Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3756/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: TENTATIVA DE BURLA
ACTO PREPARATÓRIO
ACTOS DE EXECUÇÃO
EXECUÇÃO VINCULADA
RECEPTAÇÃO
RECEBIMENTO DE DINHEIRO PROVENIENTE DE VENDA DE COISA OBTIDA MEDIANTE FACTO ILÍCITO CONTRA O PATRIMÓNIO
Data do Acordão: 03/02/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 21º, 22º, 231º E 233º, DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I - Não sendo puníveis os actos preparatórios (art.21º do CP) constitui tarefa essencial, na definição da tentativa, a destrinça entre actos preparatórios e actos de execução.
II - Como a lei apenas define os actos de execução (art. 22º do CP), os actos preparatórios serão todos aqueles que, embora conexionados com o crime que o agente decidiu cometer, ainda não se enquadram no conceito de actos de execução, não podendo, em circunstância alguma, qualificar-se como tentativa os meros actos preparatórios.
III - Em crimes integrados por vários actos, a execução parcial do tipo deve referir-se ao “tipo global”, devendo acercar-se, até ao limite mesmo da acção típica, sem necessidade de passos intermédios essenciais.
IV - No crime de burla, de execução vinculada, a adequação deve estender-se aos sucessivos nexos causais, até ao resultado final – causar prejuízo. Os actos praticados pelo agente hão-de ser adequados, já de si, a causar o referido resultado final.
V - Consistindo, no caso, os actos praticados pelo agente, na simples remessa de “fax” a solicitar o envio de mercadorias, a crédito, nunca tendo chegado a verificar-se qualquer acordo de fornecimento, sem que se saiba, em cada caso, a razão da recusa nem constando da matéria provada que aquela simples “encomenda” (de mercadorias que nalguns casos os destinatários nem comercializavam) fosse adequada a obter o consentimento da vítima, não podem ser qualificados como tentativa, mas simples actos preparatórios.
VI - A condenação pela agravante “modo de vida” do crime de burla impede, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, a condenação cumulativa por cada um dos actos isolados integrados naquela agravante.
VIII - Equiparando o art.233º do CP às coisas obtidas ilicitamente, os valores com elas directamente obtidos, pratica o crime de receptação o advogado que, tendo conhecimento dessa origem, recebe o dinheiro proveniente de forma imediata da venda daqueles bens (sem que se destine ao pagamento de honorários pela defesa do autor do crime de burla), com intenção de enriquecer o seu património à custa do património da vítima para a qual não praticou qualquer acto nem teve negócio que legitime o recebimento daquele dinheiro.
Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM AUDIÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I. RELATÓRIO

1. Antecedentes

Nos presentes autos, realizada a audiência de discussão e julgamento, pelo Tribunal Colectivo, foi proferido acórdão, que, dirimindo a matéria de facto provada e não provada, procedeu ao respectivo enquadramento jurídico, julgando a acusação parcialmente procedente e condenando os arguidos em conformidade.

Interposto recurso desse acórdão, por vários dos arguidos, em apreciação desses recursos este Tribunal da Relação, por acórdão de 17.03.2004, constante da página 21497 (volume 77) até à página 21915 (vol. 78), decidiu, nomeadamente (transcreve-se parte dessa decisão por assumir relevo na análise de algumas questões agora suscitas de novo, sobre as quais se pronunciou):

1. – Julgar competente territorialmente o Tribunal de Oliveira do Bairro, para o julgamento do presente processo. (...)

3. – Declarar nulo o acórdão, devendo proceder-se a novo, pelos mesmos juizes que compuseram o colectivo, devendo:

3.1. – Reabrir-se a audiência para dar cumprimento ao disposto nos artigos 358º e 359º do C.P.P., designadamente comunicando as alterações substanciais e não substanciais aos arguidos, como sejam as situações de facto não contidas na acusação e na pronúncia capazes de integrar crimes; as situações de facto de que resultem alterações dos factos descritos na acusação e na pronúncia; as situações que integrem crimes com qualificação jurídica diferentes das da acusação e da pronúncia; situações de facto que integrem as circunstâncias de facto das qualificativas dos crimes de forma diferente das constantes da acusação e da pronúncia, seguindo-se os demais termos do normatizado nos indicados artigos 358º e 359º do C.P.P., conforme os casos.

3.2. – Pronunciar-se sobre factos constantes da acusação, da pronúncia e da contestação, sobre os quais não houve decisão nem fundamentação, como acima se indica, reabrindo a audiência, para produção de prova, se necessário for, face ao disposto no artigo 328º/6 do C.P.P. e, verificando-se não ter havido investigação, em audiência, desses factos.

4. – Declarar nulo o acórdão, por falta de fundamentação, devendo:

4.1 – indicar-se, no acórdão, os dados objectivos recolhidos da prova documental, pericial, das escutas e testemunhal, produzida; fazer-se o exame crítico das provas; nomear-se os factos valorados que integram o tipo de crime, bem como as qualificativas; especificar os fundamentos que presidiram á escolha e medida da pena; fundamentar de direito, indicando a interpretação jurídica dos elementos dos tipos de crime e integrá-los conforme a interpretação, em cada caso; apontar-se a interpretação dada a actos preparatórios e executórios na tentativa, de modo a integrar os factos valorados nessa interpretação; aludir-se à solução jurídica para os actos classificados como integradores dos crimes como simples ou continuados; estabelecer-se a relação factual entre os factos integradores dos crimes de burla e falsificação, de modo a tomar posição face ao acórdão. para fixação de jurisprudência, tudo como supra se indica, reabrindo a audiência, se necessário for, para produção de prova face ao disposto no artigo 328º/6 do C.P.P. e, se se verificar não ter havido investigação, em audiência, desses factos, e ainda ao facto de a produção de prova se ter iniciado há muito mais de um ano, não sendo possível valorar muitos dos dados que só a imediação e oralidade podem traduzir.

5. – Julgar válidas as escuras telefónicas.

(...)

7. - Rejeitar recurso alusivo a intromissão na correspondência e de abertura do cofre...”.

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2. A DECISÃO RECORRIDA

Em conformidade com a referida decisão, o processo voltou de novo à 1ª instância, para cumprimento do Acórdão deste Tribunal da Relação.

Nessa sequência foi designada data para a reabertura da audiência, no âmbito da qual, foram comunicadas aos arguidos várias alterações da qualificação jurídica dos factos constantes do despacho de pronúncia (alterações constantes da respectiva acta – de fls. 22.310, in fine, até fls. 22.322.

Comunicadas tais alterações (não substanciais ou relativas à qualificação jurídica dos factos descritos no despacho de pronúncia), foi requerido prazo para análise de tais alterações e preparação da defesa, tendo sido concedido, tendo sido designada, em consequência, nova data para a continuação da audiência.

Não foi requerida nem o tribunal entendeu necessária a produção de novas provas - dada a natureza das alterações, que não colidiam com a matéria de facto, que se manteve inalterada, tendo-se concluído a audiência com o formalismo devido.

Proferiu então o Tribunal Colectivo, novo Acórdão (decisão ora recorrida), cuja parte injuntiva/dispostiva é a seguinte:

O arguido D... vai condenado, pela prática de cada um dos seguintes crimes, em:

1 associação criminosa, art. 299/1 - 2 anos e 6 meses de prisão.

31 burla qualificada, art. 218/2a) e b) - 2 anos e 2 meses de prisão.

52 burla qualificada, art. 218/2b) - 2 anos e 1 mês de prisão.

4 tentativas burla qualificada, art. 218/2a) e b) - 6 meses de prisão.

12 crimes de falsificação do art. 256/1b) - 7 meses de prisão.

Em cúmulo dos crimes que beneficiam do perdão da Lei 29/99, de 12/5, vai condenado na pena única de 7 anos. A esta pena é concedido, por esta lei, o perdão de 14 meses. Pelo que a pena fica reduzida a 5 anos e 10 meses.

Em cúmulo desta pena residual com a pena do crime que não beneficia do perdão, vai condenado na pena única de 6 anos e 2 meses de prisão.

E vai absolvido de:

1 tentativa de burla qualificada, do art. 218/2b) por não ter ficado provada [uma outra foi considerada como burla consumada do art. 218/2a) e b)]

*

Os arguidos E..., F... e G... vão condenados, pela prática de cada um dos seguintes crimes, em:

1 associação criminosa, art. 299/2 - 1 ano e 6 meses de prisão.

14 burla qualificada, art. 218/2a) e b) 2 anos e 1 mês de prisão.

16 burla qualificada, art. 218/2b) - 2 anos de prisão.

1 tentativa burla qualificada, art. 218/2a) e b) - 5 meses de prisão.

11 crimes de falsificação, art. 256/1b) - 7 meses de prisão.

Em cúmulo dos crimes que beneficiam do perdão da Lei 29/99, de 12/5, cada um deles vai condenado na pena única de 5 anos. A esta pena é concedido, por esta lei, o perdão de 1 ano. Pelo que a pena fica reduzida a 4 anos.

Em cúmulo desta pena residual com a pena do crime que não beneficia do perdão, cada um deles vai condenado na pena única de 4 anos e 2 meses de prisão.

*

O arguido A... vai condenado, pela prática de cada um dos seguintes crimes, em:

2 de associação criminosa, art. 299/1 - 3 anos e 6 meses de prisão.

59 burlas qualificadas, art. 218/2b) - 2 anos e 3 meses de prisão.

32 burlas qualificadas, art.218/2a) e b) - 2 anos e 4 meses de prisão.

495 tentativas de burla qualificada, art. 218/2b) - 7 meses de prisão.

255 tentativas burla qualificada, art.218/2a) e b)- 8 meses de prisão.

12 crimes de falsificação, art. 256/1b) - 7 meses de prisão.

4 crimes falsificação de documentos, 256/1a) - 7 meses de prisão.

3 falsificação de documentos, 256/1a) e 3 - 10 meses de prisão.

Em cúmulo, vai condenado na pena única de 16 anos de prisão.

E vai absolvido de (devido a, à excepção dos casos assinalados, diferente qualificação jurídica dos factos):

3 crimes consumados de burla qualificada, 218/2b

5 crimes consumados de burla qualificada, 218/2a) e b) (4 delas por não terem ficado provadas)

2 tentativas de burla qualificada, do art. 218/2b), uma delas por não ter ficado provada [uma outra foi considerada como burla consumada do art. 218/2a) e b)].

760 crimes de falsificação de documentos 256/1a) (um deles não ter ficado provado)

1 crime de falsificação de documentos, 256/3.

*

O arguido B... vai condenado [as cinco condenações a mais pelo crime de tentativa de burla do art. 218/2b) resultam de diferente qualificação jurídica dos factos como foi exposto], como reincidente, prática de cada um dos seguintes crimes, em: pela prática de:

1 de associação criminosa, 299/1 - 3 anos e 6 meses de prisão.

5 burlas 218/2b) 2 anos e 5 meses de prisão.

3 burlas 218/2a) e b) - 2 anos e 11 meses de prisão.

32 tentativas burla 218/2a) e b) - 11 meses de prisão.

311 tentativas burla 218/2b) - 10 meses de prisão.

11 falsificação de documentos 256/1a) - 10 meses de prisão.

18 falsificação de documentos 256/1a) e 3 - 13 meses de prisão.

1 crime de passagem de moeda falsa, 265/1a) - 14 meses de prisão.

Em cúmulo, vai condenado na pena única de 14 anos de prisão.

E vai absolvido de:

4 burlas 218/2b) (2 por não terem ficado provados)

3 burlas 218/2a) e b) (2 por não terem ficado provados)

3 tentativas de burla 218/2a) e b) (1 por não ter ficado provado)

339 crimes de falsificação de documentos do 256/1a)

2 crimes de falsificação de documentos do 256/3 (1 por não ter ficado provado).

*

O arguido C... vai condenado, pela prática de cada um dos seguintes crimes, em:

1 crime de associação criminosa, 299/2 - 1 ano e 8 meses de prisão.

4 burlas 218/2b) - 2 anos e 2 meses de prisão.

6 burlas 218/2a) e b) - 2 anos e 2 meses de prisão.

494 tentativas de burla 218/2b) - 5 meses de prisão.

252 tentativas de burla 218/2a) e b) - 6 meses de prisão.

3 crimes de falsificação de documentos 256/1a) - 6 meses de prisão.

4 falsificação de documentos 256/1a) 3 - 8 meses de prisão.

1 crime passagem de moeda falsa, art. 265/1a) - 10 meses de prisão.

Em cúmulo, vai condenado na pena única de 7 anos de prisão.

E vai absolvido de:

3 burlas 218/2b)

1 burla 218/2a) e b) (1 por não ter ficado provado)

2 tentativas de burla 218/2b)

760 crimes de falsificação de documentos 256/1a) (1 por não ter ficado provado)

3 crimes de falsificação de documentos 256/1a) e 3 (2 por não terem ficado provados)

1 crime de passagem de moeda falsa (1 por não ter ficado provado)

O procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança, 205/1 e 4a) foi julgado extinto com trânsito em julgado.

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O arguido I... vai condenado [as duas condenações a mais pelo crime de tentativa de burla do art. 218/2b) resultam de diferente qualificação jurídica dos factos, entre elas a parcial desqualificação de um burla do art. 218/2a) e b)] pela prática de cada um dos seguintes crimes, em:

1 associação criminosa, do art. 299/2 - 1 ano e 6 meses de prisão.

1 burla qualificada, art. 218/22a) e b) - 2 anos e 8 meses de prisão.

8 crimes tentados de burla qualificada, 218/2b) - 8 meses de prisão.

4 tentativas de burla qualificada, 218/2a) e b) - 9 meses de prisão.

6 falsificação de documentos, 256/1a) - 8 meses de prisão.

10 falsificação de documentos, 256/1a) 3 - 11 meses de prisão.

1 crime de passagem de moeda falsa, 265/1a) - 8 meses de prisão.

Em cúmulo, vai condenado na pena única de 8 anos de prisão.

E vai absolvido de:

1 crime tentado de burla qualificada, 218/2a) e b).

1 crime de falsificação de documentos, 256/1a).

1 crime de falsificação de documentos, 256/3.

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O arguido J... vai condenado [a condenação pelos 5 e não 4 crimes tentados de burla do art. 218/2b) resulta de diferente qualificação jurídica dos factos] pela prática de cada um dos seguintes crimes, em:

1 associação criminosa, do art. 299/2 - 1 ano e 8 meses de prisão.

5 crimes tentados de burla qualificada, 218/2b) - 8 meses de prisão.

2 tentativas de burla qualificada, 218/2a) e b) - 9 meses de prisão.

2 crimes falsificação de documentos, 256/1a) - 8 meses de prisão.

3 falsificação de documentos, 256/1a) e 3 - 11 meses de prisão.

1 crime de passagem de moeda falsa, 265/1a) - 12 meses de prisão.

Em cúmulo, vai condenado na pena única de 6 anos e 5 meses de prisão.

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O arguido Q... vai condenado [a condenação pelos 3 e não 2 crimes tentados de burla do art. 218/2a) e b) resulta de diferente qualificação jurídica dos factos] pela prática de cada um dos seguintes crimes, em:

1 associação criminosa, do art. 299/2 - 1 ano e 6 meses de prisão.

3 tentativas de burla qualificada, 218/2a) e b) - 6 meses de prisão.

1 crime de falsificação de documentos, 256/1a) - 6 meses de prisão.

Em cúmulo, vai condenado na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão.

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A arguida M... vai condenada pela prática de cada um dos seguintes crimes, em:

1 burla qualificada, do art. 218/2b) - 2 anos e 8 meses de prisão.

1 falsificação de documentos, art. 256/1a) e 3 - 10 meses de prisão.

1 passagem de moeda falsa, do art. 265/1a) - 8 meses de prisão.

Em cúmulo, vai condenada na pena única de 3 anos e 5 meses.

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O arguido R... vai condenado pela prática de: 1 crime de passagem de moeda falsa, do art. 265/1a) do CP, na pena de 1 ano de prisão.

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O arguido N... vai condenado pela prática de: 1 crime consumado de burla qualificada, do art. 218/2b), na pena de 2 anos e 1 mês de prisão, cuja execução fica suspensa pelo período de 3 anos.

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O arguido K... vai condenado pela prática de cada um dos seguintes crimes, em:

1 burla qualificada, do art. 218/2b) - 2 anos e 1 mês de prisão.

1 crime de receptação do art. 231/1 - 6 meses de prisão.

1 crime de receptação do art. 231/1 - 4 meses de prisão.

Em cúmulo, vai condenado na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão, cuja execução fica suspensa pelo período de 3 anos.

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O arguido L... vai condenado pela prática de cada um dos seguintes crimes:

1 burla qualificada, do art. 218/2b) - 2 anos e 2 meses de prisão.

1 crime de receptação do art. 231/1 - 4 meses de prisão.

Em cúmulo, vai condenado na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 3 anos.

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O arguido O... vai condenado pela prática de: 1 crime de abuso de confiança do art. 205, nºs. 1 e 4a), na pena de 150 dias de multa, a 7€ diários, num total de 1050€, com 100 dias prisão subsidiária para o caso de não pagamento.

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O arguido S... vai condenado pela prática de: 1 crime de passagem de moeda falsa do art. 265/1a) do CP, na pena de 1 ano de prisão, cuja execução se suspende por um período de 2 anos.

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A arguida P... vai condenada pela prática de: 1 crime de receptação do art. 231/1 do CP, na pena de 150 dias de multa, a 8€ diários, num total de 1200€, com 100 dias prisão subsidiária para o caso de não pagamento.

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A arguida H... vai condenada pela prática de um crime de violação de segredo do art. 195º do CP, na pena de 150 dias de multa, a 8€ diários, num total de 1200€, com 100 dias prisão subsidiária para o caso de não pagamento.

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3. OS RECURSOS

Desse novo Acórdão foi interposto recurso por 13 (treze) dos arguidos, alguns deles em peça conjunta, a saber, por ordem de incorporação nos autos:

1. L.... (fls. 23.822 e segs.)

2. A... (fls. 23.876 e segs.)

3. O... (fls. 24.570 e segs.)

4. C... (fls. 24.592 e segs.)

5/6. B... E I... (fls. 24.800 e segs.)

7/8/9. E..., F... E M... (fls. 24.805 e segs.)

10. K... (fls. 24.913 e segs.)

11. P... (fls. 24.949 e segs.)

12. D... (fls. 25.067 e segs.)

13. J... (fls. 25.118 e segs.

13-A. O Arguido J... interpôs ainda recurso (fls. 25.546 e segs.) do despacho que julgou injustificada a sua falta à última sessão da audiência.

5. Respostas/Parecer

Respondeu a digna magistrada do MºPº ao recurso sobre a não justificação da falta pugnado pelo não provimento.

Respondeu o Ex.mo Procurador da República junto do Tribunal Recorrido sustentando, em síntese conclusiva:

As questões da competência territorial, da validade das escutas telefónicas, foram decididas, com trânsito em julgado pelo anterior acórdão do Tribunal da Relação;

O art. 411º, n.º1 do CPP não foi aplicado na dimensão cuja constitucionalidade se questiona;

O despacho que designou data para a audiência, proferido pelo juiz titular do processo é válido, não existindo entre o juiz da comarca e o juiz de Círculo qualquer relação de hierarquia;

A prova produzida não perdeu eficácia porque se encontra devidamente gravada e transcrita, não se aplicando a regra da continuidade da audiência nos casos de anulação da sentença e baixa do processo à 1ª instância para correcção de deficiências da mesma sem que haja produção de pvova, omo é o caso;

A circunstância de terem decorrido mais de 10 dias entre a ultima sessão do julgamento e a leitura do acórdão constitui mera irregularidade que pela sua natureza não afecta a validade do acto nem acarreta quaisquer consequências jurídicas.

A apreensão do conteúdo do cofre foi efectuada em conformidade com a lei, mediante determinação das autoridades portuguesas competentes, não apontando o recorrente A... qualquer desconformidade que afecte a sua autenticidade, constituindo meio de prova legalmente admissível;

O acórdão recorrido enferma de erros de contagem dos crimes, para mais e para menos em ralação Às alterações comunicadas ao arguido A.... Se as alterações para menos são irrelevantes já não o são as alterações para mais um crime de burla qualificada na forma tentada implica a nulidade do acórdão, nessa parte, por violação do disposto no art. 358º, n.º3 do CPP;

Por absoluta falta de tempo face à complexidade das restantes questões suscitadas não foi possível concluir o pano inicial da resposta, o que o Tribunal da Relação suprirá.

No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer concordante com a resposta, pronunciando-se todavia no sentido de que a condenação do arguido A... por mais um crime de burla na forma tentada não referenciado no despacho que procedeu à comunicação das alterações, na sequência da decisão do Tribunal da Relação, constitui um mero lapso de contagem, corrigível por aplicação do art. 380º, n.º1 do CPP, não importando qualquer envolvência modificativa de factos estruturantes da pronúncia devendo proporcionar-se ao tribunal recorrido a simples correcção do mesmo tentativa de buo que os indicados.


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Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.

Corridos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre conhecer e decidir.

Procedendo-se à apreciação, desde já, do recurso do arguido J... que versa a justificação da e das questões que podem obstar à apreciação de mérito.


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II. Apreciação do recurso interposto pelo arguido J... relativo sobre o despacho de não justificação da sua falta à sessão da audiência de 03.09.2004

Alega o recorrente, em síntese que: não compreende o porquê da não justificação da sua falta, uma vez que comunicou telefonicamente à secretaria do Tribunal as razões que o impediam de estar presente (conclusão 4ª); o defensor que o estava a patrocinar no acto tinha sido informado da situação de doença em que se encontrava e como tal informou o tribunal (c. 5ª); é incompreensível a aplicação do art. 117º, n.º2 à situação concreta (c. 9ª): tinha o arguido o prazo de 3 dias úteis para apresentação da justificação da falta (c. 11ª).

Compulsando os autos, verifica-se, sobre este ponto:

Foi o arguido condenado na respectiva multa por falta considerada injustificada pela não comparência à audiência de julgamento designada para o dia 03/09/2004, para o qual estava regularmente notificado.

Da acta de audiência de julgamento – cujo teor, a este respeito, não foi colocado em causa por nenhum dos intervenientes processuais, pelo que faz fé em juízo - resulta que o ora recorrente foi um dos arguidos faltosos à referida sessão da audiência de julgamento ocorrida em 03/09/2004.

Dessa acta não consta que tenha sido feita qualquer comunicação (via telefónica ou via fax) até ao início da audiência de julgamento ou mesmo durante o decurso da mesma, por parte do arguido ou outrém em sua representação, designadamente o defensor nomeado para o acto, dada a falta, também, da sua ilustre mandatária constituída.

Daí que, tendo-se iniciado a audiência, não estando o ora recorrente presente, não tendo sido apresentada qualquer justificação, nem tendo sido feita qualquer comunicação, o M.º Juiz Presidente condenou o faltoso na respectiva multa, decisão logo exarada em acta – ao contrário do que sucedeu em relação a outros arguidos faltosos que procederam às legais comunicaçãoes e em relação aos quais foi determinado aguardar a respectiva justificação (cfr. fls. 23.767/9, a abrir o 85º Vol.).

Mais tarde, no dia 06/09/2004, a mandatária do ora recorrente enviou, via fax, requerimento de justificação da falta – pela qual havia sido condenado, por despacho exarado em acta - e cópia do atestado médico em nome do ora recorrente.

Em 13/09/2004 deu entrada na secretaria deste tribunal o original do referido atestado.

Sobre tal requerimento e atestado foi proferido despacho que é do seguinte teor: (cfr. fls. 23.850) “O arguido foi já condenado pela falta injustificada. Uma vez que não comunicou atempadamente a sua impossibilidade de comparência, por extemporâneo, indefiro agora o requerido (vide art. 117º, n.º2 do CPP)”.

Do teor do atestado verifica-se que o mesmo foi emitido em 03/09/2004, mencionando "impossibilidade de comparecimento pelo ora recorrente por motivo de doença ."

Alega o recorrente que no dia designado para a audiência efectuou um telefonema para o tribunal dando conta da sua não comparência.

Ora, para que a sua pretensão pudesse obter provimento incumbia-lhe fazer a prova de que, de facto, ele próprio, ou o defensor nomeado para o acto, na falta da sua mandatária constituída, procederam à comunicação, ao tribunal, da impossibilidade de estar presente, de modo a contrariar o que se encontra exarado na acta de audiência de julgamento.

Mas não o faz. Muito menos faz prova daquilo que alega. Tanto mais que a sua defensora nem compareceu sequer à audiência de julgamento.

Pelo que falece de suporte a sua alegação.

Por outro lado, sendo o motivo da falta imprevisível, como alega o recorrente, não se compreende como é que o mesmo, sendo o atestado emitido na data do julgamento, ao invés de o remeter logo via fax para o tribunal – e a sessão da audiência em causa apenas teve início da parte da tarde - o entregou, antes, à sua mandatária, que também ela faltou à dita sessão, como se alcança mais uma vez da acta e não vem posto em causa.

Acresce que, ainda que o recorrente tivesse demonstrado que de facto comunicou atempadamente a sua impossibilidade de comparência no dia e hora designados para o acto, ainda assim a falta não deveria ser justificada.

Com efeito a lei impõe que, sendo a impossibilidade de comparência imprevisível, o faltoso deve não só comunicá-la no dia e hora designado para a prática do acto, como ainda que dessa comunicação deve constar, sob pena de não justificação da falta, a indicação do motivo, local onde o faltos o pode ser encontrado e da duração previsível do impedimento -cfr. art. 117°, n.º 2 do CPP.

Ora, nem o recorrente alega que tenha dado cumprimento a tais imposições.

Por outro lado, quando for alegada doença, o atestado médico deve especificar não só a impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento, mas ainda o tempo provável de duração do impedimento - cfr. art. 117°, n° 4 do Código de Processo Penal.

Requisitos que no caso também não se mostram cumpridos.

Assim, não se vislumbrando que o despacho recorrido tenha violado as normas legais aplicáveis, invocadas pelo recorrente, não merece censura.

Pelo que se acorda negar provimento e este recurso, julgando-o improcedente.


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III. RECURSOS DA DECISÃO FINAL - definição de sequência / questões prévias

1. São as questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões que o tribunal de recurso tem que apreciar, sendo o âmbito do recurso definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação – Cfr. Germano Marques as Silva, Curso de processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas.

Isto sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente os vícios indicados no art. 410º, n.º2 do CPP, de acordo como o Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.

As questões suscitadas devem ser analisadas por ordem de precedência lógica, nos termos dos arts. 368º/369º do CPP, por remissão do art. 423º, n.º5 do mesmo diploma.

Dado que vários recursos incidem sobre as mesmas questões, que repetem – competência do tribunal, validade do meio de prova escutas telefónicas, nulidades da sentença, vícios do art. 410º n.º2 do CPP, matéria de facto, matéria de direito e medida da pena - atenta ainda a estrutura unitária do recurso, as questões serão tratadas em conjunto, pela referida ordem temática, ainda que fazendo-se referência específica aos argumentos aduzidos por cada recorrente.

As questões da competência territorial e da validade das escutas telefónicas (por terem sido objecto de apreciação e decisão pelo anterior acórdão deste Tribunal da Relação), bem como as questões da inconstitucionalidade do art. 411º, n.º1 do CPP, da inexistência do despacho que designou data para a audiência de discussão e julgamento, da perda da eficácia da prova produzida por violação do art. 328º, n.º6 do CPP, da violação do prazo do art. 373º para a leitura do acórdão, falsidade do auto da apreensão do cofre do arguido A... realizada na guiné (estas pela circunstância de a eventual procedência poder obstar à apreciação de mérito, não sendo necessário fazer apelo à decisão da matéria de facto para decidi-las), serão apreciadas desde já, como questões prévias.

2. Incompetência territorial

O arguido D... invoca, no recurso que interpôs, a incompetência territorial do Tribunal da Comarca de Oliveira do Bairro, sustentando que o Tribunal competente era o Tribunal Judicial da comarca de Leiria.

Trata-se, porém, de questão que foi devidamente apreciada, e decidida, pelo anterior Acórdão deste Tribunal da Relação, datado de 17/03/04.

Com efeito, como se alcança da respectiva parte injuntiva, supra descrita para melhor apreceiação, tal questão foi apreciada e decidida no referido Acórdão, tendo declarado o tribunal da comarca de Oliveira do Bairro territorialmente competente para o julgamento.

Assim, tratando-se de questão apreciada e decidida em anterior decisão não recorrida, não pode ser novamente apreciada nos autos, por a tal obstar a excepção dilatória de caso julgado – cfr. art. 494º, al. i); art. 497º, n.º 1 e 2; e art. 493º do CPC, ex vi do art. 4º do CPP.

3. Inconstitucionalidade do artigo 411.º n.º 1 do Código de Processo Penal

À semelhança do que já alegara no recurso da sentença anterior o arguido D... invoca a inconstitucionalidade do artigo 411.º n.º 1 do Código de Processo Penal, por considerar que face à dimensão e complexidade dos autos o prazo de 15 dias para interpor recurso motivado da sentença é de tal forma exíguo que prejudica as garantias da defesa previstas no artigo 32.º n.º 1 e 3 da C.R.P..

Ora, no caso em apreço, não foi rejeitado qualquer recurso interposto pelo recorrente por extemporâneo. Nem sequer foi requerida a prorrogação do prazo.

De onde resulta que a norma do artigo 411.º n.º 1 do Código de Processo Penal, na interpretação cuja conformidade com o texto constitucional é questionada não foi sequer aplicada nos autos.

Não existe assim qualquer fundamento para declarar a inconstitucionalidade de determinada interpretação de uma norma que não foi sequer aplicada, nos autos, na dimensão cuja constitucionalidade se contesta.

4. Inexistência do despacho que designou dia para o julgamento

Sustenta o arguido A... que o despacho que designou dia para o julgamento não se mostra subscrito pelo Juiz que veio a presidir ao julgamento em Tribunal Colectivo, pelo que seria inexistente.

Mais alega que tendo o M.º Juiz que presidiu ao julgamento tomado posse em Setembro de 2002, não foi ele que sugeriu a data do julgamento a que se refere o despacho recorrido, proferido em 15/07/2002.

Este argumento não tem o menor cabimento, posto que não seja posto em causa que o juiz tenha sido nomeado pelo Órgão competente e fosse efectivamente o competente para o efeito. Sendo certo que a lei exige que o juiz que designe data para um julgamento tenha que presidir a esse julgamento.

Aliás dentro do entendimento plasmado no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 07-05-03, P.º 947/03 (pub. no site www.dgsi.pt), nos tribunais de comarca o presidente a que se refere o artigo 312.º do Código de Processo Penal, é o presidente do tribunal ou o juiz titular do processo (o que se justifica porque só o juiz do processo tem noção da agenda de julgamentos, para mais não existindo entre o juiz do processo e o juiz de círculo qualquer relação de hierarquia).

O Tribunal Colectivo tem competência apenas determinada em função do julgamento em si mesmo. Sendo o juiz do processo quem continua a ter competência para toda a chamada “burocracia do processo”, designando a data para a audiência em conformidade com a agenda do Tribunal Colectivo previamente estabelecida por acordo com o juiz que irá presidir ao Tribunal Colectivo, do qual também faz parte o juiz da comarca ou do processo.

Todas as normas relativas à competência do tribunal singular e colectivo se referem à competência para julgamento – cfr. artigos 14.º e 16.º do Código de Processo Penal.

Pelo que o eventual vício de que padeça o despacho recorrido não é facilmente caracterizável quer porque não está em causa a competência para julgar (competência em razão da matéria), nem existe relação hierárquica (competência em razão da hierarquia), quer porque não está em causa a competência por força da fase ou forma do processo.

De onde resulta que as disposições sobre incompetência – art. 32.º e segs. do Código de Processo Penal – não são directamente aplicáveis.

Pelo que, tratando-se de uma incompetência atípica, em razão da estrutura do tribunal de 1.ª instância, deve aplicar-se por analogia o regime dos artigos 32.º e segs. do Código de Processo Penal, nos termos do artigo 4.º do Código de Processo Penal, com as necessárias adaptações.

Aliás o eventual vício não integra a nulidade insanável referida no artigo 119.º al. e) do Código de Processo Penal, uma vez que tal preceito se refere à “Violação das regras de competência do tribunal”. Pela simples razão de que o tribunal que procedeu ao julgamento é o competente. Pelo que, a existir, o vício sempre cairia no âmbito das meras irregularidades.

Em todo o caso, nos termos dos artigos 123.º e 33.º n.º 2 do Código de Processo Penal, o despacho em questão mostra-se convalidado, uma vez que respeita a um acto processual urgente – marcação do dia para julgamento em processo com arguidos detidos havendo que proceder à notificação de mais de 350 pessoas.

Pelo que também não se verifica a invocada inexistência.

5. Validade das escutas telefónicas

Os arguidos A..., K..., P..., E..., F... e M..., suscitam a questão da validade das escutas telefónicas transcritas nos autos.

No entanto trata-se, mais uma vez, de questão que já havia sido suscitada no anterior recurso e sobre que já se pronunciou, decidindo-a expressamente, o anterior Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 17/03/04.

Com efeito, como resulta mais uma vez da respectiva decisão acima transcrita propositadamente para o efeito, tal Acórdão analisou a dita questão e declarou expressamente válidas as escutas efectuadas nos autos, como resulta da respectiva parte dispositiva, acima transcrita.

Pelo que também sobre esta o referido acórdão formou caso julgado, que impede que aqui possa ser de novo apreciada.

6. Perda de eficácia da prova – artigo 328.º n.º 6 C.P.P.

Os arguidos A..., B... e I... alegam que o tribunal colectivo quando da reabertura da audiência (para cumprimento do que foi determinado pelo anterior acórdão deste Tribunal) em 25-05-04 devia ter declarado a perda de eficácia da prova até então produzida nos termos do artigo 328.º n.º 6 do Código de Processo Penal, por já terem decorrido mais de 30 dias sobre o trânsito do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/03/04 que determinara a nulidade da sentença.

No caso dos autos, decretada que foi a nulidade da anterior sentença pelo anterior Acórdão deste Tribunal datado de 17-03-04, o tribunal Colectivo procedeu à reabertura da audiência para comunicação das alterações não substanciais da pronúncia, tendo sido encerrada a audiência sem que se procedesse à produção de qualquer prova adicional, encontrando-se toda a prova anteriormente produzida gravada em suporte magnético e integralmente transcrita.

A regra da continuidade da audiência do artigo 328.º n.º 6 do Código de Processo Penal, não é aplicável aos casos de anulação da sentença e de baixa do processo à primeira instância para correcção de deficiências desta.

A nulidade decretada pelo Tribunal da Relação constitui nulidade apenas da sentença (acórdão, no caso) distinta das nulidades do julgamento, não inquinando este ultimo, por verificada em momento posterior ao encerramento deste – cfr. neste sentido nomeadamente Ac. STJ de 31.05.2001, in SASTJ n.º51, p. 97, citado por Maia Gonçalves em anotação ao art. 379º, no seu CPP Anotado, 13ª ed., p. 749, bem como o Ac. STJ de 20.11.97, CJ/STJ, tomo III/1997, p. 243.

Aliás, como decidiu o AC.STJ de 07.02.96, CJ/STJ, tomo I/96, p. 247 “declarando o STJ nulo o acórdão do T. Colectivo, ordenando-se que o mesmo Tribunal elabore outro acórdão com respeito pelo formalismo legal cuja omissão originou a nulidade o cumprimento do julgado compete aos mesmos juízes, mesmo que alguns já deles já não se encontrem no Tribunal”.

O anterior Acórdão deste Tribunal de 17-03-04 proferido nos presentes autos ao aludir à possibilidade da aplicação do disposto no artigo 328.º n.º 6 do Código de Processo Penal, fê-lo expressamente no pressuposto de ser necessária, eventualmente, a produção de prova – o que não se veio a verificar.

Assim, não se mostra violado o disposto no artigo 328.º n.º 6 do Código de Processo Penal, uma vez que este disciplina apenas o adiamento das audiências até ao encerramento da produção da prova, não sendo aplicável à reabertura da audiência destinada à correcção de vícios da sentença anulada na sequência de recurso, para mais encontrando-se integralmente transcrita toda a prova produzida.

7. Violação do prazo fixado no artigo 373.º n.º 1 C.P.P. para a leitura da sentença

Os arguidos A..., B... e Carlos Carvalhas alegam que o tribunal colectivo violou o prazo de 10 dias fixado no artigo 373.º n.º 1 do do Código de Processo Penal uma vez que entre a última sessão da audiência de julgamento (29-07-2004) e a data da leitura (03-09-04) decorreu prazo muito superior, mas não referem concretamente qual o vício resultante da violação da norma.

Trata-se de mera irregularidade nos termos do artigo 118.º n.º 2 do Código de Processo Penal (que mal se compreende que não tenha sido imediatamente arguida pelos arguidos e seus mandatários quando foram notificados da data para a leitura da sentença, ou no acto da leitura) irregularidade que pela sua natureza não afecta o valor do acto nem acarreta quaisquer outras consequências jurídicas – neste sentido cfr. Ac. STJ de 15-10-97, CJ, Acs. do STJ, V, tomo 3, pág. 197.

Pelo que se julga improcedente a respectiva arguição de nulidade

8. Falsidade do auto da apreensão do conteúdo do cofre efectuado na Guiné

Também esta questão já havia sido suscitada no anterior recurso. Se bem que tenha sido rejeitado, nesta parte – cfr. ponto 7 da decisão onde foi decidido “Rejeitar recurso alusivo a intromissão na correspondência e de abertura do cofre”.

Alega porém agora o recorrente que ocorreu abusiva ingerência na correspondência – utilização de um método proibido de prova – na abertura de um cofre apreendido no âmbito de busca efectuada em carta rogatória executada na Guiné-Bissau, e adicionalmente, que existe falsidade do auto então elaborado pela polícia guineense relativo à abertura do cofre por dele não constar a assinatura do Inspector Chefe da PJ portuguesa, Morais Soares, que no auto é referido como presente.

A este respeito, como bem se evidencia na resposta, resulta dos autos que:

- A busca efectuada no âmbito de carta rogatória expedida às autoridades da Guiné-Bissau foi promovida pelo Ministério Público – cfr. fls. 5.104 e 5105 – e autorizada pela M.ª Juiz de Instrução Criminal – cfr. fls. 5.132 e 5.133. Ou seja, foi autorizada e determinada pelas autoridades judiciárias portuguesas competentes nos termos dos artigos 174.º e seguintes do Código de Processo Penal;

- E foi executada pelas autoridades da Guiné-Bissau competentes no âmbito do Acordo de Cooperação Jurídica publicado no DR I Série de 19/05/1989, Resolução da Assembleia da República n.º 115/89;

- A lei aplicável ao cumprimento foi a da República da Guiné-Bissau como decorre em primeira linha do princípio da soberania, mas também do artigo 39.º do Acordo, que aliás permite também a assistência de representantes do estado requerente (no caso, Portugal) a título de observadores;

- A apreensão do cofre e do seu conteúdo foi efectuada no cumprimento da determinação originária das autoridades judiciárias portuguesas, ou seja no cumprimento dos despachos que determinaram a remessa da carta precatória;

- Apenas por impossibilidade técnica não se procedeu à abertura imediata do cofre, certamente para evitar que no arrombamento do cofre se pudessem causar danos na documentação e objectos que nele se encontrassem guardados, e por desde logo se ter afigurado provável que o arguido A... fornecesse voluntariamente o segredo do cofre para evitar tais danos;

- O que de facto veio a acontecer, tendo o arguido A... fornecido o segredo do cofre, colocando como condição que o mesmo fosse aberto na presença de elementos da PJ portuguesa, e de um seu amigo, a quem seriam entregues os objectos que não fossem apreendidos, por ter receio que se extraviassem alguns objectos em ouro que estariam no interior do cofre.

Resulta do exposto que as condições exigidas pelo arguido A..., bem como o seu “consentimento”, ao contrário do agora alega no recurso, não foram processualmente determinantes da realização da abertura do cofre e apreensão do seu conteúdo – diligências que como vimos foram determinadas pelas autoridades judiciárias portuguesas através da carta rogatória – relevando apenas para o “modus operandi” da abertura do cofre (que assim foi aberto através do segredo fornecido pelo próprio e não através de explosivo, ácido ou meio mecânico).

Pelo que não se recorreu a um método proibido de prova, uma vez que a intromissão na vida privada em que se traduziu a apreensão do cofre e do seu conteúdo foi devidamente autorizada pela M.ª Juiz de Instrução ao abrigo do disposto nos artigos 174.º n.º 3, 177.º n.º e 178.º n.º 3 do Código de Processo Penal.

Por outro lado, encontrando-se os objectos e documentos depositados em cofre na residência/escritório do arguido A... na Guiné-Bissau, ou seja em poder do arguido, é manifesto que a sua apreensão não viola o sigilo da correspondência ou das telecomunicações (uma vez que o sigilo da correspondência e das telecomunicações apenas abrange e preserva o acesso à natureza e conhecimento dos objectos ou mensagens no momento da sua transmissão e recepção, após a recepção o acesso pode ser ilegítimo mas apenas se violar outro interesse protegido, por exemplo, a reserva da vida privada, o sigilo bancário, o sigilo profissional, etc.).

Alega ainda o recorrente que o auto de abertura do cofre e apreensão do seu conteúdo é falso por não se encontrar assinado pelo Inspector-Chefe da Polícia Judiciária Portuguesa que menciona como presente e não conter indicação de quem presidiu à diligência dos dois elementos da polícia da Guiné-Bissau ali mencionados.

Qualquer suposta falsidade teria sempre de consistir numa desconformidade entre o declarado no documento e a realidade que visa certificar (falsa declaração), ou numa desconformidade entre a versão original do documento e a que consta dos autos (falsificação do documento – documento não genuíno). Ora não se mostra alegada qualquer desconformidade enquanto tal. Muito menos se mostra fundadamente posta em causa a autenticidade ou veracidade do documento nos termos exigidos no artigo 169.º do Código de Processo Civil.

Por outro lado a mera falta de assinatura de um observador estrangeiro cuja presença se menciona no auto, não constitui sequer uma irregularidade face ao nosso ordenamento jurídico, já que um observador não é por definição um participante no acto – cfr. artigo 95.º do Código de Processo Penal – sendo certo que em todo o caso a lei aplicável para regular a formalização do acto era a da Guiné-Bissau – cfr. artigo 39.º do Acordo de Cooperação Jurídica publicado no DR I Série de 19/05/1989, Resolução da Assembleia da República n.º 115/89.

Acresce que, a existir irregularidade, já não podia ser arguida face ao disposto no artigo 123.º n.º 1 do Código de Processo Penal.

Carecendo, pelo exposto, o recurso, neste ponto, de fundamento.

9. Nulidade da declaração do mandatário do arguido K..., por este não se ter apercebido de que aquele prescindiu do prazo para defesa.

Este aspecto assenta, afigura-se, no equívoco, de que o tribunal recorrido tivesse alterado a matéria de facto - tendo por referência a acusação e pronúncia – em relação ao arguido. O que, como resulta da acta da audiência, não sucedeu.

Para além de que a responsabilidade pelo exercício do mandato é do advogado e não do arguido, que no caso, embora também advogado, não podia exercer o seu múnus, dada a qualidade de arguido. E o arguido esteve sempre devidamente patrocinado, sendo que, não concordando com o patrocínio podia ter revogado a procuração. Além de que, tendo a questão sido suscitada em 1ª instância, sobre ela recaiu despacho de que o arguido não recorreu.

Pelo que se conclui pela inexistência da referida nulidade.


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Para a apreciação das restantes questões suscitadas (vícios da sentença por falta de fundamentação/ exame crítico das provas, vícios da decisão da matéria de facto enunciados no art. 410º, n.º2 do CPP, outras questões relativas à decisão da matéria de facto, pressupostos dos vários crimes número de crimes/crime continuado/concurso de crimes; questões relativas à medida das penas) importa ter presente a decisão recorrida sobre a matéria de facto.

Decisão que por isso passa a transcrever-se, na parte relativa à matéria de facto provada e não provada, bem como a respectiva fundamentação.


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IV. Vista a decisão da matéria de facto recorrida, apreciemos em primeiro lugar as invocadas nulidades do acórdão.

1. Nulidade do acórdão por falta de fundamentação/exame crítico das provas

Como refere Marques Ferreira in Jornadas de Direito Processual Penal do C.E.J., O Novo Código de Processo Penal, ed. Almedina, p. 229-230, “de acordo com os princípios informadores do Estado de Direito Democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado nos arts. 32º, n.º1 e 21º da Constituição a fundamentação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico e racional que lhe subjaz. E extraprocessualmente deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade”.

Aliás, depois de alguma limitação da revisão da decisão da questão de facto pelo tribunal de recurso que se verificava no CPP de 1929, o C.P.P. vigente surgiu animado do propósito explícito de “emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico”, bem como de “emprestar ao recurso maior consistência procura contrariar-se a tendência para fazer dele um labor meramente rotineiro, efectuado sobre papéis” – cfr. v. ponto III 7 do respectivo preâmbulo.

Isto dentro do entendimento que poderia sintetizar-se na expressão de MARQUES FERREIRA (in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo C. de Processo Penal, Ed. do Centro de Estudos Judiciários, 1988, p. 221-222): “o direito probatório, abrangendo as normas relativas à produção e valoração de provas, constitui o verdadeiro cerne da qualquer processo ... a arte do processo não é essencialmente senão a arte de administrar as provas ... é legítimo esperar de um processo penal no quadro de um Estado de Direito Democrático e Social em que a justiça seja alcançada exclusivamente por meios processualmente válidos e efectivamente controláveis”.

No dizer de Michelle Taruffo, in Boletim da Faculdade de Direito de Lisboa, Vol. IV, p. 29, «A fundamentação há-de permitir a ‘transparência’ do processo e da decisão».

“Quando se trata de decisão do tribunal colectivo tem a fundamentação que traduzir ou reflectir o mínimo de acordo ou convergência consensual maioritariamente apurada no seio desse Tribunal Colectivo ... há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação cabal e segura do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo ... não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios mas de uma verdadeira reconstiuição e análise crítica do Iter que conduziu a considerar os factos provados ou não provados” - extracto do AC. TC 258/2001, DR IIS de 02.11.2001, citando outros arestos anteriores do mesmo tribunal.

Tal dever de fundamentação – e no que à decisão da matéria de facto diz respeito, especificamente – assumiu aliás maior ênfase com a revisão do CPP operada pelo DL 59/98 de 25.08 que acrescentou ao art. 374º, n.º2 a seguinte expressão “e exame crítico das provas”. Em vez da mera “indicação das provas” que constava da anterior redacção.

Exame crítico esse que é incompatível com a informação meramente externa.

Aliás o TC já se pronunciou pela inconstitucionalidade da norma do art. 374º, n.º2 do CPP na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões da matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação previsto no art. 205º da Constituição, bem como, quando conjugada com a norma das alíneas a) e b) do n.º2 do art. 410º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no art. 32º, n.º1 da Constituição – cfr. AC. TC 573/98, DR, II S, de 13.11.1998; o Ac. TC 687/98 de 02.12, DR, IIS de 05.03.1999; o AC. TC 258/2001, DR IIS de 02.11.2001.

Escreve-se neste ultimo: “a fundamentação tem, pela natureza das coisas, de estar reportada e conexionada com a própria matéria de facto que constitui objecto do recurso, ou seja, a fundamentação tem de paracer estruturada em função da própria descrição daqueles factos”.

Como decidiu o Ac. STJ de 15.03.2000, CJ/STJ, tomo I, 226, “A exigência legal de fundamentação não se satisfaz com a indicação pura e simples do tipo de prova produzida, visa permitir o exame do processo lógico ou racional subjacente à formação da convicção, bem como averiguar se foi violado norma sobre a proibição de provas”.

No caso sob apreciação a questão da falta de fundamentação foi uma daquelas que foi determinante para a anulação da anterior decisão de 1ª instância, como resulta designadamente do ponto 4.1. do Acórdão da Relação supra transcrito.

Sendo certo que os fundamentos dos recursos que invocam esta nulidade repetem a argumentação dos recursos do primeiro acórdão, como se não tivesse sido proferido um novo acórdão que teve por finalidade suprir, precisamente, essa nulidade detectada pelo Tribunal da Relação. Queixando-se ainda os recorrentes, em alguns aspectos, de o acórdão ora recorrido ter procedido à correcção de vícios detectados no anterior acórdão da Relação.

O que obrigou o tribunal recorrido, no novo acórdão ora recorrido, face à imposição da decisão do Tribunal da Relação, a um especial dever de atenção sobre este ponto, desenvolvendo a fundamentação de forma muito mais pormenorizada.

Com efeito, verifica-se que enquanto na primeira decisão a fundamentação da decisão de facto tinha 47 páginas, agora, no novo acórdão, a mesma fundamentação desenvolve-se por 143 páginas (quase mais 100 do que da primeira vez), desde a página 285 do acórdão até à página 428, como se verifica da transcrição supra efectuada, com a numeração original para mais fácil confronto, para que se remete, sendo desnecessário aqui repetir.

Por outro lado, como se verifica desse enunciado, ao contrário do que sucedia na primeira decisão, agora a fundamentação processa-se facto a facto, ou por blocos de factos dotados de unidade de sentido, especificando, um por um, em súmula as provas relevantes para a convicção alcançada.

Sendo certo ainda que, por cada facto ou ocorrência com unidade de sentido, a decisão indica as provas relevantes para a respectiva decisão que assenta sempre na conjugação de vários elementos de prova. Não se limitando a fazer a remissão “seca” que lhe é apontada, para o elenco das provas que considerou relevantes.

Como resulta da respectiva transcrição integral acima efectuada, o tribunal recorrido fundamentou a decisão especificadamente, por forma a que deixa claro o percurso lógico-racional dos julgadores (trata-se de um tribunal colectivo) para concluir pela prova de cada facto ou de blocos de factos interrelacionados entre si como unidade sentido na sua golbalidade . Não se tratando de uma remissão pura e simples para os meios de prova, mas explicitando as razões por que merecem crédito.

A título de exemplo, no que toca ao recurso interposto pelo arguido C..., que de forma mais desenvolvida invoca este vício, acusando o acórdão recorrido de falda de fundamentação quanto a determinados factos, fazendo uma síntese de tais factos, verifica-se que as provas em que assenta a convicção do tribunal, que lhe dizem respeito, se encontram descriminadas, especificadamente.

Assim, termos:

Quanto aos factos 671º a 683º: a prova em que tal matéria assenta encontra-se descriminada na página 371 do acórdão; factos 730º a 733º: - na pág. 371; factos 775º e 776º: - na pág. 355; facto n.º 725/12: - na pág. 360; factos n.º 1953 a 1068: - nas págs. 375 a 1068; factos n.º 1189 e 1190: - na pág. 359; factos n.º 1080 a 1094: - na pág. 360; facto n.º 725/13: - na pág. 360; factos n.º1095 a 1111: - na p. 360; factos n.º 717 a 724: – p. 352; factos n.º 725, 726, 727 – p. 368 a 371; factos n.º 727 e 728 – p. 371; factos n.º 725/24 – p. 364; factos n.º 725/11 – p. 359; factos n.º 725/12 - pág. 360; factos n.º 725/13 – p. 360; factos n.º 928 a 937 – p. 372; factos n.º 1661 – p. 414; factos n.º 1673 – p. 415; factos n.º 773, 776 e 779 – p. 357; factos n.º 780 a 792 – p. 356; 1088 e 1089 – p 360; factos n.º 792 a 797 – p. 358.

No que concerne ao arguido A..., verifica-se que a fundamentação dos factos 1232, e 1264 e 1270 se encontra especificada respectivamente nas páginas 362 e 354 do acórdão.

Acresce que em todos os casos o acórdão referencia os aspectos essenciais em que as provas indicadas foram relevantes para a decisão, dentro do contexto em que se inserem, na articulação/conjugação de vários elementos de prova, em muitos casos já analisados em pontos anteriores relacionados com o mesmo bloco de factos, sendo por isso inútil repetir o que já fora dito sobre o mesmo assunto, a outro propósito.

Ora a fundamentação, para explicitar o percurso lógico subjacente, não tem que “reproduzir” tudo o que as testemunhas disseram – para isso existe a gravação e subsequente transcrição integral, que no caso se estende por assinalável quantidade de volumes de apensos que podem ser consultados para colmatar qualquer dúvida.

Aliás o art. 374º refere-se a “uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos”. Não portanto uma reprodução infindável e repetitiva de tudo o que foi ponderado, mas uma exposição sintética que, tendo por referência e como pressuposto os restantes meios de controlo (incorporação nos autos, reprodução dos suportes técnicos) permita alcançar o percurso lógico/racional da decisão.

Tão pouco se confunde com a retranscrição mais ou menos integral do conteúdo das escutas telefónicas - estas devidamente transcritas nos apensos respectivos, para que a decisão remete, a par e passo, sem deixar margem de dúvida, para o observador isento, sobre os excertos que o tribunal recorrido teve por relevantes.

O mesmo se dizendo no que toca aos documentos para que também remete a per e passo, ficando claro, quando não se faz qualquer referência em contrário, que se aceita o respectivo teor literal. Se o tribunal funda a sua convicção no teor literal dos documentos juntos autos, devidamente identificados, cujo conteúdo relevante se alcança do respectivo texto, perceptível de percepção imediata pela simples leitura do teor - para que se remete indicando as páginas concretas dos autos em que se encontram - num contexto de descrição/ conjugação global dos inúmeros meios de prova interrelacionados entre si, a remissão deixa claro qual o relevo que o tribunal lhes atribuiu na formação da sua convicção, permitindo ainda sindicar se tal convicção assentou, porventura em prova ilegal. Quando remete, para determinado documento, que identifica num determinado contexto factual ou para determinada página da transcrição das escutas telefónicas, em idêntico contexto, resulta claro que o tribunal recorrido fundamenta a sua convicção no respectivo teor literal.

Sendo certo que, no caso, o percurso lógico-racional da decisão melhor se compreende se se tiver em atenção que estamos perante milhares de factos interrelacionados entre si, repetindo determinados modos de actuação, pelo que seria estulto reproduzir tudo o que já foi sendo referido antes em relação a cada aspecto que se renova.

No que toca à fundamentação jurídica, cujas lacunas também foram apontadas no anterior acórdão deste Tribunal, destaca-se que no acórdão ora recorrido se procede ao enquadramento dos factos e crimes que lhe correspondem, em forma de quadro/tabela, permitindo assim o respectivo reexame e controlo sobre se tais factos integram os correspondentes crimes ali referenciados, sabendo-se assim quais os factos que, na economia da decisão, integram os vários crimes e os elementos relevantes para a determinação da medida da pena. O que será melhor apreciado infra na apreciação das questões suscitadas pelos recorrentes em matéria de direito.

Pelo que, estando a decisão fundamentada facto (ocorrência) a facto e de direito, alcançando-se dessa fundamentação o percurso lógico e racional subjacente à decisão, dentro do contexto global e conjugação dos vários elementos de prova que em relação a cada facto de referenciam, bem como no que toca aos pressupostos jurídicos das condenações, se conclui pela não verificação do vício em questão relativamente à matéria de facto.

2. Nulidade do acórdão – alteração não substancial de factos / discrepância entre a pronúncia e as alterações comunicadas aos arguidos e a decisão

Esta questão é suscitada nos recursos dos arguidos A..., C..., J..., E..., F... e M....

Sendo o recurso do arguido A... aquele que se lhe refere de forma mais desenvolvida, até porque implicado na generalidade da matéria de facto. Resultando por isso, da análise desse recurso, a apreciação de aspectos essenciais dos restantes, dado o menor âmbito destes, dentro do mesmo leque de questões.

Também este vício constituiu um dos fundamentos da anterior anulação da decisão recorrida, que o novo acórdão visou corrigir, apontando-lhe os recorrentes os mesmos vícios, como se não tivesse sido objecto de correcção.

Apontando os arguido ao acórdão recorrido o ter agora dado como provados factos que o anterior não havia tido como provados.

No que concerne à invocada alteração da matéria de facto sem que aos arguidos tenha sido comunicada essa alteração, salienta-se que o âmbito da vinculação temática do tribunal é definido pela acusação e pela pronúncia. Não por anterior decisão - anulada. Aliás quer o art. 358º quer o 359º se referem expressamente a “alterações dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”.

Assim, não pode os recorrentes censurar a decisão recorrida, por ter elencado a matéria da pronúncia de maneira diferente do anterior, ou proceder de forma diferente no que toca a dar como provados ou não provados, de forma diferente, determinados factos. Ou ainda de agora dar como provados factos sobre que não tinha tomado posição o anterior.

Desde logo porque o anterior acórdão foi anulado, deixando de ter valor jurídico. E ainda porque não pode ser censurado por cumprir o que foi determinado pelo tribunal da relação.

Ora como bem destaca o Ex.mo magistrado do MºPº na resposta, no caso não houve qualquer alteração da matéria de facto desde a acusação/pronúncia. E a nova “arrumação” não constitui alteração para os efeitos pretendidos.

As alterações comunicadas na sequência da anterior decisão do Tribunal da Relação (constantes da acta iniciada a fls. 22305) incidem apenas sobre a qualificação jurídica dos factos já descritos no despacho de pronúncia. Tendo incidido, no essencial, na quantificação do número de crimes que esses mesmos factos eram susceptíveis de integrar. Não, de forma alguma, de alteração de factos propriamente ditos, mas apenas “contagem/quantificação” dos crimes que esses mesmos factos, inalterados desde a acusação, integravam ou eram susceptíveis de integrar.

Tal resulta claro do teor do despacho no qual, na sequência da decisão do Tribunal da Relação, se procedeu à comunicação das ditas alterações - cfr. o referido despacho, especificamente fls. 22311 a fls.22322 dos autos.

Lendo tal despacho, verifica-se que não foi comunicada uma única alteração factual. Mas apenas um “possível enquadramento jurídico diferente” dos mesmos, para mais ou menos crimes, e respectivas agravantes.

Os factos são exclusivamente aqueles que contavam já da acusação e do despacho de pronúncia. De onde bem se compreende que nenhum dos arguidos tenha arrolado novas provas, apesar do prazo concedido para o efeito. Precisamente porque nenhum facto novo havia a impugnar ou sobre que pudesse ser produzida prova.

O que evidencia um outro sofisma em que assentam as alegações de recurso – a acusação de que o tribunal condenou (por factos novos) sem que tivesse sido produzida qualquer prova complementar. Com efeito nem os arguidos requereram a produção de qualquer prova nem havia fundamento para a respectiva produção. Pela elementar razão de que nenhum facto novo havia a provar, nem foi ponderado, não podendo produzir-se prova sobre matéria de direito, única em que se traduziram as alterações efectuadas.

Carecem assim de fundamento todas as acusações de que o tribunal procedeu à alteração dos factos descritos no despacho de pronúncia sem que aos arguidos tenha sido conferida a possibilidade de se defenderem, porque os arguidos não foram surpreendidos nem condenados por nenhum facto novo não descrito na acusação ou na pronúncia que definem o âmbito da vinculação temática do tribunal.

Permanece a questão do número de crimes” por que os arguidos foram condenados - se a sentença condena por mais ou menos do que os referenciados no despacho que procedeu à comunicação das alterações, sem a respectiva comunicação.

A este respeito concorda-se com a resposta quando refere que a técnica utilizada no despacho que comunicou as alterações não terá sido a mais feliz. Dificultando a tarefa, de quem não acompanhou o processo desde o início, em compreender a lógica que lhe está subjacente.

Com efeito, tendo o despacho que comunicou as alterações incidido apenas sobre uma parte da matéria da pronúncia (em vez da listagem total do passava a constituir o objecto do processo), aos crimes referenciados no despacho de alteração há que somar os crimes que não foram objecto de alteração, para se saber o n.º total de crimes.

O despacho comunicou tais alterações, em quadros/tabela parciais, referenciando os artigos da matéria de facto a que correspondem os crimes que o tribunal recorrido entendia que tais factos preenchiam, de acordo com a ponderação que entendia mais criteriosa, à face da lei.

Daí a extensão desse despacho, relativo, repete-se, exclusivamente, ao enquadramento jurídico dos factos que já constavam do despacho de pronúncia.

Por outro lado o critério adoptado pela sentença foi o decretar as condenações/absolvições por referência ao n.º de crimes indicados na pronúncia - e não ao decorrente da alteração, que, nos seus termos “apenas poderia implicar a condenação do arguido A... por menos 10 crimes que os indicados na pronúncia” – na pronúncia o n.º total de crimes era de 1633 (101 correspondentes aos factos praticados no âmbito da Empreendimentos Turísticos da Praia de Vieira e 1532 no âmbito da “Auto-Duarte” /Azivais/Alequip/Socompur”).

Circunstância não ponderada no recurso do arguido A... e que logo altera radicalmente os respectivos pressupostos.

No que se refere à qualificação jurídica dos factos / contagem do n.º de crimes, depois de examinar os dois quadros agora incorporados no acórdão, onde se faz a correspondência entre a matéria de facto e os crimes que integram, verifica-se que continua a haver lapsos de contagem tendo por referência a sua comparação com os números indicados no despacho de alteração, a que acresce a listagem dos que permaneceu inalterada da pronúncia.

Assim

A) Por lapso do despacho de alteração, refere-se que lhe passam a estar imputados 36 crimes de Burla qualificada pelas als. a) e b) quando da pronúncia resultava a imputação de 35. Pelo que com a alteração lhe passaram a estar imputados mais 1 crime e não menos 1.

Por conseguinte, na sentença, por errónea referência à pronúncia, refere-se a absolvição por 5 crimes de Burla qualificada pelas als. a) e b), quando devia referir-se a absolvição por apenas 4 destes crimes.

Trata-se porém de um erro de contagem irrelevante da sentença por ter erroneamente contabilizado mais um crime – daí que teve de o adicionar às absolvições.

B) No que concerne aos crimes de Burla qualificada pela al. b), na alteração considerou-se a imputação por apenas 59 crimes (52 relativos aos factos praticados no âmbito da Empreendimentos Turísticos Praia de Vieira + 7 no âmbito da Auto Duarte) por alteração da qualificação jurídica de um dos crimes da ETPV e consideração de erro de contagem da pronúncia (+3 crimes) na AD.

Por outro lado na sentença o arguido A... foi condenado por 59 destes crimes e absolvido por 3.

De onde que, considerando a alteração de qualificação jurídica de 1 dos crimes perfaz o n.º de crimes referidos na pronúncia (59+3+1=63). Pelo, neste âmbito nada há a corrigir, ao contrário do pretendido.

C) No que concerne aos crimes de Burla qualificada pelas als. a) e b), na forma tentada imputados ao arguido A... constata-se que na pronúncia estão contabilizados 255 crimes.

Por outro lado, na alteração foram reduzidos para 254.

E a sentença condenou por 255 crimes (+ 1 que na alteração). O que ficou a dever-se a lapso do despacho de alteração que não considerou o crime agora listado sob o n.º 452, não listado no despacho de alteração.

Assim, formalmente, tal corresponde à condenação por mais 1 crime, relativamenrte ao despacho de alteração, ainda que em conformidade com o despacho de pronúncia.

O que, formalmente, faz incorrer a sentença, nesta parte, em nulidade por violação do disposto no artigo 358.º n.º 3.

Importa todavia apurar se, materialmente, na economia global do recurso, tal lapso deve levar, necessariamente, à anulação, tendo presentes designadamente os demais fundamentos dos recursos – por exemplo se vier a considerar-se que o crime “a mais” não constitui um crie autónomo, mas os factos correspondentes integram, com outros, um único crime ou um crime continuado, ou nem constituem crime, fundamentos também invocados no recurso.

Com efeito não faria sentido que os autos voltassem à 1ª instância para comunicação da possibilidade de condenação por um “novo” crime, caso se verifique que o mesmo se não verifica.

Na qualificação jurídica dos factos submetidos à sua apreciação – e é o que está em causa, no caso presente, no despacho que procedeu à comunicação - o tribunal sempre gozou, aliás, de ampla margem de liberdade de enquadramento, com base em princípio há muito cunhado: da mihi facta, tibi dabo jus; curia novit jus.

Os artigos 447º/448º do CPP de 1929 permitiam a condenação, mesmo por crime mais grave, desde que os factos constassem do despacho de pronúncia ou equivalente.

A este respeito ainda o “Assento” do STJ n.º2/93, in DR IS-A de 10.03.1993 entendeu que a simples alteração da qualificação jurídica dos factos, ainda que traduzindo-se na submissão dos factos a uma figura criminal mais grave, não constituía alteração não substancial da acusação para efeitos dos arts. 358º/359º do CPP de 1987 – dispositivos que falam, aliás, nos respectivos prémios, apenas em “factos” da acusação.

E o “Assento” STJ n.º 4/95 in DR IS-A de 06.07.95, partindo da mesma doutrina, limitou-a todavia a casos em que daí não resulta “a reformatio in peius” que prejudicasse o arguido.

No entanto, em homenagem às garantias de defesa do arguido e à jurisprudência do Tribunal Constitucional – que julgou inconstitucional o referido Assento n.º2/93 na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos, pudesse levar à condenação por pena mais grave, sem que o arguido fosse prevenido da nova qualificação e lhe fosse dada, quanto a ela, a possibilidade de se defesa - quer o CPC (art. 3º, n.º3, na redacção dada pelo DL 329/95) quer o CPP (art. 358º, n.º3, na redacção dada pela Lei 59/99 de 25.08) passaram a exigir explicitamente que, em caso de simples alteração da qualificação jurídica dos factos, o tribunal tem o dever de previamente ouvir as partes sobre essa nova qualificação.

A não ser que a alteração resulte de defesa do arguido – art. 358º, n.º2 do CPP.

No pressuposto, como resulta de tal preceito e da respectiva génese histórica, de que daí possa advir prejuízo para a sua posição processual, ou que a nova qualificação afecte, de forma relevante, a sua posição jurídica (o art. 3º, n.º3 do CPC excepciona ao dever de comunicação para exercício do contraditório, a “manifesta desnecessidade”).

Não faria sentido anular o acórdão recorrido, com base na violação do direito de defesa ou do contraditório, para os autos baixarem uma segunda vez à 1ª instância, para se comunicar ao arguido uma eventual condenação por menos crimes do que os indicados na acusação/pronúncia – porque favorecido em relação ao teor da acusação, nada resultando, da absolvição que o possa prejudicar (a menos que, em concreto, por uma qualquer razão, ainda assim, pudesse ser relevante uma tomada de posição do arguido, por ex. por a nova qualificação constituir uma total surpresa para o arguido), o que não acontece quando se trata de uma simples relação de mais para menos, dentro do mesmo tipo legal de crime, cujos pressupostos sempre estiveram em discussão no processo.

A condenação por menos crimes, dentro do mesmo tipo de crime (dentro da matéria da acusação, naturalmente) quando está em causa, exclusivamente, uma relação de mais para menos, vai no sentido da defesa, a não ser, por qualquer circunstância excepcional que importa demonstrar que “o menos” constituiu surpresa para o arguido e sobre ele não pôde tomar posição.

Carece assim de fundamento a anulação da decisão por condenação por menos crimes, no contexto dos autos, sendo certo não vem interposto recurso pedindo a condenação por crimes omitidos.

Já a condenação por crimes “a mais” não indicados na pronúncia e sobre que não foi comunicada alteração daquela, viola efectivamente o direito de defesa do arguido, importando daí retirar as respectivas consequências.

No entanto a questão do n.º de crimes constitui uma das questões suscitadas nos recursos, quer por se sustentar que os vários factos obedecerem todos os factos a uma única resolução criminosa, constituindo um único crime, quer por se entender que sempre se integrariam na figura de crime continuado, quer ainda por se entender que vários dos crimes de burla na forma tentada (como é o mencionado crime não indicado no despacho de alteração) não se verificam porque os factos correspondentes não passam de meros actos preparatórios não puníveis.

A omissão de qualquer formalidade apenas deve determinar a anulação do acto se for relevante para a decisão final a proferir e ainda se não ser suprida pelo tribunal superior, salvaguardando sempre o direito de defesa dos sujeitos processuais e do contraditório.

A este respeito postula o Art. 379º, n.º2: “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las...”.

E o art. 380º: 1. O tribunal procede oficiosamente à correcção da sentença (...). 2. Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção e feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.

Assim, tudo está em saber se o vício “pode” ser reparado pelo tribunal de recurso sem prejuízo para o recorrente.

Ora se os vícios relativos por ex. à falta de fundamentação dificilmente podem ser reparados em recurso, porque só o tribunal recorrido pode explicitar as razões da sua decisão por forma a que o tribunal superior possa sindicá-las, já no que se refere aos vícios relativos ao enquadramento jurídico dos factos, em princípio, o tribunal superior dispõe de todos os elementos para poder corrigi-los, não afectando a correcção o direito de defesa do arguido, desde que importem a condenação em “menos” do que a sentença recorrida ou resultem da defesa apresentada no próprio recurso.

Com efeito, não faria sentido anular a decisão se o tribunal superior vier a concluir pela absolvição do crime “novo”. Ou que os factos correspondentes se integram, com muitos outros, numa única “continuação criminosa”, como os recorrentes alegam expressamente ser o caso.

Aliás o recurso é unitário e incide sobre toda a decisão – cfr. designadamente o disposto no art. 402º, n.º1 e 403º, n.º3 do CPP.

E constitui princípio geral, em matéria de nulidades, que apenas deve ser anulado o estritamente indispensável para que sejam garantidos os direitos violados.

Postulando o art. 122º, n.º3 do CPP: Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.

Assim, caso se conclua que o referido “crime a mais” (não descriminado na contagem efectuada no despacho que comunicou as alterações) não constitui crime, ou que os factos correspondentes constituem, com outros, uma continuação criminosa, não se justifica a anulação da sentença com a finalidade de obrigar aquela comunicação, por irrelevante para a decisão final a tomar, não prejudicando o direito de defesa do arguido que sustenta aqueles pontos de vista. Porque caso a qualificação jurídica vá ao encontro da pretensão do recorrente em matéria de direito, não fica prejudicado nem afectado o direito de defesa.

Ora o arguido A... suscita precisamente estas questões (cfr. designadamente as conclusões 53º e 58º).

Pelo que esta questão – condenação (com base nos factos descritos na acusação e pronúncia) por um crime não contabilizado no despacho que procedeu à comunicação das alterações, por que o arguido A... foi condenado sem que lhe tivesse sido comunicada a alteração – fica deixada em aberto até à apreciação da subsistência, ou não, do crime em questão ou da integração dos factos correspondentes numa continuação criminosa, em função do que se decidirá pela necessidade ou não de o processo voltar à 1ª instância para a referida comunicação.

V. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS SOBRE A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO - Vícios do art. 410º, n.º2 do CPP / outras questões relativas à apreciação da prova.

A) Considerações gerais / aplicáveis a todos os recursos

Neste aspecto, tendo em atenção que os recorrentes reconduzem as críticas à decisão sobre a matéria de facto essencialmente aos vícios do art. 410º, n.º2 do CPP, invocando porém, sob aqueles conceitos, outras questões relativas à legalidade e apreciação das provas, toda a matéria relativa à decisão de facto será apreciada de forma unitária, ainda que particularizando as respectivas especificidades.

A alteração da decisão da matéria de facto com os fundamentos enunciados nas alíneas do n.º2 do art. 410º tem o seu âmbito delimitado, desde logo, pelo texto do mesmo preceito: “desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência”.

Em conformidade com a letra da lei (“ que o vício resulte do texto da decisão”) tem entendido a jurisprudência que “só existem quando resultem do texto da própria decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum” – cfr. jurisprudência citada por SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 68.

A contradição insanável da fundamentação ou enter esta e a decisão verifica-se quando existem duas proposições, afirmadas em simultâneo, que reciprocamente se excluem logicamente, em que portanto se uma é verdadeira a outra não o pode ser, tendo por referência, como se disse, o texto da decisão por si ou conjugado com as regras da experiência comum.

Existe quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que a fundamentação justifica precisamente decisão oposta; entende-se o facto de afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa, ou a emissão de duas proposições que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas – Cfr. Ac.s do STJ de 13.03. 1996 e de 08.05.1996, citados por SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, Recursos, cit. p. 65.

A Insuficiência, para a decisão de direito, da matéria de facto provada, há-de também ela resultar, do texto da própria decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.

Como referem Simas Santos/Leal Henriques in Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 61, “Trata-se de uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher”.

Tal verifica-se “Quando a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta. Insuficiência que resulta de o tribunal não ter esgotado os seus poderes de indagação da descoberta da verdade material, deixando por investigar factos essenciais cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa” – cfr. AC. STJ de 14.11.1998 citado por Simas Santos /Leal Henriques, Recursos, cit., p. 63, bem como outros citados no mesmo local e no CPP Anotado dos mesmos autores, 2ª ed., 2º vol., p. 743 a 760.

Sendo certo que a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, que é coisa bem diferente – cfr., entre muitos outros citados pelos mencionados autores, Ac. STJ de 13.02.1991, in AJ n.ºs 15/16, p. 7.

O erro notório na apreciação da prova, constitui a terceira situação enunciada no art. 410º, n.º2 do CPP como fundamento do recurso, ainda quando a lei restrinja a cognição do tribunal a matéria de direito – vícios de conhecimento oficioso, nos termos do acórdão para fixação de jurisprudência acima referido. Tais situações constituem fundamento do recurso “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito” – texto do corpo do referido n.º2.

Trata-se de “um vício de raciocínio na apreciação das provas evidenciado pela simples leitura da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio” Ac. STJ de 03.06.1998, processo n.º 272/98, citado por Simas Santos/Leal Henriques, Recursos...

“Erro notório na apreciação da prova existe quando, usando um processo de racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado, uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência” –Ac. STJ de 01.04.1998, processo 1547/98, ainda citado no mesmo local.

“O conceito de erro notório na apreciação das provas tem que ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, de que todos se apercebem directamente, ou que, observados pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório” – Ac. STJ de 06.04.1994, na CJ/STJ, t.2/1994, p. 186.

Para além dos vícios do art. 410º, n.º2, os recorrentes, ainda que a coberto dos mesmos, acabam por questionar a decisão da matéria de facto, na avaliação que o tribunal recorrido fez dos vários meios de prova.

Pelo que importa ainda tecer algumas considerações sobra a avaliação da prova - até porque os depoimentos prestados em audiência foram gravados e se encontram devidamente transcrita em vários apensos – com vista à decisão das questões suscitadas.

Dado que no caso houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva transcrição integral, podia a decisão ser impugnada nos termos do art. 431° do C. P. Penal.

Devendo os recorrentes, em tal caso, cumprir is ónus enunciados no art. 412º, n.º3 e n.º4 do CPP – especificando os segmentos da decisão indevidamente julgados e quais as provas que impõem decisão diferente da recorrida.

Depois de alguma limitação da revisão da decisão da questão de facto pelo tribunal de recurso que se verificava no CPP de 1929, o C.P.P. vigente surgiu animado do propósito explícito de “emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico”, bem como de “emprestar ao recurso maior consistência procura contrariar-se a tendência para fazer dele um labor meramente rotineiro, efectuado sobre papéis” – cfr. v. ponto III 7 do respectivo preâmbulo.

Dentro dessa perspectiva “O Código de PP normativizou cuidadosamente a matéria atinente à prova quer em termos genéricos quer de forma específica” de onde ressalta “a preocupação de acatamento dos imperativos constitucionais relativos à dignidade pessoal e integridade física do cidadão e intimidade da vida privada que é legítimo esperar de um processo penal no quadro de um Estado de Direito Democrático e Social em que a justiça seja alcançada exclusivamente por meios processualmente válidos e efectivamente controláveis” – cf. Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo C. de Processo Penal, Ed. do Centro de Estudos Judiciários cit., p. 221, 222.

No entanto, salvas as referidas limitações em que a apreciação da prova é normativizada, vigora como princípio geral, no âmbito da apreciação das provas, o princípio fundamental da livre apreciação das provas, acolhido, de forma expressa, no art. 127º do CPP, princípio esse que, como refere Marques Ferreira (in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo C. de Processo Penal, Ed. do Centro de Estudos Judiciários, 1988, p. 227), citando a melhor doutrina , “entre nós tem sido unanimemente aceite a partir da primeira metade do Séc. XIX com as reformas judiciárias saídas da Revolução Liberal”.

Nesta matéria, apesar da minuciosa regulamentação das provas, continua assim a vigorar o princípio fundamental de que na decisão da “questão de facto”, a decisão do tribunal assenta na livre convicção do julgador, ainda que devidamente fundamentada, devendo aparecer como conclusão lógica e aceitável à luz dos critérios do art. 127º do Cód. Proc. Penal.

No entanto não deixa de se assinalar como resulta mais uma vez do preâmbulo do C. Penal – n.º7 cit.. - que “o código aposta confiadamente na qualidade da justiça realizada a nível de 1ª instância”.

Isto porque é na 1ª instância que se tem o contacto directo, físico e imediato com as mesmas provas, onde se procede à respectiva produção, com interrogatório cruzado dos vários sujeitos processuais, à amplíssima discussão e contradiscussão de todo o material probatório, onde é possível valorar as provas em toda a sua amplitude, ao contrário do tribunal de recurso que apenas dispõe da secura das respectivas transcrições.

Do princípio da livre apreciação da prova, resulta que a decisão não consiste numa operação matemática, devendo o julgador apreciar as provas, analisando-as dialecticamente e procurando harmonizá-las entre si e de acordo com os princípios da experiência comum, sem que o julgador esteja limitado por critérios formais de avaliação.

A reconstituição processual da realidade histórica de certo facto humano não é ou dificilmente poderá ser a expressão precisa e acabada de um qualquer meio de prova, particularmente da prova testemunhal, dadas as naturais dificuldades em se reproduzir fiel e pormenorizadamente o que foi percepcionado ou vivenciado, de forma passageira (e pontual, no caso, num universo de milhares de factos em que cada testemunha apenas tem conhecimento de uma parte mínima, aqueles em que participou), muito antes da audiência de discussão e julgamento, local privilegiado para a produção e discussão das provas.

Muito menos podem os vários depoimentos ser entendidos isoladamente, retirando-os do respectivo contexto, apenas com base em frases transcritas num mero suporte documental e em certas imprecisões de algum dos testemunhos – por vezes justificáveis desde logo pelas circunstâncias dialécticas em que são produzidos, durante o interrogatório cruzado, formal, surgindo sempre um novo elemento em cada questão suscitada por cada um dos sujeitos processuais. Questões já de si formuladas dentro da perspectiva antagónica e por vezes conflituante de acordo com a posição cada sujeito processual.

Como refere o Prof. FIGUEIREDO DIAS (Direito Processual Penal, p. 202-203) “ a apreciação da prova é na verdade discricionária, tem evidentemente como toda a discricionalidade jurídica os seus limites que não podem ser ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova, é, no fundo uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios de objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo”...”não a pura convicção subjectiva ... se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão ... a convicção do juiz há-de ser .. em todo o caso uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de se impor aos outros ... em que o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável”.

“A livre convicção é uma conclusão livre, porque subordinada á razão e á lógica e não limitada por prescrições formais exteriores ... o julgador, em vez de se encontrar ligado por normas prefixadas e abstractas sobre a apreciação de prova, tem apenas de se subordinar à lógica, à psicologia, e às máximas da experiência” – cfr. CAVALEIRO FERREIRA, Curso de Processo Penal, II, p. 298.

Não se trata – na avaliação da prova - de uma mera operação voluntarista, mas de conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).

Envolve a apreciação da credibilidade que merecem os meios de prova, onde intervêm elementos não racionalmente explicáveis, na credibilidade que se concede a um certo meio de prova em detrimento de outro. Para o que tem essencial relevo, a imediação da prova, do interrogatório cruzado, da discussão, ponto por ponto, perante o tribunal que decide.

Envolvendo ainda deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, aspecto que já não depende substancialmente da imediação, mas deve basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, da experiência e nos conhecimentos científicos.

De onde que, como escreve, a dado passo, em citação, o Ac. T.C. 198/2004 de 24.03.2004, DR, II S, de 02.06.2004 “A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode, consequentemente, assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamernte porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”.

Sendo certo que, perante a fundamentação da decisão de facto dada pelo Tribunal Colectivo, é questionada a avaliação dos depoimentos das testemunhas, não o seu conteúdo propriamente dito.

Conteúdo em si que a transcrição assegura. Mas em relação a cuja avaliação não permite, ao tribunal de recurso - que não tem por missão a realização de um novo julgamento, mas apenas verificar a correcção do anteriormente efectuado – fazer uso de todo o manancial a que só a imediação com a produção/discussão, a par e passo, permite.

O tribunal de recurso pode controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos, podendo sindicar a formação da convicção do juiz ou o processo lógico que levou à consideração de que era uma, e não outra, a prova que se produziu. Mas não pode substituir-se a essa convicção, na parte em que é alcançada com base na imediação com as provas.

Com efeito “só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência desses mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso” – Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 233-234.

A imediação constitui um factor de grande relevo para a formação da convicção do tribunal recorrido, não só no sentido de obter os meios de prova mais próximos ou mais directos de forma directa pelo órgão competente, como ainda na utilização dos meios de prova originais – Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, p. 317.

De onde que, concluindo como decidiu, entre outros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44, .... “quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face ás regras da experiência comum”.

B) Postas estas considerações, cujas conclusões se aplicam a todos os recursos que versam sobre matéria de facto, importa aplicá-las em concreto no que cada recurso apresenta de específico.

1. L...

As conclusões [al. a) a h)] deste recurso – e são elas que definem o objecto do recurso - resumem-se à questão de facto”, sustentando o recorrente que desconhecia a forma de aquisição do telemóvel e do par de sapatos que recebeu de seu pai, desconhecendo a actividade deste, invocando o princípio in dubio pro reo

Alega, porém, logo de seguida, que a condenação “apenas se baseia nas escutas telefónicas”. De onde resulta, na alegação do próprio recorrente, que a condenação tem – pelo menos - um meio de prova a suportá-la – AS ESCUTAS telefónicas.

Refere essencialmente o recorrente que desconhecia a forma de vida do pai e a origem criminosa do telemóvel e dos sapatos.

No entanto esta versão não tem qualquer fundamento, face ao teor das escutas. Veja-se, a título de exemplo:

Apenso 9 B - Voltas 207 - Sessão 353 -16.7.00, 12H48 – [conversa de B...( B) com L... (L), filho do primeiro]

(B) - Tou, então, Dom Pedro...então, gostou dos sapatos?

(L) - Sim, os sapatos, gostei muito...

(B) - He? Há aqui mais...fomos ontem, fazer a última limpeza porque eu vendi aquilo tudo, vendi aquilo tudo barato porque, e pá não posso vender com factura, não é?

(L) - Sim, sim, sim...

(B) - Pois e portanto depois tenho que fazer uma exportação fictícia daquilo, não é? epá, senão é uma bronquite, portanto vendi aquilo barato, porque também tenho agora uma letra ehhh terça-feira, teve que ser pá, tenho que dar dois mil contos para a letra, tem que ser...pronto, mas de qualquer maneira ontem fui fazer o resto da limpeza e tenho aqui mais pares, quer dizer, até parece que também um dos outros repetidos desses pretos, desses pretos caros, não é?..

(L) - Sim, sim

(B) - Pá, isso dura para toda a vida, são ma...para já os outros ingleses, mais coisos e tal tal, mas também há uns mais tantantan, se o meu amigo não quiser, passa a outro e não ao mesmo, mas podem servir para aqueles dias de inverno muito lixados, não é? com muita chuva e tal

(PE) - Tá bem, tá bem

(B) - Tá a perceber? pois é pá isto guarda-se sempre, não é?

(L) - Sim

(B) - Então e o resto, então e o resto?

(L) - O, o resto tive a ver

(B) - (imperceptível)

(L) - Não, ainda não consegui ver nenhuma

(B) - (risos) tá bem...

(L) - A dona Cristina viu, a dona Cristina viu e não achou muita piada

(B) - Tá bem, mas ela que se aguente à bronca que eu não tenho nada a ver com ela (risos)

(L) - Eu também disse: isso não é do teu tio, não tens nada (imperceptível)

(B) - Ouve lá, quer logo se fazer, quis-se logo fazer às coisas, não?

(L) - Não, não, não

(B) - Não...aquilo não tem nada que se lixe...é outras cenas não é?

(L) - Sim

(B) - Então e o aparelho?

(L) - O, o outro está-se a chegar bem, tá tá tudo bem...

(B) - Pois, está desbloqueado não é?

(L) - Tá, tá, tá tudo bem

(B) - Tá desbloqueado, dá para todos, acabou...e o meu amigo já tem o número novo...

(L) - Sim, sim

(B) - Esse número portanto dá-lhe, eu estou convencido pá, que esses números darão aí, dois meses e tal à vontade, não é?

(L) - Sim, em principio irão dar

(B) - Devem, portanto estes pá, este é diferente, é uma gaja que tem que dar o nome mas não interessa, um gajo diz, é e tal, prontos se perguntarem: é sou empregado da pastelaria, percebe?

(L) - Tá bem, tá bem, tá bem

(B) - Pois, sou empregado da da distribuição de, empregado da distribuição de bolos

(L) - Tá bem, tá bem

(B) - Pronto...da dona Vinagre, da dona Vinagre, a gaja chama-se Vinagre

(L) - Tá bem. Entretanto o meu pequenino, o telefone pequenino...

(B) - Sim?

(L) - Na sexta-feira é que fui beber um café e o empregado que me despejou o café em cima do telemóvel...e isto não estava a funcionar...agora já está, mas no outro dia não estava.

(..) continuam afalar do acidente com o telemóvel ocorrido no café, e referem que a gerência do café se está na disposição de dar um novo por intermédio do seguro. B... coloca a hipótese de dar um novo telemóvel ao filho, mas diz:

(B) - ...de qualquer maneira "é trabalhar" para um novo, não é, que eu dou outro...arranja-se aqui outro.

(L) - Tá bem, tá bem.

(B) - Está a perceber? Mas isso...quer dizer...não e tal, e depois a gente tenta um novo contrato, eu tento martelar um novo contrato.

(L) - Tá bem.

Desta transcrição efectuada, designadamente as passagens com destaque em itálico, resulta claramente que não merece qualquer censura, antes pelo contrário se mostrando perfeitamente em conformidade com a prova e as normas sobre a sua apreciação a matéria dada como provada, designadamente que o recorrente bem sabia da origem dos sapatos e telemóvel.

Não tendo o menor fundamento a sua pretensão, dentro dos critérios acima referidos.

2. A...

Refere (até à conclusão n.º 22) uma série de questões com incidência na decisão de facto já ponderadas em sede de apreciação dos vícios da sentença – nulidade de meios de prova. Incidindo a crítica à decisão de facto nessa perspectiva de que assentaria em meios de prova nulos. Questões essas já apreciadas e que não obtiveram provimento.

Invoca depois a existência de erro notório na apreciação de prova e o vício de contradição insanável.

O erro notório radicaria (síntese nas conclusões 24ª e 25ª) na notória inobservância das regras da experiência e notória preterição do princípio in dubio pro reo. Desenvolvendo tal conclusão, previamente alcançada, ao longo das conclusões 26ª a 33ª em termos genéricos e conclusivos, atacando a convicção alcançada pelo tribunal recorrido sem curar de explicitar razões de fundo que pudessem levar a solução contrária nem dando cumprimento ao estabelecido, para o recurso da matéria de facto, no artigo 412º, n.º3 e n.º 4 do CPP.

Refere de concreto (síntese da conclusão 30ª) que o tribunal “num julgamento de mais de quatro centenas de depoimentos o tribunal não dá qualquer relevo ao da única testemunha que viu com os próprios olhos e viveu pessoalmente a situação de guerra civil que se viveu na Guiné Bissau, tendo declarado que com a eclosão da guerra toda a mercadoria que se encontrava nos armazéns do povo foi pilhada”.

Ora, para além de se tratar, na própria versão trazida pelo recorrente, do depoimento de uma testemunha contra o de todas as restantes “mais de quatro centenas”, tendo os factos constitutivos dos crimes ocorrido todos em Portugal, muito antes de qualquer mercadoria seguir para a Guiné, nunca aquele depoimento podia levar a solução contrária. Nem a alegada impossibilidade de venda dos produtos poderia levar a conclusão diferente quanto à forma (fraudulenta) como tais mercadorias foram obtidas, logo pelos momentos diferentes em que se situam.

Pelo que carece de qualquer fundamento o invocado erro notório.

Nas conclusões 34º a 38º volta á questão da nulidade das escutas, já consideradas válidas.

Nas conclusões 39º a 47º sustenta a existência do vício de contradição insanável, que na conclusão 47ª transmuda em erro notório – alegando ser a invocada contradição “notória”.

Tal radicaria em o tribunal ter dado como provado que se dedicou de forma reiterada, como forma essencial de angariar proventos entre princípios de Outubro de 1997 e finais de Maio de 1998. E simultaneamente que se dedicou de forma reiterada, como forma essencial de angariar proventos a partir de Maio de 2000 e até ser preso. Radica assim a contradição na “co-existência de dois modos de vida em simultâneo”.

Ora é o próprio recorrente que explicita: os dois “modos de vida” situam-se não só em envolvências objectivamente diversas e com recurso à colaboração de grupos diferentes entre si, como ainda se situam em momentos temporalmente distintos, sendo perfeitamente compatíveis entre si.

Com efeito os factos relativos às duas agravantes “modo de vida” dizerem respeito a actos praticados no âmbito de duas “empresas” diferentes e com parceiros diferentes: de um lado, os praticados de Outubro de 97 a Maio de 98, situados no âmbito da actividade desenvolvida sob a designação da empresa “Empreendimentos Turísticos Praia da Vieira” (abreviadamente ETPV); e de outro, os praticados a partir de Maio de 2000, no âmbito da empresa “Auto Duarte e Duarte” (AD) – como o próprio recorrente explicita, aliás, de forma clara e concisa, ainda que num outro contexto, na conclusão 54ª.

Não havendo por isso qualquer contradição, muito menos insanável.

Nas conclusões 48ª a 51ª refere o recorrente que a “intenção não foi minimamente aflorada nos depoimentos das testemunhas”, que “o tribunal recorrido deixou de cumprir a sua especial obrigação de conhecer as raízes históricas ... dos crimes” e que “o tribunal não se subordinou à lógica, à psicologia e às máximas da exriência”.

Tratando-se de afirmações genéricas e conclusivas, que não têm qualquer virtualidade para por em crise a decisão recorrida.

Depois de uma incursão sobre matéria de direito (conclusões 52ª a 59º que como tal serão tratadas na altura própria) volta o recorrente à matéria de facto, a partir da conclusão 61ª.

Dessa conclusão 61ª, até à conclusão 91ª, refere-se, de novo, de forma conclusiva, a aspectos genéricos da apreciação da prova, pontuados com referências à violação da presunção de inocência (62ª) e à notória violação do princípio in dubio pro reo (79º).

O princípio in dubio pro reo vigora no que diz respeito à decisão da questão de facto. Constituindo «um princípio natural de prova imposto pela lógica e pelo senso moral, pela probidade processual» (Cavaleiro Ferreira, Curso da Processo Penal, II, 310). Ou um princípio fundamental do processo penal em qualquer Estado de Direito (F. Dias, Direito Processual, cit. p. 214).

Princípio indiscutível no que concerne à apreciação da prova na decisão da “questão de facto”. Tanto no que diz respeito à prova dos elementos constitutivos do crime, como à prova dos factos extintivos ou causas de exclusão da responsabilidade criminal – cfr. Cavaleiro Ferreira, ob., cit., II, 312 e Figueiredo Dias, ob. cit., 215.

Tal princípio significa que “em caso de dúvida razoável” após a produção de prova, tem de actuar em sentido favorável ao arguido – cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, ed. de 1974, p. 215, citando a doutrina nacional e estrangeira no mesmo sentido.

Não é assim uma qualquer dúvida que obriga à aplicação do princípio, mas apenas a dúvida “razoável”, após a produção de todas as provas e sua avaliação de acordo com a lei e as regras da experiência comum, nos termos acima referenciados.

Não é uma qualquer dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for séria e razoável. Aquela que constitui a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada.

“A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme á razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio razoável” – Ac. STJ de 04.11.1998, BMJ 481º, p. 265.

Tal dúvida deve ser racional e objectivável, o que resulta do dever de fundamentação de todas as decisões judiciais, em especial a decisão judicial. Dever que se encontra consagrado genericamente pelo art. 158º do CPC e agora especificamente no Art. 97º, n.º4 do CPP (redacção dada pela Lei 59/98) que postula: Os actos decisórios são sempre fundamentados devendo especificar os motivos de facto e de direito da decisão.

Dever esse que assume particular ênfase em processo penal, decorrendo das exigências do Estado de Direito Democrático, expressamente cominado pelo art. 205º, n.º1 da Constituição da República na redacção saída da revisão de 1997.

Devendo ser a “dúvida” razoável e fundamentada, não pode confundir-se por ex. com a falta de cumprimento do dever de investigação, até onde for material e humanamente possível, ou de um indesculpável retraimento do dever de decidir.

Ora, no caso em apreço, após a produção de prova, tal “dúvida razoável” e objectivável, não se instalou no espírito dos julgadores – e trata-se de um tribunal colectivo, que confere as mais amplas garantias dadas pelo sistema em termos de apreciação da matéria de facto dada a sua componente colectiva, julgando com base na oralidade, imediação e discussão global e cruzada de toda a prova. E da análise efectuada da prova produzida nada aponta no sentido de que essa convicção deva ser substituída pela referida dúvida razoável.

Remata depois o recorrente (conclusão 81º): “depois de analisada ao pormenor a gravação da prova outra conclusão não se retira que não a de que o tribunal a quo decidiu em manifesta oposição às regras legais estabelecidas no art. 127º do CPP...”.

Mais uma vez uma conclusão de todo genérica sem qualquer vitualidade para demonstrar que a prova (que provas) imponham decisão contrária à recorrida.

Para depois, na sequência da análise efectuada voltar a enquadrar os invocados erros do acórdão no vício de falta de fundamentação e de exame crítico das provas – conclusões 92ª a 94ª. Que complementa com o vício de falta de fundamentação – c. 95º. Vícios estes já analisados.

Invoca depois – conclusões 96º a 109º - a nulidade das provas obtidas na busca realizada no seu escritório na Guiné. Cuja validade foi apreciada e decidida no anterior acórdão deste Tribunal, que sobre este ponto constitui caso julgado, nos termos referidos. A que acresce o que foi também referido atrás sobre a falsidade do auto de apreensão.

Foca, por ultimo, com incidência na decisão da matéria de facto – 110º a 114º - que o depoimento da testemunha António Falcão foi “deliberadamente interrompida a audiência, para que, depois do almoço, a mesma testemunha passasse a ser instada pelos defensores dos arguidos, instâncias que se verificaram”.

Para concluir que “tal situação consubstancia a irregularidade prevista no art. 123º, n.º 2 do CPP, que só pode se sanada com a renovação do depoimento como se prevê no art. 412º, n.º3, al. c) do CPP”.

Ora para além de o próprio reconhecer que as instâncias foram efectuadas, não demonstra que tenha sido omitida qualquer parte relevante do depoimento. Aliás nem refere sequer que a testemunha tenha acrescentado fosse o que fosse de relevante. Sendo certo que a transcrição dos depoimentos prestados em audiência se mostra efectuada e dela não resulta que tenha havido qualquer omissão quanto ao depoimento da testemunha em causa.

Ainda que se tivesse verificado tal omissão, o que não está demonstrado, sempre se trataria de mera irregularidade, como o próprio reconhece. Pelo que devia tê-la invocado no prazo de 3 dias, conforme estabelece o preceito invocado, a fim de que, tendo eventualmente existido, pudesse ser sanada em tempo oportuno.

Não tem qualquer relevo a junção do documento apresentado já na fase de recurso, por violação dos artigos 165º, 355º e 356º do CPP.

Pelo que, ficando concluída a análise da decisão da matéria de facto no que a este arguido diz respeito, não existe qualquer fundamento para a respectiva alteração, mantendo-se na íntegra, nos termos acima descritos que aqui se dão por reproduzidos.

3. O...

Invoca os vícios do art. 410º, n.º2 - insuficiência e erro notório (cfr. remate das conclusões, na conclusão 12ª) – ainda que na fundamentação se não refira ao último.

No que ao primeiro concerne confunde o recorrente o vício do art. 410º, com o recorte ali definido, com a “insuficiência da prova produzida” pudesse dar como provada a matéria de facto nos termos em que o fez. Não cumprindo do mesmo passo o ónus de impugnação atrás referido (em conformidade com a inclusão do erro no art. 410º, que resultando o texto da decisão carece de especial fundamentação) para que pudesse proceder-se à apreciação nos termos do art. 431º. Sendo certo que, como resulta das conclusões do próprio recorrente, a decisão assenta na conjugação dos depoimentos de várias testemunhas.

Alega que o depoimento de Vítor Dias foi “comprometido e atabalhoado”, não devendo ser valorado. Mas, para além de tal não se evidenciar do texto decisão, não apresenta o recorrente razões consistentes para que o tribunal de recurso pudesse substituir-se à convicção alcançada na 1ª instância, dentro do critério acima definido, com base na imediação. Sendo certo que o invocado atabalhoamento não constitui prova que “imponha decisão diferente”, nos termos referidos pelo art. 412º, n.º3, al. b) do CPPP.

Pelo que o vício invocado, para além de não resultar do texto da decisão, não tem fundamento.

Relativamente ao segundo vício, também teria que resultar do texto da decisão, o que manifestamente não sucede, pelas razões apontadas quanto ao primeiro, sendo certo que o que o recorrente ataca é a convicção alcançada pelo tribunal recorrido, com base na oralidade e imediação e não um qualquer erro ostensivo que resulte da simples análise da decisão recorrida e/ou do seu confronto com a experiência comum.

Invoca, dentro do contexto dos referidos vícios do art. 410º a violação do princípio in dubio pro reo. Mas também aqui sem fundamento consistente, tendo presente o significado deste princípio dentro do enquadramento operado na análise do recurso do arguido A..., não resultando tão-pouco da análise da decisão recorrida e/ou do seu confronto com a experiência comum.

Pelo que improcede o recurso.

4. C...

A crítica que o recorrente dirige à decisão da matéria de facto incide essencialmente sobre a falta de fundamentação/total ausência de prova relativamente aos factos que lhe dizem respeito. Ausência de fundamentação que, como se viu em sede própria, no caso dele manifestamente se não verifica, tendo-se presente o exame ali efectuado. O mesmo se dizendo quanto aos restantes fundamentos que visam a decisão da matéria de facto, que o recorrente reconverte em “total falta de prova”/exame crítico das mesmas, sem curar de examinar a fundamentação (que ignora) e de demonstrar as razões por que se impunha decisão diferente, dentro dos critérios legais.

O Meio de prova escutas telefónicas, que reputa de nulo, foi julgado válido pela decisão anterior deste Tribunal.

Sustenta o recorrente que o tribunal não podia dar como provados os factos relativos à transacção de moeda falsificada, por não ter havido efectiva apreensão de moeda falsa e não foi feito exame pericial da mesma, podendo, por isso tratar-se de falsificações grosseiras.

Ora o recorrente não põe em causa o teor das transcrições das escutas em que o acórdão recorrido fundamenta a decisão e para que remete especificadamente, indicando as respectivas páginas e apensos onde se encontram as transcrições relevantes.

E os factos que o recorrente invoca como contradizendo a decisão (1502 e 1506 – duas pessoas a quem foram exibidas exemplares de notas falsas, uma não gostou da qualidade e devolveu o exemplar e outra não se mostrou interessada, ficando de a devolver mais tarde) não invalidam que as notas não fossem aptas a passar por verdadeiras. Se uma pessoa não aceitou (sabendo da falsidade) nada impede que outras, desconhecendo-a, aceitassem as notas no comércio do dia a dia, nas variadíssimas circunstâncias em que o papel-moeda circula. E não se diz que a tenham recusado por a falsidade ser de tal modo grosseira que qualquer pessoa a detectava de imediato.

Sendo certo que o valor intrínseco das escutas como meio de prova, desde que não sejam nulas (e forma julgadas válidas pelo anterior acórdão do Tribunal da Relação, como já se evidenciou) constituem meio de prova autónomo, previsto no art. 187º e segs. do CPP, como tal susceptível de livre apreciação pelo tribunal, nos termos acima referidos, que o tribunal de recurso apenas pode sindicar no caso de se tratar de provas nulas ou violarem de forma clara as regras da experiência.

E sendo as conversas conclusivas no que concerne à existência e transacção da moeda falsa, a inferência - dessas transacções – de que a moeda era apta a passar, não é ilegítima, porque resulta da mera constatação.

Aliás a alegação dos recorrentes em como duas pessoas não quiseram receber as notas acaba por reconhecer que a moeda falsa existiu e foram praticados actos para a colocar em circulação.

Pelo que, sem prejuízo das consequências a retirar em sede de apreciação de direito quanto à habitualidade (facto 1673), o recurso da matéria de facto carece de fundamento.

5.6. B... / I...

As conclusões deste recurso incidentes sobre a matéria de facto referem-se apenas às nulidades já apreciadas.

7.8.9. E.../ F.../ M...

Assinala-se, liminarmente, a falta de rigor e a prolixidade das conclusões, amalgamando as críticas dirigidas à decisão da matéria de facto em sucessivas “contradições/ erros notórios/ total falta de prova”, sem preocupação de enquadramento no restritivo critério legal do art. 410º, acima enunciado. Muito menos do cumprimento dos ónus previstos no art. 412º, n.º2 e 3 do CPP para a reapreciação da decisão de facto.

No quadro da nulidade do acórdão por falta de fundamentação / exame crítico das provas já analisada, invocam o erro notório na apreciação da prova “ao considerar que os documentos outorgados pelos recorrentes eram falsos, quando traduzem a realidade e são idóneos para provar a celebração dos contratos... ”.

Ora, para além do que ficou dito, o que está em causa não é o que consta dos contratos em si, que resulta do respectivo teor literal. Mas antes a falta de correspondência entre aquilo que foi declarado e a verdade, ou entre a declaração em si e a vontade/intenção/finalidade prosseguida pelos outorgantes através dessas declarações formalmente consignadas nos documentos. E a existência de tal desconformidade foi fundamentada devidamente pelo tribunal, em fundamentação que as alegações de recurso não põem em causa.

Como se disse supra, o recurso da matéria de facto não pode ser confundido ou constituir “um novo julgamento” da matéria de facto. Constitui o meio adequado para a reapreciação de pontos certos e determinados dessa decisão. Incidindo sobre o recorrente um específico dever de indicar, com precisão, não só os factos que reputa indevidamente julgados, como ainda as razões e as provas concretas que impõem a decisão diferente – o mesmo sucedendo aliás em matéria de direito em que o recorrente deve especificar a dimensão/alcance da interpretação jurídica efectuada e aquela que reputa adequada.

Sendo a decisão do tribunal individualizada, descrevendo os factos por artigos, o mesmo sucedendo com a respectiva fundamentação – que no caso, após a anulação da anterior decisão por não ter cumprido suficientemente esse dever, encontra-se agora efectuada facto a facto ou como ocorrências dotadas de unidade de sentido - o recurso que sobre essa decisão incide deve especificar as razões concretas que deveriam levar a decisão diferente, tendo em vista a decisão recorrida e a sua fundamentação, a fim de o tribunal de recurso poder sindicar, com exactidão e rigor, os pontos questionados.

Ora os recorrentes, quando invocam o erro notório, nas alíneas a) a g) da conclusão 15ª fazem-no com base em considerações gerais e abstractas, sem especificar as razões concretas que imporiam a decisão diversa, ou a conclusão de que estamos perante o invocado erro notório. Erro, que como se disse deve ser ostensivo e resultar do texto da própria decisão e confronto com as regras comuns.

Na vez de demonstrarem em quê e porquê a decisão não podia ser aquela questionam [al. f) da conclusão 15ª]: “onde se provou que os recorrentes soubessem que era verdade o que consta do n.º 543 a 544?”

A este respeito (a que se referem ainda as conclusões 26 a 29), tratando-se de um facto do foro psicológico, pessoal), a prova apenas poderia ser directa se os arguidos tivessem prestado declarações e tivessem confessado.

Na falta de confissão são provados através de prova indirecta.

Com efeito é conhecida a clássica distinção entre prova directa e prova indirecta ou indiciária – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Curso de Processo Penal, 3ª ed., II vol., p. 99.

Aquela incide directamente sobre o facto probando, enquanto esta incide sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.

A apreciação da prova indirecta ou indiciária está sujeita ao princípio da livre apreciação nos termos do art. 127º do CPP, ainda que exija um particular cuidado na sua apreciação, apenas se podendo extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 3ª ed., II vol., p. 100/1001.

Na avaliação da prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica do julgador – sendo do mesmo passo, mais relevante do que em qualquer outro meio de prova mais ou menos tarifado, o contacto directo e a imediação do julgador com a sua produção, para aquilatar a sua credibilidade. Sendo tanto mais consistente quanto menores os factores externos que possam perturbar a verificação do facto probando.

Não faz a nossa lei processual qualquer referência a requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária. Pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável. A associação que a prova indiciária permite entre elementos de prova objectivos e regras objectivas da experiência leva alguns autores a afirmarem a sua superioridade perante outros tipos de provas, nomeadamente a prova directa testemunhal, onde também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será mais perigoso de determinar, qual seja a credibilidade do testemunho – cfr. Mittermaier Tratado de Prueba em Processo Penal, p. 389.

Sendo tal prova absolutamente indispensável em processo Penal, posto que, se a mesma fosse excluída, ficariam na mais completa impunidade um sem fim de actividades criminais – cfr. FRANCISCO ALCOY, Prueba de Indicios, Credibilidad del Acusado y Presuncion de Inocencia, Editora Tirant Blanch, Valencia 2003, p. 25, citando Mittermaier e a jurisprudência constitucional e do STJ do país vizinho.

Constituindo aliás de prova especialmente apta para dilucidar os elementos do tipo subjectivo do crime que de outra forma seriam impossíveis de demonstrar a não ser pela confissão.

Ora no caso, o conhecimento e a intenção inferiu-as o tribunal recorrido da objectividade dos actos materiais praticados pelos recorrentes, não sendo posto em causa, no recurso, o bem fundamento do percurso lógico/racional em que assenta a decisão.

É ostensiva, na falta de rigor e de cumprimento do falado ónus incidente sobre quem recorre da decisão da matéria de facto, a conclusão n.º 16: “desde já se remete para a leitura integral da transcrição das cassetetes onde foi gravado o julgamento”.

Sendo certo que o invocado erro notório não só não resulta do texto da decisão recorrida, como nem é caracterizado pelos recorrentes.

Alegam (conclusão 17ª) que o tribunal recorrido fundou a sua convicção no doc. de fls. 2 a 4 do apenso 19 V não examinado em audiência.

Como se referiu supra a audiência constitui o lugar privilegiado de produção, exame da prova, com base na imediação e na discussão cruzada dos vários sujeitos processuais.

Naturalmente que há provas que, pela sua natureza, têm que ali ser ali produzidas, designadamente a prova testemunhal ou por depoimentos. Mas existem outras - as documentais e periciais - que se encontram previamente incorporadas nos autos, arroladas pela acusação ou pela defesa, que não são produzidas, enquanto tal, na audiência, porque incorporadas previamente no processo e que os sujeitos processuais conhecem previamente, desde logo por arroladas na acusação como meio de prova. Constituindo objecto de apreciação previamente definido, que, como tal, apenas são discutidas e apreciadas em audiência, por fazerem parte do acervo previamente junto aos autos e arrolado como prova pela acusação e materialmente junto aos autos constituindo objecto de julgamento previamente definido.

Neste aspecto é pacífico que tais provas não têm – nem podem, na maioria dos casos em que já se encontram incorporadas nos autos quando o processo entra na fase de julgamento – que ser produzidas em audiência, apenas ali sendo examinadas e discutidas, objecto de contraditório – Cfr. designadamente Ac. STJ de 10.11.1993, CJ/STJ, tomo III/93, p. 233; Ac. STJ de 25.02.1993, BMJ 442º, p. 535; Ac. STJ de 10.07.1996, CJ/STJ, tomo II/96, p. 229; Ac. STJ de 27.01.1999, SASTJ n.º27, p. 83; AC. TC n.º 87/99 de 10.02, DR IIS de 01.07.99.

Ora os recorrentes nada invocam que prove ou aponte sequer para que não tenha sido exercido o contraditório sobre as mesmas ou amplamente discutidas em audiência, sendo certo que todas as provas arroladas pela acusação e incorporadas nos autos constituem o objecto de discussão e como tal susceptíveis de apreciação / valoração pelo tribunal.

Invocam de seguida a nulidade da busca realizada no cofre do arguido A..., questão já apreciada.

Carece de fundamento a “manifesta contradição insanável/manifesto erro” invocados na conclusão 22. Não só porque não resulta do texto da decisão. Como porque na leitura que fazem os recorrentes de determinado depoimento (remetendo de forma abrangente mais uma vez para toda a gravação do mesmo “desde 969 a 1928”) retiram determinada frase do contexto global do depoimento. Como ainda porque a afirmação “no início de 1998” não é de forma alguma incompatível com “a partir de 20 de Janeiro de 1998”. Porque o mês de Janeiro è o primeiro do ano e a expressão “início do ano” é ampla e perfeitamente compatível com aquela.

Questionam a prova do facto 289º, alegando que assenta em depoimento indirecto (conclusões 24 e 25-1). No entanto tal depoimento é directo, uma vez que a testemunha em questão contactou pessoalmente com o arguido A... e, quando soube que a mercadoria estava a ser vendida, procurou-o novamente no Hotel onde já nada encontrou. Acresce que a convicção alcançada pelo Tribunal Colectivo assenta ainda na conjugação deste com outros elementos de prova – documentos de fls. 753 a 7545, fls. 32, 64 do apenso 19-O e o depoimento do agente da “Campo Novo & Câmara S.A.”. Para além de que tal facto se encontra encadeado numa determinada sequência e conexionado com outros de onde se inferem (designadamente o facto n.º 47).

Razões que se aplicam inteiras, por identidade de razão, ao erro notório/total falta de prova invocados nas conclusões 23, dado os factos 283-284 assentarem na conjugação de vários elementos de prova devidamente explicitados na p. 311 do acórdão recorrido e não questionados.

Questionam (c.25-2) a matéria do facto 517 e que o 518º “choca com o que se diz a fls. 328, in fine do acórdão”. Dizendo, para o efeito, que “não é razoável presumir que os recorrentes soubessem que o D... se estivesse a dedicar à prática reiterada de burlas”. Extraindo de tal arrazoado mais um “erro notório” e uma “contradição entre a fundamentação e a decisão”. Ora, para além de a pag. 328 in fine não se referir a tal facto, nem os recorrentes demonstrarem, sequer formalmente as afirmações, chama-se a atenção, mais uma vez, no que toca à prova de factos do foro subjectivo o que acima se disse. E a fundamentação não posta em causa pelos recorrentes, dada pelo Tribunal Colectivo para o facto em questão: “não consta que qualquer dos arguidos sofra de deficiência de entendimento”. Pelo que a objectividade dos factos praticados demonstra o conhecimento e a intenção com que foram realizados.

Argumentação que se aplica, por identidade de razão, às conclusões 26 a 28, sendo certo que a decisão, no que toca aos factos n.º 520 e 522, se encontra devidamente fundamentada (p. 331 do acórdão) cujo conteúdo a argumentação do recorrente não põe em causa.

O mesmo se dizendo relativamente ao “erro notório” no julgamento dos factos n.º 525, 526, 527 e 531 (conclusões 29 a 31) pois que se limitam os recorrentes a invocar a “total inexistência de prova”, logo se contradizendo, nos próprios termos, quando referem o “escrito do arguido A...”. Escrito que o tribunal valorou de acordo com o respectivo teor literal e em articulação com a variadíssima documentação referenciada na fundamentação do facto 525 (cfr. p. 332 do acórdão) cujo teor não é posto em causa de forma minimamente consistente.

Mais uma vez é ostensiva a falta de rigor e de cumprimento do falado ónus incidente sobre quem recorre da decisão da matéria de facto, a conclusão n.º 32 quando se refere, textualmente, que a falta de prova “se pode verificar de todas as folhas do processo e audição das cassetes que contêm a gravação do julgamento”. Fazendo tábua rasa da específica fundamentação dada no acórdão relativamente ao facto 533 (ultimo parágrafo da p. 332 e 1º parágrafo da p. 333 do acórdão recorrido).

É de todo descabido mais o “erro notório” invocado na conclusão 33ª, sendo certo, pelo contrário que a pretensão dos recorrentes redundaria numa conclusão contrária à presunção resultante do registo comercial que não tem sequer apoio – nem os recorrentes o invocam – em qualquer meio de prova.

Passam depois à nulidade das escutas e respectiva valoração, questões já apreciadas, a que a argumentação dos recorrentes nada acrescenta, não cumprindo minimamente o ónus de especificação no que toca à conclusão 45 e 46, sendo certo que o facto n.º 703 assenta (v. p. 351 do acórdão) na conjugação das escutas de fls. 20 e 21 do apenso 6-A, fls. 2 a 6 e 9a 15 do apenso 6-B, fls. 46 e 47 do apenso 9-A, fls. 63 a 77 do apenso 9-B, e documento de fls. 2622.

Questionam a valoração de fotocópias de documentos (conclusão 48), sem fundamentar juridicamente a sua conclusão, sendo certo, em contrário do pretendido, que a valoração das fotocópias tem suporte no preceituado no art. 368º do C. Civil.

São de todo genéricas e insusceptíveis de apreciação as conclusões 49, 50 e 51 (v. não esclarece quis os documentos” e “não conseguimos saber”. Tendo em conta não só que não se referem a factos concretos como ainda aquilo que foi afirmado supra, relativamente ao vício de falta de fundamentação, de que no acórdão em apreciação, os factos/ocorrência se encontram fundamentados nos termos mencionados acerca do vício correspondente.

Ficando aliás a impressão de que os recorrentes não corrigiram as alegações que haviam apresentado no anterior recurso.

Nas conclusões 52 a 60 tece os recorrentes considerações gerais sobre a apreciação de depoimentos testemunhais e documentos que depois qualificam de erros notórios na apreciação da prova. Para além de considerações genéricas não especificam quais os factos indevidamente julgados e quais as provas que imporiam decisão diferente. Muito menos permite a análise dos recorrentes a caracterização do vício de erro notório, dentro do critério atrás definido.

Dentro deste arrazoado invocam a excepção dilatória de litispendência, por alegada pendência de acção cível para satisfação do crédito reclamado pala demandante civil “Petroneves, L.da”.

A este respeito não fazerem prova da identidade de causa de pedir e do pedido em que assenta o conceito de litispendência e do caso julgado – cfr. art. 498º, n.ºs 2 e 3 do CPC. Sendo certo que na acção penal o pedido assenta nos pressupostos do crime, diversos dos pressupostos da responsabilidade contratual.

Por outro lado a este respeito vigora o princípio da plenitude da acção penal consagrado no art. 71º do CPP. E nem a existência de título executivo (que não está demonstrado) impedia o autor de propor acção, apenas suportando, nesse caso, as respectivas custas – cfr. art. 449º, n.º2, al. c) do CPC.

Não se verificando pois a referida excepção.

Acerca dos factos relativos à passagem de moeda dá-se também por reproduzido, por identidade de razão, o que foi referido a tal propósito na apreciação do recurso de C.... Referem ainda a violação do princípio in dubio pro reo. Mas, pelas razões acima aduzidas na apreciação do recurso de A..., que aqui se dão por reproduzidas, também se não verifica.

A rematar a análise deste recurso sobre matéria de facto, evidenciando que apenas questionam a decisão da matéria de facto no âmbito dos vícios do art. 410º, n.º2, refira-se que estes recorrentes, a final, não pedem que seja alterada a decisão de qualquer ponto específico da matéria de facto.

Apenas pretendem que “deverá ser anulado todo o processado partir das escutas telefónicas ou anulado o julgamento, ou anulado o acórdão, ou absolvidos os arguidos” – cfr. remate final das conclusões.

Carecendo, pelas razões expostas o recurso de bom fundamento.

10. K...

Também este recurso assenta no pressuposto da nulidade das escutas telefónica, já decidida em sentido contrário.

Alega o arguido que devem ser mandados transcrever todas as declarações prestadas em audiência “pelo que requer a renovação da prova para análise de todos os suportes”.

Aparte a falta de rigor e a contradição nos termos evidenciada, verifica-se que a transcrição foi devidamente efectuada, não tendo por isso o menor fundamento, nem se compreendo tal pretensão.

Sendo certo ainda que a renovação da prova não se confunda com a transcrição e apenas tem lugar no caso e depois de verificado algum dos vícios do art. 410º, n.º2. Desde que o tribunal da relação conclua, que tal renovação pode evitar o dito reenvio – cfr. enunciado taxativo do art. 430º, n.º1 do CPP.

No que se refere à matéria de facto, este arguido tece várias considerações sobre a decisão, alegando, no essencial, desconhecer as actividades ilícitas dos restantes arguidos de que proveio o dinheiro, o telemóvel e os sapatos que recebeu e a ilicitude das suas condutas dos restantes arguidos.

Não procede porém à análise da decisão recorrida que lhe diz respeito por forma a demonstrar a insubsistência da respectiva fundamentação, nem fazendo uma análise da prova por forma a que tal pudesse levar a decisão diferente, nos termos exigidos pelo art. 412º, n.º3 e 4 do CPP.

Carece de qualquer fundamento a afirmação (conclusão 13ª) de que letras de câmbio com assinaturas falsas são válidas – relativamente a tais assinaturas falsas. Com efeito o que o preceito invocado (art. 7º da LULL) prevê uma situação diferente: se a letra contém várias assinaturas, a falsidade de alguma delas (ou a falta de capacidade ou legitimação de algum dos assinantes) postulando que, em tal caso “as obrigações dos outros signatários nem por isso deixam de ser válidas”.

Não postula que a assinatura falsa possa valer como genuína, em quaisquer circunstâncias, mas apenas que a sua invalidade não afecta a validade de outras que tenham sido voluntária e legalmente apostas. Estas, por válidas, permanecem como tal apesar da falsidade de outras. Mas as falsas nunca podem valer ou converter-se em verdade.

Relativamente à conclusão n.º 17, importa referir que o acórdão recorrido não sancionou o arguido pelo seu silêncio ou por silêncio que lhe fosse imposto pelo dever de sigilo invocado, mas antes pela sua participação e aproveitamento dos factos ali relatados.

Questiona depois o valor das escutas telefónicas, questão já apreciada, bem como o valor do depoimento da testemunha Carlos Guerreiro Pedro, ex-arguido, e da testemunha Alice, mulher do arguido N....

Da forma como questiona a ponderação destes três meios de prova resulta que o próprio recorrente esclarece que a decisão se encontra fundamentada em três meios distintos de prova, que apontam no mesmo sentido. Meios de prova cujo conteúdo o recorrente não põe em causa, limitando-se a questionar a respectiva credibilidade.

Também aqui refere que as ditas testemunhas faltaram à verdade, sem justificar porquê. Apenas contrapondo a sua própria afirmação à das referidas testemunhas.

Alega que recebeu os sapatos como mera cortesia. Mas não é isso que está em causa. O que releva é saber antes se os recebeu (ainda que como cortesia), bem sabendo da sua proveniência ilícita, beneficiando de uma “oferta” de bens ilegitimamente subtraídos ao legítimo proprietário.

Refere depois que nunca pensou que os sapatos que recebeu tivessem sido adquiridos ilicitamente. Mas também aqui não invoca quais as provas, ou sequer o raciocínio lógico que deveria levar a decisão contrária.

Aliás ele próprio alega, na perspectiva de demonstrar a sua inocência, que apenas sabia que Auto Duarte e Duarte se dedicava à sua actividade estatutária - compra e venda de automóveis. Actividade a que a compra e venda de sapatos é de todo estranha e por isso, no próprio raciocínio do recorrente, aponta em direcção contrária à pretendida, devendo o facto de se tratar de artigos estranhos à actividade, tê-lo levado a questionar-se sobre a origem.

De qualquer forma a decisão assenta, como o próprio recorrente alega, em dois depoimentos distintos e ainda no teor das escutas telefónicas (transcritas a fls. 29-35 do Apenso 9 B).

Tal escuta, reproduz uma conversa entre o arguido B... e o ora recorrente, onde aquele lhe comunica que já carregaram uma camioneta com sapatos, que levaram as letras para alguém assinar, perguntando ao recorrente se ele sabe qual o valor do carregamento, arriscando este o valor de 30 mil contos, esclarecendo-o o B... de que são 18 mil contos, dizendo-lhe expressamente que “A gente carrega estes 18 mil contos prá Duarte". E termina referindo - "Pelo menos temos os sapatinhos, não é?" - cfr. fls. 34 do Apenso 9 B. Referindo ainda, com interesse para o conhecimento da proveniência do dinheiro recebido pelo recorrente – apenso 9-A – designadamente que “pus-lhe o dinheiro na conta”.

O conteúdo das escutas que a seguir se resumem, é todo incompatível com a alegação do recorrente de que se limitou a elaborar a minuta dos contratos, sendo alheio às negociações para o pagamento através de mercadorias exportadas para a Guiné e não saber da falsificação das letras nem da origem do dinheiro depositado em conta e da proveniência ilícita dos sapatos.

Assim:

Apenso 9 B (Voltas 171 J Cassete n° 2, Lado A (Conversa de B... com Dr. K... - Sessão 0199 -12/07/00, 21H18)

B - Tou, Senhor doutor. Desculpe lá estar-lhe a ligar. Estive agora a falar com o senhor N....

K - Ah. Sim.

B - E ele, espere aí. Estava a beber água. Temos que falar e não sei quê (...) ó senhor N..., eu não tenho vida para isso. O senhor tem lá o seu já (...) eu não tenho o meu e depois (...) quando chegar a Agosto eu fico aqui agarrado e o senhor está lá na maior com o seu. Mas temos de conversar, para saber como é que é as outras coisas. Ó Senhor N... (...) é o que eu lhe mandar e mais nada. (...) os 60 mil ou 70 mil (...) e o resto a gente (...). Não mas é que a gente tinha que conversar. Ó senhor N... não temos nada que conversar. O que eu tenho é que trabalhar. Ah, porque eu fui ao banco e as letras lá estavam (...) com as assinaturas falsas. O que é que eu tenho a ver com isso. Não é. E eu disse, olhe senhor N... tenho dúvidas que seja isso, porque o senhor assina com dois nomes e quem é que sabia que o senhor assina. Ah, mas é falsa. É pá, tá bem, se é falsa (...). O rapaz disse-me assim. Não me digas que este filho da puta foi dizer para o banco que aquilo era coiso? (...)

K - Não, Não. Não podia dizer porque ele estava lixado também.

B - Ora é isso, pá. O senhor pergunte-lhe isso a ele, pergunte-lhe isso a ele.

K - Não, não. Isso tenho a certeza absoluta.

B - Mas esteve lá hoje, ó que foi.

K - Sim, sim. Mas jamais ele diria isso. (...)

B - (...) ele disse que não tem dinheiro e depois(...) que lhe disse: olhe Sr. N..., eu até sei a sua vida toda, sei que o Sr. tem 3 000 contos na conta, tem crédito. Ai é mais ou menos isso. Como é que o senhor sabe? (..) aquela jogada do Banco, e vou-lhe dizer mais, isto está nesta fase, ou vai a bem ou vai a mal, porque eles vão querer mamar também todos e vão alinhar todos na jogada, e portanto, ou vai a bem ou a mal. Tá-me a perceber? A gente vai-lhe mandar os 60 mil ou não sei quê, que é para ir. E eu disse, eu ontem se a pessoa caísse, eu já tinha mandado um contentor para lá e depois o Sr. que se desenvencilhe. Portanto, isto vai mesmo andar, a bem ou a mal. O Vítor não tem nada, o Vítor anda pianinho, o Sr. não tem nada a ver com o Vítor, o Sr. não tem (...) não estar com muitas conversas com o Sr. (...) nem com ninguém. (...). Eu não quero muitas conversas, não quero nada. Pronto. Quero fazer o meu trabalho. Eu mando-lhe 60 mil e vou buscar 200 mil. Vou (...) mais nada.

K - Pois, exacto.

B - É pá, e andando. Não é assim?

K - Pois, exactamente. (...)

B - É pá, você não impecilhe, não ponha os gajos em brasa (...)

K - É que agora é tarde.

B - Pois, os gajos são doidos, eu só digo assim, os gajos são doidos. Você diga-lhe assim. Eu disse-lhe assim. É pá, foi por pouco que eu não me lembrei ontem do carregamento de roupa para o Porto, foi por pouco. Se aquilo não estivesse fechado, mandava já ("0) depois o Sr. olhe, o Sr. que se governe. Começa-se a entalar. Portanto, eu comprometi-me com o Sr., Tenho que lhe mandar, porque chega o mês de Agosto, está tudo fechado e eu tenho que fazer o dinheiro para reformar as letras e isto, e aquilo e aquel'outro. E o Sr. está-se nas tintas, porque está lá! Não é? E ele ficou muito (...) e disse para mim: Ah, e tal (...) ficou muito sério a olhar para mimo Pois é. Ah, mas queremos falar. Queremos falar por causa da fábrica, por causa disto. Eh páo Eu disse-lhe assim: Eles arranjam-lhe tudo, mas o Sr. não pressione os gajos, senão os gajos ficam marados, pá, e é pior. Tá- me a perceber?

K - Claro. Exacto.

B - (...) Eu preciso de trabalhar à vontade, porque está a perceber. Se eu não o fizer agora (0.0) se eu não o fizer agora, o Sr. sabe (...) estamos fodidos.

K - Pois. (...) Exactamente.

B - Eu por acaso já estou a por carregamentos para o mês que vem. Consegui já hoje por um carregamento para o mês que vem, mas, mas, eh, tá-me a perceber, não é?

K - Pois. (...)

B - (...) Estava-me então a chatear que a gente vai-lhe fazer tudo e para ele mandar o Vítor passar da gente e para não estar com conversinhas com o Vítor, que eu estou-me na tintas. E se ele estiver com muita merda que vá para a Polícia Judiciária, que ele vai ver o que lhe sucede.

K - Pois.

B - Eu estou-me cagando. Eu disse assim: Ó Sr. N..., o Sr. N... assina-me um papelinho (...) ah, ah, ah pois ah. O senhor assina. E a assinatura da sua esposa é verdadeira. Ah, não sei. Ó Sr. N.... A sua é capaz de não estar muito bem feita, mas a da sua esposa é verdadeira.

K - Pois.

B - Ah. E que ele não vê. 6 Sr. N..., não brinque comigo. Como é que sabiam que a coisa estava assim.

K - Pois, exacto. Pois, isso é verdade.

B - Que ele assina com duas no banco.

K - Pois exactamente.

B - Quem é que sabia disso? Só alguém muito, muito dentro disso. (...) Não temos interesse em que o Vítor se espante, porque se o Vítor se espanta, rebenta com isto tudo, percebe doutor?

K - Pois, exacto.

B - É esse o (...).

K - Claro.

B - E o doutor até viu que os sapatos são bons, que a gente vai ainda buscar boas coisas, não é? Tirando os... Vamos ter todos sapatinhos, ah?

K - Tá bem.

B - Ah! (...) vem para aí, ainda é uma nota, não é?

K - Pois.

B - É para começar, pronto. Vamos lá ver. (...) Ah. E outra coisa. Parece que já, também temos cartões. Eu tinha deixado dinheiro ao homem e o homem, parece que já temos novos cartões, também. Vamos lá ver. Parece que estamos safos daí, também,

K - Tá bem.

B - Prontos Sr. doutor. E depois, agora tenho que arranjar dinheiro para lhe pagar. (...)

Apenso 9 B

(Conversa de B... com Dr. K... - Sessão 374 - 17.7.00, 09H25)

(K) - Diz

(B) - Tou, então tão a fazer boa viagem senhor doutor?

(K) - Tá bom?

(B) - Tou bom obrigada, então?

(K) - Já cá estamos

(B) - Já cá estão? Po, isso foi mesmo (imperceptível), hã?

(K) - Hum hum

(B) - É pá pronto, ok, a gente tá aqui à espera, a ver...

(K) - Não, já cá estamos aqui...

(B) - Em Portugal...

(K) -Não...

(B) - Ah, na Suiça, ah tá bem

(K) - Sim

(B) - Ah, mas não vem hoje?

(K) - Não

(B) - Ah, pronto, tá bem...

(K) - Não, ainda não vou hoje...

(B) - Pois, isso ehhh na Suiça, eu já sabia mais ou menos que estavam porque o o Ricardo falou, não é? que estavam quase a entrar não é?

(K) - Isso

(B) - Pois, então vão quando? então de qualquer maneira eu ponho na sua conta

(K) - Tá bem...

(B) - Pois, não é? logo que receba, estamos aqui à espera do homem, o homem...

(K) - Tá bem

(B) - ...vai alugar, foi alugar umas carrinhas, ou uma carrinha ou o que é isso, para vir buscar, portanto depois...

(K) - Pois, vai à Anabela (imperceptível) que lhe quiser...

(B) - E ela depois põe

(K) - Tá bem...

(B) - O senhor doutor deu-me o número há dias...

(K) - Sim, é o mesmo...

(B) - Ela nem convém, nem convém que ela saiba, não é?

(K) - Pois, exacto...

(B) - (risos) pois, pronto senhor doutor, tá bem, logo que que isto esteja

resolvido eu apito

(K) - Tá bem, tá bem

(B) - Pronto, mas está tudo a, correu tudo bem, tá tudo bem, não é?

(K) - Tá

(B) - Ok, pronto, tá bem...ele deixou-lhe a procuração, ou não? ...

(K) - Deixou...

(B) - Ah pronto, então depois, está certo, ok, era isso que estava preocupado...

(K) - Tá bem

(B) - E a que horas é que ele vai hoje?

(K) - Não sei, ele não me disse nada...

(B) - Hum, pois está bem...

(K) - Ele depois é que fa, depois é que falou aí comigo...

(B) - Não disse nada...pois a gente tem que começar a a entregar ehhhh o material, senão sucede como na outra vez, depois as pessoas começam a pensar e começam a dar sopa...

(K) - Claro...claro

(B) - Não é? portanto tá a ver? Tínhamos cinquenta mil peças da outra vez, que eram doze mil e quinhentos contos, a duzentos e cinquenta escudos as peças, o homem pensou, pensou, a gente demorou tanto que o homem pensou, resolveu o problema dele, muitas vezes os gajos alinham porque têm um problema momentâneo, resolve o problema dele e deu-nos sopa agora, e agora tamos aqui por acaso até em frente do gajo da Nova Ali e o gajo da Nova Ali também é gajo para cair numa jogada destas, o que é

(K) - Pois...

(B) - Ehhhh, tem que, a gente tem que começar a carregar, prontos senhor doutor, não lhe roubo mais tempo, olhe ainda bem que tá aí, que correu tudo bem, vamos lá ver, depois eu digo-lhe qualquer coisa...

(K) - Tá, tá bem...

(B) - Pronto, um abraço, até logo

(K) - Até logo.

Apenso 9 - A

(Conversa de B... com Dr. K... - Sessão 141-18/07/00, 12H35)

(...)

(K) - Senhor B...?

(B) - Sim...

(K) - Eu. Dr. K..., tá bom?

(...)

(B) - Olhe doutor, já lá está

(K) - Hã...sim. Eu sei.

(B) - Já lá está.

(K) - Tá bom. Olhe, é uma coisa...

(B) - Já sabia?

(K) - Sim...já...é...a minha mulher já tinha dito.

(B) - Diga, diga senhor doutor.

(K) - Olhe, hã...a dona Alice tá-me a telefonar...a chatear...

(B) - Desculpe lá... pêre aí...eu tou...pere aí...desculpe...não tou a ouvir.

(K) - A dona Alice...

(B) - Diga?

(K) - A dona Alice

(B) - Sim...

(K) - Tá-me a chatear a cabeça...hã...que é para...para a reforma que é amanhã, não é?

(B) - A letra? Pois...já estamos no Norte...já vamos tratar disso, sô tor. Mas ele... ele... ele não nos deu o coiso. Como é que se chama? O ... o ... o carimbo, aquilo. Não deu nada... cagou naquilo e pirou-se.

(K) - Sim...E agora o que é que...

(B) - Ele tinha ficado de dar aquilo assinado, não era?

(K) - E agora...agora o que é que é preciso?

(B) - Hã...agora...agora vamos nós desenrascar. Vamos agarrar e fazer um rabisco qualquer e que se foda. Não é? E entregar o dinheiro e pronto...e piramo-nos.

(K) - Tá bem...

(B) - Já tamos aqui no Norte para isso.

(K) - Tá bem.

(B) - Ele ontem...a que horas é que ele ontem foi?

(K) - Hã?

(B) - A que horas é que ele ontem foi?

(K) - Não sei.

(B) - Mas, foi para a Guiné?

(K) - Foi.

(B) - Foi. Pois e o filho da puta...e a gente à espera dele para ele entregar- nos a letra com a...com a...com as assinaturas e pirou-se.

(K) - Pois...

(B) - Pois...Agora olhe...vamos agarrar naquelas e ...e ver se...o que é que fazemos mais parecido...

(K) - Tá bem.

(B) - Hã...o sô tor, portanto, diga-lhe a ela...diga-lhe a ela que nos mande ...hã...hã...um fax...de ...das...do aviso... eu vou pedir aqui a um senhor...aqui...se ele...esta gaja...mas isso não interessa... a pessoa em questão...a gente já sabe quem é a pessoa, não é? Já vamos...ontem andamos à procura dele...ele ontem não...não... foi possível apanhá-lo...e agora vamos falar com ele hoje, não é?

(K) - Hum...

(B) - Pronto. Não interessa. A gente não é preciso o re...o...O aviso para nada, não é?

(K) - Claro.

(B) - Entregamos o dinheiro à pessoa... entregamos-lhe uma letra e...pronto.

(K) - E tá arrumado. Exacto.

(B) - E tá arrumado. Que se foda...olha...eh pá, o... o... o cabrão... eh pá, o gajo é mesmo...ó sô tor...eu vou-lhe dizer...quer dizer eu vou fazer isto...à confiança. Se fosse noutra altura eu não fazia. Porque isto...o gajo amanhã ou depois fica com uma prova contra a gente, não é? Bem, mas ele também...já lhe deu a procuração...

(K) - (imperceptível) Claro...

(B) - Hã?

(K) - Exacto...

(B) - Já deu a procuração. Mas esteja descansado que não há problema nenhum que a gente já tem aqui o dinheiro...já vamos...já...já...já está tudo descansado. Tamos agora só aqui com uma reunião...com aquele tal esquema que eu lhe disse daquela gente...da...do Norte. Para arrancar com projectos, não é? Tivemos a falar com o Comendador...Joaquim de Almeida daquela da...daquilo... da TERMOLÃ, e dessas merdas todas, não é? e prontos e já vamos para lá tratar do resto. Ok?

(K) - Tá bem.

(B) - Esteja descansado, sô tor. Diga-lhe a ela...

(DD) - Pronto. Ok...

(B) - ...que a gente já tá combinado...que vamos reformar já a letra...

(K) - Tá bem...tá bem...tá bom.

(...)

(B) - O sô tor já lá tem desde ontem...desde ontem aquilo...é que aquela merda não cabia nos caixotes...tivemos que tirar os caixotes todos cá para fora e pôr caixa a caixa lá dentro nos carros, pá.

(K) - Pois...pois..

(B) - Pá, só fal...eu...eu...pus-lhe o dinheiro na conta faltavam para aí 10 minutos para as 3.

(K) - Hum...hum...

(B) - Pronto...e depois vi...viemos para cima, pá...

(K) - Tá bom...

(B) - ... viemos todos partidos, pá, daquilo, e viemos para cima. E já lá tão os sapatos e tal...

(K) - Tá bom...

(...)

(B) - Eu tou aqui com o tal gajo aqui do banco... tou aqui com o tal gajo do banco... que me deu informações sobre o gajo.

(K) - Pois...

(B) - Pois. Tá a perceber? E o gajo ...e eu tive-lhe... "mas sabe ele coiso e tal...". Eu disse: "Não. Tou aqui com ele."

(K) - Tá bem...

(B) - Portanto a gente tem as informações todas...

(K) - Ok... Tá bom...

(B) - Então, pronto sô tor... teja descansado, hã?

(K) - Tá bom...

(...)

(B) - Pronto sô tor, a gente já vai tratar disso...tenho aqui e vamos dar em dinheiro e tudo...

(K) - Tá bom...

(B) - Tenho aqui ...então o sô tor sabe de

(K) - Pois...exacto...

(B) - Tenho aqui 2 mil contos... que despesas.

(K) - Tá bem...

(B) - Pronto...

(K) - Tá bom...

(B) - Esteja descansado...

O que resulta desta transcrição, designadamente os excertos destacados a itálico, não é que o arguido (e o fundamento de que sabia que a aquisição de sapatos – do produto de cuja venda proveio dinheiro que o arguido recebeu - estavam fora do objecto social da Auto Duarte contradiz a conclusão que pretende alcançar) não soubesse da actividade dos co- arguidos traduzida na aquisição de tais mercadorias contra a entrega de letras falsificadas.

Pelo contrário, o que resulta da prova é que o arguido sabia que tais aquisições estavam fora do objecto social da Auto Duarte, sabendo que os co- arguidos se apropriavam ilicitamente de tais mercadorias, tendo chegado a aprovar a falsificação de pelo menos uma letra, para além de receber o dinheiro que o arguido B... depositou na sua conta, proveniente dessa actividade.

Acresce que para B... depositar o dinheiro na conta tinha que saber o respectivo número e demais elementos de identificação. Que refere ter-lhe sido dado pelo recorrente (que tinha o domínio sobre tal conta) e tê-lo anotado num papel. Papel esse junto a fls. 3 do apenso 9-H.

Além de que tal depósito (que o recorrente não nega, tanto que sustenta que se destinava ao pagamento de honorários – cfr. conclusão 45) é ainda confirmado pelo depoimento da testemunha Carlos Guerreiro.

Pelo que não demonstrando o recorrente que a convicção alcançada pelo tribunal recorrido viole os preceitos legais sobre a validade ou a avaliação de prova, mostrando-se, pelo contrário, em perfeita consonância com a prova produzida e sua avaliação nos termos legais, não merece reparo, não qualquer havendo fundamento para a alterar.

11. P...

Invoca a recorrente erro notório “porque as escutas são nulas”. Questão que fica destituída de fundamento em face da decisão transitada em julgado que reconheceu a validade de tal meio de prova.

Este recurso apresenta semelhanças com o do arguido K..., até por semelhança de circunstância no recebimento dos pares de sapatos/sandálias, vivendo ambos em comunhão.

Aplicando-se aqui o que ali foi referido quanto ao pressuposto da nulidade das escutas telefónicas.

Alega – na referida perspectiva - o desconhecimento da origem ilícita das sandálias, em virtude das suas conversas com o arguido B... transcritas nos autos ser totalmente inócua, devendo ser absolvida com base no princípio in dubio pro reo.

Dá-se aqui por reproduzido o que foi dito sobre este princípio na apreciação do recurso do arguido A.... Para concluir, por identidade de razões, que não foi violado, uma vez que produzida a prova, perante o T. Colectivo que a precisou com base na oralidade e imediação, essa dúvida não se instalou, fundadamente no espírito dos julgadores.

Também neste ponto o teor das escutas, invocado juntamente com outras provas, na fundamentação da decisão, não deixou o tribunal em situação de dúvida insuperável. Designadamente pelo o teor das conversas com o arguido B... quando este refere que a “mercadoria” que traziam (sapatos de homem e sandálias de senhora “queimava que se fartava” e ela respondeu que por ela “até podia derreter” e quando lhe disse que lhe ia oferecer alguns pares de sandálias, perguntando o género que ela pretendia respondeu que “o género dela era tudo, que se adaptava bem às circunstâncias”.

Pelo que este recurso carece também de fundamento.

12. D...

Invoca o vício de erro notório, radicando tal erro na alegada circunstância de que “só um prazo de 60 a 90 dias ser suficiente para lhe assegurar as garantias de defesa”.

A questão do prazo já foi apreciada em sentido negativo. Pelo que cai pela base o erro notório – vício que, diga-se, dentro do enquadramento acima efectuado, nada tem a ver com os fundamentos invocados.

Invoca a Insanável contradição da fundamentação “nomeadamente a constante do artigo 409º e 527º que consubstancia também erro notório”. E que “que não é possível os mesmos factos estarem simultaneamente provados e não provados”.

A este respeito verifica-se que a fundamentação da decisão da matéria de facto no acórdão recorrido quanto aos factos não provados não é numerada por artigos, mas antes pela indicação da matéria, total ou parcial dos artigos da pronúncia que não ficou provada.

Ora, o art. 409º da matéria provada não contem matéria “conflituante” com a do art. 527º. Relativamente ao “facto n.º 527” o que se refere, sob o item “matéria não provada” é tão só e apenas que “não ficou provado que o arguido D... tenha recebido na partilha o mais que vinha referido no art. 527 e que não se deu como provado”.

Assim, não existe qualquer contradição, apenas tendo ficado provado aquilo que se encontra definido, pela positiva, na matéria provada - artigo art. 527 – sendo não provado tudo o que vinha alegado e ia além do que ali se refere.

Não havendo assim qualquer contradição, sendo perfeitamente compatíveis as duas afirmações.

13. J...

No âmbito da decisão de facto o recorrente refere-se à insubsistência das escutas telefónicas como meio de prova, dizendo que se trata de meras conversas, não existindo prova testemunhal que as confirme. Questão esta já apreciada supra, cujos considerandos aqui se dão por reproduzidos.

Invoca ainda erro notório de apreciação relativamente aos factos 1623 a 1527, dizendo para o efeito que “não é crível que o recorrente admitisse sem tal ter sido exigido pela entidade devedora se oferecesse para lhes titular a dívida com que o mesmo sabia antecipadamente terem a assinatura dos aceitantes falsificada”.

Para além de não se tratar de erro que resulte ostensivamente do texto da decisão, mas antes de matéria sujeita ao princípio da livre valoração da prova, o recorrente não demonstra a afirmação, refugiando-se num “não é crível” que logo por si contraria a natureza do erro “notório”.

De qualquer forma, apreciando os factos no respectivo contexto, verifica-se que se encontram estruturados de forma perfeitamente lógica e racional: a empresa do recorrente (J. Machado, Importações, Exportações) tinha uma avultada dívida e falta de crédito perante a “Tintas Potro”. E as letras entregues não eram do aceite dessa firma, mas antes da Auto Duarte y Duarte. Empresa que assumiria, no plano dos arguidos, a dívida da “J. Machado”. Pelo que, com tal operação, o recorrente via-se livre da dívida da sua empresa, que passava para a Auto Duarte, sem nada dar em troca, porque o aceite da Auto Duarte era fictício.

Renovando-se e dando-se aqui por reproduzido o que foi dito na apreciação do recurso os arguidos E.../F.../ quanto à apreciação da prova indirecta.

De onde que não só não existe o invocado erro notório de apreciação, como pelo contrário a matéria provada assenta numa perspectiva perfeitamente lógica e racional da prova analisada no seu conjunto em conformidade com as regras da experiência.


***

Termos em que, concluindo a apreciação da decisão sobre a matéria de fato, se julgam improcedentes todos os recursos que versam sobre a mesma, tendo-se por fixada tal matéria, nos precisos termos supra transcritos, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos.




VI. RECURSOS DA MATÉRIA DE DIREITO

1. Pressupostos do(s) crime(s) de associação criminosa

Foram condenados por este crime os arguidos A..., D..., F..., E... e G... - pelos factos correspondentes à actividade desenvolvida no âmbito da empresa Empreendimentos Turísticos Praia de Vieira, L.da; E pelos factos iniciados em 2000 e praticados, genericamente, no âmbito da empresa Auto-Duarte, L.da, os arguidos A..., B..., Carlos Guerreiro, C..., J... e I.....

O crime de associação criminosa é assim definido pelo art. 299º do C. Penal:

“1. Quem promover ou fundar grupo, organização, associação cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de crimes é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

2. Na mesma pena incorre quem fizer parte de tais grupos, organizações ou associações ou quem os apoiar, nomeadamente fornecendo armas, munições, instrumentos de crime, guarda ou locais para as reuniões ou qualquer auxílio para que se recrutem novos elementos”.

Trata-se de um crime que tem por antecedente o crime de associação de malfeitores do C. Penal de 1888, a que Beleza dos Santos dedicou um aprofundado estudo na RLJ, Ano 70º, p. 97, 123 a 129.

Como resulta do enunciado legal e decomposição dos elementos do tipo, é necessário, antes de mais, a existência de um grupo, organização ou associação.

Como refere Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricence, em anotação a este preceito, tem que haver uma realidade autónoma, diferente e superior às vontades e interesses dos singulares membros. Supõe no plano das realidades psicológica e sociológica que do encontro de vontades tenha resultado um centro autónomo de imputação fáctica das acções prosseguida em nome e no interesse do conjunto. Tem que haver uma pluralidade de pessoas, uma certa duração, um mínimo de estrutura organizatória, com uma certa estabilidade e permanência, um qualquer processo de formação de vontade colectiva, um sentimento comum de ligação entre os membros, enfim, que tal estrutura tenha sido criada ou montada com a finalidade da prática de crimes.

Sustentam os recorrentes que da prova produzida não resultam provados elementos suficientes para fundar a condenação por associação criminosa, nomeadamente prova da existência de uma realidade autónoma, diferente e superior às vontades e interesses dos arguidos, donde resulte um centro autónomo de imputação fáctica das acções prosseguidas em nome e no interesse conjunto.

No que concerne a este ponto relativamente ao primeiro crime de Associação criminosa – factos praticados genericamente no âmbito da Empreendimentos Turísticos da Praia da Vieira, L.da (também designada abreviadamente por “ETPV”) – refere o acórdão recorrido:

««« quanto aos "Empreendimentos Turísticos da Praia da Vieira" os arguidos D... e A..., primeiro, e os arguidos D..., A..., G..., E... e F... depois, funcionaram em grupo organizado, tendo em vista o cometimento de burlas, a saber, em síntese: os arguidos D... e A..., para executarem o plano de cometimento de burla decidiram usar o crédito comercial e bancário da "ETPV" e a ligação desta a uma estrutura imobiliária (o hotel "Praia da Vieira"), aparecendo o arguido A... como director comercial da "ETPV". O que manifesta a intenção de agir dentro duma estrutura e com distribuição de papéis (aparecendo o arguido D... com o seu bom nome e como assinante das letras) ; o facto de, mesmo após a cessão de quotas (19.02.98), e pelo menos até Junho de 1998, o arguido A... se manter ligado à "ETPV", negociando e recepcionado mercadorias, apesar de formalmente já não ser director comercial; em alguns casos a falta de informação ou até a afirmação não verdadeira de que as mercadorias não eram para exportação para a Guiné e que se destinavam a ser utilizadas no hotel; os termos invulgares das cláusulas relativas ao projecto da cessão de quotas e à exportação de mercadorias para a Guiné, designadamente os escritos de fls 9874, 9624 e 9626 ( quando ainda não havia nenhuma sociedade "offshore" constituída ), cláusulas essas absolutamente inabituais e quase bizarras; a cedência intermédia de quotas para os arguidos F... e E..., a que se seguiria a cedência para a "offshore" a constituir; a própria constituição de uma sociedade "offshore" sedeada em Gibraltar, pertencendo as quotas desta a duas outras sociedades «offshore» (com o que isto significa de ocultação da identidade dos sócios e dos gerentes) ; o preço exorbitante da projectada cessão de quotas de uma sociedade sem qualquer actividade comercia! desde há anos e quando os sócios cedentes eram devedores da sociedade ( fls 11354 ); o facto de o arguido G..., apesar de ser o representante da "offshore" entretanto constituída ( em 16-3-98 ), não ter poderes de gerência ( fls 7702 a 7707 ) ; a alteração do contrato de sociedade da "ETPV" no sentido de a gerência ser exercida por pessoa a nomear, quando afinal nenhum gerente foi depois nomeado após a cessão das quotas pelos arguidos F... e E..., em 27-5-98 ( fls 7693 ss ) ; o encerramento do armazém de Pataias, onde a partir de certa altura passaram a ser armazenadas as mercadorias para logo de seguida dali saírem; o facto de muitas mercadorias estarem a ser vendidas em Portugal ( não na Guiné, como seria suposto) a preços muito inferiores aos de mercado, isto sem o conhecimento dos fornecedores; o facto, extremamente significativo, de os arguidos omitirem, nos contactos-negócios com os fornecedores, que não se encontravam em condições de cumprir ( e daí as sucessivas reformas e promessas de pagamento dilatórias, bem como cheques não provisionados ), o que representa actos concludentes no que respeita à intenção de defraudar; o facto de a quase totalidade das mercadorias não ter sido paga até hoje (isto num valor superior a duas centenas de milhares de contos) ; tudo isto, que apenas expomos em síntese, revela a intenção por parte dos arguidos de criar um complexo jurídico e factual próprio para induzir os fornecedores em confusão ( vg. quanto á titularidade da sociedade, à identificação do gerente ou gerentes) e na impossibilidade prática de recuperarem os seus créditos ou mercadorias;

(...)

estas mesmas circunstâncias servem para permitir a conclusão de que os arguidos A... e D..., ainda antes de se associarem aos arguidos F..., E... e G..., concluíram negócios com o propósito de não pagar as mercadorias, tudo conjugado com o facto de o arguido A..., nos seus contactos negociais, se apresentar como "Vitor de Sousa" e receber os clientes num hotel, aí recebendo muita da mercadoria fornecida, referindo muitas vezes que a mercadoria se destinava ao hotel, quando afinal era tudo para ser enviado para a Guiné - intenção que se manteve na posterior associação aos arguidos E..., F... e G...;

Como ficou provado, em obediência à projectada cessão de quotas inicialmente acordada entre os arguidos D... e A... e com vista à desresponsabilização destes perante os credores ( pela cessão de quotas, por um lado, pela cessação do contrato de trabalho do A..., por outro lado), mas com o intuito de prosseguirem aquela actividade de compra fraudulenta de mercadorias, aliciaram para o seu plano os arguidos F..., E... e G..., estes também com o intuito de participarem na partilha das mercadorias já recebidas ou a receber dos fornecedores ou do produto da venda das mesmas. E na sequência deste acordo e daquele plano, todos estes arguidos combinaram o que, em apertada síntese, se expõe: iriam providenciar pela constituição de uma sociedade «offshore», com o objectivo de a mesma vir a figurar como cessionária das quotas da sociedade "Empreendimentos Turísticos da Praia da Vieira, Lda", da qual seria procurador o arguido G..., para que este, em sua representação, celebrasse o contrato de cessão dessas quotas; enquanto se não fazia tal cessão de quotas far-se-ia, para baralhar os fornecedores, uma cessão de quotas intermédia, para os arguidos F... e E..., que seriam nomeados, transitoriamente e por um curto período de tempo, novos gerentes da "ETPV", sendo estes que passavam a assinar, como aceitantes, todas as letras e as respectivas reformas; as mercadorias, ou o produto da respectiva venda, seriam divididas entre eles, ficando parte delas em Portugal e a dividir por todos, e sendo parte delas exportada para a Guiné-Bissau, esta parte a ser partilhada pelos arguidos A... e G..., que ali as pretendiam vir a comercializar, fazendo seu o produto da respectiva venda; os arguidos D... e A... constituiriam, na Guiné-Bissau, uma sociedade, em nome da qual pudessem ser exportadas as mercadorias a enviar para tal país, e quando se efectuasse a cessão de quotas da "ETPV" para a sociedade «offshore» seriam também cedidas a esta as quotas da sociedade a constituir na Guiné-Bissau, ficando aquela "offshore" dona da totalidade das mercadorias entretanto compradas em nome da "ETPV".

Agindo com aquele propósito de não pagar as mercadorias os arguidos, de comum acordo, fizeram os negócios referidos nos artigos 354º e sgs. da acusação, dividindo entre si o produto da venda das mercadorias, muitas das quais exportadas para a Guiné, não tendo pago o respectivo preço.

No intervalo destes actos os arguidos diligenciaram pela constituição, em Gibraltar, da sociedade «offshore», constituída em 16/3/98, por escritura pública de 27/5/98, os arguidos F... e E... declararam ceder à «offshore» as quotas da "ETPV" e aí renunciaram à gerência, com a finalidade de, a partir de então, se desresponsabilizarem perante os fornecedores das mercadorias, alegando que já nada tinham a ver com a referida sociedade, e a partir de então a "ETPV" ficou sem qualquer gerência ( apesar de, como se viu, o útimo negócio da "ETPV" ter sido celebrado em finais de Maio de 1998 ) (...)

Em síntese os arguidos formaram uma união de vontades para a prática de crimes, numa actuação conjugada e concertada, criaram uma estrutura minimamente organizada, com papéis distribuídos a cada um deles, por forma a, pelo menos temporariamente, "fazerem vida", e todos eles aderiram a tal projecto.

(...) é indiferente que os arguidos tenham praticado alguns crimes em seu nome e no seu próprio interesse, e não apenas no interesse do grupo, a verdade é que eles se associaram e formaram uma organização com um projecto bem definido, pelo que desta forma criaram uma estrutura ( ainda que elementar) muito mais apta a cometer crimes do que agindo individualmente ou em conjunto improvisado e com possibilidades de mais eficácia na execução e de uma defesa mais reforçada de cada um.

O facto de os arguidos usarem o nome de uma sociedade comercial e pretenderem a aquisição futura de quotas da mesma manifesta desde logo a existência do grupo, organização ou associação, no sentido de reunião de pessoas com o mesmo propósito de delinquência por intermédio dela ( neste sentido: Ac ST J, de 26-5-93, CJ/ST J, ano I, t. 11, p. 237; Ac ST J, de 26-2- 1986 BMJ, 354.°- 334; Ac STJ, de 23-4-1986, BMJ, 356.°,136; Ac STJ, de 3-5-1992, CJ., 3.°,15; Ac STJ, de 9-2-95, CJ/STJ,anolll,t.l,p.198).

(...)

Alegam os recorrentes citando o Professor Figueiredo Dias que: ".. .não basta à existência de uma "associação", por menos estruturada que ela possa ser, o mero acordo ou a decisão conjunta de uma pluralidade de pessoas com vista à prática de crimes sob pena de irremediável confusão entre o tipo de associações criminosas e a figura da co-autoria. Igualmente claro é, no outro extremo, que sendo a "Associação" equiparada tipicamente a "grupo" ou "organização", aquele conceito não é utilizado numa acepção técnico- juridica do ente colectivo, ou sequer que ele surja como referência dum património autónomo."

Ora, no caso dos autos verifica-se que os arguidos A... e D..., primeiro, e os arguidos A..., D..., F..., E... e G..., depois, formaram um grupo que conscientemente resolve utilizar e perverter os institutos jurídicos que reconhecem personalidade às sociedades comerciais e as regras do comércio jurídico, nomeadamente as compras a crédito garantidas por letras, para se apropriarem como se apropriaram de mercadorias de valor superior a 220 mil contos ao fim de 8 meses de actividade.

A principal especificidade do modo de actuação do grupo reside na perversão do objecto social da sociedade comercial "Empreendimentos Turísticos Praia da Vieira, L.da." (que abreviadamente se designa por EPTV) - a quem eram imputadas todas as compras de mercadoria a crédito, mercadorias que foram parcialmente exportadas, desaparecendo as restantes, procedendo a várias cessões de quotas, até deixar a EPTV sem gerência, sendo as suas quotas detidas por uma empresa "Oft Shore", cujos sócios são, por definição desconhecidos»»».

Do mesmo modo, no que se refere ao complexo de factos integrados no 2º Crime de associação criminosa – empresas "Auto Duarte & Duarte" / "Azivias" / “Alequip" / "Tesvic" / “Socompur”, a sentença recorrida fundamenta a condenação da seguinte forma:

«««« Ficou provado, em essência e com interesse, que os arguidos A... e B... se propuseram prometer comprar as quotas da sociedade "Auto Duarte e Duarte, L.da", e usando o nome de tal entidade, efectuar contactos com um grande número de empresas, negociando com estas a aquisição muito rápida de mercadorias, em nome daquela sociedade, a fim de que tais empresas aceitassem fornecer-lhes, a crédito, as mercadorias por eles encomendadas e que eles não pretendiam vir a pagar (de preferência titulando o preço a pagar com letras aceites com vencimento a 90 ou mais dias a contar da entrega da mercadoria) ; nos contactos que efectuassem com os fornecedores para negociar a compra de mercadorias, quer antes, quer após a escritura de cessão de quotas, os arguidos e as demais pessoas que eles recrutassem para execução do plano utilizariam nomes falsos, ou nomes truncados, nunca facultando a sua identidade completa, quer para evitarem que os fornecedores soubessem a verdadeira identidade das pessoas, quer para impedirem ou dificultarem, mais tarde, a sua identificação; uma vez convencida a generalidade dessas empresas de que estavam a negociar com uma sociedade e uma gerência idóneas e cumpridoras dos compromissos assumidos, lavrar-se-ia, subsequentemente, a escritura pública de cessão de quotas, nela figurando, como cessionárias, as pessoas que os arguidos A... e B... para o efeito arranjariam, e seriam então os «novos sócios-gerentes» (as pessoas arranjadas pelos arguidos A... e B... para «darem o nome») a assinar as letras respectivas, em representação da sociedade Auto Duarte & Duarte, L.da, seguindo as instruções daqueles arguidos, letras essas a entregar aos fornecedores contra a entrega, por estes, das mercadorias; na posse das mercadorias, os arguidos apropriar-se-iam das mesmas, sem procederem ao respectivo pagamento aos fornecedores nas datas de vencimento dos créditos, titulados ou não por letras, exportando rapidamente uma parte significativa dessas mercadorias para a Guiné-Bissau, onde o arguido A... as pretendia vir a comercializar, entregando parte delas, ou o respectivo valor, aos cedentes das quotas (para pagamento do preço da cessão) e procedendo à venda rápida da parte restante em Portugal, a preços, se necessário, muito abaixo do preço de custo constante da factura, para se apropriarem do produto dessa venda e o dividirem com os restantes membros que recrutassem para com eles colaborarem na execução do projecto;

E foi dando execução a tal plano que entre cedentes e cessionários ficou estipulado que a cessão das quotas far-se-ia pelo preço global de 50.000.000$00 e que, deduzidos os honorários do advogado ( arguido K... ), a parte remanescente do preço seria paga em quatro prestações de 11.875.000$, a pagar nos quatro meses seguintes; seria celebrado entre as partes um contrato- promessa de cessão de quotas, a partir do qual os promitentes-cessionários ficariam, de facto, a explorar a actividade comercial da "Auto Duarte" até ao momento em que fosse lavrada a escritura pública de cessão porque os arguidos A... e B... não queriam «dar a cara» nesses instrumentos, apresentariam outras pessoas que figurariam, no contrato-promessa e na escritura pública, como cessionários das quotas, embora assumindo eles, arguidos A... e B..., em conjunto, a gerência efectiva dos negócios a celebrar em nome da sociedade, e em concretização da projectada cessão os arguidos A... e B... indicaram como sócios um Sérgio Simões e o arguido C... .

Ora, os arguidos A... e B... (mais tarde acompanhados pelo Carlos Guerreiro e pelos arguidos C..., J..., I...), efectuaram contactos com um grande número de empresas, negociando com estas a aquisição muito rápida de mercadorias, em nome daquela sociedade, fornecendo os elementos comerciais e bancários da mesma, a fim de que tais empresas aceitassem fornecer-lhes, a crédito, as mercadorias por eles encomendadas e que eles não pretendiam vir a pagar (de preferência titulando o preço a pagar com letras aceites com vencimento a 90 ou mais dias a contar da entrega da mercadoria), com o propósito de não pagarem os artigos que viessem a adquirir, sabendo que assim prejudicavam patrimonialmente as empresas fornecedoras.

Os crimes praticados foram em associação dado que os arguidos, para melhor execução dos crimes, aproveitaram a figura institucional de uma sociedade comercial e o nome comercial da "Auto Duarte" e dos seus sócios. Montaram uma estrutura material adequada à realização de negócios (como o arrendamento de um escritório, ocupação de um armazém, recrutamento de pessoal, aquisição de uma viatura para o arguido B...).

E tinham tarefas distribuídas

Por vezes os arguidos, aproveitando a estrutura da organização agiram em sub-grupos e no seu interesse particular ( veja-se os casos da "Alequip", arguido A... e C... ; da "Tesvic", arguidos B..., I... e J...; "Socompur”, arguidos A... e C... ), mas como dissemos é indiferente que os arguidos tenham praticado alguns crimes em seu nome e no seu próprio interesse, e não apenas no interesse do grupo.

O que é exacto e suficiente é que eles se associaram e formaram uma organização com um projecto bem definido, pelo que desta forma criaram uma estrutura (ainda que elementar) muito mais apta a cometer crimes do que agindo individualmente ou em conjunto improvisado e com possibilidades de mais eficácia na execução e de uma defesa mais reforçada de cada um.

O facto de os arguidos usarem todos o nome de uma sociedade comercial e de terem arrendado um escritório e quererem recrutar gente para com eles trabalhar (empregadas de escritório, recrutaram dois angariadores de negócios, etc ) manifesta desde logo a existência do grupo, organização ou associação, no sentido de reunião de pessoas com o mesmo propósito de delinquência por intermédio dela. Nesta associação criminosa participaram, ainda que em momentos diversos e nem sempre em harmonia, os arguidos A..., B..., J... e I..., pois todos tinham consciência de que havia uma organização e sabiam qual o plano e todos aderiram ao projecto

Na execução do seu plano os arguidos celebraram ou tentaram celebrar negócios com muitas empresas e pessoas, pretendendo assim adquirir mercadorias, a crédito, que não seriam pagas aos fornecedores aquando do vencimento da divida ou das letras; para o efeito utilizaram nomes falsos, ou nomes truncados, nunca facultando a sua identidade completa, quer para evitarem que os fornecedores soubessem a verdadeira identidade das pessoas, quer para impedirem ou dificultarem, mais tarde, a sua identificação.

(...) O facto de os arguidos usarem aqueles artifícios e ocultarem que não tinha condições financeiras para pagar as mercadorias integra aquela figura da burla por actos concludentes. « Na órbita de conclusão de um contrato, se uma das partes se abstiver de declarar que não se encontra em condições de o cumprir, comete burla por actos concludentes, uma vez que a celebração de um negócio leva implicada a afirmação de que qualquer dos intervenientes tem a possibilidade de satisfazer as obrigações dele emergentes » (Almeida Costa, Comentário Conimbricence do CPenal, 11, p. 304) .

A eventual ingenuidade de alguns fornecedores não exclui a ilicitude, pois que, citando mais uma vez Almeida Costa « não se compreende por que razão o descuido ou a leviandade do sujeito passivo deva excluir a relevância jurídico penal de uma conduta que, em todo o caso, consubstancia uma efectiva lesão do património ... só esta perspectiva se harmoniza com o entendimento, hoje pacifico, de que a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente se afere tomando em consideração as características concretas do burlado ( vg. mercê de fragilidade intelectual, de inexperiência ou de especiais relações de confiança) » .

(...)

Relativamente à "Socompur” ficou provado, com interesse, que os arguidos A... e C... formularam o plano de fazer compras a diversas empresas por eles contactadas, usando o nome de uma empresa inactiva ( "Socompur' ), e sem que se verificasse qualquer cessão de quotas, com intenção de não pagar as mercadorias, e na sequência de tal propósito arrendaram umas instalações que pudessem funcionar, perante os fornecedores das mercadorias, como suposta sede da dita empresa, contrataram duas empregadas, iniciaram então os contactos com outras empresas fazendo-se passar por membros do «departamento comercial» desta sociedade, indicando, como sendo a sede de tal sociedade, as instalações.

Enviaram faxes assinados umas vezes pelo arguido C... , por acordo com o arguido A..., fazendo-se passar por membro do “departamento comercial” da “Socompur” outras vezes era o arguido A..., por acordo com aquele, que as assinava, utilizando o nome de Eduardo Lima, e fazendo-se também passar por membro do «departamento comercial» da "Socompur". Pretendiam adquirir as mercadorias sem pagamento e exportá-Ias de seguida para a Guiné, propunham naquelas comunicações como condição para a compra das mercadorias que estas fossem pagas a crédito, no prazo de 90 dias, e de preferência mediante entrega de letras aceites e com vencimento a 90 ou mais dias e projectavam, aquando do recebimento das mercadorias, entregar aos fornecedores letras com o aceite em nome da "Socompur" por eles forjado, à revelia dos sócios e da gerência de tal sociedade.

Esta ligação entre os arguidos A... e C... continua, afinal, a anterior associação no âmbito da "Auto Duarte" (sub-grupo), apenas com menos protagonistas e com um figurino diferente (uma outra empresa como adquirente, novas instalações), mas obedecendo ao mesmo plano de burlas e de continuação de exportação de mercadorias para a Guiné

(...)

Os arguidos A..., B..., C..., J..., I..., formaram um grupo que conscientemente resolveu utilizar e perverter os institutos jurídicos que reconhecem personalidade às sociedades comerciais e as regras do comércio jurídico, nomeadamente as compras a crédito garantidas por letras, para se apropriarem como se apropriaram de mercadorias.

A principal especificidade do modo de actuação do grupo reside na perversão do objecto social das sociedades comerciais que dominavam ou simulavam dominar, a quem eram imputadas todas as compras de mercadoria a crédito, mercadorias, procedendo a várias cessões de quotas.

O grupo usou as sociedades comerciais como centros imputação jurídica das acções de que vieram a beneficiar, da ficção jurídica que reconhece personalidade às sociedades para evitar não só a sua responsabilização civil, mas também a sua responsabilização criminal

Quem utilizou como centro autónomo de imputação fáctica (e jurídica) das acções prosseguidas em nome e no interesse do conjunto a estrutura da Auto Duarte, Alequip, Socumpur, criou uma organização que pelo simples facto de existir representa uma ameaça tão intolerável ao regular comércio jurídico que se reputa necessário e justo reprimi-la.

Mal seria que um grupo de arguidos que conscientemente usaram e abusaram da estrutura duma sociedade comercial, tirando ilegítimo benefício da concessão de personalidade jurídica às sociedades comerciais, conseguisse ao mesmo tempo não ver reconhecido o seu carácter de "associação".»»»

A argumentação aduzida, para além de não serem abalada pela fundamentação dos recursos, encontra-se criteriosamente fundamentada em consonância com o critério legal referido, com base ainda na doutrina e jurisprudência, por isso se sufragando e reproduzindo.

Assim a organização radica na própria utilização das estrutura societárias formais, utilizando tais “firmas” como fachada adequada a criar a aparência de substracto socilógico e de mercado, para conseguir, num universo onde o nome comercial tem relevo, que empresas comerciais procedessem ao fornecimento de mercadorias que, de antemão, não pretendiam pagar. Fornecimentos que através do “esvaziamento” material dessa mesma aparência, nunca seriam, como não foram, pagos.

Demonstrando-se ainda na “complexidade” das estruturas criadas - não só as sociedade em si, como as sessões de quotas e criação da “Of Shore”, no necessário acompanhamento jurídico, o que evidencia uma complexidade assinalável, adequada a fazer com que os credores não pudessem identificar, materialmente e na prática, o devedor, depois de entregue a mercadoria. Bem como na quantidade de pessoas envolvidas (para além dos próprios arguidos, outras pessoas contratadas), na continuação da actividade independentemente das pessoas concretas de cada um dos vários intervenientes, formando por vezes sub-grupos, o que evidencia que o complexo organizacional permanece independentemente das pessoas concretas que actuam sob o respectivo manto.

Todos os referidos arguidos actuaram voluntária, livre e conscientemente, a coberto das mencionadas estruturas em que se associaram para se apoderarem de mercadorias sem as pagar, tendo criado e utilizado as ditas estruturas societárias ainda para se eximirem a qualquer responsabilidade civil e criminal pelos actos correspondentes, que eram alijadas sobre a aparência das pessoas jurídicas referidas.

Aliás, como refere mais uma vez o acórdão recorrido, para a existência da associação não obsta o facto de se tratar de um plano com apenas duas pessoas, visto que o art. 299.0 não exige um número superior. Aliás, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 9-2-95 ( CJ/ST J, ano 111, t. I, p. 198 ) aceitou expressamente a existência de associação num caso em que apenas duas pessoas se associaram durante algum tempo para cometerem burlas (..) Existe concurso real entre os crimes levados a cabo pelos associados --- por todos, por algum ou alguns dos seus membros --- e o crime de associação, pois que estes dois tipos diferem nas suas estruturas objectiva e e subjectiva e na diversidade de interesses que visam tutelar ( Ac ST J, de 22-6-88, BMJ, 378.°-355 ; Ac ST J, de 1-7-93, BMJ, 429.° - 662 ; Ac ST J, de 5-4-95, BMJ, 446.°- 7; Ac ST J, de 26-5-93, BMJ, 427.° - 278 ; Ac ST J, de 1-7-93, BMJ, 429.° - 675 ; Manuel Cavaleiro de Ferreira, Liçôes de Dto Penal, v. 1, 1992, p. 502 ss ; Prot. Figueiredo Dias, Comentário Coninbricense do CPenal, parte especial, t. 11, p. 1173 ), não sendo inconstitucional esta dupla punição porque « sendo distintos os bens juridicos que as respectivas normas visam tutelar, verifica-se o concurso real entre o crime de associação criminosa e os crimes da organização, pelo que não é assim violado o principio" ne bis in idem" » ( AC. T. Constitucional, de 10-299, BMJ, 484)”.

Acresce que não obsta à verificação do crime de associação criminosa a circunstância de alguns dos crimes projectados nesse âmbito não terem sido consumados, dado que o fica preenchido com mero “promover ou fundar grupo cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de crimes”, sem exigir a verificação do resultado ou prática efectiva dos crimes projectados.

Assim o arguido A... cometeu dois crimes de associação criminosa (um a que abreviadamente se identifica na actuação da “ETPV” e outro no âmbito da “AD”) uma vez que formou as duas organizações em circunstâncias distintas, com intervalo de anos e com pessoas distintas em cada um dos casos e as utilizou para o efeito pretendido.

No primeiro participaram os arguidos D..., E..., G... e F...;

No segundo os arguidos B..., C..., J... e I....

2. Crimes de burla / tentativa / actos preparatórios – actos de execução

A questão é suscitada nos recursos dos arguidos B..., A... e C..., com particular incidência no que toca à actuação no âmbito das empresas “Auto- Duarte e “Socompur”.

Argumenta-se, neste âmbito, em síntese, que: considerar que um acto é já executório porque é de natureza a fazer esperar que lhe sigam actos típicos do crime, é dar como provado o que falta provar, ou seja que a tal acto se seguiriam outros, sabendo-se, neste caso, que tais actos nunca ocorreram; no acórdão recorrido vêm tipificados como integradores de vários crimes de burla na forma tentada, actos como a simples remessa de um fax ou telecópia nos quais se perguntava quais as mercadorias que transaccionavam ou manifestando interesse na aquisição de mercadorias; também vêm qualificados como tentativa, meras encomendas de mercadorias, sem que porém, alguma vez os arguidos tenham ido buscar ou recebido a mercadoria ou essa mercadoria lhes tenha sido enviada.

Em função da natureza fragmentária do direito penal e do princípio nullum crimen sine lege, o tipo legal de crime define determinadas condutas humanas que elege como puníveis por violadoras de bens jurídicos essenciais à vida em comunidade, garantindo que só os comportamentos subsumíveis a um tipo de crime previamente definido são puníveis.

Na forma comum do aparecimento da infracção criminal esta verifica-se com o preenchimento completo do tipo respectivo.

No entanto, até à consumação do crime, o chamado iter criminis passa por várias fases, desde o pensamento e decisão de o cometer, ao estudo do momento, preparação dos meios, escolha do modo e o tempo da sua execução, prática dos actos tendentes a realizá-lo, consumação.

Sendo o direito penal o direito do facto, não vai ao ponto de se intrometer nas intenções ou nos pensamentos. Sendo pacífico que o pensamento ou a mera decisão interior não releva para efeitos penais de punição – cogitatio non punitur.

Do mesmo modo, em princípio, os chamados actos preparatórios também não são puníveis – assim o estipula explicitamente, no nosso sistema, o art. 21º do C. Penal.

Estes (os chamados actos preparatórios) apenas excepcionalmente são ser puníveis, quando o próprio acto preparatório preenche, já de si, um tipo de crime autónomo ou quando o acto preparatório é punível em virtude de uma disposição especial – cfr. art. 21º in fine do C. P.. Assim sucede em situações particularmente graves, pondo em causa valores essenciais do Estado de Direito, havendo por isso necessidade de uma antecipação da intervenção jurídico- penal. – é o que acontece nos arts. 271º, 274º, 300º/5 e 344º do Código Penal.

Existem ainda formas imperfeitas do crime em que existe já uma vontade definida da prática de uma conduta tipificada como crime, mais ou menos exteriorizada em actos, sem que o resultado final chegue porém a verificar-se.

Assim a tentativa, tal como a comparticipação, constituem causas de extensão da tipicidade - Cfr. A. Calderan/Clochan, Derecho Penal, Ed. Bosch, Tomo I, p. 280.

O Código Penal vigente faz um tratamento unitário da tentativa, não distinguindo, como o fazia o Código de 1886, entre tentativa e frustração ou tentativa acabada (para que bastava um único acto de execução) e inacabada (que exigia a prática de todos os actos de execução) ainda que o resultado não se verificasse.

Os actos relevantes para efeito de tentativa não são definidas pelo tipo legal de crime, mas resultam de normas constantes da parte geral do C. Penal.

Postula o art. 22º, n.º1 do Código Penal que: há tentativa quando o agente pratica actos de execução de um crime, que decidiu cometer, que não se consuma por motivos estranhos ao agente.

Constitui assim tarefa essencial, na definição da tentativa, no confronto do art. 21º e do n.º1 do art. 22º, a destrinça entre actos preparatórios e actos de execução, uma vez que só estes últimos relevam, para efeito da tentativa.

A forma de distinção entre os actos de execução e os meros actos preparatórios varia entre as chamadas teorias subjectivas e as teorias objectivas mais ou menos puras.

Para as teorias subjectivas, a resolução criminosa constitui o elemento essencial do conceito de tentativa, sendo o começo da execução definido em função da vontade, constituindo acto de execução toda a conduta que demonstre uma vontade séria e definitiva de praticar o crime. Enquanto as teorias objectivas apontam como critério decisivo para definir os actos de execução a sua inscrição num tipo legal de crime ou a “realização do núcleo típico”, ou ainda aqueles que, de acordo com a causalidade adequada são idóneos a produzir o resultado do crime.

Seguindo-se na actualidade, amplamente, a teoria individual objectiva, que toma como ponto de partida a necessidade de combinar critérios objectivos (formais/tipo ou proximidade do tipo) e subjectivos ou individuais (representação do autor), negando-se em geral a tentativa de circunstâncias, por forma a que os actos de realização do tipo básico ou se verificam, ou não se verificam – Cfr. A. Calderon/J.A. Clochan, ob. cit., p. 283-285.

Os actos preparatórios, embora a lei se lhes refira no art. 21º do C. Penal, não são, porém, definidos expressamente pela lei. A lei apenas define os “actos de execução”, estes sim relevantes para efeito de punição da tentativa – cfr. art. 22º do CP.

Assim, o actos preparatórios são definidos por argumento a contrario sensu: serão todos aqueles que, embora conexionados com a prática do crime que o agente já decidiu cometer, ainda não se enquadram no conceito de actos de execução definidos pelo art. 22º, n.º2 do Código Penal.

Nos termos do referido preceito são actos de execução:

os actos que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime;

os que forem idóneos para produzir o resultado típico; e

os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.

De acordo com as Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, o nº 1 deste artigo 22º, teve como fonte principal o art. 21º do Projecto da Parte Geral do Código Penal de 1963, discutido na 10ª sessão da Comissão Revisora. Salientando-se o adicionamento da expressão “que decidiu cometer”, que não figurava no projecto aprovado em 1964.

Fazendo agora a intenção parte da própria estrutura da tentativa, bem como a definição dos actos de execução em função do tipo de crime e da causalidade adequada, daí resulta a adopção de uma solução ou individual objectiva, nos termos referidos.

Na vigência do Código de 1886 discutia-se se podia tomar-se em conta a personalidade do agente na ponderação da adequação ou previsibilidade da acção para produzir o resultado típico, circunstância que era aceite pela generalidade da doutrina.

Não tendo o texto legal tomado posição, é de aceitar este elemento como coadjuvante na formação do juízo de previsibilidade, suposto um mínimo de factos a que seja de prever se sigam condutas típicas, já que a lei não vinculou de qualquer modo o interprete e parte substancial da doutrina assim o entende - cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Anot. 15ª ed., p. 120.

Mas sempre, para aplicar as duas últimas alíneas do n.º2 do art. 22, terá que se apelar à teoria da causalidade adequada, para saber se o acto, em geral e abstracto e tendo em conta o conhecimento do agente, faz esperar a consumação do ilícito - Ac . RL, de 17/4/85; C.J., X, tomo 2, 167.

Em função do que acaba se ser referido importa ter presentes os elementos típicos do crime de burla para se poder avaliar se os factos provados e tidos como actos de execução pelo Acórdão recorrido, na verdade o são á luz do critério legal e sua aplicação ao caso concreto.

Pratica o crime de burla “Quem, com intenção de obter enriquecimento ilegítimo para si ou para terceiro por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial...”.

Trata-se de um crime material ou de resultado (crime de dano) que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro e em que o bem jurídico protegido consiste no o património globalmente considerado – cfr. Comentário Conimbricence ao C. Penal, tomo 2, anotação ao art. 217º, p. 275/276.

Constituindo um crime complexo que, para certos autores – v. FERNANDA PALMA, Rui Carlos Pereira na R.F.D.L., vol. XXXV, 1994 - comporta um triplo nexo de causalidade.

Falando outros autores mesmo num quadruplo nexo de causalidade – entre os vários elementos referidos referidos no tipo – cfr. José António Barreiros e Beleza dos Santos, citados em anotação ao art. 217º do C. Conimbricence.

Enquanto que para outros – cfr. A.M. Almeida Costa, no mesmo Comentário Conimbricence, p. 293 - a consumação da burla passa por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes à diminuição do seu património ou de terceiro e depois entre os ultimos e a efectiva verificação do prejuízo, sem que haja necessidade de recorrer à figura de “sub-nexos causais”.

Merecendo a «astúcia», aliás, uma consideração muito atenta, neste crime, para compreender a essência do ilícito típico da burla no Código de 1982-95. A astúcia equivale a «manha», ou «ardil». Requer, na sugestiva linguagem de Nelson Hungria o enredo subtil, a trapaça, a mistificação, o embuste.

A exigência da astúcia restringe o âmbito da incriminação. Sem astúcia não pode haver burla, nem sequer na forma tentada, a astúcia é elemento objectivo do tipo. Não bastando que a atitude psicológica do agente seja astuciosa: a conduta exterior deverá revelar astúcia, para efeito do preenchimento do tipo. Isto resulta de a astúcia ser referida, no art. 217º, ao modo de ser objectivo da acção.

Como resulta da simples leitura do tipo tem que haver relação de causa/efeito, entre a astúcia e o erro, entre o erro e a prática de factos pela própria vítima e entre esses actos da vítima e o prejuízo. Decomponham-se ou não os vários elementos exigidos em sucessivos nexos causais, o que releva é que exista o nexo de causalidade adequada entre a “mise-en-cène” levada a cabo pelo agente e o acto de disposição de terceiro que esse acto de disposição causem efectivo prejuízo no património alheio.

Exige-se que o erro seja consequência do engano, o acto de disposição consequência do erro e o prejuízo consequência do acto de disposição – cfr. Bajo Fernandez Manual de Derecho Penal, parte especial, p. 175.

No caso dos autos vêm qualificados como tentativas de burla factos que se resumem, no essencial, ao envio de cartas/fax propondo condições de negócio que nunca foi aceite pelos destinatários.

Assim, tendo por referência o “Quadro II” incorporado na decisão recorrida (p. 457 do acórdão) onde é feita a correspondência entre a matéria de facto e os crimes que lhe correspondem, verifica-se que os factos descritos numa única quadrícula integram 293 crimes de burla pp no art. 218º,2,b), na forma tentada, para cada um dos arguidos A... e B... e 292 para o arguido C....

Os factos correspondentes são os descritos na matéria de facto sob os n.ºs 715 a 728.

Ora, de tal matéria, em breve síntese, verifica-se que em tais factos (descritos essencialmente nos arts. 721 a 728) nunca chegou a haver o acordo dos visados para o fornecimento de mercadorias. Tratou-se de meras “comunicações”, por fax seguidas de “negociações” não especificadas, ainda que tais comunicações tenham sido efectuadas por fax transmitidos em nome da empresa, à revelia da respectiva gerência.

Por outro lado (p. 466 do acórdão), também numa única quadrícula vêm indicados os factos que são qualificados como integrando 224 crimes de burla pp no art. 218º,2,a) e b), na forma tentada, mais 189 crimes de burla pp no art. 218º,2,a) e b), na forma tentada, para cada um dos arguidos Iharco e C... (total de 413 crimes).

Os factos que integram os referidos crimes encontram-se descriminados nos arts. 1573 a 1623 da matéria provada.

Tais factos consistem, em resumo, em que: os arguidos, vendo que a “Auto Duarte” e a “Alequip” já não funcionavam como meio de levar a cabo as burlas, decidiram socorrer-se, para o mesmo efeito da “Socompur”. Contactaram os sócios, acordaram adquirir-lhes as respectivas quotas, e, sem que tal se tenha verificado, arrendaram instalações, contrataram empregados, tudo para criar a aparência necessária a conseguir o fornecimento de mercadorias sem as pagar. Começaram a contactar fornecedores a quem enviaram “fax” usando o nome de Socompur.

Mas em todos estes casos, nunca chegou a haver acordo dos fornecedores contactados.

As razões da falta de acordo das empresas visadas encontram-se descriminadas no art. 1615 da matéria provada: ou porque não aceitaram vender a crédito, ou porque exijam garantias bancárias, ou porque desconfiados tiraram informações e recusaram; ou até porque não fabricavam o tipo de produtos pretendidos.

Razões de falta de acordo que estão indicadas de forma genérica, não sendo descriminada, caso a caso, a razão da falta de acordo no fornecimento das mercadorias

Trata-se assim de um total de 413 “encomendas” em que os visados nunca chegaram a aceder. Por qualquer uma das várias razões indicadas, sem que se saiba, qual, em cada caso concreto.

O que, por aplicação do princípio in dubio pro reo sempre podia ser a não comercialização dos produtos, uma das causas genéricas indicadas na matéria de facto provada.

Em todos os referidos casos não chegou a haver “erro”, ou sequer o “convencimento” da vítima para a prática do acto causador do prejuízo.

Nem se refere que os simples actos praticados fossem adequados, ou por qualquer razão fizessem supor, em termos de causalidade adequada, que eram adequados, só por si, para conseguir os fornecimentos pretendidos ou o acordo dos fornecedores para o fornecimento.

Não se trata assim de actos que em si e de per si “preencham um elemento constitutivo do crime” - al. a) do art. 22º.

Nem de actos que revelem, por si, perigosidade de lesão do bem jurídico - al. b) do mesmo preceito. Com efeito de uma simples proposta de negócio não resulta qualquer perigo de lesão do património alheio, nomeadamente quando para o efeito é indispensável a aceitação da vítima.

Resta assim a inclusão de tais condutas na al. c).

Neste enquadramento importa ter presente que os casos que nela podem ser incluídos hão-se ser muito próximos dos descritos nas als. a) e b), dada a inserção sistemática no mesmo preceito. Não podendo, através desta alínea, desde logo ser punidos os simples actos preparatórios, como tal autonomizados pela lei e pela doutrina e expressamente referidos como não punidos pela lei.

Com efeito, numa certa perspectiva, a qualquer acto preparatório (v. g. aquisição da pistola para matar, a aquisição do veneno e a subsequente confecção do prato envenenado), suposto que o agente já os praticou com vista à realização do crime, nada ocorrendo que revogue a resolução criminosa já tomada, seguir-se-á a consumação do crime que através deles se pretende levar a cabo.

Esta alínea c) deve ser interpretada de acordo com o princípio da causalidade adequada, como resulta claramente do respectivo texto “os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores”.

Devendo ser Apreciada na base de um critério de idoneidade, normalidade ou, ou na base do plano concreto de realização – cfr. F. Dias, sumários de Direito Penal, p. 21.

Se o nexo de causalidade adequada é fácil de caracterizar nos crimes de execução instantânea (v.g. matar, furtar, que resultam do acto de disparar o tiro, de atingir com a facada em zona vital, do acto se apoderar), nos crimes complexos exige particular atenção.

Designadamente no crime de burla, em que se exige que o nexo de causalidade se estenda aos sucessivos elementos, nos termos supra referidos, até ao resultado final – causar prejuízo.

Tanto mais que o crime de burla exige a “colaboração da vítima”, obrigando a que o acto praticado seja adequado a conseguir a sua colaboração de que depende o acto de disposição que irá causar o prejuízo.

No processo causal os actos objectivos já praticados pelo agente com a finalidade que prossegue, susceptíveis de integrar a tentativa, hão-de ser, já de si, adequados a causar o resultado final.

Assim constituirá tentativa a confecção, por uma mulher, do prato envenenado para o marido, se ela o deixar no local onde sabe que o marido irá servir-se. Mas já constitui mero acto preparatório a confecção do prato com veneno, se o prato apenas tiver que lhe ser servido mais tarde – exemplo dado por F. Dias, Sumários de Direito Penal, p. 21.

Por outras palavras o nexo de causalidade adequada deve estender-se a todos os elementos do tipo, no caso da burla, até ao acto essencial para causar o prejuízo - ainda que, naturalmente este não venha a acontecer por circunstâncias alheias à vontade do agente, pois que em tal caso haveria crime consumado. Porque o crime de burla constitui um crime de execução vinculada em que o legislador descreve o modo de ser objectivo da acção, atendendo à energia, ao engenho ou à persistência criminosa que ele revela.

Como refere IESCHECK (Tratado de Derecho Penal, Parte General, Tradução de Miguel Cardanete, 5ª ed., Granada, 2002, pág. 559): “Em caso de crimes integrados por vários actos... na execução parcial do tipo a «imediata postura em marcha» deve ser referida ao tipo global”.

“A postura em marcha do tipo da tentativa deve acercar-se, até ao limite mesmo da acção típica ... o comportamento formalmente atípico deve estar tão estreitamente vinculado com a verdadeira acção de execução que possa passar-se à fase decisiva do facto sem necessidade de passos intermédios essenciais” – cfr. autor e ob. acabados de citar, p. 557.

Focando especificamente o crime de burla, em ensinamento que tem perfeito cabimento no caso dos autos, refere ainda o mesmo autor (ob. cit., p. 559/560):

“Constitui mero acto de preparação a acção enganosa através da qual somente se cria a base da confiança, que não determina por si mesmo a deslocação patrimonial” ... “a tentativa de burla perante um agente imobiliário não é determinada pela simulação de disposição em pagar por parte do cliente, mas apenas pela postura em marcha da conclusão do negócio que há-de fazer surgir a obrigação de pagamento”.

De acordo com o entendimento desenvolvido tal não verifica nos casos de mera remessa de mensagens (fax) a propor aquisição de mercadoria que não passaram daí, sem que resulte da matéria provada qualquer referência à receptividade, em concreto, por parte dos visados. Ou de onde possa resultar a adequação do simples contacto/proposta para obter o acordo dos destinatários da proposta. Sem que resulte da matéria provada que – por qualquer outra circunstância do caso, do conhecimento específico das pessoas visadas por parte dos arguidos, por já ter resultado anteriormente com a mesma vítima - essa simples remessa fosse já de si adequada a causar o prejuízo ou a convencer os destinatários a fornecer a mercadoria.

Ainda que se admita que a personalidade dos agentes evidenciadas no conjunto da matéria de facto provada, dentro do entendimento acima referido, fizesse supor que da sua banda a consumação se seguiria, como sucedeu em outros casos, existe, nesta parte, da matéria de facto provada, um total vazio sobre a adequação dos factos já praticados para provocar o prejuízo ou o consentimento das vítimas, acto essencial para o desencadear desse prejuízo.

Entre os actos praticados e o resultado final falta ainda um “passo intermédio” essencial, prévio e essencial para a causação do prejuízo – o convencimento da vítima ou a adequação do acto praticado para o conseguir, apenas não se verificando o prejuízo final, para que já foi produzido o passo essencial, por circunstâncias alheias à vontade dos agentes.

Pelo que se conclui, em conformidade, que os factos descritos na matéria de facto sob os n.ºs 715 a 728, não passam de actos preparatórios, sendo de revogar a correspondente condenação por 293 crimes de burla pp no art. 218º, 2, b), na forma tentada, por que foram condenados cada um dos arguidos A... e B... e por 292 crimes idênticos por que foi condenado o arguido C....

Bem como os 224 crimes de burla pp no art. 218º, 2, a) e b), na forma tentada, mais 189 crimes de burla pp no art. 218º, 2, b), na forma tentada, por que foram condenados cada um dos arguidos IIharco e C... (total de 413 crimes) a que se reportam os factos descritos nos arts. 1573 a 1623 da matéria provada.

Já no que concerne aos restantes factos qualificados como crimes de burla na forma tentada, havendo actos que ultrapassaram a simples encomenda, resultando da matéria provada que, naquelas circunstâncias concretas, a actuação dos arguidos era adequada a causar o resultado típico e tal resultado só não se verificou por razões de todo estranhas à vontade dos agentes, não se encontra fundamento para alterar o decidido, sem prejuízo da decisão a tomar sobre se integram num único crime ou numa continuação criminosa.

3. Crime continuado / concurso de crimes / nulidade da sentença atrás deixada em aberto

O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente – cfr. art. 30º do C. Penal.

Como ensina EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, II vol., 202, quando diversas condutas violam o mesmo tipo de crime, o número de crimes define-se pelo número de resoluções, sendo o critério temporal fundamental para se apurar se existiu uma ou mais resoluções a presidir aos vários actos.

No entanto tal não se verifica quando a disposição legal violada protege bens jurídicos eminentemente pessoais, como a vida, a honra, a integridade física, que não se podem desligar da personalidade e apenas podem ser violados na pessoa que os cria com o só existir – cfr. EDUARDO CORREIA, Unidade e Pluralidade de Infracções, Almedina, ed. de 1983, p. 123. Em tal caso, os tipos legais desdobram-se em tantos outros quantos os possíveis indivíduos aos quais se estende a protecção da lei – Ob. cit., p. 123.

Subsiste todavia a questão de saber se estamos perante tantos crimes quantas as pessoas lesadas, ou antes perante um crime na forma continuada.

Com efeito estipula o nº2 do citado art. 30º que constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

O crime continuado pressupões assim precisamente a existência de diversas resoluções criminosas, mas todas tomadas dentro de um quadro exterior que facilita de forma considerável o renovar dessas sucessivas resoluções.

Como escreve EDUARDO CORREIA na monografia consagrada ao tema – Teoria do Concurso em Direito Criminal, Colecção Teses, Almedina, 207 - “aquilo que na continuação criminosa arrasta o agente para a reiteração é precisamente o facto de, com a primeira conduta, se amolecerem e relaxarem as reacções morais ou jurídicas que o frenavam e inibiam”.

Tratando-se de uma situação externa em que existe uma disposição favorável das coisas, na medida em que mais ou menos arrasta e tenta o agente para o delito, diminuindo a liberdade de determinação do agente e, portanto, a intensidade da censura que se lhe pode dirigir, por não ter agido de outra maneira – cfr. ob. cit. 224.

Na procura de casos/padrão de situações exteriores que facilitam de forma acentuada a tomada de novas resoluções criminosas, subsumíveis ao crime continuado, o citado autos refere precisamente a circunstância em que “o agente é arrastado e solicitado para a prática das actividades sucessivas através de um certo estado de coisas criado pela primeira conduta ou por ele utilizado com sucesso” – cfr. ob. cit., p. 208.

Escreve mais uma vez EDUARDO CORREIA, Concurso cit., 246: “quando um delinquente se encontra de novo ante uma determinada situação que, convidando à realização de um certo crime, já uma vez foi por ele aproveitada com êxito, há-de, sem dúvida, sentir-se fortemente solicitado a reiterar a sua conduta criminosa e só muito dificilmente se manterá no caminho direito”.

Ora no caso, os crimes de burla foram praticados dentro de um padrão de actuação que se manteve sempre, no essencial – aquisição de mercadorias com intenção de não as pagar, convencendo os fornecedores com base no nome comercial de determinadas empresas e na aparência assim criada, de que os arguidos se serviam, sabendo de antemão de que tais firmas não tinham património ou consistência material que alguma vez lhes permitisse proceder ao pagamento.

Procedimento seguido sucessivamente porque ou tinha funcionado nos casos anteriores, sem problemas de maior para os arguidos.

A este respeito, incorrendo os arguidos nos crimes de associação criminosa a que se fez referência pode dizer-se que cada uma das duas organizações a que corresponde cada crime de associação criminosa, a própria “empresa” surge como instrumento montado e apto a funcionar sucessivamente.

De alguma forma tal situação assemelha-se, em termos do giro comercial, à do comerciante com “estabelecimento” montado ou aberto ao público, cuja actividade consiste no exercício do comércio perdendo autonomia os actos sucessivos actos parcelares, isolados, em que os sucessivos actos de aquisição e venda de mercadoria se manifestam e desenvolvem.

O próprio facto de os arguidos terem começado a dedicar-se a uma actividade à margem da lei, condicionou, de forma significativa, as sucessivas resoluções, acabando por consistir na continuação de uma actividade ilícita já antes começada, num mesmo padrão uniforme de actuação, numa horizonte temporal sem interrupções significativas – factos praticados no âmbito de cada associação criminosa.

Assim sendo, como parece ser, os sucessivos crimes de burla praticados no âmbito de cada “associação”, em que se manteve o mesmo grupo ou núcleo de agentes (salvo no que toca ao arguido A..., interveniente em ambos, cujo caso será objecto de outra abordagem, infra), praticados num horizonte temporal sem interrupções significativas, de forma essencialmente idêntica, no quadro daquela mesma situação exterior, não pode deixar de se considerar, que facilitou de forma acentuada as resoluções subsequentes, diminuindo de forma considerável a ilicitude das sucessivas resoluções.

Pelo que, relativamente aos demais factos, não qualificados atrás como actos preparatórios, se conclui estarmos perante a figura de “crime continuado” relativamente a cada um dos arguidos incursos em crimes de burla (consumados e tentados), salvo quanto ao arguido A... em relação ao qual fica em aberto apurar se a sua conduta integra uma ou duas continuações criminosas.

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Este entendimento esvazia de sentido a questão supra deixada em aberto - nulidade do acórdão pela qualificação dos factos como integrando um crime a mais do que os indicados na comunicação da alteração da qualificação jurídica.

Com efeito, não sendo os factos correspondentes qualificados autonomamente, como constituindo mais um crime, mas antes aglutinados juntamente com os constitutivos de outros crimes de burla consumada e tentada num único crime na forma continuada resolve a questão pela base, não sendo violado, com tal enquadramento o direito de defesa do arguido. Na verdade tal “crime” integra-se precisamente na continuação em que se inserem todos os crimes de burla praticados á sombra do primeiro crime de associação criminosa, sob a designação “ETPV”. E não faria sentido remeter à 1ª instância (para mais um processo de tal complexidade que já foi remetido anteriormente, com a mesma finalidade, com arguidos em prisão preventiva à ordem dos autos), para comunicar a possibilidade de condenação por um eventual mais um crime que se entende não existir.

Julgando-se assim improcedente, por tal razão, a correspondente nulidade do acórdão atrás (em IV. 2) deixada em aberto.

4. Agravante da al. b) do art. 218º (modo de vida) / “comunicação a outros co-arguidos” com base no art. 28º do CP.

Vários dos arguidos viram a sua actuação agravada pela circunstância da al. b) do art. 218º, uns por se ter dado como provado que faziam modo de vida da prática de tal crime e outros por comunicação da agravante por força da co-autoria.

Para o efeito exige-se uma "série mínima de crimes em uma intencionalidade que possa dar substância, em termos de apreciação pelo comum dos cidadãos, a um modo de vida" como se observa no Comentário Conimbricence ao C. Penal, Tomo II, 70.

Nos termos da mesma anotação "É a maneira pela qual quem quer que seja consegue os proventos necessários à própria vida em comunidade" - idem, p. 70.

Sendo entendimento aceite pela jurisprudência dos tribunais superiores que devem ser tomadas em conta para este efeito não só as anteriores condenações do agente, mas ainda todos os casos que resultem de outros elementos documentais ou testemunhais (v. jurisprudência citada por MAIA GONÇALVES no seu C. Penal Anotado, 15ª ed. p. 726-727)

A verificação de tal agravante relativamente aos arguidos A..., D..., B... e C..., atenta a quantidade de actos praticados, de que retiraram efectivo proveito, o conhecimento e grau de participação no modo de vida dos restantes, mesmo depois do arquivamento supra decidido quanto a vários factos antes qualificados como burlas na forma tentada, tendo ficado provado que viviam essencialmente do produto dos actos praticados com que faziam face às suas despesas do dia a dia, entende-se que tal qualificação não levanta dúvidas, por assim conseguirem os proventos necessários à sua própria subsistência na vida em comunidade.

Já no que toca aos arguidos I... e J..., por apenas verificados os pressupostos de um crime consumado, relativamente ao primeiro e apenas crimes na forma tentada em relação ao segundo, tal actuação afigura-se incompatível com o modo de vida que supões “viver de” ou dos proventos daí retirados com os quis fizessem face às despesas necessários à própria vida em comunidade, incompatível com a mera tentativa, uma vez que em tal circunstância não chegou a haver proveito efectivo de que pudesse viver.

Pode dizer-se que a circunstância “modo de vida” se lhes comunica, por via da co-autoria (art. 28º). Comunicando-se ao agente extraneus a agravante modo de vida do agente mediato intraneus com quem participa na realização do crime.

Questão que se levanta com maior ênfase quanto aos arguidos E..., F..., G... e Q... (este não recorrente), M..., N... (não recorrente), K... e L... - todos eles viram os crimes de burla por que foram condenados agravados, por “comunicação” da referida agravante.

O Art. 28º do C. Penal, sob a epígrafe “ilicitude na comparticipação”, postula, no seu n.º1: Se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respectiva, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora.

Pode contrapor-se todavia que o “modo de vida” não constitui uma “qualidade ou relação especial do agente”, mas antes um específico “modo de actuação” que só o próprio, em princípio, domina. E de que os comparticipantes em parte dos actos que constituem o modo de vida, dificilmente conhecerão o alcance global.

A qualidade (por ex. qualidade de funcionário público), ou a relação especial de um dos comparticipantes (v.g. relação de parentesco de um dos agentes com a vítima), uma vez conhecida e aceite pelo agente que comparticipa na realização do crime fica “perfeita” ou “concluída” instantaneamente, também em relação a ele, sem a necessidade de qualquer tipo de actuação específica, mais ou menos desenvolvida em relação ao conteúdo dessa agravante. Sabendo que aquele com quem colabora na realização do crime tem essa qualidade ou essa relação que agrava o crime, colaborando ou conjugando esforços com ele com vista à consecução do resultado, aceita o acréscimo de ilicitude resultante dessa circunstância. Trata-se de realidades estáticas cuja verificação fica perfeita com o conhecimento dessa qualidade ou relação e a consequente vontade de actuação conjunta com o respectivo titular dessa especial qualidade ou relação. Com o simples conhecimento da qualidade ou relação exclusiva de outro agente, o co-autor passa de imediato ter “o domínio” dessa circunstância. Enquanto o “modo de vida” se prolonga necessariamente por uma série de actuações sucessivas de que o comparticipante num ou outro dos actos isolados dificilmente pode “ter o domínio”, se não participar num número suficiente de actuações para caracterizar o “modo de vida” e não apenas num ou em alguns dos actos isolados que integram o modo de vida de outro comparticipante.

A menos que a actuação do comparticipante abranja em termos de causalidade adequada (causa dans) ou do “domínio do facto” um número de factos suficiente para lhe imputar, pela via da co-autoria, a referida agravante. O mesmo é dizer, ainda que ele não faça modo de vida da burla, comparticipe em actos suficientes para caracterizar o modo de vida em relação ao seu comparticipante.

Desde logo porque o art. 28º tem que ser interpretado com o recurso prévio ao art. 26º. Sob pena de se agravar a responsabilidade pelo art. 28º, faltando os pressupostos da autoria ou da co-autoria que o pressupõe.

Relativamente à autoria, “num determinado conceito, que tem hoje a seu lado a generalidade dos autores alemães, autor será quem detenha o domínio do facto, isto é, quem conscientemente detenha a possibilidade de dominar, finalisticamente, a realização do tipo legal de crime, ou seja, a possibilidade de a deixar continuar, de a deter ou interromper” - Cfr. EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, II vol., ed. de 1968, 248.

No entanto o conceito de autoria dominante entre nós e consagrado explicitamente no art. 26º do C. Penal é o conceito extensivo de autoria, cujo fulcro gira à volta da teoria da causalidade adequada. Com efeito, como refere o mesmo EDUARDO CORREIA, ob. cit. 253, "é a causalidade adequada que deve continuar a considerar-se o verdadeiro fulcro à volta do qual gira a teoria da participação - em sentido positivo, de fundamentar a punição de todos aqueles que, com o seu comportamento dão causa à realização de um crime; e em sentido negativo, no sentido de que, sempre que tal nexo se não verifique, não poderá falar-se de participação criminosa".

Assim, são autores todos aqueles que, com o seu comportamento dão causa á realização de um crime, praticando actos idóneos a causar o resultado. O que distingue a autoria da cumplicidade será o critério da "causa dans" ou "causa non dans" ao crime. Cumplicidade será a actuação sem a qual o crime seria igualmente cometido, embora por outro modo, em tempo, lugar e circunstâncias diferentes - cfr. EDUARDO CORREIA, ob. cit., 249 e 251.

Para que haja co-autoria, exige-se ainda, para além do referido elemento objectivo (prática, por cada um dos agentes, de parte relevante em termos de causalidade adequada, dos actos típicos), um elemento subjectivo, que exige que à soma dos actos dos vários agentes esteja a presidir um desígnio comum. Desígnio comum que uniformiza a aglutina as condutas de cada um dos participantes e permite que a todos eles seja imputado o resultado típico na sua globalidade. E que tanto pode ser expresso como tácito, podendo inferir-se dos actos materiais praticados.

A este respeito, escreve FARIA COSTA in Jornadas de Direito Criminal, Edição do C.E.J., 1983, 170: Desde que se verifique uma decisão conjunta (por acordo ou juntamente com outro ou outros) e uma execução também conjunta (toma pare directa na sua execução), estaremos caídos nessa figura jurídica. Todavia para definir uma decisão conjunta basta a consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na execução de um tipo legal de crime ("juntamente com outro ou outros"). È evidente que na sua forma mais nítida tem que existir um verdadeiro acordo prévio - podendo mesmo ser tácito - que tem igualmente que se traduzir numa contribuição objectiva conjunta para a realização típica.

Não é necessário que cada agente intervenha em todos os actos necessários à produção do resultado, basta que a actuação de cada um, embora parcial, seja elemento indispensável à produção desse resultado cfr., por ex. Acórdão STJ de 25.02.87, BMJ 364º, 582; STJ de 13.01.88, BMJ 373º, 286; 17.02.93, CJ - S, 93, I, 197; 14.06.95, CJ S, 95, II, 230.

Afigura-se assim que a dita agravante não pode comunicar-se, sem mais, pela via do citado art. 28º, pelo menos desde que não verificados os pressupostos, também em relação a ela, da autoria.

Aliás de acordo com a regra consagrada no art. 29º “Cada comparticipante apenas é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes”.

O próprio n.º 2 do art. 28º estabelece que “sempre que, por efeito da regra prevista no n.º anterior, resultar para algum dos comparticipantes a aplicação de pena mais grave, pode esta, considerando as circunstâncias do caso, ser substituída por aquela que teria lugar se tal regra não interviesse”.

A este respeito refere a decisão recorrida (cfr. p. 436), quanto aos arguidos F..., E... e G...: «« embora não tenha ficado provado que eles vivessem essencialmente ou predominantemente das burlas, o modo de vida é uma circunstância relativa à ilicitude que lhes é comunicável (art. 28.° 1 do C. Penal), porque eles tinham conhecimento que os outros se dedicavam à prática reiterada de factos desta natureza como forma habitual...»».

Isto é, em relação a eles o crime foi agravado, exclusivamente por via do preceituado no art. 28º. Sem que se mostre verificado que tenham prestado contribuição essencial para o “modo de vida” dos restantes.

Pelo que, tendo presente a argumentação aduzida, se conclui que tal agravante não se

aplica a estes 3 arguidos - F..., E... e G....

Como não se comunica, pela mesma razão, aos arguidos I... e J....

No que concerne ao crime de burla pelo qual vem condenado o arguido K..., para além de a agravante “modo de vida” não lhe poder se aplicada por não se tratar de qualidade, ou relação especial de outros comparticipantes, tal agravante nunca lhe poderia ser aplicada com tal fundamento, pela razão de que não teve comparticipantes nos factos que integram o crime de burla por que vem condenado.

Com efeito o crime de burla por que vem condenado corresponde aos factos descritos sob os n.ºs 1428 a 1437 da matéria provada. Trata-se, em resumo, do facto de, depois de saber, em meados de Julho de 2000, que o telemóvel que lhe fora oferecido havia sido adquirido fraudulentamente com recurso a identidade falsa, ter continuado a fazer chamadas, através desse telemóvel, sabendo que não iria pagá-las, assim causando à TMN o prejuízo de 60.589$00.

Assim a extensão da agravante “modo de vida” a este arguido assenta num pressuposto que não se verifica: é que os factos (uso dos telemóvel depois de saber que havia sido obtido fraudulentamente, querendo fazê-lo sem pagar o valor dos telefonemas, lesando a TMN) foram praticados exclusivamente pelo arguido sem colaboração, ajuda ou qualquer tipo de auxílio de qualquer dos outros arguidos, designadamente daquele que lhe havia dado o telemóvel – a burla consiste em utilizar a prestação dos serviços da TMN, fazendo telefonemas sem pagar o preço.

Pelo que nunca lhe poderia ser aplicada, pela via da co-autoria, uma agravante que se verifica em relação a co-autores inexistentes.

Ora não se aplicando a agravante “modo de vida”, o crime correspondente é desqualificado (no caso não ocorre qualquer outra agravante), caindo assim na previsão do art. 217º, n.º1 do C. Penal.

Crime este que, ao contrário do previsto no art. 218º, depende de queixa (n.º3 do art. 217º).

Alega o recorrente – e tal não é questionado na resposta nem no douto parecer – que a TMN não apresentou queixa.

Na verdade a TMN não deduziu pedido civil. E percorridos os autos, designadamente os documentos de fls. 3925 a 3927 não se verifica que tenha sido apresentada a dita queixa, sendo tais documentos relativos à identificação dos telefonemas efectuados e prejuízo sofrido. Nem tal resulta do ofício de fls. 3918/3919 da TMN, que se limita a remeter ao tribunal a referida documentação que o acompanha.

De onde que carecia o MºPº de legitimidade para o exercício e prossecução da acção penal por este crime.

O mesmo se dizendo, por identidade de razões, relativamente ao arguido L..., condenado por um único crime de burla, também por ter usado o telemóvel, recebido de seu pai, para fazer telefonemas sabendo que não os pagaria, assim prejudicando a TMN.

Bem como aos arguidos M... e N... (este não recorrente, condenado apenas este único crime) dada a similitude dos factos – tendo sido condenados também cada qual por um único crime de burla por idêntico uso de telemóveis, como se alcança da matéria de facto correspondente.

Crimes pelos quais, por total identidade de razões, ficando também desqualificados, carecia o MºPº de legitimidade para instaurar e prosseguir a acção penal.

O que se verifica ainda em relação ao arguido N..., ainda que não recorrente.

Com efeito, postula o art. 402º do CPP: Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão. Salvo se for fundado em razões puramente pessoais, o recurso interposto: a) Por um dos arguidos, em caso de comparticipação, aproveita aos restantes; b) Pelo arguido, aproveita ao responsável civil; c) Pelo responsável civil, aproveita ao arguido, mesmo para efeitos penais.

5. Agravante modo de vida / dupla agravação – arguido A...

Ainda no que toca à agravante “modo de vida”, pode sustentar-se, tal como em relação ao crime de associação criminosa, que o arguido A... vê a sua conduta agravada por duas vezes, uma correspondente à actuação no âmbito da “ETPV” e outra correspondente à actuação no âmbito da “AD”, por se tratar de factos ocorridos, em períodos temporais distintos - genericamente a primeira com terminus no ano de 1998 e a segunda com início já no ano de 2000.

Trata-se de questão suscitada, ainda que não explicitamente nestes termos, quando refere (v. conclusões 39 a 44) que tal valoração constitui “contradição insanável”, dizendo ter o tribunal, com a condenação pelas duas agravantes, “ter formado duas convicções de conteúdo exactamente oposto”.

A este respeito, ainda que o recurso também não o explicite, tem-se presente, fundamentalmente, a matéria de facto vertida nos artigos 560º, 567º e 570º/573º da matéria provada, que fazem como que a “ligação” ou sequência entre os factos praticados no âmbito da “ETPV” e os levados a cabo no âmbito da “AD”, a que correspondem as duas associações criminosas.

Com relevo sobre este ponto, resulta da matéria de facto provada:

“a outra parte (das mercadorias obtidas sob a capa da ETPV, cuja descrição termina no n.º 560) foi vendida a dinheiro que o arguido A... integrou no seu património, vivendo desses rendimentos até vir a ser detido à ordem deste processo em 25.02.2001” – facto 560;

“Em Dezembro de 2000 ainda o arguido A... andava a viver da venda dessas mercadorias, tendo então em seu poder, para venda, sanitas, lavatórios ..., frigoríficos, ventoinhas” – facto 567;

“Em princípios de 2000, vendo que as mercadorias que tinha conseguido obter com utilização do nome da ETVL começavam progressivamente a esgotar-se, formulou o desígnio de voltar novamente a Portugal, para realizar um novo projecto análogo...” – facto 570;

“Tendo-se deslocado a Portugal no período entre 19.03.2000 e 16.04.2000, contactou o arguido B..., que conhecia do meio prisional...” - facto 574º.

Isto é, de acordo com a matéria provada, ainda em 2000 vivia, na Guiné, do produto dos bens conseguidos no âmbito da primeira associação – factos descritos até ao referido art. 560.

Portando o “modo de vida” manteve-se do produto dos crimes até essa altura em que o arguido “vendo que estava esgotar-se o produto” decidiu criar a nova associação. Mas se a decisão, em si, de criação do “novo projecto” era nova, o fim visado, era “retomar”, através de novo meio, a actividade de que nunca tinha deixado de viver.

Assim, de tal síntese, afigura-se que tem que se concluir que, vivendo até aquela data do produto das burlas anteriores e criando novo esquema para continuar, afinal, a actividade de cujo produto vivera até então, não pode deixar de se considerar que a segunda actuação dá seguimento ao modo de vida de que o arguido viveu até àquela data e de que portanto nunca deixou de viver, integrando-se assim num único modo de vida” do qual (de cujo produto) nunca deixou de viver.

Pelo que se conclui que a conduta deste arguido apenas pode ser agravada uma vez por esta circunstância, ainda que relevando a soma das actuações para efeito do grau de ilicitude a ponderar em sede de medida da pena concreta.

6. Concurso entre agravantes / Modo de vida e vários crimes que a caracterizam

Coloca-se ainda, a respeito da agravante “modo de vida”, a questão de saber até que ponto a condenação pela referida agravante modificativa e a condenação cumulativa por cada um dos crimes que integram o modo de vida não viola o princípio da proibição da dupla valoração do mesmo facto - ne bis in idem - consagrado no art. 29º, n.º5 da Constituição da República. Questão que também pode ser vista como suscitada pelo recorrente A..., ainda que de forma imprecisa, quando refere a “existência de apenas um crime de burla” (v. designadamente a conclusão 53)

Com efeito pode questionar-se se o "pedaço de vida" que leva à condenação do arguido pela agravante "modo de vida" não engloba os sucessivos actos parcelares que o integram e perdem por isso a sua autonomia.

Como decidiu o STJ de 09.01.1992, publicado na CJ 92, tomo 1, p. 8 "comete o crime de burla agravada por habitualidade e não o crime continuado de burla o tesoureiro que, durante largo período de tempo, por falsificação e engano dos superiores hierárquicos, se vai apropriando de quantias pertencentes à entidade patronal".

Ou, como mais expressivamente decidiu o Ac. RC de 01.04.1987, na CJ, 1997, t. 2, p. 112, "se o agente comete crimes qualificados pela habitualidade, não pode cada um deles ser considerado isoladamente para efeito de punição agravada, para depois se aplicar a pena unitária. Deve antes a pena ser uma, perdendo os crimes a sua individualidade para feitos de punição".

Pelo que também por aqui, as várias actuações perdem autonomia, encontrando-se em relação de “consunção” com a agravante “modo de vida” que abrange os vários actos isolados que a caracterizam.

A par da agravante “modo de vida”, verifica-se nalguns casos, em relação ao mesmo crime, a da al. a) do n.º2 do art. 218 – valor consideravelmente elevado

Perdendo autonomia os vários actos enganosos, para integrarem o modo de vida, o valor em causa há-de ser o da totalidade do prejuízo. Verificando-se assim, concomitantemente, a agravante valor.

A este respeito, se bem que a doutrina entenda que as duas agravantes devem funcionar uma a seguir à outra, importa ter presente o disposto no art. 204º, n.º3 do C. Penal, na redacção as´´ida da revisão de 95: o crime apenas é agravado pela moldura mais grave, funcionando as demais como agravantes gerais.

Se bem que não haja remissão expressa para aplicação deste normativo ao crime de burla, dada a natureza essencialmente idêntica das agravantes dos dois crimes (valor, modo de vida), sob pena de quebra de unidade do sistema, deve ser de aplicar a mesma doutrina – o crime apenas é agravado pela moldura mais grave, funcionando as demais como agravantes gerais, dentro da moldura abstracta determinada previamente.

7. Crimes de Falsificação / concurso com os crimes de burla

Vem também questionada a verificação dos pressupostos do crimes de falsificação.

A este respeito, como refere a decisão recorrida, em argumentação não infirmada pelas alegações de recurso, a falsidade pode ser material ou intelectual ou ideológica. O acto de elaboração dos documentos incorporando declarações inverídicas manifesta uma falsidade intelectual ou ideológica na medida em que a declaração incorporada no documento se traduz num pressuposto falso, daí derivando a possibilidade de lesão da confiança e segurança que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico.

Sufragando-se esta fundamentação do acórdão recorrido acabada de resumir, carece de aqui ser repetida em toda a sua amplitude.

No entanto, ao contrário do que sucedeu relativamente aos crimes de burla, entende-se que não se verificam relativamente aos crimes de falsificação, aos pressupostos do crime continuado.

Com efeito, ainda que praticados como meio/instrumento dos crimes de burla supra integrados numa continuação criminosa, os crimes de falsificação foram, todos eles, praticados em circunstâncias de tempo e lugar diferenciadas (e não de forma sistemática como as burlas), relativamente a vários tipos de documentos distintos, por arguidos diferentes.

Por outro lado as respectivas resoluções criminosas surgem individualizadas relativamente a cada documento, sem que se verifique qualquer circunstância concreta relativas a todos eles (nem os arguidos a especificam), que possa concluir-se constituir a circunstância exterior que facilitou cada uma e todas as sucessivas resoluções criminosas.

Acresce que a existência das associações estruturadas a que se fez referência como elemento relevante para a continuação nos crimes de burla, não tinha especificamente em vista o crime de falsificação, mas tão-só e apenas os crimes de burla. Pelo que também neste ponto não se lhe aplica o referido pressuposto fáctico.

Tendo as falsificações sido praticadas num número muito reduzido de casos, por confronto com a multitude de crimes de burla.

Havendo ainda casos de falsificação em que poderia considerar-se, à priori” a falada circunstância exterior, que não passaram de actos preparatórios das burlas, que foram supra qualificadas como meros actos preparatórios de burla, nos termos supra definidos.

Além de que no acórdão recorrido as centenas de faxes da AD, utilizados para “contactos” com potenciais fornecedores foram qualificados como integrando apenas 3 crimes de falsificação.

Do mesmo modo, os documentos (faxes, letras de câmbio e outros) foram entregues em circunstâncias de tempo e lugar distintos, como distintos eram os respectivos beneficiários formais.

Conclui-se assim que não se verificando qualquer circunstância externa (os faxes como se disse foram unificados, como se disse em apenas 3 crimes) que tivesse facilitado de forma considerável as sucessivas resoluções, se entende não se verificar, quanto aos crimes de falsificação, crime continuado.

Vem levantada a questão do concurso aparente de infracções, por consunção, entre os crimes e falsificação e de burla.

Haverá concurso aparente de infracções, por consunção, quando o crime mais grave inclui nos seus elementos descritivos o preenchimento de elementos de outro tipo de crime menos grave. Há como que uma relação equivalente a dois círculos concêntricos em que o de menor raio se encontra totalmente dentro do maior.

Como refere Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, cit. Colecção Teses, 1983, 133-134, “trata-se de uma relação entre os bens jurídicos violados entre mais e menos, uns contêm-se já nos outros. Só relações de mais e menos, entre bens jurídicos tutelados pelas normas, podem estar na base da consunção”.

Esta questão, no concerne especificamente aos crimes de falsificação e burla, tem suscitado dúvidas na jurisprudência, patenteadas nas decisões divergentes do próprio STJ, sobre esta questão, elencadas no relatório do Acórdão STJ 19.02.92, publicado no DR IIS de 09.04.1992, prolatado precisamente para fixação ou harmonização de jurisprudência sobre este ponto, como pressuposto do mesmo.

O Ac. STJ de 03.12.1998, publicado na CJ-STJ, 1998, III, 231, veio porém decidir que com a reforma do C. Penal de 1995 a doutrina daquele “Assento” caducou. Argumentando que, quando a burla é cometida por meio de falsificação, existe apenas mero concurso aparente de infracções, sendo a falsificação já sancionada pelo crime de burla, enquanto artifício ou meio fraudulento para conseguir levar a cabo o engano em que assenta a burla. Assim o crime de falsificação estaria numa relação de consunção, relativamente ao de burla. A falsificação já estaria “consumida” pelo “meio fraudulento”, que consistiria precisamente na falsificação em si.

Argumentou-se – v. o Ac. STJ citado - a favor do concurso aparente no sentido de que, com a entrada em vigor da revisão do C. Penal de 95, deve considerar-se que foi alterada a filosofia subjacente ao nº5 do art. 306º, uma vez que agora, nos termos do art. 204º, nº3 do CP, se concorrerem mais do que uma circunstância agravante, só é considerada a que tiver efeito mais grave, sendo as demais valoradas na medida da pena, como agravantes gerais.

No entanto, o art. 204º, nº3, mais não fez do que aplicar ao crime de furto a doutrina geral, quando duas circunstâncias agravam o mesmo crime. E sempre se podia dizer que, conhecendo o legislador de 95 o acórdão para harmonização de jurisprudência de 92 sobre o caso específico, se quisesse revogar a sua doutrina não deixaria de o ter feito expressamente.

O critério que define o concurso de crimes é o enunciado no art. 30º do C. Penal, na sequência do ensinamento de Eduardo Correia, autor do Anteprojecto do CP, na sua tese Unidade e Pluralidade de Infracções.

O crimes de falsificação e o de burla protegem interesses jurídicos diversos - na falsificação, a fé pública depositada no documento, necessária à normalização das relações sociais e na burla o interesse patrimonial ou património da vítima.

O conceito de acção aceite pelo C. P. como critério para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções é o também definido por Eduardo Correia: não um conceito naturalístico, mas antes o conceito teleológico, reportado aos valores jurídicos violados – cfr. Unidade e Pluralidade de Infracções, cit. p. 74 e 84.

No caso em apreço, repare-se que o crime de burla não vem agravado pela circunstância de ter sido cometida por meio de falsificação – como sucedia no crime de roubo do art. 306º, nº5 do C. P., que era agravado por qualquer das circunstâncias que qualificavam o furto - invocado como fundamento da doutrina do acórdão para harmonização de jurisprudência de 1992 pelo Ac. STJ de 03.12.98 citado.

Sendo certo que o “expediente enganoso” exigido pelo crime de burla raramente ficará esgotado na falsificação, a qual, quando existe constitui geralmente apenas uma parte do artifício fraudulento. Ou seja, em geral a falsificação apenas constituirá uma parte da encenação ou artifício fraudulento montado com a finalidade de enganar outrem e o determinar à prática de facto que lhe cause prejuízo.

De qualquer forma a doutrina do concurso efectivo foi reafirmada por novo acórdão para fixação de jurisprudência, proferido já na vigência do actual texto legal - Acórdão do STJ n.º 8/2000, de 4-5-2000, publicado no DR, I Série- A de 23-5-2000 que reza assim: « no caso de a conduta do agente preencher s previsões de falsificação e de burla do art. 256º-1-a) e do art. 217°, n.º1, respectivamente, do C. Penal revisto, pelo D.L. n.o 48/95, de 15-3, verifica-se o concurso real e efectivo de crimes».

Aliás, também a prof. Helena Moniz (Comentário Conimbricence do C. Penal, parte especial, t. li, p. 690), apesar de defender em principio a consunção entre estes crimes, refere que « no entanto, a consunção apenas se verifica se houver uma unidade de resoluções criminosas, isto é o agente tem que falsificar para burlar. Se, pelo contrário, existirem duas resoluções criminosas autónomas (uma de falsificar e uma posterior de burlar por acaso utilizando o anterior documento falsificado) quer sob o ponto de vista temporal quer sob o ponto de vista psicológico, então sim estaremos perante concurso real » ( no mesmo sentido decidiu o AC. ST J, de 27-6-2002 ( CJ, Acs ST J, Ano X, t. 11, p. 231 )

Ora, é isso precisamente o que acontece no caso dos presentes autos. Com efeito deu-se como provado, em todos os casos analisados, que os arguidos, para além de emitirem ou usarem os documentos falsos pretendiam, em última análise, alcançar a entrega dos equipamentos, enganando os fornecedores quanto à titularidade e validade daqueles. Quiseram a par disso ou para além disso, falsificar os documentos em causa.

Houve resoluções criminosas distintas para burlar e falsificar, sendo certo que a falsificação surge como praticada em pouquíssimos casos, por confronto com a multitude de crimes de burla, havendo, por outro lado, casos de falsificação que não passaram de actos preparatórios das burlas, como tal não punidos.

Conclui-se assim pelo concurso efectivo burla/falsificação.

8. Crimes de receptação

Pratica o crime de receptação, nos termos do n.º1 do art. 231º do CP: “Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber de penhor, adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar para si ou outra pessoa a sua posse...”.

O conteúdo do ilícito reside na “perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica, aprofundando a lesão de que foi alvo a vítimas de facto anterior (facto referencial) ao diminuir a possibilidade de restaurar a relação da vítima com a coisa”. Ou na “na potenciação do cometimento de futuros crimes patrimoniais, por serem os receptadores «os grandes fautores dos crimes contra o património» – cfr. Pedro Caeiro, Comentário Conimbricence ao C. Penal, anotação ao art. 231º, p. 475-476.

O que o distingue claramente do crime de furto propriamente dito, pressupondo-o.

Como refere o citado autor, no Comentário, cit., p. 478, “É necessário que o agente do facto referencial seja pessoa diversa do receptador (coisa obtida por outrem). Seguro é que o tipo da receptação exclui do seu âmbito subjectivo o autor (material, mediato ou co-autor) do facto referencial”.

Ora no caso em apreço resulta claramente da matéria provada, à qual o tribunal recorrido chegou e não mereceu censura, que os arguidos sabiam que os bens recebidos haviam sido obtidos por meio de erro ou engano das vítimas, constitutivos do crime de burla.

Não exige a lei que o agente tenha conhecimento da forma concreta da apropriação ilegítima, bastando o conhecimento ou representação de todos os elementos do tipo acima transcritos (elemento intelectual) e a vontade de realização ou aceitação do resultado tipificado (elemento volitivo) em qualquer das modalidades do dolo previstas no art. 14º do C. Penal.

O que se aplica ao conhecimento dessa origem através de subtracção ilegítima ao respectivo dono, à revelia deste, querendo adquiri-lo, apesar de ter conhecimento dessa origem.

A realização do tipo exige ainda a “intenção de obtenção de benefício ilegítimo”.

Trata-se de um elemento subjectivo do tipo de ilícito – impropriamente chamado dolo específico, uma vez que se trata de um elemento descritivo do tipo e não uma categoria da culpa propriamente dita – uma intenção de ganho ou enriquecimento ilegítimo.

Elemento esse diferente da motivação do agente, significando que este se comporta com o animus de obter benefício ilegítimo.

Os arguidos K... e P... questionam a verificação, em relação a eles dos pressupostos do crime.

Como resulta do “quadro II” incorporado no acórdão recorrido, no qual é efectuada a correspondência entre os artigos da matéria provada e os crimes que os mesmos integram, os crimes de receptação pelos quais o arguido K... vem condenado são constituídos, um pelo recebimento e aceitação da oferta de 2 pares de sapatos que haviam sido adquiridos fraudulentamente, por parte do arguido A... (factos 993 a 998, 1008, 1009, 1438 e 1439) e um outro pelo recebimento de 500.000$00 provenientes da venda de uma partida do mesmo lote de sapatos que sabia terem sido obtidos fraudulentamente, quantia essa correspondente a uma percentagem de 10% do valor dessa venda (no essencial os factos 1019 a 1025) – cfr. p. 462 da decisão. E ainda os factos 1440-1441 relativos aos elementos subjectivos do crime.

O tipo de crime refere-se à “aquisição por qualquer título”. Abrangendo portanto casos como o de recebimento do bem (no caso sapatos/sandálias) como “oferta” (de bem alheio), desde que preenchidos os restantes pressupostos definidos no tipo, designadamente sabendo os beneficiários da respectiva origem ilícita, mediante crime contra o património, com intenção de enriquecer o seu património.

O tipo de crime refere-se a “receber ... adquirir por qualquer título ... de qualquer forma assegurar para si ou outra pessoa a sua posse ...”.

Ora, no caso em apreço, no que concerne aos sapatos/sandálias recebidos por estes dois arguidos, tratando-se de “oferta” (de quem não era legítimo dono e não tinha legitimação para o efeito), daí resulta que nada pagaram ou deram em troca ou como correspectivo daquilo que receberam.

Não obstante tratar-se de bens de reduzido valor e de pouco relevo em termos sociais, o que é certo é que, como resulta da matéria provada, bem sabiam que se tratava de bens obtidos por meio fraudulentos ou enganatórios – como melhor se evidencia na reapreciação da decisão de facto sobre este ponto. Os arguidos aceitaram receber gratuitamente os ditos bens, com intenção de os fazer seus, como fizeram, enriquecendo o seu património com a entrada correspondente. Sabendo que se tratava de uma vantagem ilegítima, sem causa jurídica, porque nenhuma relação jurídica tiveram com os legítimos donos que legitimasse tal deslocação patrimonial. Ficando com eles em tais circunstâncias quiseram obter o benefício económico correspondente, ou dito de outra forma, obter o correspondente enriquecimento ilegítimo. Mostrando-se assim preenchidos todos os elementos do tipo objectivo. Como do tipo subjectivo, na modalidade do dolo directo, uma vez que tendo conhecimento de todos os elementos do referido tipo (elemento intelectual do dolo), quiseram obter o benefício ou resultado típico (elemento volitivo). Sendo certo ainda que actuaram livre e conscientemente, sabendo da ilicitude da sua conduta.

O mesmo se diga, no que se refere ao arguido K..., agora quanto ao recebimento da quantia de 500.000$00 proveniente da venda de uma partida do mesmo lote de sapatos. Equivalente a 10% do valor da venda dos sapatos obtidos naquelas circunstâncias.

Com efeito, ainda que nenhum serviço lhe tivesse prestado para tal aquisição ilegítima, recebeu uma percentagem ou “quota” do preço obtido com a venda dos sapatos que sabia terem sido adquiridos fraudulentamente, por engano do respectivo dono. Mas sem que correspondesse a qualquer serviço que recorrente tivesse prestado profissionalmente no âmbito da aquisição (no caso fraudulenta) de tal mercadoria. Aliás no caso, o recorrente não foi sancionado por qualquer tipo de comparticipação na dita “aquisição”.

Refere o recorrente (conclusão 45) que recebeu a dita quantia a título de honorários. No entanto, para além de tal não estar demonstrado, ainda que o arguido B... lhe pudesse dever tal quantia pela prestação de serviços, não era seguramente “aquele dinheiro”. Porque produto de mercadoria obtida mediante crime de burla, cujos pressupostos fácticos o recorrente conhecia. E qualquer montante que o B... lhe pudesse dever, não era seguramente por actividade profissional relacionada com a aquisição (ilícita) “daqueles sapatos”, obtidos mediante actividade criminosa.

Tão-pouco o recorrente exerceu qualquer actividade de defesa do co-arguido que depositou o dinheiro na sua conta relacionada com a aquisição dos sapatos – nem o recorrente o alega, nem tal se verifica manifestamente, uma vez que o recorrente não o defende ou defendeu nos presentes autos onde foi acusado pela referida obtenção dos sapatos. Não se trata assim de caso semelhante ao do pagamento de honorários com o produto do crime por cuja prática o defendeu. Onde estivesse em causa o exercício do direito de defesa, como se disse não exercido pelo recorrente.

A este respeito cumpre trazer à colação, o disposto no art. 233º do C. Penal: São equiparados às coisas referidas no art. 231º os valores ou produtos com elas directamente obtidas.

Ou seja, a lei equipara expressamente à “obtenção” de coisa referida no art. 231º, os valores (dinheiro) directamente obtidos com a venda da coisa.

Como refere Maia Gonçalves, CP Anotado,15º ed., em anotação ao citado art. 233º “através do uso do advérbio directamente só deve ser equiparado às coisas obtidas na infracção originária, as coisas obtidas com o produto dessa infracção e o dinheiro proveniente da negociação das coisas obtidas na infracção originária”.

E não sofre dúvida, da matéria provada, que os falados 500 contos, depositados pelo arguido B... na conta do recorrente, tiveram como proveniência “directa e imediata”, a venda dos sapatos obtidos mediante burla.

Do mesmo modo que resulta da matéria provada que com o recebimento desse dinheiro -sabidamente obtido com a venda dos sapatos produto do crime de burla - o arguido teve intenção de enriquecer, como enriqueceu, o seu património à custa do património da vítima do crime de burla. Tanto que fez seu o dinheiro sabendo que o recebimento era ilegítimo, por nenhuma causa ou relação jurídica ter para o receber dos legítimos donos da mercadoria ilicitamente vendida ou sequer com quem efectuou o pagamento, como já foi referido.

Mostrando-se assim preenchidos todos os elementos do tipo de crime de receptação pelo qual os arguidos foram condenados (2 o arguido K... e 1 a arguida).

O mesmo se dizendo em relação ao arguido L... (recebimento de 1 par de sapatos, do pai), por identidade de razões.

9. Questões relativas à medida das penas

As alterações efectuadas no que toca à qualificação jurídica dos factos – absolvição por crimes de burla na forma tentada; qualificação jurídica diversa dos vários crimes de burla subsistentes em relação a cada um dos arguidos num único crime agravado pelo “modo de vida” ou como crime continuado – obrigam, só por si, à reapreciação das penas concretas correspondentes, bem como à reformulação das penas aplicadas em cúmulo jurídico.

Sendo certo que vêm ainda suscitadas outras questões, neste âmbito que cumpre também apreciar.

Reincidência

O acórdão recorrido (p. 471) refere que os arguidos B..., I..., J..., M... e R... são reincidentes, em virtude de, apesar das várias condenações referidas na matéria de facto provada, na generalidade por crimes contra o património, sem que as anteriores condenações tenham servido para os afastar da prática de novos crimes.

Postula o art. 75º do C. Penal (redacção dada pelo DL 48/95):

1. É punido como reincidente quem cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra ao crime.

2. O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5 anos; nesse prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade.

Exige assim a lei, para além dos requisitos de natureza objectiva resultantes do enunciado normativo, um outro de natureza subjectiva, que consiste em ser censurável ao agente que a anterior condenação não tenha servido de suficiente advertência.

Exigindo-se ainda o decurso de menos de 5 anos entre a data da prática do anterior crime e a data da prática do novo crime, ainda que não se conte o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida privativas da liberdade.

Ora compulsando a descrição da matéria de facto pertinente – factos 1679 a 1691 – verifica-se que, não obstante a referência a condenações anteriores de vários arguidos que poderiam levar a que a prática dos crimes ora em apreciação os fizesse incorrer em reincidência, tendo por referência a data das sentenças ali indicadas, da matéria de facto não consta a data da prática dos crimes correspondentes às ditas condenações anteriores. Sendo aliás frequente a sentença ser proferida em data significativamente posterior à da prática dos factos correspondentes.

Pelo que, não obstante, terem decorrido menos de 5 anos entra a data das sentenças referidas na matéria provada referida e dos factos ora em apreciação, não se mostra provado, em relação a nenhum dos arguidos, que desde a prática dos anteriores crimes e a data dos crimes dos presentes autos tenham decorrido menos de 5 anos.

Falecendo por isso, no caso, o referido pressuposto, enunciado no n.º2 do art. 75º.

De qualquer forma, referência no acórdão recorrido à reincidência (que apenas agrava o limite mínimo das respectivas molduras penais, nos termos do art. 76º, n.º1 do CP) efectuada de forma muito genérica, na economia da decisão recorrida não levou, de per si, à alteração da moldura da pena, funcionando dentro da apreciação da personalidade dos arguidos e da culpa.

A medida das penas aplicadas foi determinada pelo acórdão recorrido, dentro das respectivas molduras abstractas, de acordo com os critérios dos artigos 40º, 70º e 71º do C. Penal.

Tendo em atenção as alterações efectuadas na definição dos crimes e as questões concretas suscitadas nos recursos sobre a medida da pena, importa ter presentes os critérios da medida concreta da pena.

O art. 70º do C. Penal estabelece: “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dará preferência à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da pena”.

Assim, para definir a pena a aplicar em concreto, dentro das prevista em alternativa, importa, antes de mais averiguar se a multa realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da pena.

A este respeito postula o art. 40º do C. Penal, na redacção introduzida pela Reforma operada pelo DL 48/95 de 15.03: 1. A aplicação da pena ... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. 2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

A actual redacção do art. 40º do C. Penal consagra o entendimento mais recente do Prof. Figueiredo Dias sobre os fins das penas (cfr. Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra editora, 2ª ed., e Direito Penal Português, As Consequência Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 227, este tendo já por referência o projecto que veio a ser plasmado no art. 40º da redacção actual do Código Penal): “A justificação da pena arranca da função do direito penal de protecção dos bens jurídicos; mas esta função de exterioridade encontra-se institucionalmente limitada pela exigência de culpa e, assim, por uma função de retribuição como ressarcimento do dano social causado pelo crime e restabelecimento da paz jurídica violada; o que por sua vez implica a execução da pena com sentido ressocializador – só assim podendo esperar-se uma capaz protecção dos bens jurídicos”.

Sustentando ROBALO CORDEIRO, após a revisão do C. P. de 1995, in Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal – CEJ - p. 48, que “as exigências geral positiva e de prevenção especial de socialização dominam agora a operação de escolha da pena, a culpa esgotou as suas virtualidades na determinação da pena principal”.

Como escreveu Figueiredo Dias no Jornal “O Público” de 25.03.91, “é frequente a opção pela cadeia em nome da culpa, o que é juridicamente um erro. Só razões de prevenção devem levar à prisão”.

Aliás o princípio de que a pena de prisão constitui a ultima ratio da política criminal e da preferência pelas reacções criminais não detentivas face às detentivas – posto em particular relevo entre nós, de há muito, por Eduardo Correia.

“... só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal a conferir fundamentos e sentido às reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas de prevenção positiva ou de integração, isto é de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face á violação da norma ocorrida” – Cfr. F. Dias, As Consequências, p. 72.

Estabelece o art. 71º, nº1 do CP (não adaptado à nova “hierarquia” de valores traduzida nos fins das penas estabelecidos pela nova redacção do art. 40º em conjugação com o qual deve ser interpretado) estabelece o critério geral de que “a medida da pena deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigência de prevenção”.

Critério que é precisado no nº2: na determinação da pena há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.

Os factores concretos a ter em conta são depois definidos nas várias alíneas do citado nº2. E reconduzem-se a três grupos ou núcleos fundamentais: factores relativos à execução do facto {alíneas a), b) e c)}; factores relativos à personalidade do agente {alíneas d) e f)}; e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior a facto {alínea e)}.

A pena há-de ser eficaz por forma a proteger o bem jurídico violado servindo como elemento dissuasor da prática de novos crimes, dando ainda satisfação ao sentimento de justiça e segurança da comunidade, constituindo a retribuição justa do mal praticado. Para além de dever contribuir, na medida do possível, para a reinserção social do delinquente.

Dentro dos limites permitidos pela prevenção geral positiva, actuam os pontos de vista da prevenção especial de socialização que vão determinar, em ultimo termo, a medida da pena, devendo esta evitar a quebra de inserção social do agente e servir a sua reintegração.

A moldura da pena, a determinar no âmbito da moldura de prevenção – onde actuam as mencionadas considerações de socialização – tem como limite máximo a culpa do agente e, como limite mínimo, a pena que, perante as circunstâncias concretas do caso relevantes, se mostra ainda comunitariamente suportável, á luz da necessidade de tutela dos bens jurídicos e da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada ou reafirmação contrafáctica da norma (prevenção geral de integração).

No que toca ao arguido K..., tendo-se decidido pelo arquivamento dos autos relativamente ao crime de burla, por não apresentação de queixa pela TMN, permanece a condenação por dois crimes de receptação.

Trata-se, em concreto de 2 pares de sapatos e do recebimento de 500 contos, produto da venda de bens obtidos mediante a actividade criminosa.

Para além do valor (não apurado em concreto) de dois pares de sapatos novos que lhe foram entregues como “oferta”, e os 500 contos recebidos como pagamento de honorários (ainda que não relativos, com se referiu, à aquisição daquela mercadoria). Em ambos os casos dentro da relação de confiança inerente ao exercício da profissão.

Por outro lado não tem antecedentes criminais, encontrando-se perfeitamente inserido na sociedade. Não se justificando a aplicação da pena de prisão, nem na perspectiva da protecção dos bens jurídicos, no falado contexto em que os factos foram praticados, nem do ponto de vista da prevenção espacial, entende-se que a multa satisfaz as necessidades de protecção dos bens jurídicos e a prevenção de novos crimes, pelo que será a aplicada.

Sobre a pena de multa estabelece o art. 47º, n.º1do C. Penal que “A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º1 do art. 71º ...”.

Consagra o Código o chamado modelo escandinavo dos dias de multa, segundo o qual a fixação desta pena pecuniária se faz através de duas operações sucessivas: na primeira determina-se o número de dias de multa, através dos critérios gerais da fixação das penas; e, na segunda, fixa-se o quantitativo de cada dia de multa, em função da capacidade económica do agente – cfr. MAIA GONÇALVES, C. Penal Anotado, 15ª ed., em anotação ao art. 47º.

Assim dentro da moldura aplicável (10 a 600 dias), tendo por referência os critérios referidos, essencialmente a necessidade de protecção dos bens jurídicos, o grau de ilicitude e a personalidade dos arguidos, entende-se ajustada a pena de 150 dias imposta à arguida P... e, por essencial identidade de razões, será também a aplicada ao arguido pelo primeiro crime.

No que toca ao segundo crime (recebimento dos 500 contos), atento o valor em causa, dentro dos critérios referidos entende-se ajustada a pena de pena de 190 dias.

A taxa diária aplicada na decisão recorrida é questionada no recurso da arguida P....

A este respeito preceitua o art. 47º, n.º2 do C. Penal: A cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 1,00 e € 498,80, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

De onde resulta que nesta segunda fase, para a definição do montante diário da multa relevam apenas critérios de natureza económica e financeira (n.º2 do art. 47º, supra transcrito).

Sendo certo que aqui a finalidade da lei é eliminar, ou pelo menos esbater as diferenças de sacrifício que o seu pagamento implica entre os arguidos possuidores de diferentes meio de solver a multa, sem esquecer que a pena de multa não deve ficar descaracterizada, “devendo sempre implicar para o arguido alguma dose de sacrifício” – cfr. MAIA GONÇALVES, ob. cit., p. 191.

Como decidiu o Ac. RC de 28.11.96, CJ, tomo V/96, p. 56, “o ponto de partida da determinação do montante da multa deve ser o rendimento líquido do condenado”.

Sobre este tema, como decidiram entre outros o Ac. do STJ de 02.10.97, na CJ/STJ, tomo III do ano de 1997, p. 184; e Ac. RC publicado na CJ 1995, t. 4, p. 48, o montante da multa não deve ser doseado por forma a que não represente qualquer sanção para o condenado, devendo representar um sacrifício real para o condenado, sob pena de se desacreditar esta pena. Pelo que, como decidiu o ultimo aresto citado, já em 1995, “só em condições excepcionais se justificará uma taxa inferior a 1.000$00.

Aliás a Reforma de 1995 do C. Penal, operada pelo DL 35/94 pretendeu “devolver à pena de multa a dignidade que lhe cabe”, como consta do ponto 4 do respectivo preâmbulo, aumentando inclusivamente o limite máximo de 10 para 100 contos.

Dignidade que também se pode aferir tendo por referência os valores das coimas aplicáveis aos ilícitos menores de mera ordenação social.

Resulta da matéria provada que os arguidos K... e P... vivem em união de facto há mais de 10 anos e “levam vida normal”, “vivendo do produto do seu trabalho” ele como advogado, ela técnica de contas, são trabalhadores.

Dentro do entendimento expendido a taxa diária de € 8,00 fixada em relação à arguida entende-se ajustada.

Em relação ao arguido, atenta a matéria de facto provada e ainda o êxito profissional invocado pelo próprio nas alegações de recurso afigura-se razoável a taxa diária de € 10,00.

Atento o arquivamento dos autos, em relação ao arguido L..., quanto ao crime de burla, ficando em relação a ele apenas o crime de receptação (par de sapatos), sendo também ele primário, por identidade de razões ser-lhe-á também aplicada a pena de multa. Que atenta a circunstância de ter recebido apenas um par de sapatos, da mão do próprio pai, se entende ajustado fixar em 90 dias, à taxa diária de € 5,00.

Já no que toca às restantes penas impostas na decisão recorrida por crimes puníveis com prisão ou multa, dada a natureza, quantidade e natureza dos crimes em concurso, o modus operandi, o valor dos prejuízos causados, entende-se que só a pena de prisão satisfaz de forma adequada as finalidades da pena, tal como foi decidido pelo acórdão recorrido.

Dentro do critério apontado, quanto aos crimes de burla cuja qualificação foi alterada, atenta a necessidade de protecção dos bens jurídicos, o grau ilicitude e de participação de cada arguido na globalidade da matéria de facto, o grau de culpa de cada um, entendem-se ajustadas as seguintes penas:

D...: [crime de burla agravado p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a) e al. b) do C. Penal] - 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;

E.../F.../G... [crime de burla agravado na forma continuada p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a) e art. 30º do C. Penal] - 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão para cada um;

A... [crime de burla agravado p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a) e al. b) do C. Penal] - 6 (seis) anos de prisão;

B... [crime de burla agravado p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a) e al. b) do C. Penal] - 4 (quatro) anos de prisão;

C... [crime de burla agravado na forma continuada p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a) e 30º do C. Penal] 4 (quatro) anos de prisão;

I... [crime de burla agravado na forma continuada p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a) e 30º do C. Penal] - 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

J... [crime de burla agravado na na forma tentada, p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a), 22º, 23º e 30º do C. Penal] - 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.

No que toca aos demais crimes em que a sentença não foi alterada, a decisão recorrida assenta nos critérios dos artigos 70º, 71º e 40º do C. P. e na gravidade relativa da conduta de cada um dos vários arguidos no vasto conjunto da matéria de facto, na personalidade de cada um dos arguidos revelada pelos factos em apreciação e pelos respectivos antecedentes criminais.

Sendo certo ainda, como decidiu o AC.STJ de 04.03.2004, in CJ/STJ, tomo I/2204, p. 220, que, observados os critérios legais de dosimetria da pena, nomeadamente o disposto no art. 71º do C. Penal, existe uma margem de actuação do juiz dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar (pelo tribunal de recurso).

Pelo que não se encontram fundamentos para proceder à alteração das restantes penas concretamente aplicadas, porque não infirmados os respectivos pressupostos, salvo na parte já apreciada em que tal foi exigido pelas alterações efectuadas no que toca à qualificação jurídica dos factos – absolvição por crimes de burla na forma tentada; qualificação jurídica diversa dos vários crimes de burla subsistentes em relação a cada um dos arguidos num único crime agravado pelo “modo de vida” ou como crime continuado e arquivamentos por não apresentação de queixa.

10. Cúmulos jurídicos das penas aplicadas

Também em matéria das penas unitárias a decisão recorrida assenta no critério definido pelo art. 77º, n.º1 do C. Penal: consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade dos arguidos.

Daí que apenas se fará referência mais detalhada aos aspectos em que a decisão recorrida possa suscitar dúvidas, aceitando-se, no mais, os fundamentos do acórdão recorrido – ponderação da globalidade dos factos provados, número correspondente de crimes, diversidade dos bens jurídicos violados por cada um dos arguidos, em conjugação com a personalidade revelada nos factos e pelos antecedentes criminais de cada um deles descritos na matéria de facto provada.

Neste âmbito verifica-se em relação aos arguidos E..., F... e G... que são primários.

Por outro lado, escreve-se, sobre os mesmos, com relevo sobre este ponto, no acórdão recorrido: “tinham, respectivamente, 35, 42 e 54 anos... limitaram-se quase só a dar o nome a as assinaturas, bem como a fazer as declarações necessárias à execução dos crimes engendrados pelos outros dois arguidos ... inseriram-se na actividade depois de iniciada a maior parte das negociações ... Conclui-se que é pouco elevada a ilicitude dos seus actos e o seu dolo”.

Sendo tais circunstâncias de ponderar especialmente em sede de apreciação global da gravidade da sua conduta e da culpa. Além de que os crimes de falsificação foram praticados, como instrumento do crime de burla.

Assim, ponderando os factos na sua globalidade, a quantidade e natureza dos crimes, os prejuízos causados, os antecedentes criminais de cada um dos arguidos, tendo em conta ainda tudo o mais referido na decisão recorrida, entendem-se ajustadas, em cúmulo jurídico, nas seguintes penas unitárias:

D... (crime de burla cuja qualificação e pena foram alteradas + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido pelo crime de associação criminosa e 12 crimes de falsificação): 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

E.../F.../G... (crimes de burla cuja qualificação penas foram alteradas + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido pelos crimes de associação e 11 crimes de falsificação): cada um deles na pena unitária de 3 (três) anos de prisão.

A... (crime de burla cuja qualificação e pena foram alteradas + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido por: 2 crimes de associação criminosa; 12 crimes de falsificação p.p. 256º, n.º1, al. b); 4 crimes de falsificação do art. 256º, n.º1, al. a); 3 crimes de falsificação do art. 256º, n.º3): 14 (catorze) anos de prisão;

B... (crime de burla cuja qualificação e pena foram alteradas + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido por: 1 crime de associação criminosa, 11 crimes de falsificação p.p. 256º, n.º1, al. a); 18 crimes de falsificação 256º, n.º3; 1 crime de passagem de moeda falsa: 12 (doze) anos de prisão;

C... (crime de burla cuja qualificação e pena foram alteradas + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido por: 1 crime de associação criminosa; 3 crimes de falsificação p.p. 256º, n.º1, al. a); 4 crimes de falsificação p e p 256º, n.º3; 1 crime de passagem de moeda falsa: 6 (seis) anos de prisão;

I... (crime de burla cuja qualificação e pena foram alteradas + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido por: 1 crime de associação; 6 crimes de falsificação p.p. 256º, n.º1, al. a); 10 crimes de falsificação p 256º, n.º3; 1 crime de passagem de moeda falsa: 7 (sete) anos de prisão;

J... (crime de burla cuja qualificação e pena foram alteradas + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido por: 1 crime de associação; 2 crimes de falsificação p.p. 256º, n.º1, al. a); 3 crimes de falsificação 256º, n.º3; 1 crime de passagem de moeda falsa: 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Relativamente à arguida M... permanece a condenação nas penas de 10 meses de prisão pelo crime falsificação de documento p.p. 256º, n.º3 e 8 meses de prisão pelo crime de passagem de moeda falsa p e o pelo art. 265, n.º1, al. a)].

Devendo reformulando-se o cúmulo para a pena unitária de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão.

NO que toca ao arguido L... permanece a condenação por um único crime (receptação) não havendo cúmulo a realizar.

11. Suspensão da execução de penas aplicadas em cúmulo

Nos termos do art. 50º do C. Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão não superior a 3 anos de prisão se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Estando legalmente arredada a suspensão de penas de prisão superiores a 3 anos de prisão, a questão permanece em aberto relativamente aquelas que não ultrapassam aquele limite.

Como escreve FIGUEIREDO DIAS, in As Consequência Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 342, para além do pressuposto formal (pena inferior a 3 anos de prisão), a lei exige um pressuposto e ordem material, ou seja a verificação, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do caso, de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido no futuro.

Tal juízo não deve assentar necessariamente numa «certeza», bastando uma «expectativa» fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e, consequentemente, a ressocialização em liberdade do arguido – cfr. Ac. STJ de 08.07.1998, CJ/STJ, tomo II/98, p. 237.

Expectativa/prognose que há-de construir-se a partir dos factos provados no âmbito dos pressupostos enunciados pelo art. 50º, tendo por referência as finalidades das penas enunciadas no art. 40º, n.º1 do C. Penal saído da Reforma de 95: “A aplicação da pena... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

Ora, apesar da gravidade objectiva dos factos praticados pelos arguidos E... / F... / G..., as falsificações e a associação em que se envolveram estes arguidos, como refere o excerto do acórdão recorrido supra transcrito a respeito do cúmulo jurídico de penas, constituíram mero instrumento dos crimes de burla. Em cuja prática os mencionados arguidos assumiram papel secundário.

Acresce que os factos praticados por estes arguidos ocorreram já em Janeiro/Março de 1997 e a necessidade da pena de prisão efectiva foi-se esbatendo com o passar do tempo (o próprio legislador concedeu entretanto perdão de penas). Trata-se, por outro lado, de pessoas integradas na sociedade, sem antecedentes criminais, não havendo notícia da prática de outros crimes depois dos apreciados nos autos. O que, atenta a ainda a sua idade e que a pena de suspensão permitirá ainda aos arguidos angariar meios que permitam a reparação do mal do crime, sabendo-se que os arguidos são primários, que a pena de prisão constitui a ultima ratio do sistema, permite formular o referido juízo de que a suspensão satisfaz ainda as finalidades de protecção dos bens jurídicos e prevenção geral, desde que pelo período máximo permitido por lei, atenta a referida gravidade dos factos.

Trata-se, por outro lado, de pessoas integradas na sociedade, sem antecedentes criminais, não havendo notícia da prática de outros crimes depois dos apreciados nos autos. O que, atenta a sua idade, permite concluir que a ameaça da pena satisfaz, do mesmo passo, as necessidades de prevenção especial positiva.

Pelo que se procederá à suspensão da execução das penas aplicadas a estes arguidos, pelo período de 5 anos.

Já relativamente à arguida M..., cuja pena aplicada em cúmulo não excede 3 anos de prisão, entende-se que não existem fundamentos para que possa formular-se o juízo de prognose favorável exigido para a suspensão da pena. Tendo e atenção designadamente os seus antecedentes criminais, referenciados na descrição da matéria provada. Antecedentes que, para além de várias penas severas de prisão por crimes de emissão de cheque sem provisão, sofreu, em 28.04.1995, condenação na pena de 9 anos e 6 meses de prisão, por crimes de uso de documento falso e burla agravada, crimes esses da mesma natureza dos ora praticados, revelando a sua propensão para a prática dos mesmos. De onde resulta que se as anteriores condenações não foram suficientes para a afastar da prática dos crimes ora em apreciação, não permitindo concluir que, agora, a simples ameaça da pena tivesse melhor efeito.

Não se aplicando, pelo exposto, a suspensão.

12. Aplicação do perdão decretado pelo art. 1º da Lei 29/99 de 12.05

Os crimes praticados no âmbito da ETPV, foram consumados até Junho de 1998, portanto antes de 25.05.99, data limite da aplicação da Lei 29/99 de 12.05.

No entanto todos os arguidos cujos crimes poderiam beneficiar, em abstracto, daquele perdão, incorrem em crimes de falsificação praticados precisamente como meio para realizar as burlas integradas na continuação criminosa ou na agravantes “modo de vida”.

Pelo que está excluída a aplicação do referido perdão por força do disposto no art. 2º, n.º2, al. e) da Lei 29/99 de 12.05.

Estando ainda excluído da aplicação do perdão o crime de associação criminosa – al. g) do n.º2 do art. 2º citado.


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VII. DECISÃO

1. Nos termos e com os fundamentos expostos, delibera-se julgar parcialmente procedentes os recursos, nos seguintes termos:

a) - Revoga-se o acórdão recorrido na parte em que condena os arguidos A... e B... por 293 crimes de burla pp no art. 218º,2, b), na forma tentada, e o arguido C... por 292 crimes idênticos, pela prática dos factos descritos na matéria de facto sob os n.ºs 715 a 728, absolvendo-se os referidos arguidos daquele crimes e arquivando-se os autos nessa parte.

b) - Revoga-se o acórdão na parte em que condena os arguidos A... e C... por 224 crimes de burla pp no art. 218º,2, a) e b), na forma tentada, e 189 crimes de burla pp no art. 218º, 2, b), na forma tentada, a que se reportam os factos descritos nos arts. 1573 a 1623 da matéria provada, absolvendo-se dos referidos crimes e arquivando-se os autos nessa parte.

c) - Altera-se a qualificação jurídica dos restantes factos qualificados pelo acórdão recorrido como crimes de burla consumados ou na forma tentada não previstos nos números anteriores, condenando-se os arguidos, nos seguintes termos:

- D..., como autor de um crime de burla agravado p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a) e al. b) do C. Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- E.../F.../G...: como autores, cada um deles, de um crime de burla agravado na forma continuada p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a) e art. 30º do C. Penal, cada um deles na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- A..., como co-autor de um crime de burla agravado p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a) e al. b) do C. Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão;

- B... como autor de um crime de burla agravado p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a) e al. b) do C. Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;

- C..., como autor de um crime de burla agravado na forma continuada p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a) e 30º do C. Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;

- I... como co-autor de um crime de burla agravado na forma continuada p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a) e 30º do C. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- J... como co-autor de um crime de burla agravado na forma continuada, na forma tentada, p. e p. pelo art. 218º, n.º2, al. a), 22º, 23º e 30º do C. Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.

d) Reformulam-se, em consequência do decidido nas alíneas anteriores, os cúmulos jurídicos de penas daqueles arguidos, condenando-se os mesmos, em cúmulo jurídico, nas seguintes penas unitárias:

- D... [pena do crime de burla da alínea anterior + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido, pelos crimes de: 1 crime de associação criminosa p e p no art. 299º, 1 do CP e 12 crimes de falsificação p e p no art. 256º,n.º1, b) do CP]: - 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- E.../F.../G... [pena do crime de burla da alínea anterior + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido, pelos crimes de: associação criminosa; 11 crimes de falsificação p e p no art 256º,n.º1, b) do CP]: - cada um deles na pena unitária de 3 (três) anos de prisão, cuja execução se lhes suspende aos três e a cada um pelo período de 5 anos.

- A... [pena do crime de burla da alínea anterior + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido, pelos crimes de: 2 crimes de associação criminosa;; 12 crimes de falsificação p.p. 256º, n.º1, al. b); 4 crimes de falsificação p p pelo art. 256º, n.º1, al. a); 3 crimes de falsificação do art. 256º n.º1, al. a) e n.º3 do CP]: - 14 (catorze) anos de prisão;

- B... [pena do crime de burla da alínea anterior + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido, pelos crimes de: 1 crime de associação criminosa p e p pelo art. 299, n.º1 do CP; 11 crimes de falsificação p.p. no art. 256º, n.º1, al. a); 18 crimes de falsificação 256º, n.º1, a) e n.º3; 1 crime de passagem de moeda falsa p e p pelo art. 265º, n.º1, al. a)]: - 12 (doze) anos de prisão;

- C... [pena do crime de burla da alínea anterior + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido, pelos crimes de: 1 de associação criminosa p e p pelo art. 299, n.º1 do CP; 3 crimes de falsificação p.p. 256º, n.º1, al. a): 4 crimes de falsificação p e p pelo art. 256º, n.º1, al. a) e n.º3; 1 crime de passagem de moeda falsa p e p pelo art. 265º, n.º1, al. a) do CP]: - 6 (seis) anos de prisão;

- I... [pena do crime de burla da alínea anterior + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido, pelos crimes de: 1 crime de associação criminosa p e p pelo art. 299, n.º1 do CP; 6 crimes de falsificação p.p. 256º, n.º1, al. a); 10 crimes de falsificação p e p pelo art. 256º, nº 1, al. a) e n.º3; 1 crime de passagem de moeda falsa p e p pelo art. 265º, n.º1, al. a) do CP]: - 7 (sete) anos de prisão;

- J... [pena do crime de burla da alínea anterior + penas não alteradas impostas pelo acórdão recorrido, pelos crimes de: 1 associação criminosa p e p pelo art. 299, n.º1 do CP; 2 crimes de falsificação p.p. 256º, n.º1, al. a); 3 crimes de falsificação p e p pelo art. 256º n.º1, al. a) e n.º3 ; 1 crime de passagem de moeda falsa p e p pelo art. 265º, n.º1, al. a) do CP]: - 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.

e) Altera-se a qualificação jurídica dos crimes de burla qualificada p e p pelo art. 218º, n.º2, al. b) do CP por que vêm condenados os arguidos K..., L..., M... e N... para o crime de burla simples p e p pelo art. 217º do C. Penal, determinando-se o arquivamento dos autos, nessa parte, por falta de legitimidade do MºPº para a acção penal.

f) Revoga-se o acórdão recorrido na parte em que aplica ao arguido K..., pela prática dos dois crimes de receptação, a pena de prisão, condenando-o, pela prática dos mesmos crimes, respectivamente, na pena de 150 dias de multa à taxa diária € 10,00 (dez euros) pelo primeiro e na pena de 190 dias de multa à mesma taxa diária pelo segundo. E em cúmulo jurídico na pena unitária de 250 dias de multa à taxa diária de € 10, perfazendo o total de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).

g) Revoga-se a decisão recorrida na parte em que condena o arguido L... em pena de prisão, pela prática do crime de receptação p e p pelo art. 213, n.º1 do C.P., condenando-o, pela prática do mesmo crime, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o total de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros).

h) Reformula-se, em consequência da decisão proferida na alínea e), o cúmulo jurídico das penas subsistentes aplicadas à arguida M... pelo acórdão recorrido [10 meses de prisão pelo crime falsificação de documento p.p. 256º, n.º3 + 8 meses de prisão pelo crime de passagem de moeda falsa p e o pelo art. 265, n.º1, al. a)] condenando-a na pena unitária de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão.

2. Não se aplica o perdão decretado pelo era. 1º da Lei 29/99 de 12.05 relativamente aos crimes de burla e falsificação - casos da EPVL praticados antes de 25.05.99 - porque em relação a todos os arguidos que praticaram factos unificados nos crimes de burla correspondentes foram praticados crimes de falsificação, como meio de praticar o crime de burla, estando por isso excluída a aplicação do perdão pelo art. 2º, n.º2, al. e) da Lei 29/99 de 12.05. Estando ainda excluído o crime de associação criminosa – al. g) do n.º2 do art. 2º citado.

3. Julgam-se improcedentes os recursos da decisão final em tudo o mais não expressamente revogado ou alterado nos números anteriores.

Tenha-se em conta, oportunamente, o disposto no art. 80º do C. Penal - desconto da prisão preventiva cumprida pelos arguidos à ordem dos presentes autos.

Os recorrentes pagarão, cada um, de taxa de justiça [atenta a extensão das questões colocadas, grau de complexidade, grau de vencimento, situação económica, nos ternos dos artigos 513º, n.º1 do CPP e 82º, n.º1 e 87º, n.º1, al. b) do CCJ]: A... - 15 UC; C... – 10 UC; B.../I... - 6 UC cada um; D... - 6 UC; O... - 6 UC; J... - 9 UC; E.../F.../M... - 5 UC cada um; K... - 4 UC; P... - 3 UC; L... - 3 UC.

As restantes custas serão pagas pelos arguidos condenados em taxa de justiça, na proporção da taxa fixada para cada um.