Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
278/08.1TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: MÚTUO
NATUREZA CONTRATUAL
Data do Acordão: 12/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE AVEIRO – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1142º E SEGS. DO C. CIV..
Sumário: I – No contrato de mútuo a entrega da coisa (datio rei) constitui um pressuposto ou elemento constitutivo essencial à formação do contrato, á luz das normas legais que regem esta figura jurídica – natureza de contrato real (quoad constitutionem).

II – Quem invoca um contrato de mútuo tem o ónus da prova da verificação desse elemento constitutivo do contrato.

III – O pagamento de um cheque emitido pelo autor a favor do R. e cujo valor foi por este recebido, não implica, de per si, qualquer obrigação para o beneficiário desse cheque em relação ao sacador, designadamente por via do instituto do enriquecimento sem causa.

IV – Muito embora não tenha sido invocado nos articulados, nada impede que, verificados em termos factuais os respectivos pressupostos, o tribunal possa conhecer e condenar com base no instituto do enriquecimento sem causa (e mais ainda se tiver, a esse propósito, sido respeitado o princípio do contraditório.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. O autor, A…, instaurou (em 22/01/2008) contra, B… e sua mulher C…, a presente acção declarativa, com forma de processo sumário, pedindo a condenação destes a restituírem-lhe a quantia de € 4.987,98, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, contados desde Janeiro de 2007 e até ao seu integral pagamento.
Para o efeito, alegou, em síntese, o seguinte:
Em Março de 2002, e a pedido do mesmo, emprestou ao réu/marido a quantia de esc. 1.000.000$00/€ 4.987,98. Empréstimo esse que foi consubstanciado através da entrega de um cheque titulando tal importância, ficando então acordado entre ambos que a mesma seria restituída ao A. no mais curto espaço de tempo ou então logo que este lhe solicitasse a sua restituição.
Empréstimo foi contraído com o conhecimento da ré/mulher e destinou-se a fazer face a encargos do casal.
Acontece que a referida importância ainda não lhe foi devolvida, não obstante o autor ter entretanto interpelado expressamente o réu nesse sentido.
Restituição essa que deverá ter sempre lugar mesmo que porventura se entenda que o mútuo é nulo por vício de forma.

2. Na sua contestação os réus defenderam-se, alegando, em síntese, que no ano de 1997/1998, o réu/marido, a pedido do mesmo, emprestara ao autor a importância de esc. 1.000.000$000, com vista a suportar dificuldades económicas porque então passava.
Mais tarde, autor e réus envolveram-se em negócios conjuntos, tornando-se sócios de uma sociedade.
Como esses negócios não tivessem corrido bem, a referida sociedade que haviam constituído começou a apresentar prejuízos, o que levou a que autor e réus, únicos sócios da mesma em três quotas iguais, tivessem acordado em prestar suprimentos àquela sociedade, no montante de € 4.987,98 cada um deles.
E foi então que o réu/marido pediu ao A. que lhe restituísse aquela importância que em tempos lhe havia emprestado, para a utilizar como seu suprimento a favor da dita sociedade. Pedido esse a que o A., acedeu, restituindo-lhe então, por via do aludido cheque a que se refere na petição inicial, a importância de € 4.987,98, que então lhe devia.
Mútuo esse que mesmo que porventura se viesse a reconhecer ter existido, sempre seria nulo por vício de forma.
Pelo que terminaram os réus pedindo a improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.

3. No despacho saneador afirmou-se a validade e a regularidade da instância, tendo-se, aí dispensado, à luz do disposto no artº 787 do CPC, de proceder à selecção da matéria de facto.

4. Mais tarde, procedeu-se à realização do julgamento – com a gravação da audiência -, após que se respondeu à matéria de facto que fora alegada.

5. Seguiu-se a prolação da sentença que, a final, julgou improcedente a acção, absolvendo-se os réus do pedido contra si formulado pelo A.

6. Não se tendo conformado como tal sentença, o autor dela interpôs recurso, o qual foi recebido como apelação.

7. Nas correspondentes alegações de recurso que apresentou, o autor/apelante concluiu as mesmas nos seguintes termos:
[…]
8. Contra-alegaram os RR., pugnando pela improcedência do recurso e pela, consequente, manutenção do julgado.

9. Dispensados que foram (com a concordância dos exmºs colegas) os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
***
II- Fundamentação
1. Do objecto do recurso.
1.1 Questão prévia.
[…]
***
2. Os factos.
Assim, os factos a considerar neste tribunal ad quem são aqueles que foram dados como provados pelo tribunal da 1ª instância, e que são os seguintes:
2.1 O autor dedicava-se à actividade comercial de fabrico e comercialização de bolachas e derivados.
2.2 O autor emitiu e entregou ao réu o cheque cuja cópia se mostra junta na folha 6, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
***
3. O direito.
Assim, a questão que importa agora indagar traduz-se em saber se houve ou não erro no julgamento de direito.
Apreciemos então.
Como é sabido qualquer obrigação de indemnizar deve ter uma causa, ou seja, uma fonte reconhecida pelo nosso ordenamento jurídico (vg. responsabilidade contratual ou negocial, responsabilidade extracontratual - por factos ilícitos, pelo risco e por factos lícitos -, instituto do enriquecimento sem causa, etc.), que a final de contas se traduz no acto ou facto jurídico consubstanciador da causa de pedir em que o autor faz assentar a sua pretensão final e para a qual requer tutela judiciária.
Como supra se deixou exarado, o autor fundamentou a sua pretensão (de condenação dos RR. a restituírem-lhe a importância de € 4.987,98, acrescida de juros moratórios) na existência de um contrato de mútuo celebrado com o R/marido, traduzido no alegado empréstimo (com entrega efectiva) por aquele ao último da referida quantia e da qual terá beneficiado o casal, e no qual ficara acordado a obrigação do último lha restituir no mais curto espaço de tempo possível ou, na pior das hipóteses, logo que tal lhe fosse solicitado por aquele (o A.), sendo que essa obrigação de restituição sempre deveria ter lugar no caso de se entender ser o contrato nulo por vício de forma.
A figura contratual do mútuo encontra-se prevista e regulamentada no artº 1142 e ss. do C. Civil (diploma ao qual nos referiremos sempre que doravante mencionarmos somente o normativo sem a indicação da sua fonte), sendo, pois, um contrato típico e nominado.
Na verdade, dispõe-se em tal normativo que “mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
Sem pretendermos esgotar a temática (por se nos afigurar despicienda para resolução do caso em apreço) vem constituindo, sobretudo nos tempos mais hodiernos, objecto de discussão o saber se tal contrato têm ou não a natureza de contrato real (quoad constitutionem), o que passa pela questão de saber se a entrega da coisa (datio rei) constitui ou não um pressuposto ou elemento essencial à formação do contrato.
Em sentido afirmativo, e no sentido de que a referida entrega da coisa constitui um elemento constitutivo do negócio, vem afirmando uma corrente de opinião, aderindo, assim, àquilo que vinha sendo a posição clássica, e que entre nós continua a ser a posição dominante (vidé, por todos, o prof. Glavão Telles, «Empréstimo Cristal, in “Rev. O Direito, 125º, 1993, pág. 190”» e o prof. Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial, 3ª ed., Almedina, pág. 393”).
Em sentido negativo vai, porém, uma outra corrente de opinião, sustentando mesmo que a realidade do mútuo não passa hoje de um resquício histórico, defendendo que a entrega da coisa mutuada não teria a função de elemento constitutivo do negócio, antes representando um acto executivo do contrato, que não teria necessariamente de ser contemporâneo da celebração do contrato (vidé, entre nós, o prof. Castro Mendes, in “Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II., Lisboa, AAFDL, págs. 309/310”),
Por fim, poderemos ainda dar conta de uma outra corrente de opinião intermédia, admitindo a existência do mútuo consensual ao lado do mútuo real e da própria promessa de mútuo, defendendo, assim, não constituir a entrega da coisa um pressuposto ou condição essencial da validade do contrato, já que as partes poderiam acordar na não entrega da coisa, o que tornaria esse contrato como atípico. De modo que ao abrigo do princípio da autonomia privada nada impede que as partes possam celebrar contratos diferentes dos previstos no Código Civil, e nessa medida ficaria na sua disponibilidade a celebração de mútuo como real (com a entrega da coisa) ou como consensual (não envolvendo a entrega da coisa, pelo menos aquando da sua celebração). Representando esta corrente, vidé, entre outros, o prof. Vaz Serra, in “RLJ, Anos 93, pág. 65-69, 81-83, 97-100, 129-131, 161-164 e 177-1980” e o prof. Menezes Cordeiro, in “Tratado de direito Civil, I – Parte Geral, tomo I, 2ª ed., Almedina, 2000, pág. 314”.
Todavia, face ao teor da redacção do acima citado normativo legal, afigura-se-nos que o nosso legislador aderiu à tese da natureza real do contrato, sendo a entrega da coisa um elemento essencial e constitutivo do contrato do mútuo, tal como vem ainda hoje constituindo entendimento prevalecente entre nós. (Para maior e melhor desenvolvimento vidé o prof. Menezes Leitão, in “Ob. cit., págs. 392 a 394”).
Entrega da coisa que, naturalmente e como é bom de ver, não deixará, todavia, de ser tão somente um dos elementos constitutivos do contrato. Na verdade, um contrato mútuo pressupõe, naturalmente, a existência de um acordo de vontades nesse sentido, envolvendo as obrigações (recíprocas) quer da entrega de dinheiro ou de outra coisa fungível ao mutuário, quer da restituição, por este ao mutuante, de outro tanto do mesmo género ou qualidade.
Posto isto, basta, a nosso ver, calcorrear a matéria factual que foi dada como assente para verificar, desde logo, que a existência do referido contrato não ficou provada, como provada nem sequer ficou a existência de qualquer um dos aludidos elementos que o constituem.
Ónus de prova esse que incumbe a quem invoca tal contrato (artº 342, nº 1).
O cheque que o A. emitiu a favor do réu, juridicamente não representa ou consubstancia em si mesmo mais sequer do que uma ordem de pagamento incondicionada dada pelo sacador (neste caso pelo A.) ao banqueiro, no estabelecimento do qual tem (ou deve ter) fundos disponíveis, em ordem a pagar à vista a importância nele inscrita.
Ora, mesmo que o banqueiro tenha pago a importância inscrita no referido cheque (de € 4.987,98), fica-se sempre sem saber a causa (ou a razão de ser) que esteve subjacente à emissão daquela ordem de pagamento, sendo certo que daí não resulta, só de per si, qualquer obrigação para o beneficiário desse cheque (neste caso para o réu) em relação ao sacador do mesmo (aqui o A.), e nomeadamente de lhe pagar ou restituir a importância nele titulada que o banqueiro lhe tenha pago.
Não ficando provado o invocado contrato de mútuo, é claro que não se pode sequer falar da sua nulidade, por vício de forma (à luz dos artºs 1143 e 294), e, consequentemente, inexiste também o 2º fundamento pelo qual (ao abrigo do disposto no artº 289, nº 1) o ora apelante (subsidiariamente) pedia a condenação dos RR. a restituírem a referida importância.
Só agora nas alegações de recurso o autor pede também a condenação dos RR. a restituírem-lhe a peticionada importância com base no instituto do enriquecimento sem causa (previsto no artº 473 e ss).
Muito embora tal questão não tenha sido suscitada nos articulados, vem constituindo entendimento dominante no sentido de que, verificados em termos factuais os respectivos pressupostos, nada impedirá (à luz também da aplicação do principio ínsito no artº 664 do CPC) que o tribunal possa conhecer e condenar com base nesse instituto - e mais ainda dado que foi respeitado o princípio do contraditório, já que os RR. tiveram oportunidade, como o fizeram, de se pronunciar a esse propósito na sua resposta às alegações de recurso (cfr., entre outros, Ac. do STJ de 23/3/1999, in “CJ, Acs. do STJ, Ano VI, T1 – 172 e ss”; Ac. da RLx de 24/4/1999, in “BMJ 486 – 360” e Ac. da RP de 27/11/74, in “BMJ 241 – 348”).
Como decorre do citado artº 473 (e sem querermos aqui entrar numa análise profunda, por desnecessária para o caso), são vários os pressupostos ou requisitos legais cumulativos de que depende a aplicação do referido instituto e a saber: a) que haja enriquecimento de alguém; b) que esse enriquecimento careça de causa justificativa; c) e que ele tenha sido obtido à custa do empobrecido de quem requer a restituição.
Constitui entendimento claramente prevalecente no sentido de que, à luz do artº 342, nº 1, é sobre o autor (alegadamente empobrecido) que impende o ónus de alegação e prova dos correspondentes factos que integram cada um daqueles requisitos (vidé, por todos, Acs. do STJ de 16/9/2008, de 20/9/2007 e de 14/5/1996, respectivamente, nos processos 08B1644 e 07B2156, publicados in “www.dsgsi.pt/jstj”, sendo o último na CJ, Acs. do STJ, Ano III, T2 – 172”.
Ora, compulsando a matéria de facto apurada, facilmente se conclui desde logo que nenhum dos aludidos requisitos se mostra preenchido, sendo certo ainda que a simples prova da entrega da referida importância ao réu que foi alegada pelo A., não era igualmente bastante para obter, também por via do instituto do enriquecimento sem causa, a restituição da mesma, pois, ao contrário do que defende nas suas alegações de recurso, era sobre ele que, além do mais, também impendia ainda ónus de prova da falta de causa justificativa para o pretenso enriquecimento dos RR. (e nomeadamente do R./marido), o que, como vimos, não logrou, em qualquer circunstância, fazer.
Termos, pois, em que, sem necessidade outras considerações, se decide julgar improcedente o recurso, confirmando-se, assim, a sentença da 1ª instância.
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença da 1ª instância.
Custas pelo A./apelante.
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Coimbra, 2008/12/17.