Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
456/07.0GAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: PENA
TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Data do Acordão: 04/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 58º DO CP E 496º DO CPP
Sumário: Com a redacção introduzida no artº 58º CP, pela revisão de 2007 (Lei 59/07, de 4 de Setembro), houve o nítido propósito do legislador em incrementar a aplicação desta prestação de trabalho, já que se aumentou o limite máximo da pena de prisão que ela pode substituir, de um para dois anos, a par da introdução de novos dispositivos nos nºs 3,4 e 6 daquele preceito, bem como no artº 496º CPP
Decisão Texto Integral: Rec. nº 456/07.0GAACB.C1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


RELATÓRIO

Em processo sumário do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça, a arguida C.., foi condenada, como autora material de um crime de condução de veículo sem habilitação p. e p. pelo artº 3º nº 1 do Dec. Lei 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 8 meses de prisão, que lhe foram substituídos pela pena de 240 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade, a cumprir no Hospital de Alcobaça, executando tarefas de apoio na organização do arquivo do Serviço de Admissão de Doentes da Consulta Externa, de 2ª a 6ª feira, das 9.00 h às 12.00 h e das 14.00 h às 16.00 h.
Inconformado, o MP interpôs recurso da sentença, e em cuja motivação produziu as seguintes conclusões:
“ 1ª - Vem o presente recurso interposto da mui douta Sentença que condenou a arguida C, pela quinta vez, pela prática de 1 (um) crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p., respectivamente, pelos artigos 14°, n° 1 e 26°, ambos do Código Penal e 3°, n01, do D.L. n° 2/98, de 3 de Janeiro, com referência aos artigos 107°, n° 2, 121° e 122°, n° 2, al. b), todos do Código da Estrada, na pena principal de 8 (oito) meses de prisão, pena essa que decidiu substituir pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade;
2ª - Entende o Ministério Público que a pena principal na qual a arguida foi condenada, não poderia ter sido substituída pela pena de prestação de trabalho a favor da Comunidade e, bem assim, deveria ter sido de prisão, efectiva, dado que as exigências de prevenção geral e, sobretudo, de prevenção especial assim o impunham;
3ª - Os factos objecto dos presentes Autos ocorreram no dia X, ou seja, 1 (um) ano, 5 (cinco) meses e 15 (quinze) dias depois do trânsito em julgado da douta Sentença proferida nos Autos de Processo nº 53/06.5 PAACB, do 3° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça, durante o prazo de suspensão da pena de prisão em que havia sido condenada, pena essa que ainda não foi declarada extinta;
4ª - Ora, no caso sub judice --- até face aos antecedentes criminais da arguida, todos eles relacionados com a prática de crimes de natureza rodoviária --- e, até, à ineficácia das penas de multa e de prisão --- de que a arguida já foi alvo, esta última inclusivamente ainda suspensa na sua execução, as quais em nada serviram para a afastar da prática de novos crimes e, em especial, da prática de um novo e quinto crime de natureza rodoviária --- entende o Ministério Público, face às circunstâncias acima mencionadas, que a arguida foi bem condenada na pena de 8 (oito) meses de prisão;
5ª - Mas a substituição dessa pena de 8 (oito) meses de prisão pela pena de prestação de prestação de trabalho a favor da comunidade não é o meio de realizar de forma adequada e suficiente as finalidade da punição, (geral e especial), que, no caso sub judice se impõem, quer para repor as expectativas da Comunidade perante norma violada, quer perante a conduta da arguida, "quintuplicadamente reincidente";
6ª - Impõe-se o cumprimento efectivo da pena de prisão em que a arguida foi condenada, pois inexiste, materialmente, qualquer juízo de prognose favorável a favor daquela que poderia levar à suspensão da execução da dita pena, dado que se trata da quinta condenação por um novo e mesmo crime de natureza rodoviária e no decurso do cumprimento de uma pena de prisão, suspensa na sua execução;
7ª - Não existem, do mesmo modo, mutatis mutandis, quaisquer factos que pudessem legitimar a substituição da pena de prisão na pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, nos termos do disposto no artigo 58°, n° 1, do Código Penal;
8ª - Ao assim não ter decidido, violou a douta Sentença a quo o disposto nos artigos 40°, n° 1, 42°, n° 1, 58°, n° 1 (2ª parte) e 70°, todos do Código Penal.
9ª - Pelo que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, com sempre e mui merecido respeito, deverá a douta Sentença proferida ser substituída por outra que condene a arguida nos termos atrás mencionados.”


Nesta instância o Exmº Procurador Geral Adjunto apôs o seu visto.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO


Com relevância para a decisão do presente recurso, importa que se transcreva agora a matéria de facto que foi dada como provada na 1ª instância, a qual não vem posta em causa e sendo certo que a sentença não enferma de qualquer dos vícios do artº 410º nº 2 CPP, de que o tribunal conhece oficiosamente:
“ No dia Y, pelas 12.50 horas, na Estrada Nacional nº 8, ao Km 110, Murteira, freguesia de Cela, área deste concelho e comarca, a arguida tripulava o ciclomotor com a matrícula KKK sem se encontrar habilitada com a licença de condução ou com qualquer outro documento que lhe permitisse conduzir veículos a motor na via pública.
A arguida actuou voluntária, livre e conscientemente, sabendo que não dispunha do título de condução necessário para conduzir o dito veículo e, não obstante, quis tripulá-lo nas circunstâncias acima descritas.
A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
O ciclomotor acima identificado pertence à arguida.
A arguida está desempregada, prestando serviços de limpeza duas horas por semana, recebendo 3 € por cada hora de serviço.
A arguida tem três filhos, de 9, 6 e 4 anos de idade, respectivamente, que não residem consigo.
Encontra-se separada de facto do seu marido e reside com uma companheira, em casa da mãe desta.
A arguida confessou os factos constantes da acusação.
À data dos factos, a arguida tinha sido condenada:
- No Processo nº 452/03.7PTSTB do 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, pela prática, em 24.10.2003, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. artigo 3.°, nº 2, do D.L. nº 2/98, de 3.01, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 4 €, por sentença de 5.05.2005, transitada em julgado em 14.06.2005;
- No Processo nº 104/04.0GTSTB do Tribunal Judicial de Sesimbra, pela prática, em 8.10.2003, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. artigo 3.° do D.L. nº 2/98, de 3.01, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 5 €, por sentença de 31.05.2005, transitada em julgado em 4.07.2005;
- No Processo nº 563/05.4GAACB do 2° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, pela prática, em 22.10.2005, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. artigo 3.°, nº 2, do D.L. nº 2/98, de 3.01, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de 3,50 €, por sentença de 20.12.2005, transitada em julgado em 18.01.2006;
- No Processo nº 53/06.5PAACB do 3° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, pela prática, em 4.04.2006, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. artigo 3.° do D.L. nº 2/98, de 3.01, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, com a condição de, no prazo de 10 meses, comprovar documentalmente nos autos que é titular de carta de condução, por sentença de 19.04.2006, transitada em julgado em 4.05.2006.
Motivação de facto:
“ O Tribunal formou a sua convicção com base na apreciação crítica do conjunto das provas examinadas e/ou produzidas em audiência de julgamento, designadamente: - o certificado do registo criminal da arguida, a fls. 13-18;
- o teor do relatório a fls. 22-26; e
- as declarações da arguida, designadamente a confissão integral e sem reservas dos factos que lhe foram imputados, que implicou a renúncia à produção da restante prova e a consideração destes factos como provados, por o tribunal se ter convencido da liberdade, da espontaneidade e da veracidade com que o arguido os confessou. A arguida ainda relatou, de forma objectiva e credível, a sua actual situação pessoal e económica e, bem assim, os demais factos acima descritos. “

*
Ora como emerge da motivação do recorrente, com o presente recurso pretende-se apenas pôr em causa a substituição da pena principal de 8 meses de prisão, pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, pugnando-se pelo cumprimento da medida privativa da liberdade que lhe foi aplicada.
Vejamos.
A moldura legal ou abstracta para o crime de condução de veículo a motor na via pública, sem para tal estar habilitado, é nos termos do artº 3º nº 1 do Dec. Lei 2/98, na opção pela pena de prisão, a qual não vem posta em causa, a de prisão até 1 ano.
Assim, tendo o Mmº juiz optado no caso dos autos pela aplicação de uma pena de prisão, estava obrigado legalmente a substituir essa prisão por uma pena de substituição – suspensão da execução da pena (artº 50º CP) ou prestação de trabalho a favor da comunidade (artº 58º CP) -, em função daquela que melhor satisfizesse, em concreto, as exigências de prevenção especial de socialização, e apenas devendo não o fazer se a execução da pena de prisão se impusesse em nome de concretas razões de prevenção que no caso se fizessem sentir.
Como escreve Figueiredo Dias, a propósito do chamado princípio da preferência pelas reacções não detentivas face às detentivas Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 74 e 75. “ Deste princípio – entre nós posto, desde há muito, em particular relevo por Eduardo Correia – resulta, por um lado, a exigência de preterição da aplicação da pena de prisão em favor das penas não detentivas, sempre que estas se revelem suficientes, in casu, para realização das finalidades da punição. Deriva, por outro lado, a obrigação para o legislador de enriquecer, até ao limite possível, a panóplia das alternativas à prisão postas à disposição do julgador; e na verdade, de alternativas que não se esgotem, do lado de quem as cumpre, num sofrimento passivo da pena, mas possam representar uma prestação activa em favor da comunidade. Resulta, por outro lado ainda, a exigência de que as próprias medidas de segurança detentivas só tenham lugar quando as não detentivas se revelem inadequadas ou insuficientes à prevenção. E, finalmente, a exigência de que a execução das penas e medidas detentivas, quando, apesar de tudo, deva ter lugar, ocorra com um sentido decisivamente virado para a socialização do delinquente”.
Ora a prestação de trabalho a favor da comunidade tanto pode ser aplicada em substituição da multa (artº 48º nº 1 CP), como em substituição da pena de prisão (artº 58º CP).
Por outro lado não se pode ignorar que com a redacção introduzida no artº 58º CP, pela revisão de 2007 (Lei 59/07, de 4 de Setembro), houve o nítido propósito do legislador em incrementar a aplicação desta prestação de trabalho, já que se aumentou o limite máximo da pena de prisão que ela pode substituir, de um para dois anos, a par da introdução de novos dispositivos nos nºs 3,4 e 6 daquele preceito, bem como no artº 496º CPP.
Há assim que verificar se no caso em apreço a aplicação desta pena substitutiva realiza adequada e suficientemente as finalidades da punição, as quais visam a protecção dos bens jurídicos e a ressocialização do agente, sempre limitadas pela medida da culpa ( artºs 58º nº 1 e 40º nºs 1 e 2 CP).
Dito isto e face à matéria de facto provada, verifica-se que a arguida desde 2003 já sofreu quatro condenações pela prática de crimes da mesma natureza, sendo que a última ocorreu em 06.04.19, o que revela indubitavelmente uma clara falta de preparação para manter conduta lícita e igualmente demonstrativa da sua insensibilidade ao efeito dissuasor das penas que lhe têm vindo a ser aplicadas.
Concretamente a arguida sofreu as seguintes condenações:
- No Processo nº 452/03.7PTSTB do 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, pela prática, em 24.10.2003, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. artigo 3.°, nº 2, do D.L. nº 2/98, de 3.01, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 4 €, por sentença de 5.05.2005, transitada em julgado em 14.06.2005;
- No Processo nº 104/04.0GTSTB do Tribunal Judicial de Sesimbra, pela prática, em 8.10.2003, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. artigo 3.° do D.L. nº 2/98, de 3.01, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 5 €, por sentença de 31.05.2005, transitada em julgado em 4.07.2005;
- No Processo nº 563/05.4GAACB do 2° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, pela prática, em 22.10.2005, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. artigo 3.°, nº 2, do D.L. nº 2/98, de 3.01, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de 3,50 €, por sentença de 20.12.2005, transitada em julgado em 18.01.2006;
- No Processo nº 53/06.5PAACB do 3° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, pela prática, em 4.04.2006, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. artigo 3.° do D.L. nº 2/98, de 3.01, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, com a condição de, no prazo de 10 meses, comprovar documentalmente nos autos que é titular de carta de condução, por sentença de 19.04.2006, transitada em julgado em 4.05.2006.
Ora com tais condenações num espaço de tempo tão curto, é manifesto que a única conclusão possível é que as mesmas não constituíram suficiente prevenção contra o crime.
Na verdade apesar de já ter sido condenada em penas de multa e pena de prisão suspensa na sua execução (a última delas), o certo é que nenhuma logrou produzir qualquer efeito, pois a arguida nunca alterou o seu comportamento.
Significa isto que quer as penas de multa quer a pena de prisão suspensa na sua execução, são para a arguida completamente indiferentes.
Ambas, a arguida se encarregou de demonstrar que lhe merecem um total desprezo, face à sua reiterada conduta num período de tempo tão curto, a demonstrar não ter interiorizado, como devia, a regra que repetidamente violou.
Não foram eficazes na prevenção, pois sempre a recorrente voltou a delinquir!
Justificar-se-á então lançar mão desde já da aplicação de uma pena de prisão efectiva, como preconiza o Ministério Público?
Com refere Maia Gonçalves Código Penal Português Anotado e Comentado, 18ª ed., pág. 237., a propósito do PTFC, “as experiências já recolhidas em diversos países apontam seguras vantagens a esta reacção penal. Assim, para além de representar uma possibilidade eficaz de substituição da prisão, a prestação de trabalho a favor da comunidade parece ter encontrado mesmo reacções favoráveis por parte do próprio público em geral”.
É que a arguida, se quanto à multa em que anteriormente foi condenada, os seus efeitos foram sentidos apenas com o esforço feito para efectuar o pagamento e quanto à suspensão não sentiu esses efeitos, pois voltou a delinquir durante o período da suspensão, já quanto à PTFC vai sentir o carácter punitivo desta pena, pois que durante o período da sua duração, vai ter que trabalhar a favor da comunidade, deixando de ter tempo livre.
Deste modo, pese embora as várias condenações, parece-nos que face a tudo quanto anteriormente deixámos expresso, nem as necessidades de prevenção geral nem de prevenção especial impõem ou exigem já o cumprimento da pena de prisão efectiva, justificando-se a sua substituição pela PTFC, por corresponder satisfatoriamente ainda às finalidades retributivas e ressocializadoras da punição.
Acresce, por outro lado que há que ter presente que o facto de se optar pela substituição da pena de prisão pelo trabalho a favor da comunidade, não significa que a possibilidade de aplicação da pena de prisão efectiva fique irremediavelmente afastada, porquanto haverá sempre a possibilidade desta última ser revogada no condicionalismo previsto no artº 59º, n º 2 do CP.
Improcede assim na sua totalidade o recurso interposto.


DECISÃO


Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, acordam os Juizes desta Relação, em negar provimento ao recurso, e, consequentemente confirmar integralmente a decisão recorrida.
Sem tributação.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (Artº 94º nº 2 CPP)
Tribunal da Relação de Coimbra, 9 de Abril de 2008.