Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3900/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDES DA SILVA
Descritores: REMISSÃO DE DÍVIDA
CONTRATO LABORAL
Data do Acordão: 03/02/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE LEIRIA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 863º DO C. CIV.
Sumário: I – A renúncia e a remissão de dívida são negócios distintos : a renúncia, enquanto negócio jurídico unilateral, não é reconhecida, em termos gerais e no domínio das obrigações, como causa de extinção de créditos .
II – No âmbito das relações creditórias deve falar-se, com maior rigor técnico-jurídico, em remitir uma dívida, para o que se torna necessário o consentimento do devedor, conforme dispõe o artº 863º, nº 1, do C. Civ. .

III – Podendo a declaração negocial ser expressa ou tácita e não exigindo o artº 863º, nº 1, do C. Civ., que o consentimento do devedor assuma a forma escrita, diz-nos o artº 234º do C. Civ. que quando a proposta, a própria natureza ou circunstâncias do negócio, ou os usos tornem dispensável a declaração de aceitação, tem-se o contrato por concluído logo que a conduta da outra parte mostre a intenção de aceitar a ptoposta .

IV – Tendo o trabalhador posto termo ao seu contrato de trabalho e nessa sequência subscrito um documento de quitação, no qual diz “ter recebido da entidade patronal as quantias nele discriminadas, as quais totalizam todas as retribuições a que tem direito, dando total quitação e nada mais tendo a haver seja a que título for”, deve entender-se como válida e eficaz a remissão consubstanciada nesse documento, com a consequente extinção de qualquer obrigação da entidade patronal relativamente a esse trabalhador .

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I –

1 – A..., casado, com os demais sinais dos Autos, demandou no Tribunal do Trabalho de Leiria a R. «B...», pedindo, a final, a sua condenação no pagamento de € 14.819,14, que lhe deve e respeita, entre outros, a trabalho suplementar e descansos obrigatórios ou feriados.
Alegou para o efeito, em síntese breve, que foi admitido ao serviço da R. em 1 de Junho de 1998, a tempo parcial, passando depois, como vigilante profissional, a exercer as correspondentes funções a tempo inteiro, até que em Julho de 2002 fez cessar o vínculo laboral, com o devido aviso prévio.
A R. não lhe pagou as importâncias que discriminou.

2 – Frustrada a tentativa de conciliação a que se procedeu na Audiência de Partes, a R. veio contestar, aduzindo basicamente em sua defesa que, conforme documento junto, o A., aquando do fecho de contas, deu quitação da quantia líquida que então lhe foi paga, declarando …’que constituem a totalidade das retribuições a que tenho direito, pelo que dou inteira e total quitação, nada mais havendo a haver, seja a que título for’.
Essa quitação não pode deixar de representar uma remissão abdicativa do trabalhador dos seus eventuais créditos, remissão essa que constitui uma forma de extinção das obrigações retributivas.
Além disso, o A. não alega qual era o seu horário normal de trabalho, limitando-se a indicar um quantitativo de horas extra, sendo que o trabalho suplementar só é exigível quando a sua prestação é feita por ordem expressa do empregador, incumbindo a trabalhador o ónus de provar a execução desse trabalho.
Conclui pela improcedência da acção.

3 – Com resposta do A., procedeu-se à designada Audiência de discussão e julgamento, proferindo-se depois sentença a julgar a acção parcialmente procedente, porque provada em parte, com condenação da R. no pagamento ao A. da quantia de € 5.467,49, conforme dispositivo a fls. 455.

4 – Inconformada, a R. veio interpor recurso, oportunamente admitido como apelação.
Alegou circunstanciadamente, sem ter propriamente elaborado síntese conclusiva (vide infra, em II, 2 -).

5 – O A. respondeu, concluindo, por seu turno, que a R. lhe deve efectivamente a quantia de € 5.467,49, que respeita a subsidio de refeição, trabalho nocturno e trabalho suplementar, não tendo havido qualquer prova em contrário, pelo que a decisão não poderia ter sido outra.

Exposto esquematicamente o desenvolvimento da lide e colhidos os vistos legais – com o Exm.º P.G.A. a emitir o seu douto Parecer, a fls. 516-518, a que ainda retorquiu a apelante – vamos decidir.
II – DA FUNDAMENTAÇÃO

1 – DE FACTO
Vem seleccionada a seguinte factualidade:
(…)
___

2 – O DIREITO

Concordamos ora que ‘facilitámos’ – quiçá para além do razoável… – ao não ter convidado a recorrente a formular as devidas conclusões, no termo das suas alegações de recurso, aquando da prolação do despacho a que alude o art. 701.º/1 do C.P.C. … induzidos, pelo menos em alguma medida, no convencimento (…) de que a epígrafe …‘Conclusão’, na parte final da respectiva peça, continha/conteria no seu desenvolvimento o essencial à equação das questões propostas…
Não obstante – e estando embora perfeitamente em tempo de o ordenar ainda – vamos assumir o acrescido esforço de, por meras razões de celeridade, colmatar a referida omissão, deixando todavia a nota desta falha técnica (art. 690.º/1 C.P.C.).

Anota-se também que a arguida nulidade da sentença, suscitada algures na exposição dos motivos, deveria ter sido deduzida em conformidade com a prescrição constante do art. 77.º/1 do C.P.T.
Inobservado o referido comando, dela não se conhece, ‘ex professo’, como é entendimento jurisprudencial pacífico.

2.1
Compulsados os termos da impugnação, maxime o teor dos três temas sujeitos à epígrafe ‘Dos motivos da discordância’ (à míngua do elenco de síntese, acima denunciado), vejamos então.
Comecemos, como é mister, pela problemática da ‘remissão’, não apenas por ser a primeira na ordem de sequência dos motivos, mas fundamentalmente pela sua relação de lógica prejudicialidade quanto às demais questões, uma vez que a sua eventual procedibilidade torna a apreciação destas de todo inútil.

Vem factualizado que o A. fez cessar, no dia 27 de Maio de 2002, o vínculo juslaboral que o ligava à R., com efeitos a partir de 29 de Julho desse ano de 2002, enviando-lhe uma carta registada, com A/R, na qual manifestava esse propósito, e deixando de trabalhar efectivamente em 29 de Julho/02 – items 9 e 10 do alinhamento da decisão de facto.

Em 5 de Julho de 2002 o A. subscreveu o documento que constitui fls. 102, com as seguintes epígrafe e teor: ‘RECIBO DE QUITAÇÃO’. ‘Recebi da B... as quantias discriminadas no recibo anexo e que totalizam a quantia de € 1.135,78, as quais constituem a totalidade das retribuições a que tenho direito, pelo que dou inteira e total quitação, nada mais tendo a haver seja a que título for.’ – item 56 daquele acervo.
(Sobre tal documento, o A., contra quem foi apresentado, veio dizer não se recordar de ter assinado qualquer documento na altura da desvinculação da R., mas ainda que tal tivesse acontecido, nunca teve consciência do teor dessa declaração, pelo que não corresponde à sua vontade real e não contém a manifestação da sua bilateralidade, com a assinatura de ambas as partes… – fls. 112).

Na decisão 'sub judicio' – considerada embora a natureza contratual da remissão enquanto forma de extinção das obrigações, 'ut' invocado art. 863.º do Cód. Civil, mas tendo por incontornável o facto de o A. ter subscrito o recibo de quitação em momento anterior à efectiva cessação do contrato de trabalho, quando os direitos creditórios sobre a R. eram indisponíveis – entendeu-se que não pode atribuir-se o valor de uma remissão abdicativa a um recibo de quitação assinado durante a vigência do contrato de trabalho.

Será realmente irrefutável esta fundamentação jurídica?
Vamos ver, adiantando desde já que a solução envolve o seu melindre.
Importa antes de mais anotar que a reacção do A., relativamente à junção do documento em causa, é de todo inócua ante as regras civilistas relativas à prova documental/documentos particulares.
Não tendo impugnado a veracidade da letra ou da assinatura cuja autoria lhe é atribuída – e não se demonstrando a existência de qualquer falta ou vício da vontade na emissão da declaração – a sua força probatória plena não sofre contestação, nos termos dos arts. 374.º e 376.º do Cód. Civil.

Qual então o valor jurídico desse documento/declaração?
É esse afinal o ponto axial da controvérsia.
Como se constata da análise do documento em causa, o mesmo contém duas declarações: na primeira, o A. declara ter recebido da R. a quantia global de € 1.135,78, de que dá inteira quitação; na outra, declara que essa importância, correspondente às quantias discriminadas em recibo anexo, constitui a totalidade das retribuições a que tem direito, nada mais tendo a haver, seja a que título for.

A renúncia e a remissão de dívida são negócios distintos.
A renúncia, enquanto negócio jurídico unilateral, não é reconhecida, em termos gerais e no domínio das obrigações, como causa de extinção de créditos, como anotam Pires de Lima/Antunes Varela, in Cód. Civil Anotado, Vol. II, 4.ª Edição, pg. 150.
No âmbito das relações creditórias deve falar-se, com maior rigor técnico-jurídico, em remitir.
Conforme art. 863.º/1 do Cód. Civil, a remissão assume ora natureza contratual.
Assim, para que uma dívida seja remitida (usando as palavras dos Insignes anotadores, ob. loc. cit.), é necessário sempre o consentimento do devedor (‘invito non datur beneficium’).
E como se não exige que o contrato seja escrito, dispensada fica qualquer solenidade relativamente à prova da aceitação do devedor, que, podendo ser expressa ou tácita, fica apenas sujeita à disciplina geral sobre as declarações negociais – Cfr., no mesmo sentido, Acórdão do S.T.J. de 16.4.1997, in BMJ 466/355 e Ac. RP, de 22.5.2000, in C.J., Ano XXV, Tomo III, pg. 248.
Embora o documento não patenteie a intervenção formal da outra parte/devedor, (o que deixaria imediatamente provada a sua aceitação), isso não significa – e menos necessariamente, como nos parece óbvio – que o devedor não tenha dado o seu assentimento.
Podendo a declaração negocial ser expressa ou tácita (arts. 217.º e 218.º do Cód. Civil, valendo o silêncio também como declaração negocial quando esse valor lhe seja atribuído por Lei ou resulte de uso ou convenção) e não exigindo o art. 863.º/1 que o consentimento do devedor assuma aquela forma de manifestação, diz-nos o art. 234.º (sempre do C.C.) que ‘quando a proposta (independentemente de quem tenha partido a iniciativa da declaração, como é jurisprudencialmente firmado), a própria natureza ou circunstâncias do negócio, ou os usos tornem dispensável a declaração de aceitação, tem-se o contrato por concluído logo que a conduta da outra parte mostre a intenção de aceitar a proposta’.
Assim, bastará que a aceitação pelo destinatário seja conhecida pelo proponente para que produza os seus efeitos.
E lembra-se que a chamada ‘univocidade dos facta concludentia’, na declaração tácita, – ‘apud’ fundamentação do Aresto do S.T.J. acima identificado, que seguimos de perto – se afere por um critério empírico, de ordem prática. Existirá aceitação tácita sempre que, conforme os usos da vida, haja, quanto aos factos de que se trata, toda a probabilidade de terem sido praticados com dada significação negocial (aquele grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões) …

Reportados ao nosso caso, lembremos que foi o A. que rescindiu unilateralmente o vínculo juslaboral, fazendo-o inclusivamente com observância da totalidade do aviso prévio.
Em circunstâncias normais, nada lhe imporia que emitisse a falada declaração.
A sua objectivação no dito documento (na parte que excede os termos da mera quitação) só pode explicar-se – como facilmente se convirá, ante o conhecimento que todos temos da realidade destas coisas – num contexto em que, uma vez conscientemente assumido o fim da relação, tenha subjacente um encontro de vontades, um acordo/contrato relativo aos créditos admitidos e/ou eventuais, com vista a prevenir a emergência de futuros litígios.
Assim, num acerto final de contas, o empregador aceita pagar certa importância em troca de uma garantia de que o trabalhador subscreve uma declaração de remissão de eventuais dívidas do devedor, em cujos termos nada mais virá reclamar.
É o que significa normalmente este tipo de documento/declaração, como se sabe.
E como bem se argumenta no identificado Acórdão da RP, também nós não temos dúvidas em concluir que a declaração emitida pelo A. (tanto mais que é de sua iniciativa, relembre-se, a opção de pôr termo ao vínculo) é ela mesma a exteriorização de um prévio acordo.
Aliás, como se depreende dos Autos, maxime da contestação da R., ninguém terá dúvidas de que esta sempre quis a referida remissão.
A sua conduta integra inequivocamente os ‘facta concludentia’, de que falava o Prof. Manuel de Andrade, citado no Aresto do S.T.J. atrás referido.

Aqui chegados – e admitido tranquilamente que aquela falada primeira declaração constitui uma inequívoca quitação, conforme ao art. 787.º do Cód. Civil, fazendo prova de que a mencionada quantia foi paga ao credor/A./recorrido – resta-nos ora ponderar se a declaração seguinte, atrás analisada como consubstanciando uma perfectibilizada remissão, tem, no caso, a correspondente eficácia jurídica, ou seja, a virtualidade de, enquanto causa contratual de extinção das obrigações, fazer extinguir a obrigação da R.

Isso implica saber/determinar em que momento é que deve ter-se por consumada a rescisão do vínculo: se aquando da comunicação formal da iniciativa do trabalhador ao seu empregador, ou se apenas no termo do decurso do aviso prévio concedido.

Como se estampou no ponto 9. da decisão de facto, o A., no dia 27 de Maio de 2002, fez cessar o vínculo laboral que o ligava à R., com efeitos a partir de 29 de Julho de 2002, enviando-lhe uma carta registada, com A/R, na qual manifestava esse propósito.
Essa carta consta, em cópia, de fls. 23.

Considerando: 1) a natureza receptícia de tal declaração negocial; 2) a perfectibilização da sua eficácia, (torna-se eficaz logo que chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida, nos termos da teoria da impressão do destinatário, acolhida no art. 224.º/1 do Cód. Civil) e 3) sabido que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (art. 236.º/1 do C.C.), é incontroverso que o A. fez efectivamente cessar o vínculo em causa por rescisão, com aviso prévio.
O facto extintivo da relação em causa é a declaração de rescisão, funcionando o aviso prévio apenas como um termo suspensivo aposto à denúncia do contrato – vide, em conformidade, entre outros, Pedro Furtado Martins, ‘Cessação do Contrato de Trabalho’, Edição Principia, pg. 171.
A rescisão determina a cessação do vínculo contratual, como ensina Pedro Romano Martinez, (‘Direito do Trabalho’, Almedina, pg. 884), podendo a extinção dos efeitos ser imediata ou diferida.
Será diferida no caso de rescisão com aviso prévio.
Assim, é nosso entendimento que, no caso, as consabidas razões que postulam a indisponibilidade dos créditos na constância do vínculo deixaram claramente de justificar-se após a recepcionada declaração de rescisão.
O trabalhador assumiu, por sua livre iniciativa, a opção de pôr fim à relação de trabalho.
Emitida a correspondente declaração negocial e transcorrido folgadamente um mês (de 27 de Maio a 5 de Julho de 2002) sobre a sua recepção ou conhecimento pelo destinatário, sem qualquer sinal de recuo indicativo da vontade de revogação daquela sua determinação, (cfr. art. 2.º da Lei n.º 38/96, de 31 de Agosto), o A. subscreveu a referida declaração abdicativa, permanecendo ao serviço da R. até ao final desse mês de Julho.
Nenhuma restrição legal o impedia de dispor livremente, desde então, dos seus direitos e eventuais créditos de natureza pecuniária.

Assim, considerando – como se considera – válida e eficaz a remissão consubstanciada no analisado documento/declaração do A., fica consequentemente extinta a obrigação da R., não podendo aquele exigir o pagamento dos créditos reclamados na presente acção.
A extinção do vínculo obrigacional emergente da remissão afasta, pois, definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela dos interesses do credor, extinguindo-se qualquer eventual crédito que o A detivesse sobre a R.

A procedência desta questão, como já se anunciou, inutiliza de todo o conhecimento das demais.

III – DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, delibera-se conceder provimento à Apelação e, em consequência, revoga-se a sentença impugnada, com absolvição da R. do pedido.
Custas pelo recorrido.
***

Coimbra,