Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2917/07.2TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
ENCERRAMENTO DO ESTABELECIMENTO
Data do Acordão: 02/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1083.º, N.º 1 E 2 C) E D) DA LEI N.º 6/2006, DE 27/02 (NRAU) ARTIGO 64.º DO DL 321-B/90, DE 15/10; ARTIGOS 264.º , N.º 2 E 3; 514.º; 664.º; 787.º; 817.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. A dispensa da selecção dos factos controvertidos necessários à decisão da causa nunca pode prescindir dos factos oportunamente alegados pelas partes, sem prejuízo da consideração dos factos notórios e do conhecimento oficioso do tribunal, e daqueles que são referidos nos nºs 2, 2ª parte, e 3 do artigo 264.º do Código de Processo Civil.

2. Os factos instrumentais devem respeitar um duplo princípio: por um lado, o de que, de algum modo, devem estar contidos na matéria articulada; por outro, o de que fiquem sujeitos ao contraditório – ou, pelo menos, ao conhecimento das partes – e à possibilidade de sobre eles incidir prova, o que evidentemente deve ter lugar antes do encerramento da discussão, em sintonia com o artigo 650.º , nº 2, al.ª f) do Código de Processo Civil.

3. O encerramento do estabelecimento referido na al.ª h) do nº 1 artigo 64.º do revogado RAU, aprovado pelo DL 321-B/90 de 15/10, caracteriza-se por uma actuação do arrendatário sobre o locado que provoca a supressão do contacto com o público e com a clientela e o acesso destes às instalações respectivas, ainda que não imediatamente para a efectivação de negócios.

4. A mera redução ou sectorização da actividade – no âmbito da estratégia delineada pelo comerciante – não é idónea para consubstanciar encerramento do locado.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A......intentou no 3º Juízo Cível da Comarca de Aveiro uma acção declarativa com processo sumário contra B......, alegando em resumo:

Pelos respectivos antepossuidores e anteproprietários foi dado de arrendamento à Ré determinado imóvel urbano para a instalação de um estabelecimento comercial de venda de óculos, lentes e demais acessórios para óptica, ao público em geral. Sucede, porém, que desde há, pelo menos 5 anos, a Ré mantém encerrado o estabelecimento que ali tinha instalado, aí tendo deixado de atender clientes, deixado de ter a porta aberta, cumprir horário, ter qualquer funcionário ou trabalhador, em suma, tendo-o permanentemente fechado, ali mantendo apenas a montra para exposição de artigos do seu comércio, o que também consubstancia uma utilização do espaço para fim diverso do convencionado. Por isso, pede seja declarada a resolução do contrato de arrendamento dos autos e, consequentemente, a R. condenada a restituir-lhe de imediato o locado, livre e devoluto.

Contestando a Ré impugna a factualidade invocada, defendendo que nunca encerrou o estabelecimento instalado no locado, pois que o mantém aberto ao público, no horário que entende mais conveniente e adequado à sua actividade, ali fazendo vendas de artigos do seu comércio, artigos que sempre repôs, nomeadamente com material novo. Concretizando que actualmente mantém tal estabelecimento aberto ao público semanalmente ao sábado de manhã, tudo tendo em conta que tal espaço não corresponde à sua sede. Acrescenta, no entanto, que, desde Dezembro de 2005, tem visto muito prejudicada a possibilidade de no mesmo exercer a sua actividade, uma vez que ali se registaram, desde então, quatro inundações, designadamente com origem no entupimento das fossas do prédio, o que levou a que se visse obrigada a diminuir drasticamente a actividade que ali desenvolvia. Pugna pela improcedência da acção.

A final foi proferida sentença julgando a acção improcedente e absolvendo a Ré do pedido.

Inconformada, recorreu a A., recurso admitido como de apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância :

1) A Autora é a dona e legítima possuidora de um prédio urbano composto de bloco destinado a habitação e comércio, constituído de cave ampla, rés do chão, oito andares e terraço, sito no Gaveto da Av. Araújo e Silva e Rua de Ílhavo/ Rua Dr. Mário Sacramento, freguesia da Glória, concelho de Aveiro, inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o artigo nº 2357 e descrito junto da Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº 01648;
2) Ali tendo definitivamente inscrito aquele seu direito de propriedade a seu favor sob a inscrição F-1, que adquiriu por partilha da herança aberta por óbito de C......e de D......;
3) Há mais de 30 anos que é a Autora, por si e antepossuidores, quem cuida, guarda, frutifica, explora, conserva, goza e usa o sobredito prédio, paga os respectivos impostos e contribuições, na convicção própria e generalizada de que assim actuando o faz na qualidades e exercício dos poderes próprios de proprietária, à vista de toda a gente, sem a oposição de ninguém e sem o prejuízo de direito de ninguém, pelo que se por outra via o não tivesse feito, sempre teria adquirido o respectivo direito de propriedade pela via da usucapião;
4) Em 03.04.1972, pelos anteriores possuidores e proprietários do referido prédio e através da escritura pública cuja cópia se mostra junta de fls. 49 a 54 dos autos, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, foi dado de arrendamento à Ré um espaço daquele prédio, destinado a comércio, sito no rés do chão, com entrada pelos números de polícia 4 e 6 da Rua Ílhavo (actual Rua Mário Sacramento), em Aveiro;
5) O locado destinou-se ao exercício do comércio do ramo de óptica retalhista;
6) E ficou a Ré obrigada ao pagamento mensal de contraprestação, que é actualmente do valor de € 106,06;
7) A Ré ocupou o arrendado e ali instalou um estabelecimento comercial que manteve aberto ao público, cumprindo com horário de funcionamento, ali atendendo clientes e vendendo óculos, lentes e demais acessórios de óptica e recebendo os respectivos preços;
8) A Ré tem aberto ao público, há pelo menos dez anos, um outro estabelecimento comercial com o mesmo fim e objecto, na Rua Combatentes da Grande Guerra, 18 - 24, em Aveiro;
9) Desde há mais de dois anos, a Ré apôs e tem afixado um aviso na montra do arrendado, com a informação “De momento atendemos na Rua Combatentes da G. Guerra, 18-22 (Junto à C. M. A.)”;
10) A R. mantém no arrendado montra e exposição de óculos, com o fim de publicitar o produto que vende e oferece no seu estabelecimento comercial da Rua dos Combatentes da Grande Guerra;
11) Aproveitando o facto de o arrendado se situar em artéria da cidade com bastante movimento de carros e pessoas, para ali promover a publicidade dos seus produtos;
12) Já em 2006, a R. manteve estabelecimento dos autos aberto ao público, pelo menos, uma vez por semana, sendo que durante o na o de 2007, tal sucedia aos sábados de manhã;
13) Em 2008, a R. passou a abri-lo às sextas-feiras;
14) A R. faz vendas no arrendado, que tem permanentemente apetrechado com material novo;
15) Desde Dezembro de 2005 ocorreram, no arrendado, pelo menos, duas inundações, a última em Outubro de 2006 e que teve na sua origem o entupimento das canalizações e fossas do edifício.


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A apelação.

A recorrente culmina as respectivas alegações com um enunciado conclusivo Delimitador do objecto do recurso, ex vi dos art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC. em que essencialmente levanta as questões de saber:

1º - Se há certos factos instrumentais que, por terem resultado da instrução e julgamento, deveriam ter sido tomados em conta na sentença e o não foram;
2º - Se com base em tais factos, em conjugação com os que já foram considerados provados, se devia ter concluído pela não utilização do arrendado para o fim previsto – art.º 1083, nº 1, e nº 2, al.ª c) do NRAU – ou pelo encerramento do locado há mais de um ano – art.º 1083, nº 1 e 2 al.ª d) do mesmo regime.
3º - Se, assim não se entendendo, a não cessação do arrendamento constitui abuso de direito por parte da Ré.

Quanto à primeira questão: a relevância dos factos ditos instrumentais.

Afirma a apelante que "da instrução e julgamento resultam comprovados os seguintes factos instrumentais:
A recorrida não tem um horário para funcionamento da loja que instalou no locado, estando sujeita a respectiva abertura à disponibilidade e tempo da "senhora da limpeza";
Quando é feita a limpeza, a funcionária que acompanha a profissional que cumpre tal serviço de asseio, pode fazer vendas se lá aparecer cliente interessado e são estas as vendas que ali faz;
Contudo, não tem meios de emitir ou entregar recibo a clientela que compre naquele local;
Não tem disponível meio de pagamento por multibanco no arrendado:
Faz vendas se lá aparece cliente quando lá está alguma funcionária; e
A caixa registadora que tem no local tem função "meramente decorativa".
Estes "factos" decorreriam dos depoimentos produzidos pelas testemunhas E......, F...... e G.......
Desde já se adianta que o ponto de vista da apelante não pode ser sufragado.
Se não, vejamos.

Lançando mão da faculdade constante do disposto nos art.ºs 787 e 817, nº 1 do CPC, a M.ma Juíza, partindo da premissa da simplicidade dessa tarefa, absteve-se de proceder à selecção da matéria de facto assente e controvertida.
Foi, pois, nesse quadro processual que se desenrolaram as fases subsequentes do processo, designadamente a instrução e o julgamento da causa.
Desta forma, o objecto da prova e da discussão - e da decisão fáctica final - estava destinado a incidir sobre toda a matéria oportunamente articulada, que o tribunal considerasse pertinente à apreciação da causa que lhe estava submetida. Na verdade, a dispensa da selecção dos factos controvertidos necessários à decisão nunca pode prescindir dos factos oportunamente alegados pelas partes, sem prejuízo da consideração dos factos notórios e do conhecimento oficioso do tribunal, e daqueles que são referidos nos nºs 2, 2ª parte, e 3 do art.º 264 – art.ºs 664, 514 e 264, nºs 1 2, 1ª parte, do CPC. Aliás, é o que também resulta claramente da remissão que é feita na parte final do art.º 787, nº 2, para o art.º 508-B, nº 2 do mesmo diploma, normativo que se reporta sempre aos articulados.
Com efeito, preceitua-se no nº 2 daquele art.º 264 que O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514.° e 665.° e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
A definição porventura mais rigorosa de facto instrumental é a que o distingue do facto essencial por não pertencer à norma fundamentadora, mas apenas indiciar, auxiliar ou presumir aquele facto essencial, tendo a função de um facto-base daquele. Cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 3º., p. 275.
Os factos instrumentais devem respeitar um duplo princípio: por um lado, o de que, de algum modo, devem estar contidos na matéria articulada; por outro, o de que fiquem sujeitos ao contraditório – ou, pelo menos, ao conhecimento das partes - e à possibilidade de sobre eles incidir prova, o que evidentemente deve ter lugar antes do encerramento da discussão, em sintonia com o art.º 650, nº 2, al.ª f) do CPC Aparentemente com esta perspectiva, veja-se a lição de A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, 1984, p. 399 – 401.. Como é óbvio, este duplo princípio não pode ser postergado pela circunstância de se haver dispensado a elaboração da base instrutória, ou seja, mesmo sem esta, deve o juiz notificar as partes da respectiva autonomização para efeito de julgamento e prova.
Daí que já se antolhe o preciso fundamento pelo qual se repudia a questão agora suscitada no recurso. Há-de ser o tribunal - e não as partes – quem irá elencar os eventuais factos instrumentais emergentes da instrução ou discussão da causa. Nada obsta a que qualquer das partes sugira a autonomização dos mesmos em tempo oportuno, mas cabe ao tribunal a admissão dessa específica matéria a julgamento, como é óbvio, antes do encerramento da discussão.
Ora os factos que a recorrente pretende que sejam tomados em conta por este tribunal de recurso como factos instrumentais nunca foram oportunamente discriminados, com tal natureza, pelo tribunal a quo e, por essa razão, não podem nesta altura ser invocados para a modificação da sentença recorrida, apenas porque a apelante entende agora que eles defluiram da discussão – e "existem no processo" com essa qualificação.
Donde que, dissentindo do juízo da recorrente, a sentença recorrida, ao aplicar o direito, não tivesse que relevar os agora mencionados factos instrumentais, ao lado dos que foram tidos como essenciais, ou seja, dos factos que provinham do acordo das partes, da prova documental e das respostas à matéria controvertida.



A segunda questão: o preenchimento das causas de resloução previstas no actual art.º 1083, nº1 e nº 2 alíneas c) e d) do Código Civil.

Na decisão ora sob censura, e no que respeita à aplicação da lei no tempo, ponderou-se que o contrato dos autos foi celebrado "antes da entrada em vigor da Lei n°6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o "Novo regime do Arrendamento Urbano " (NRAU) – o que sucedeu em 28.06.2006 (cfr. art. 65° da Lei) -, isto é, na vigência do DL n°321-B/90, de 15 de Outubro (RAU)".
Acontece que, perante o facto provado em 4, a escritura pública relativa ao arrendamento dos autos teve lugar em 03.04.1972. Portanto, necessariamente muitos anos antes da entrada em vigor do RAU aprovado pelo DL nº 321-B/90. Assim, ao contrato sub judice não é directamente aplicável o disposto no art.º 26 do NRAU – doravante assim designado o Regime decorrente da Lei nº 6/2006 de 27/02. Nem sequer o disposto nos art.ºs 27 e seguintes deste mesmo NRAU, uma vez que o capítulo que aí aparece regulamentado diz exclusivamente respeito a aspectos parcelares devidamente discriminados (da indemnização por benfeitorias, da actualização de rendas e da transmissão do arrendamento).
A norma final que aqui deve intervir, isto é, aquela que regula as relações constituídas ou praticadas no domínio de leis anteriores, que se prolongam e subsistem com a vigência do NRAU, é a do respectivo art.º 59, 1, cujo teor dispositivo é o seguinte:
"O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias".
O novo regime afastou expressamente a regra de que a lei nova não regula as novas causas de resolução eventualmente verificadas na respectiva vigência Como adverte Batista Machado, in Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, 1968, p. 117, "É ainda à lei do contrato que compete determinar as causas de resolução do mesmo. Não é de aceitar o ponto de vista de LASSALLE, segundo o qual as novas causas de resolução introduzidas pela LN se podem aplicar aos contratos preexistentes, desde que a causa de resolução seja um facto ocorrido depois da entrada em vigor da LN que podia ser evitado, ou ocorreu até, por vontade daquele contra quem a resolução pode ser pedida"..
Por força do seu art.º 65, nº 2, o NRAU entrou em vigor – salvo quanto aos art.ºs 63 e 64 – 120 dias após a respectiva publicação, ou seja, em 29/06/2006.
Entretanto, a factualidade hipoteticamente integradora dos fundamentos resolutivos invocados na vertente acção percorre os anos de 2006, 2007 e 2008, o que significa que é transversal ao anterior RAU do DL 321-B/90 e ao actual NRAU.
Importa que se note que, no que concerne às causas de resolução agora em apreço, o DL 321-B/90 não divergiu substancialmente dos requisitos previsto no Código Civil. Com efeito, as redacções das alíneas b) e h) do art.º 64 daquele identificavam-se com as das alíneas b) e h) do art.º 1093 deste Código No que toca à alínea h) do art.º 64 do RAU foi eliminado o advérbio consecutivamente apenas para pôr termo a dúvidas sobre o preceito anterior..
Com o art.º 3º do NRAU foram repostos os art.ºs 1064 a 1113 do C.Civil, com nova redacção, aí se incluindo o novo art.º 1083, que visou disciplinar os fundamentos de resolução do contrato de locação.
Nos termos do nº 2 deste artigo "É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio:
(...)
c) O uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina;
d) O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.° 2 do artigo 1072.°" (...).

No nº 1 do art.º 64 do RAU prescrevia-se:
"O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
(...)
b) Usar ou consentir que outrem use o prédio arrendado para fim ou ramo de negócio diverso laqueie ou daqueles a que se destina;
h) Conservar encerrado, por mais de um ano, o prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, salvo caso de força maior ou ausência forcada do arrendatário, que não se prolongue por mais de dois anos; (...).
Apesar das diferenças de redacção das alíneas em questão, afigura-se-nos que as exigências estabelecidas em ambos os regimes – o actual e o que o precedeu – coincidem essencialmente, com ressalva do requisito geral do nº 2 do novo art.º 1083, sobre o incumprimento que pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento. Todavia, esta suposta novidade vem a revelar-se mais aparente do que real, uma vez que os casos de resolução descritos nas alíneas a) a e), pela gravidade ou consequências que sempre lhes estarão associadas, não deixarão de, por si sós, tornar inexigível para o senhorio a manutenção do arrendamento A originalidade da norma reside antes na introdução de uma causa geral de resolução, com os pressupostos definidos pelo nº 2, sendo as situações tipificadas nas diversas alíneas deste número mera exemplificação (v. o advérbio designadamente)..

Vejamos agora os factos apurados relativamente à conduta Ré arrendatária com relevo para a questão em análise:

Em 03.04.1972, pelos anteriores possuidores e proprietários do referido prédio e através da escritura pública cuja cópia se mostra junta de fls. 49 a 54 dos autos, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, foi dado de arrendamento à Ré um espaço daquele prédio, destinado a comércio, sito no rés do chão, com entrada pelos números de polícia 4 e 6 da Rua Ílhavo (actual Rua Mário Sacramento), em Aveiro;
A Ré tem aberto ao público, há pelo menos dez anos, um outro estabelecimento comercial com o mesmo fim e objecto, na Rua Combatentes da Grande Guerra, 18-24, em Aveiro;
Desde há mais de dois anos, a Ré apôs e tem afixado um aviso na montra do arrendado, com a informação "De momento atendemos na Rua Combatentes da G. Guerra, 18-22 (Junto à C. M. A.) ";
A R. mantém no arrendado montra e exposição de óculos, com o fim de publicitar o produto que vende e oferece no seu estabelecimento comercial da Rua dos Combatentes da Grande Guerra;
Já em 2006, a R. manteve o estabelecimento dos autos aberto ao público, pelo menos, uma vez por semana, sendo que durante o ano de 2007, tal sucedia aos sábados de manhã;
Em 2008 a R. passou a abri-lo às sextas-feiras;
A Ré faz vendas no arrendado, que tem permanentemente apetrechado com material novo.

Perante este complexo fáctico impõe-se indagar se nele é possível descortinar a presença de alguma das invocadas causas resolutivas do arrendamento.

Parece suficientemente evidente, desde logo, que a materialidade apontada não configura, sob qualquer ângulo, uma alteração do fim contratual no destino dado pela Ré e apelada ao arrendado, nesse conceito se compreendendo também a modificação de ramo de negócio. Basta atentar em que a finalidade contratada, sendo o comércio, foi alvo da especificação concreta de que se tratava do ramo ou sector de actividade de "óptica retalhista", por ser este o objecto da Ré, de harmonia com as cláusulas segunda e quinta do contrato Neste sentido v. o teor da escritura junta a fls. 49 e seguintes.. Ora nada ali inculca que a Ré desenvolvesse no locado outro género de comércio, diverso do referido ramo, ou que dele se servisse para um fim diverso do comercial Mesmo a mera utilização do locado para exposição, com o intuito de venda dos produtos apresentados, é cabível no âmbito do fim comercial a que a Ré e apelada estava autorizada. .

Dest'arte, queda por averiguar se a Ré B…., conservou encerrado, por mais de um ano, o prédio arrendado , sem que tenha ocorrido caso força maior ou ausência forçada do arrendatário (al.ª h) do nº 1 do art.º 64 do RAU) ou não usou o locado por mais de um ano, salvo o previsto no actual art. 1072, nº 2 do C.Civil (actual art.º 1083, nº 2, al.ª d), do C.C.).
Mas ainda quanto a estes possíveis fundamentos cremos que os autos não patenteiam a realidade que é indispensável à sua declaração.
Convém que se não perca de vista que a acção é proposta em Julho de 2007, alegando a A.: o encerramento do estabelecimento que tinha instalado no arrendado há, pelo menos, cinco anos - facto que foi dado como não provado - cfr. fls. 224; desde mais de dois anos a Ré apôs e tem afixado um aviso na montra do arrendado, com a informação "De momento atendemos na Rua Combatentes da G. Guerra, 18-22 (Junto à C. M. A.) "- facto este que veio a ser dado como provado – cfr. fls.223; a Ré mantém no arrendado montra e exposição de óculos, com o fim de publicitar o produto que vende e oferece no seu estabelecimento comercial da Rua dos Combatentes da Grande Guerra – facto que veio a ser dado como provado – cfr. fls. 223. Isto é, a conduta supostamente omissiva, imputada à Ré como arrendatária do espaço cujo gozo lhe fora cedido, ter-se-ia iniciado mais de um ano antes da entrada em vigor do NRAU, em 29/06/2006, e teria persistido com o começo de vigência deste, pelo menos, até à data da propositura da acção (em Julho de 2007).

Caracterizando-se o encerramento referido na al.ª h) do nº 1 do art.º 64 do revogado RAU, aprovado pelo DL 321-B/90 de 15/10, por uma actuação do arrendatário sobre o locado que provoca a supressão do contacto com o público e com a clientela e o acesso destes às instalações respectivas, ainda que não imediatamente para a efectivação de negócios, a mera redução ou sectorização da actividade - no âmbito da estratégia delineada pelo comerciante - não é idónea para consubstanciar encerramento do locado (sendo exacto, não obstante, que se não deve confundir este encerramento com o do próprio estabelecimento). Ora o contrato de arrendamento celebrado pela escritura pública de Abril de 1972 não impôs à arrendatária que esta tivesse que afectar o locado apenas à realização imediata e efectiva da venda dos produtos do objecto da Ré, devendo conceder-se ao exercício do comércio ali previsto e convencionado a amplitude correspondente a qualquer actividade necessária à respectiva concretização mediante o contacto público com a clientela.
Acresce que na materialidade provada ficou também consignado, de resto sem impugnação (v. o facto provado em 14), que Ré faz vendas no arrendado, que tem permanentemente apetrechado com material novo. Este facto, é verdade, tem de ser interpretado em conjugação com os anteriores factos nºs 12 e 13 – estes atinentes à circunstância de a Ré ter o locado aberto ao público durante parte do tempo normal. Mas o que com ele se quer transmitir é o reconhecimento de que, além da expor os seus produtos no arrendado, a Ré ainda efectuava vendas, embora em períodos limitados. O que reforça a ideia de que, apesar de tudo (apesar de não ser a única e, porventura, a principal loja da Ré) o locado continuou a desempenhar um papel relevante na dinâmica comercial da apelada.

Igualmente não ocorre a situação tipificada no art.º 1083, nº 2, al.ª d) do C.Civil, consequente à entrada em vigor do NRAU.
É que não se vislumbra razão de monta para distinguir entre encerramento e não uso do locado, uma vez que, em ambas as situações, o que se quer sancionar com a resolução é o não cumprimento de uma obrigação essencial do locatário – a de dar uso efectivo ao locado, conforme o estatuído no actual art.º 1072, nº 1 do CC.
Pelo que não são de acolher as conclusões do recurso.

Sobre o abuso do direito.

Propugna por fim a apelante que se declare a cessação do contrato por virtude de a Ré e apelada incorrer em abuso do direito.
Mas ainda aqui carece de razão.
O abuso do direito consiste no exercício deste com manifesta ofensa dos limites da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico respectivo – art.º 334 do CC.
Ao que supomos a apelante pretende que a apelada não estaria a respeitar o fim económico do direito ao arrendamento que lhe foi outorgado em 1972.
Não se adere a uma visão tão restritiva do fim económico do arrendamento.
Nos arrendamentos urbanos para o exercício de uma determinada actividade comercial é legítimo que o arrendatário comerciante desenvolva no locado, dentro do âmbito do ramo concretamente estipulado, toda a função que julgue conveniente para a prossecução do seu escopo, com a qual o senhorio razoavelmente podia e devia contar no momento em que subscreveu o contrato. Só não é exigível que se conforme com a afectação do locado a outro ramo e com o risco para o imóvel que dessa não calculada utilização pode advir.
Donde que se conclua que a permanência da destinação efectivamente dada ao locado pela ora apelada, bem como a manutenção do arrendamento em tais circunstâncias, não contrariam o fim económico do direito que à mesma foi outorgado.
Soçobram, portanto, as conclusões à volta desta questão e, com elas, todo o recurso.


Pelo exposto, julgando improcedente a apelação embora por fundamentos não inteiramente coincidentes, confirmam a sentença.
Custas pela apelante.