilidade dado que, para além de contrárias às regras da experiência comum – referiu ter três estabelecimentos comerciais e auferir apenas o salário mínimo nacional – mostram-se colocadas em causa pela documentação do serviço de finanças cuja junção foi oficiosamente ordenada e que atestam rendimentos bastante superiores.

-De igual modo as declarações da testemunha J..., esposa do arguido, não mereceram credibilidade dado que, para além de terem sido contraditadas pela demais prova, são, de igual modo, contraditórias entre si.

Na verdade, esta testemunha começou por mencionar ser doméstica quando, no decurso do seu depoimento falava sempre “nas minhas lojas”, ou/e “o meu marido estava à minha espera para irmos ver uma coleção”. A alegação de que se é doméstica quando é visível a sua faceta de comerciante, só por si diz muito acerca de ausência de credibilidade das declarações por si prestadas.

Com efeito, pese embora negue que os fiscais se tenham apresentado como tal, tal identificação foi devidamente efetuada como resulta da prova supra. Por outro lado, negou qualquer envolvimento entre o marido e os fiscais, situação que foi devidamente provada pelas testemunhas da acusação.

Por fim, disse que só viu a GNR passados cerca de 10 minutos, quando da demais prova resulta que estes militares acompanharam sempre os fiscais, e considerando a distância que separava tais profissionais dos demais, mostra-se impossível a alegada falta de visualização, o que nos leva a concluir que esta testemunha não falou verdade no seu depoimento.

- a testemunha H..., funcionária do arguido mencionou que instintivamente começou logo a  arrumar as coisas para não serem apreendidas.

Assumiu tal facto como uma missão sua referindo que por essa razão não viu qualquer agarrar.

Referiu que quando viu o fiscal B... deduziu logo que eram fiscais do Município, uma vez que não era a primeira vez que lá iam.

- a testemunha I... , funcionária de um Hotel situado junto da loja do arguido, pese embora tenha negado ter visto agarrões, bem como a GNR, certo é que não conseguiu situar as datas em que tais factos ocorreram pelo que, o relatado por si, poderá referir-se a outra fiscalização, situação que levará o Tribunal a não retirar outras ilações.»

2.                A impugnação da matéria de facto.

2.1              Constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis, sendo admissíveis as provas que não forem proibidas por lei – artigos 124.º e 125.º do Código de Processo Penal.

Salvo quando a lei dispuser diferentemente – como ocorre nos casos de prova vinculada – o Tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção – artigo 127.º do Código de Processo Penal.

“Como uniformemente expendem os autores, livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova” – Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal”, Almedina, página 354, em anotação ao artigo 127.º.

“O princípio da livre apreciação da prova é direito constitucional concretizado. Ele não viola a CRP antes a concretiza (acórdão do TC n.º 1165/96, reiterado pelo acórdão n.º 464/97): “A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessário para uma efectiva motivação da decisão”.

O princípio tem, portanto, limites. A CRP e a lei estabelecem limites endógenos e exógenos ao exercício do poder de livre apreciação da prova. Esses limites dizem respeito (…) ao grau de convicção requerido para a decisão, (…) à proibição de meios de prova, (…) à observância do princípio da presunção da inocência, (…) à observância do princípio in dubio pro reo” – Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, páginas 329 e 330, em anotação ao mesmo artigo.

O limite normativo do princípio da livre apreciação da prova consubstancia-se no princípio “in dubio pro reo”, que impõe ao julgador que decida para além de toda a dúvida razoável, beneficiando o arguido sempre que, perante as provas disponíveis, exista dúvida séria acerca dos factos.

“O princípio in dubio pro reo consubstancia um princípio geral do direito processual penal (…). Trata-se da aplicação de uma regra de decisão (…). A aplicação deficiente desta regra, bem como a sua não aplicação são passíveis de controlo pelo STJ (…). Mas é importante que se note que este controlo não inclui as dúvidas que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e deveria ter tido (…), pois o princípio in dubio não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio in dubio não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto” – autor e obra anteriormente citados, página 341, em anotação ao artigo 127.º.

É permitido o recurso das sentenças; e, sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida; mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova – artigos 399.º a 410.º do Código de Processo Penal.

Nos casos em que a prova foi documentada, é admitido o recurso relativo à matéria de facto, impondo-se ao recorrente que observe as exigências do artigo 412.º do Código de Processo Penal, devendo o Tribunal da Relação proceder à audição ou visualização das passagens indicadas pelo recorrente e pelo recorrido e de outras que julgue relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa; a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base ou se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º – artigo 431.º do mesmo diploma legal.

No entanto, “não se concebe como seja possível, sem outros instrumentos que não sejam as transcrições das gravações da prova produzida em audiência, formar uma convicção diferente e mais alicerçada do que aquela que é fornecida pela imediação de um julgamento oral, onde, para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam” – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Julho de 2003, em www.dgsi.pt, processo n.º 02P3100.

É pacífico que, em princípio e perante a impugnação da matéria de facto, não se procede a um novo julgamento, pelo tribunal superior, visando-se antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último, proceder à reponderação dos factos provados e não provados e da respectiva fundamentação, corrigindo-se no que for essencial e relevante os factos provados e não provados, colmatando-se erros de julgamento.

A alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, só devendo ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.

À luz do quadro legal que sumariamente se deixa traçado se apreciará a matéria sob recurso.

2.2 O recorrente começa por suscitar a existência de omissão nos factos dados como provados, pretendendo que, sendo relevante, com significado na medida da pena, não consta “a presença da GNR e a presença simultânea de seis fiscais municipais, num total de oito homens”.

Importa começar por salientar que, reportando-se aos depoimentos das testemunhas B... e C..., de que diz resultar que estavam presentes oito homens, sendo seis fiscais municipais e dois elementos da GNR, o recorrente não satisfaz as exigências que decorrem do disposto no artigo 412.º, com referência aos trechos de gravação que considera relevantes.

De qualquer modo, a simples leitura da sentença recorrida permite apreciar a questão suscitada.

Resulta da matéria de facto provada que a fiscalização municipal que teve intervenção no estabelecimento do arguido era na ocasião integrada pelos Fiscais Municipais B..., C..., D...e E... [alínea e) dos factos provados]. Evidencia-se também que estes, desde o início, iam acompanhados por elementos da Guarda Nacional Republicana; é o que resulta da alínea h) dos factos provados.

Continuando na leitura da sentença recorrida, regista-se que em sede de motivação da matéria de facto se esclarece, quanto à questão que aqui se aprecia: a testemunha B..., um dos fiscais supra referidos, mencionou que, aquando da apreensão, ia acompanhado de outros colegas, bem como de dois elementos da GNR que tinham por missão assegurar a segurança dos fiscais do Município; a testemunha C..., igualmente fiscal, esclareceu que no local da fiscalização estavam quatros fiscais do Município e dois militares da GNR; a testemunha F..., um dos militares da GNR que acompanharam a acção de fiscalização a que se reportam os autos, esclareceu que os fiscais do município aguardaram a chegada da GNR para realizarem o serviço (de onde resulta que este foi integralmente realizado com a sua presença).

A audição dos depoimentos das aludidas testemunhas, com recurso à respectiva gravação, confirma o que se mostra consignado na sentença e que se deixou sumariado – cf. depoimentos das testemunhas B... (sensivelmente dos 03m:10s aos 04m:10s: refere a presença de quatro fiscais municipais, cujos nomes menciona, incluindo a própria testemunha, e dois agentes da GNR; esclarece que se deslocaram previamente ao posto da GNR, onde se definiram quais os agentes que acompanhavam cada uma das equipas de inspecção que iriam actuar; chegaram ao local com os respectivos agentes), C...(sensivelmente dos 05m:44s aos 06m:00s: também refere a presença de quatro fiscais municipais, cujos nomes igualmente menciona, incluindo a própria testemunha, e dois agentes da GNR) e F... (sensivelmente aos 02m:11s: agente da GNR, confirma a presença de dois agentes no local, incluindo o depoente, e a chegada em simultâneo com os fiscais municipais, ainda que deslocando-se em diferentes meios de transporte).

A presença de quatro fiscais municipais – e concretamente daqueles que são mencionados na matéria de facto provada – também se mostra conforme ao que resulta do teor do auto de notícia n.º 114/2010 e do auto de apreensão que a ele se reporta, documentos cujas cópias certificadas fazem fls. 120 e 121 dos autos e a que se refere também a sentença recorrida.

Não se registam elementos que confirmem a presença de seis fiscais, em prejuízo da pretensão do arguido/recorrente – na certeza de que este também não explicita a prova de onde resulte esse facto.

Os elementos em presença permitem concluir nos termos mencionados na alínea e) dos factos provados, relativamente aos fiscais presentes; confirmam também o que consta da alínea h) dos factos provados, relativamente à presença de militares da GNR.

Pelo exposto, a pretensão do recorrente não procede nos termos por ele formulados; no entanto, por uma questão de maior precisão dos factos e ao abrigo do disposto no artigo 431.º, alínea a), do Código de Processo Penal, altera-se a redacção da alínea h) dos factos provados, nos seguintes termos: «Nessa altura, o arguido foi imobilizado por um dos dois agentes da GNR de Fátima que acompanhavam a acção de fiscalização, designadamente o Cabo F..., tendo o primeiro ainda dito ao Fiscal Municipal E..., por modo sério e determinado: “Tu também levas!”».

2.3 O recorrente pretende depois que há erro na fixação da matéria de facto, reportando-se ao que consta nas alíneas a), b) e d) da matéria de facto dada como provada; defende que estes pontos devem ser dados como não provados.

Nas aludidas alíneas consta:

A Câmara Municipal de Ourém através do Edital n.º 82/2010, datado de 10/08/10, dirigido aos lojistas e comerciantes de Fátima, em especial com estabelecimentos comerciais na Cova da Iria ou em Aljustrel, determinou aos comerciantes, para além do mais, que não colocassem nos passeios, na via pública ou em corredores de circulação objectos individualizados ou agrupados em cestos, em bancadas, em expositores, cavaletes ou demais objectos, com o objectivo de vender, publicitar ou prestar serviços.

Na sequência desta determinação foi concedido um prazo de 48 horas para reposição de situações em conformidade, sob pena de, não ficando desimpedidos os espaços públicos e/ou da circulação pública se proceder, para além do mais, à apreensão dos bens que se encontrassem nessa situação.

Na sequência da publicação do referido edital e ainda do despacho do Presidente da Câmara Municipal de Ourém, datado de 17/08/10, no dia 19/08/10, a Fiscalização Municipal procedeu a acção de fiscalização, para eventual apreensão, de artigos que estivessem em cestos, em bancadas, em expositores, cavaletes ou demais objectos, para venda ao público e que se encontrassem colocados nos passeios, na via pública ou em corredores de circulação objectos individualizados ou agrupados em cestos em bancadas, em expositores, cavaletes ou demais objectos.

Pretende a este propósito que não existe no processo, em termos de prova documental, qualquer elemento que evidencie a existência e publicação do edital e do despacho emitido pelo Presidente da Câmara Municipal.

Não se vê que assista razão ao recorrente.

Em termos documentais, regista-se a existência do edital a fls. 7 dos autos e dos despachos do Presidente da Câmara Municipal de Ourém a fls. 8 e 9.

O relato das testemunhas B... (sensivelmente, 12m:00s do respectivo depoimento), C... (sensivelmente, 00m:50s e 06m:10s do respectivo depoimento) e E... (sensivelmente, 01m:10s do respectivo depoimento) confirmam não só a publicitação do edital, mas também a sua divulgação pelos comerciantes abrangidos.

Não deixa de valer, em termos factuais, a notificação efectuada por edital, nos termos determinados no próprio documento emitido pela Câmara Municipal, aí justificada perante o elevado número das pessoas abrangidas e o facto de se desconhecer a identidade de todos eles.

Perante a conjugação de tais elementos, não há razão válida para questionar a matéria vertida nas alíneas a), b) e d) dos factos provados.

2.4 O recorrente questiona ainda as alíneas i) e j) da matéria de facto provada.

A este propósito, pretende que, não constando da matéria de facto provada o conhecimento por parte do ora recorrente que os fiscais municipais e os agentes da GNR pretendessem fazer a apreensão, pois não foi provada a notificação deste (elemento intelectual do dolo), não é possível concluir, como se faz nas referidas alíneas, pela verificação do elemento volitivo do dolo, na medida em que este último pressupõe a existência do primeiro; mais afirma que, para se poder concluir que o arguido era suspeito da prática de uma contra-ordenação a qualquer regulamento ou edital, necessário seria que a entidade policial tivesse precedido a sua actuação da competente notificação e a tivesse dado a conhecer ao arguido recorrente, o que não consta que tivesse efectuado.

Também aqui não assiste razão ao recorrente.

Nas aludidas alíneas consta:

Sabia o arguido que, com a conduta supra-descrita, por meio da força física, agia sobre o Fiscal Municipal B... para impedir que o mesmo concretizasse a apreensão das aludidas camisas expostas no exterior do seu estabelecimento, sobre o passeio, na via pública, o que o visado fazia no estrito cumprimento das suas funções de fiscalização e do que lhe fora superiormente determinado.

Quis agir deste modo.

Conforme resulta das alíneas e) e m) dos factos provados e do que consta no ponto 1 dos factos não provados, na altura do início da operação em causa e da apreensão o arguido não se encontrava no interior da sua loja; daí que, se é certo que os fiscais municipais que se deslocaram ao estabelecimento do arguido se identificaram e referiram os motivos da sua presença no local, é igualmente seguro que não se identificaram ao arguido, dada a aludida ausência.

Isso mesmo resulta da motivação expressa na sentença recorrida e que se deixou transcrita em sede própria, nomeadamente, a referência aos depoimentos das testemunhas inquiridas.

A audição, a partir da respectiva gravação, dos depoimentos das testemunhas B... (sensivelmente, 04m:30s), C... (sensivelmente, 04m:00s) e E... (sensivelmente, 03m:00s), confirma que quando os fiscais municipais chegaram à loja do arguido apenas aí se encontravam a esposa deste e uma empregada, a quem se identificara e disseram ao que iam; as testemunhas relataram ainda que o arguido apareceu pouco depois.

Resulta ainda da audição – particularmente, dos depoimentos das testemunhas B... (sensivelmente, 08m:30s) e F... (sensivelmente, 11m:48s) – que o arguido, chegando pouco depois à loja, teve sempre perfeita consciência da identidade dos aludidos fiscais, que já conhecia, nomeadamente de anteriores diligências semelhantes e com a mesma finalidade; a este propósito, é expressivo o relato da testemunha B..., salientando que a intervenção em causa ultrapassava a quinta ocorrência na loja do arguido, com a elaboração do respectivo auto, nalguns casos com apreensão, noutros sem apreensão.

Em face disso e na ausência de elementos que ponham em causa a efectiva percepção da ocorrência, pelo arguido, não há fundamento para alterar a convicção afirmada pelo tribunal recorrido e julgar não provada a matéria que consta das alíneas i) e j).

2.5 Analisado o texto da sentença recorrida, também não se verifica qualquer um dos vícios a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e cujo conhecimento é oficioso.

Na verdade, não se vê que ocorra insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (entendida como uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito), contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão (entendida como incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão) ou erro notório na apreciação da prova (consubstanciado em falha ostensiva na análise da prova que resulte do próprio texto da sentença, perceptível pelo cidadão comum e denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si).

3.                A verificação dos pressupostos da prática do crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punível pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal e a alegada existência de contradição da sentença.

3.1 O artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção vigente à data dos factos, sanciona, como autor do crime de resistência e coação sobre funcionário, quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres.

Através desta incriminação pretende-se tutelar o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade, manifestada na liberdade de actuação dos seus agentes (autonomia funcional do Estado), proteger a denominada autonomia intencional do Estado e, reflexamente, a pessoa do funcionário ou membro das forças de segurança, na estrita medida em que representa a liberdade do Estado. Trata-se, assim, de um crime de perigo, em que não é necessária a efectiva lesão do bem jurídico que lhe está subjacente, mas apenas a possibilidade ou a probabilidade da correspondente conduta típica vir a afectar os interesses protegidos.

O ilícito em questão, enquanto crime de execução vinculada, pressupõe o recurso à violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, mas sem que se esgote nestas; consubstancia-se, desde logo, na utilização de força física, mesmo quando não elimina a possibilidade de resistência, mas não se verifica quando agente se limita à fuga ou tentativa de fuga, à imprecação verbal contra o acto de que está a ser alvo, à gesticulação mais ou menos enérgica, ou adopta quaisquer outras atitudes e comportamentos que não sejam adequados a anular ou dificultar a capacidade de actuação do funcionário.

A violência concretiza-se em todo o acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir o funcionário ou membro das forças armadas, militarizadas ou de segurança, sem que tenha necessariamente de ser grave ou de consistir em agressão física, consubstanciando-se antes num acto de força ou hostilidade que seja idóneo a coagir, a impedir ou a dificultar a actuação legítima do funcionário.

Na aferição dos pressupostos do crime, não é irrelevante a qualidade do agente concretamente ofendido, nomeadamente o facto de ser membro de força policial ou militarizada, ou antes agente civil, sem especial treino ou capacidade para lidar com acções violentas.

O crime pressupõe uma actuação dolosa, em qualquer uma das modalidades, isto é, para a consumação do crime basta a existência de dolo eventual – artigos 13.º e 14.º do Código Penal.

Questiona-se a legitimidade da resistência do agente, distinguindo-se três posições: “a da obediência passiva ou absoluta – em caso algum se admite a rebeldia contra a autoridade (a reclamação do particular poderá vir depois, pelas vias regulamentares) – e a teoria chamada ultraliberal, segundo a qual a resistência a um mandado ilegal constitui não apenas um direito mas um verdadeiro e indeclinável dever. Entre as duas, a doutrina moderada defende que a resistência será legítima quando a ilegalidade do acto da autoridade for manifesta ou evidente. Na dúvida, obedece-se – foi esta a concessão ao princípio da autoridade, justificada por um juízo de ponderação de interesses: de um lado, a possibilidade de realização de uma injustiça; de outro, a quebra da disciplina social” – Cristina Líbano Monteiro, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, tomo III, página 343, em anotação ao artigo 347.º.

No acolhimento da posição moderada, a exclusão da ilicitude pressupõe a existência de um acto de autoridade, através do respectivo funcionário, que seja notória e manifestamente ilegítimo.

3.2 Na sentença recorrida, afirma-se a prática do crime de resistência e coacção sobre funcionário, pelo arguido, com a seguinte fundamentação:

«(…) Encontra-se provado nos presentes autos que o arguido, na sequência de uma ação de fiscalização por parte dos fiscais municipais que se encontravam acompanhados por elementos da GNR, estes devidamente uniformizados e todos no exercício das suas funções, a fim de impedir a apreensão de objectos que se encontravam na via pública, usou da sua força física para com o fiscal B..., tendo-lhe, inclusive, rasgado o bolso da camisa, atitude que só terminou com a intervenção de um dos elementos da GNR.

De facto, não obstante o arguido se ter apercebido que a apreensão estava a ser efectuada na sequência de ordens superiores emanadas pelo Município de Ourém, e que estavam a ser executadas pelos fiscais daquele município no exercício das suas funções, de forma a obstar que aquele exercesse a sua actividade fiscal, usou da sua força evitando, assim, a apreensão determinada.

Deste modo, encontra-se preenchido o elemento objectivo do tipo de ilícito em causa.

Na verdade, dúvidas não restam que o arguido utilizou de violência, sobre um funcionário/membro de uma força de segurança, a fim de o impedir de exercer as suas funções.

Com efeito, para que se preencha o elemento objectivo do tipo legal de crime ora em análise, basta que o agente tenha utilizado a força física ou violência sobre o membro das forças policiais, com o escopo de evitar que o funcionário em causa praticasse o acto relativo ao exercício das suas funções, consistente, neste caso em concreto, na apreensão de produtos indevidamente colocados na via pública.

Forçoso é, pois, concluir que o crime em causa foi consumado, estando preenchidos no caso concreto todos os elementos do tipo ilícito objectivo do crime de resistência sobre funcionário em causa.

Quanto ao tipo de ilícito subjectivo, resulta do disposto no artigo 347.º do Código Penal que o crime em causa tem, necessariamente, de ser praticado pelo agente com dolo.

Encontra-se igualmente comprovado nos presentes autos que o arguido agiu de forma livre e consciente actuando com o propósito de obstar a que aquele agente de autoridade exercesse a sua actividade profissional.

Verificam-se, assim, no caso concreto, os elementos intelectual e volitivo do dolo, na modalidade de dolo directo, como se retira do disposto no artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal.

Está, assim, igualmente preenchido o tipo subjectivo de ilícito do crime em causa.

Por todo o exposto, conclui-se que o arguido cometeu, como autor material, o crime de resistência e coacção sobre funcionário, pela qual vinha acusado.»

3.3 O recorrente suscita a existência de contradição da sentença, alegando a este propósito que na sentença recorrida se afirma que “o Fiscal Municipal B... começou a puxar umas camisolas que se encontravam penduradas nuns cabides, no exterior do estabelecimento e sobre o passeio, altura em que o arguido para evitar que o Fiscal B... procedesse à apreensão das referidas camisolas se aproximou do mesmo e o agarrou pela camisa, na zona do peito, puxando-a, fazendo com que ficasse com o bolso descosido e dois botões arrancados” e que “nessa altura, o arguido foi imobilizado por um dos agentes da GNR”, ficando sem se saber o que é que foi feito das camisolas em disputa, se foram ou não apreendidas – na certeza de que do auto de apreensão entretanto junto aos autos consta a apreensão de camisolas, o que significa que não houve resultado concreto da acção do arguido.

O recorrente reporta-se ao documento de fls. 121 (auto de apreensão lavrado em 19 de Agosto de 2010, referente aos factos que aqui se discutem e ao auto de notícia n.º 114/2010, com cópia a fls. 120 e que deu origem ao processo de contra-ordenação n.º 145/2010). Neste documento, referenciado na sentença recorrida, em sede de motivação, consta a apreensão, entre outros artigos, de diferentes camisolas.

Admitindo que as camisolas mencionadas no auto sejam aquelas que se encontravam penduradas nuns cabides, no exterior do estabelecimento e sobre o passeio e que o fiscal municipal começou a puxar quando o arguido o agarrou, a falta de especificação deste facto não determina contradição da sentença.

A configuração do crime – nos termos da caracterização que se deixou enunciada, pressupõe uma acção violenta, exercida sobre funcionário no exercício das respectivas funções e idónea a anular ou constranger a actuação do mesmo.

No caso dos autos, a intervenção do arguido mostrou-se suficientemente idónea para o fim visado, de evitar que o fiscal procedesse à apreensão das camisolas; além deste elemento objectivo, era essa a específica intenção do arguido.

A apreensão das camisolas não descaracteriza esta actuação e as suas implicações: por um lado, o arguido veio a ser imobilizado por um dos dois agentes da GNR que acompanhavam a acção de fiscalização, o que permitia a posterior concretização da apreensão anteriormente impedida; por outro lado, evidencia-se que a acção de fiscalização não se restringiu à intervenção do fiscal B..., englobando antes a intervenção de mais três fiscais municipais, o que não impedia que estes procedessem a essa ulterior apreensão.

Assim, não se vê a alegada contradição da sentença.

3.4 O recorrente pretende ainda que agiu no âmbito de acção directa e no exercício de direito de resistência, consagrado no artigo 21.º da Constituição.

Alega para o efeito que não está certificada a notificação e publicitação do edital, não se sabendo por isso se os fiscais estavam ou não a coberto da legalidade do acto administrativo ou se houve abuso de poder e excesso de força; por outro lado, invoca o desconhecimento de que os fiscais municipais e os agentes da GNR pretendessem fazer a apreensão, pois não foi provada a sua notificação; para se poder concluir que o arguido era suspeito da prática de uma contra-ordenação a qualquer regulamento ou edital, necessário seria – com referência ao disposto nos artigos 3.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 63/2007 (que aprovou a Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana), 49.º e 41.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e 250.º do Código de Processo Penal – que a entidade policial tivesse precedido a sua actuação da competente notificação e a tivesse dado a conhecer ao arguido recorrente, o que não consta que tivesse efectuado

Em sede de direito constitucional, o artigo 21.º estabelece que todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.

«Ao atribuir aos particulares o direito de resistência, o artigo 21.º, primeira parte, da CRP concretiza o princípio da aplicabilidade direta dos direitos, liberdades e garantias, reafirmando o seu caráter obrigatório para as entidades públicas (artigo 18.º, n.º 1, da CRP), e justifica a resistência dos cidadãos a ordens destas autoridades (…).

O preceito constitucional não concede, porém, um poder normal de controlo dos atos das autoridades públicas. Pelo contrário, «o direito de resistência é a ultima ratio do cidadão ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, por atos do poder público» (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, p. 512), sendo-lhe apontada a nota inescapável da subsidiariedade, por referência às normas constitucionais – artigos 20.º, 202.º, n.º 2, e 268.º, n.ºs 4 e 5, e da CRP – que fazem do acesso aos tribunais e à justiça administrativa, de uma forma particular, o meio de defesa por excelência (neste sentido, Jorge Miranda, “O regime dos direitos, liberdades e garantias”, Estudos sobre a Constituição, 3.º volume, Livraria Petrony, 1979, p. 87, Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 342 e 344 e ss., e Maria Margarida Mesquita, “Direito de resistência e ordem jurídica portuguesa”, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (160), 1989, p. 32 e ss.). Como se trata de um meio não jurisdicional que só tem sentido como ultima ratio, Vieira de Andrade não deixa de concluir que o direito de resistência só justifica o comportamento de um particular que resista a «atos evidentemente inconstitucionais (nulos) das autoridades», devendo o particular fazer dele «uso prudente, quando esteja convencido, pela gravidade e evidência da ofensa, de que há violação do conteúdo essencial do seu direito fundamental, até porque o risco de erro corre por sua conta» (…) – Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 34/2012, de 24 de Janeiro de 2012.

Nos termos do artigo 336.º do Código Civil, é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo.

Resulta da aludida norma que a acção directa – que pode consistir na apropriação, destruição ou deterioração de uma coisa, na eliminação da resistência irregularmente oposta ao exercício do direito, ou noutro acto análogo, sem que possa sacrificar interesses superiores aos que se visa realizar ou assegurar –, tendo em vista assegurar um direito, exige a respectiva indispensabilidade, desde logo pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais para evitar a inutilização prática desse direito.

Especificamente no âmbito do direito de propriedade, o artigo 1314.º do Código Civil estabelece que é admitida a sua defesa por meio de acção directa, nos termos do artigo 336.º.

A verificação dos pressupostos da acção directa constitui causa de exclusão da ilicitude – artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal.

No caso dos autos, é manifesta a inexistência dos pressupostos que legitimam a acção directa ou o exercício de direito de resistência.

É certo que os fiscais actuavam no cumprimento das respectivas funções de fiscalização e do que lhes fora superiormente determinado, na sequência da publicação do edital n.º 82/2010; por outro lado e independentemente da respectiva notificação, o arguido tinha conhecimento das razões que determinaram a presença dos fiscais; finalmente, na presença de dois agentes da Guarda Nacional Republicana a acompanhar a operação de fiscalização, não pode afirmar-se a impossibilidade de recurso em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática de um direito do arguido.

A conclusão não se altera perante o facto de os fiscais, tendo entrado no estabelecimento do arguido, se identificarem e referiram os motivos da sua presença no local a pessoa diversa do arguido: este não se encontrava então no respectivo estabelecimento, pelo que a indicação em causa foi efectuada a quem então aí se encontrava e a cuja responsabilidade estava entregue o estabelecimento.

Também não releva – em termos de conferir legitimidade à acção do arguido para com o fiscal B... – o facto de não se evidenciar que os fiscais municipais em causa e os agentes da Guarda Nacional Republicana que os acompanharam na operação de fiscalização em causa não tenham procedido à sua identificação enquanto arguido de processo de contra-ordenação, com referência aos artigos 49.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e 250.º do Código de Processo Penal.

3.5 O recorrente alega, finalmente, a violação dos artigos 70.º do Código do Procedimento Administrativo e 268.º, n.º 3, da Constituição.

O artigo 268.º, n.º 3, da Constituição, no título referente à administração pública, estabelece que os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos.

O artigo 66.º do Código do Procedimento Administrativo, dando expressão ao referido princípio, estabelece que devem ser notificados aos interessados os actos administrativos que decidam sobre quaisquer pretensões por eles formuladas [alínea a)], imponham deveres, sujeições ou sanções, ou causem prejuízos [alínea b)], criem, extingam, aumentem ou diminuam direitos ou interesses legalmente protegidos, ou afectem as condições do seu exercício [alínea c)].

Nos termos do artigo 70.º, n.º 1, deste diploma, as notificações podem ser feitas por via postal, desde que exista distribuição domiciliária na localidade de residência ou sede do notificando [alínea a)], pessoalmente, se esta forma de notificação não prejudicar a celeridade do procedimento ou se for inviável a notificação por via postal [alínea b)], por telegrama, telefone, telex ou telefax, se a urgência do caso recomendar o uso de tais meios [alínea c)], por edital a afixar nos locais do estilo, ou anúncio a publicar no Diário da República, no boletim municipal ou em dois jornais mais lidos da localidade de residência ou sede dos notificandos, se os interessados forem desconhecidos ou em tal número que torne inconveniente outra forma de notificação [alínea d)].

No caso em apreciação, a decisão camarária foi publicitada por edital, nos termos do documento de fls. 7 dos autos, mostrando-se no mesmo justificada a notificação por esta via – por serem inúmeros e com identidade desconhecida todos os interessados das respectivas determinações.

O recorrente questiona a admissibilidade da notificação por esta via, pretendendo que não constitui acto de notificação constitucionalmente relevante a publicação ou publicitação do acto administrativo através da afixação do edital em local público, ou em internet ou portal do município, pois assim não se garante a certeza jurídica da sua cognoscibilidade pelos seus destinatários individuais.

Não está em causa nos presentes autos e de forma directa, a adequação da notificação por via edital, mas apenas na medida em que possa ter condicionado a acção do arguido, ao agir de modo a impedir que o fiscal camarário concretizasse a apreensão de bens em exposição. Ora, independentemente das condicionantes próprias da notificação por via edital, é certo que o arguido tinha conhecimento da determinação em causa e que justificou a operação de fiscalização. Em tais circunstâncias, isto é, conhecendo o arguido a determinação camarária, não pode o mesmo prevalecer-se de alegada incerteza – que no seu caso não se verifica, pelo que não pode afirmar-se a existência de violação aos artigos 268.º, n.º 3, da Constituição, e 66.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo.

Assim, perante os factos provados, não havendo razões para contrariar a qualificação feita na sentença recorrida e que antes se deixou transcrita, onde se conclui que o arguido cometeu, como autor material, o crime de resistência e coacção sobre funcionário, e não se verificando também a pretendida violação do artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa, do Decreto-lei n.º 58/98 e dos artigos 250.º do Código de Processo Penal e 347.º do Código Penal, impõe-se a improcedência do recurso.

III)

Decisão:

Pelo exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, nos seguintes termos:

- Proceder à alteração da redacção da alínea h) dos factos provados, nos termos que se deixaram enunciados.

- Julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UC o valor da taxa de justiça.

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(Joaquim Correia Pinto - Relator)

(Fernanda Ventura)