Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
679/05.7GAMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: CRIME PARTICULAR
Mº Pº
LEGITIMIDADE PARA ACUSAR
Data do Acordão: 12/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 50º CPP
Sumário: 1. Carece o Ministério Público de legitimidade para acusar quanto a factos autonomamente integrados num crime de injúrias.
2. Deste modo o tribunal deve abster-se de se pronunciar de mérito por um crime de injúrias, por falta de acusação particular, apesar da respectiva factualidade estar integrada na acusação pública por maus-tratos a cônjuge e constar dos factos provados.
Decisão Texto Integral: I –
1- No processo comum com o número supra referido, JC... foi condenado na pena única de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, resultante do cúmulo jurídico de duas penas de 1 ano de prisão pela prática de dois crimes de maus tratos p. e p. pelo art.º 152º/1 alínea a) do Código Penal, perpetrados na pessoa das suas filhas SP… e DI….
Mas foi absolvido da prática de outro crime de maus tratos previsto no n.º2 do mesmo artigo relativamente à sua esposa MF.... E o tribunal absteve-se de se pronunciar de mérito por um crime de injúrias por falta de acusação particular da ofendida MF..., apesar da respectiva factualidade estar integrada na acusação pública por maus tratos a cônjuge e constar dos factos provados.
2- O Ministério Público concorda com a autonomização destes dois crimes e com a absolvição do arguido quanto aos maus tratos ao cônjuge. Mas recorre defendendo a tese de que a autonomização do crime de injúrias do crime de maus tratos não impedia o tribunal de condenar o arguido pelo crime de injúrias apesar da não constituição da ofendida como assistente e consequente falta de acusação particular.
As suas conclusões são as seguintes –
a) O Tribunal entendeu que como o crime de injúria reveste natureza particular, face à não constituição de assistente por parte da ofendida e à omissão de dedução de acusação particular, a dedução de acusação pelo Ministério Público estaria impedida quanto a este crime, pelo que o arguido não poderia por ele ser condenado.
b) Afigura-se-nos, porém, que outras soluções existem, mais razoáveis, e que consagram uma solução que também contempla a posição pessoal do ofendido.
c) Estando o arguido acusado por um crime de maus tratos praticado contra a sua esposa, verificando-se provado em sede de julgamento um facto que, por si, apenas engloba um crime de injúria, é nosso entendimento que o mesmo deve ser condenado por tal crime.
d) Com efeito, tal alteração da qualificação jurídica não põe em causa a defesa do arguido, uma vez que o facto ocorrido em 2.11.2005 já constava da acusação pública.
e) Por outro lado, tendo o procedimento criminal sido validamente exercido pelo Ministério Público, o facto de em julgamento apenas se provar um facto que integra apenas um crime de injúria, tal facto não afecta a validade da acusação deduzida nem implica a perda de legitimidade do Ministério Público.
f) No caso não foi dada à ofendida a possibilidade de se constituir assistente e deduzir acusação particular, pois quando o inquérito foi encerrado, o Ministério Público, perante o manancial de factos disponíveis, porque não se indiciava crime particular, fez o que lhe impõe o Código de Processo Penal quando se recolhem indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, deduzindo acusação por crime relativamente ao qual tinha legitimidade para acusar.
g) Por todo o exposto, entendemos que o arguido JC..., uma vez absolvido do crime de maus tratos de que vinha acusado, mas provando-se em julgamento que praticou um crime de injúrias, deve ser condenado pela prática deste crime, pelo que, não o tendo feito, se violou o artigo 181. °/1 do Código Penal.
3- Nesta instância o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que procura demonstrar o desacerto da tese defendida pelo recorrente.
4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir!
II –
1- Factos provados –
1) O arguido JC..., e a ofendida MF... casaram um com o outro no dia 12 de Julho de 1985.
2) SP..., nascida em 16 de Fevereiro de 1986, e filha do arguido e da ofendida MF....
3) DI..., nascida em 22 de Agosto de 1988, é filha do arguido e da ofendida MF....
4) A residência do arguido e seu agregado familiar situava-se na Rua …, Montemor-O – Velho.
5) Após o casamento, o arguido apresentava uma personalidade agressiva e embriagava-se com frequência.
6) Em data não concretamente apurada, há cerca de 19 anos, a ofendida MF…, que se encontrava em adiantado estado de gravidez, comunicou ao arguido que iam ser pais de outra menina.
7) Nessa ocasião, o arguido, após ingerir grande quantidade de bebidas alcoólicas bateu, por forma não concretamente apurada na ofendida MF….
8) Quando as filhas do casal tinham cerca de três anos e um ano e meio de idade, respectivamente, numa ocasião em que o arguido e ofendida ouviram dizer que o mundo ia acabar, o arguido chegou a casa embriagado e, dirigindo-se à mulher e desferiu-lhe bofetadas e pontapés, atingindo-a por todo o corpo.
9) Durante o período compreendido entre os anos de 1993 e 1999, sempre que recebia o salário, o arguido chegava a casa embriagado.
10) Nessas ocasiões, o arguido, manifestamente exaltado e sem qualquer motivação, batia na mulher.
11) À medida que cresciam, as ofendidas SP... e DI… foram-se apercebendo das atitudes do arguido para com a sua mãe e, principalmente a mais velha, procuravam interceder em sua defesa.
12) Durante este período, inúmeras vezes, sobretudo quando estava embriagado e no intuito de as forçar a obedecer e a acatar as suas ordens, o arguido desferia "pancadas à coelho" nas filhas, isto é, palmadas na nuca.
13) A ofendida SP..., quando criança, foi submetida a uma intervenção cirúrgica a um ouvido, sendo que durante o período de internamento o arguido não a visitou.
14) Devido ao comportamento do arguido para com elas e a sua mãe, as ofendidas SP... e DI... viviam em permanente sobressalto e angústia, tendo medo do pai
15) Devido ao comportamento do arguido para com ela e a sua mãe, e face ao medo que sentia de seu pai, a ofendida SP..., entre os 7 e os 9 anos, não era capaz de controlar os esfíncteres, sendo que por vezes, na presença do pai ou quando pressentia a sua chegada a casa, se urinava, o que também acontecia enquanto dormia.
16) Por volta do ano de 1998, numa ocasião em que a ofendida MF... solicitou dinheiro ao arguido para as despesas domésticas, o arguido a tanto se recusou e insultou a mulher, dizendo-lhe para ir "para a borda da estrada".
17) Desde 1999/2000, o arguido e a ofendida MF..., embora vivendo na mesma casa, deixaram de viver como marido e mulher, não mantendo relacionamento sexual, não tomando juntos as refeições, não falando sobre os assuntos da família e do lar, não partilhando as despesas da casa.
18) A ofendida MF... decidiu refazer a sua vida, e por volta de 2004/2005 iniciou um relacionamento amoroso com outro homem, facto de que o arguido teve conhecimento.
19) O arguido saiu da casa de morada do casal no ano de 2005.
20) Actualmente, vive maritalmente com outra mulher na cidade da Figueira da Foz.
*21) Em 2 de Novembro de 2005, cerca das 22 horas, o arguido acercou-se da residência da MF... e dirigindo-se-lhe, apodou-a de "puta" e "vaca".
22) A ofendida MF... reside maritalmente com um companheiro desde 2007.
23) A ofendida SP... autonomizou-se do agregado familiar de seus pais há cerca de cinco anos.
24) Em consequência das atitudes do arguido, acima descritas, padeceram as ofendidas SP... e DI... de graves traumas psicológicos que ainda hoje perduram.
25) O arguido agiu com o propósito conseguido de infligir às ofendidas, sua mulher e suas filhas, maus tratos físicos e psíquicos, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
26) A ofendida esteve internada no Hospital Sobral Cid em Coimbra de 04 a 11 de Novembro de 2005, continuando a ser tratada em consulta externa.
27) Os encargos com a assistência prestada à ofendida MF... pelo Hospital Sobral Cid, importaram na quantia de € 623,30.
28) Encontra-se apreendida nos autos uma espingarda de caça, canos sobrepostos, calibre 12 mm, marca Investarm, n° 424591, com 0,71 cm de comprimento de cano, e um estojo de transporte, que foi entregue pela ofendida MF... no posto territorial da GNR de Montemor-o- Velho no dia 31.10.2005.
29) A referida arma é pertença do arguido, que possui autorização de detenção no domicílio n° 572/04, emitida em 22.10.04 pela PSP de Coimbra, para a referida arma, manifestada sobre o livrete n° L451 04.
30) O arguido aufere vencimento mensal de €450.
31) Reside em casa da sua companheira.
32) É analfabeto.
33) Não tem antecedentes criminais.
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2- Apreciação –
2.1- Partindo do pressuposto de que o último facto integrador do crime de maus tratos ao cônjuge ocorrera em 1999, que a essa data o tipo exigia queixa do ofendido e que esta não fora apresentada pela ofendida em tempo (6 meses contados da prática do último acto integrado no tipo), o tribunal absolveu o arguido do crime de maus tratos. E rejeitando a inserção da factualidade provada ocorrida a 2/11/2005 na descrição típica do crime de maus tratos, antes a integrando no tipo de injúrias [o arguido nesse dia apodou a ofendida de «puta» e «vaca»], ponderou que pelo crime de injúrias o arguido «não pode pelo mesmo ser condenado», por falta de acusação particular com prévia constituição da ofendida como assistente.
2.2- A questão a dirimir é, assim, a de se saber da valia parcial duma acusação pública não precedida de acusação particular no segmento em que o tribunal tem os factos como integráveis num crime autónomo de injúrias.
Cremos que é de sufragar a tese da sentença por ser a que favorece o arguido já que as normas que disciplinam o direito de queixa ou o direito de acusação particular condicionam a responsabilidade penal e por isso têm natureza substantiva.
Se a lei tiver efeitos sobre a penalidade concreta aplicável ao arguido ela deve ser considerada de natureza material, ainda que o seja também de natureza processual Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 2000, 105/106. .
Nos crimes particulares –, aqueles em que a lei faz depender o procedimento de acusação particular –, para que o Ministério Público possa exercer a acção penal é mister que o titular do direito de acusação particular se queixe, se constitua como assistente e deduza a sua acusação para que o Ministério Público possa promover o procedimento Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal , I, 261..
A acusação particular é nessa parte uma condição de prosseguibilidade e sua falta, seja qual for a razão desta, implica sempre a extinção do procedimento Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal , III, 120..
Na perspectiva do direito constituído apenas se deve atender ao interesse do arguido e não também ao do ofendido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, I, 274. .
A existência de acusação particular constitui um pressuposto processual que condiciona a legitimidade do Ministério Público para também nessa parte acusar. É uma condicionante nessa parte da valia do processo. A sua falta dita, nessa parte, a não valia da relação processual.
Estatui o art.º 50º/1 do Código de Processo Penal que «Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular».
Trata-se dum caso em que a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal se encontra condicionada. A falta de acusação particular acarreta a ilegitimidade do Ministério Público quanto ao crime em causa.
A ilegitimidade é um pressuposto negativo, tradicionalmente conhecido por excepção, cognoscível oficiosamente e a todo o tempo. É uma questão prévia que condiciona o conhecimento de mérito já que a falta dum pressuposto processual dá sempre lugar a uma decisão de cariz meramente processual Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 32/33 .
Diga-se que em processo penal não é de atribuir natureza diferente às excepções de direito substantivo ou de direito processual. Verdadeiramente os seus efeitos são sempre processuais e impedem uma decisão sobre o fundo da questão Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, III, 532.
A acção penal deve ser exercida pela entidade para tal legitimada e na forma prescrita pela lei. Sem a acção penal exercida pelo legítimo titular faltará um pressuposto processual.
Relativamente à acção penal pode verificar-se quer a falta de titularidade da acção penal quer a falta de condições concretas do seu exercício. Na primeira hipótese faltará um pressuposto da existência do processo; na segunda um pressuposto da validade do processo.
A titularidade do direito de acção cabe ao Ministério Público em razão das suas funções. O exercício do direito de acção no caso concreto é que pode depender de circunstâncias diversas que constituem pressupostos desse exercício. E é a verificação desses pressupostos que consubstancia a legitimidade do Ministério Público.
Como a acção penal é o motor do próprio processo, os pressupostos do exercício da acção penal são necessariamente pressupostos de todo o processo e usualmente são designados por condições de procedibilidade, por oposição às condições de punibilidade de direito substantivo Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, III, 539/547.
A situação versada nos autos é uma situação «sui generis» que nos parece não ter previsão no actual ordenamento processual pelo que, a nosso ver, não pode deixar de lhe ser aplicada a teorização que deixámos enunciada.
Temos assim por correcta a decisão proferida na sentença recorrida, carecendo o Ministério Público de legitimidade para acusar quanto aos factos autonomamente integrados num crime de injúrias.
E o seu conhecimento podia ter lugar a todo o tempo enquanto se mantivesse a relação processual.
III –
Decisão –
Termos em que improcede o recurso.
Sem custas.
Coimbra,