Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
214/07. 2GAVZL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
Data do Acordão: 09/30/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SÁTÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS ART. 401º N.º 1, 414º N.º 3, 417º N.º 3 A) E C), E 420º N.º 1 D) CPP, 78º DO DL N.º 298/92, DE 31 DEZ
Sumário: 1. O direito ao sigilo bancário não é um direito da entidade bancária, mas sim um
direito dos titulares das contas em causa.
2. A entidade bancária tem legitimidade para recorrer do despacho judicial no qual se ordena a prestação de informações que interferem directamente com o sigilo bancário.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

No âmbito do processo de inquérito n.º 214/07. 2gavzl-A a correr termos nos Serviços do Ministério Público de Sátão, na sequência de promoção do MP, solicitou a Mmª Juiz à Caixa Geral de Depósitos a prestação das informações já anteriormente solicitadas e constantes de fls. 37 e 49, designadamente se os denunciantes e o arguido são titulares de alguma conta bancária naquela instituição e, na afirmativa, qual o seu n.º, qual o tipo de conta, quais os seus titulares, de que forma estes a movimentam, e ainda o envio de cópia das assinaturas dos titulares da conta.

A CGD ([1]), inconformada com o aludido despacho, interpôs o presente recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

1- O Tribunal a quo reitera anterior pedido de informação bancária, que é protegida pelo dever de segredo - informação acerca da existência de contas abertas em nome dos denunciantes nos autos - J... e M… - e da denunciada – P… - e para, em caso afirmativo indicarmos o(s) número(s) e tipo(s) de conta(s), o(s) seu(s) titular(es) e forma de a(s) movimentar bem como para enviarmos cópia da(s) assinatura(s) utilizadas pelo(s) titular(es) da(s) conta(s).

2- A CGD, invocando o dever de segredo bancário ao qual está por lei obrigada, recusou a satisfação de pedidos anteriores, semelhantes.

3- Nem nos pedidos anteriores nem no de agora - despacho do qual se recorre - foi invocada norma legal, especial, derrogatória do dever de segredo bancário.

4- O tribunal a quo, no presente despacho, fundamenta a nova ordem de prestação de informação, com um juízo de prevalência do interesse público em que se traduz o exercício da acção penal sobre o interesse subjacente ao sigilo bancário, juízo, esse, que nos termos do disposto no n.º 3 do art. 135º do CPP, compete em exclusivo ao tribunal superior àquele onde se tiver suscitado o incidente de quebra do dever de segredo (conforme o entendeu o STJ em Acórdão de 06/02/2003, relativo ao n.º 03P159 in www.dgsi.pt)

5- Na verdade, concordando com a interpretação daquela norma feita pelo STJ no seu Acórdão de 06/02/2003, relativo ao processo n.º 03Pl59, publicado in www.dgsi.pt., Sumário - n.º III, também a CGD defende que: "A decisão sobre o rompimento do segredo é da exclusiva competência de um tribunal superior ou do plenário do Supremo Tribunal de Justiça, se o incidente se tiver suscitado perante este tribunal,"

6- Assim, o despacho ora recorrido, no qual se ordena, de novo, a prestação de informação, está, nos termos do disposto na alínea e) do art. 119º do CPP, ferido de nulidade por violação da regra de competência em razão da hierarquia ínsita no n.º 3 do art. 135º do CPP.

7- Sendo nulo o despacho e inexistindo decisão do Tribunal da Relação que determine no caso concreto a quebra do segredo bancário, não pode a CGD considerar-se deste desobrigada, nem desresponsabilizada perante o seu cliente nos termos do art. o 84º do RGICSF, aprovado pelo decreto-Lei n.º 292/98 de 31 de Dezembro.

8- Ao abrigo da 2ª parte da alínea d) do n.º l do art. 401º, a CGD tem legitimidade para interpor o presente recurso, e fá-lo tempestivamente.

Termos em que deve o despacho ora recorrido ser declarado nulo e substituído por outro que:

Remeta para o Tribunal da Relação de Coimbra o incidente de escusa, para que este Tribunal superior decida quanto à prestação, pela CGD, dos elementos pretendidos, com quebra do dever de segredo, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 135° do CPP, caso se considere tal quebra do segredo bancário justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante.


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Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo concluindo que «o recurso deverá ser parcialmente procedente, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que declare a legitimidade da escusa, baixando os autos à primeira instância para que seja suscitada a dispensa do invocado segredo através de incidente próprio».

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que «o recurso interposto nos autos pela CGD, por ilegitimidade desta, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 401º n.º 1, 414º n.º 3, 417º n.º 3 a) e c), e 420º n.º 1, todos do C.P.P., deverá ser rejeitado, ou, assim não se entendendo, acompanhando o sentido da resposta do Ministério Público junto da 1.ª instância, poderá tão só o mesmo proceder no segmento de que seja declarada a legitimidade da escusa, e assim, subsequentemente, na 1.ª instância se proceda à instrução do referido incidente, previsto nos art.ºs 135º n.ºs 2 e 3 e 182° n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal».

Os autos tiveram os vistos legais.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

Questão Prévia

No parecer que apresentou, o Exmº PGA junto deste tribunal suscitou, como questão prévia, a falta de legitimidade da recorrente CGD, atendendo ao disposto no n.º 1 do artigo 401º do CPP, o que conduziria à rejeição do recurso.

Nos termos do invocado preceito, têm legitimidade para recorrer o MP, o arguido, o assistente, as partes civis e, ainda, aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de qualquer importância, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão [al. d)].

Efectivamente, não tendo a recorrente sido condenada no pagamento de qualquer importância, entendemos que a sua legitimidade advém de estar a defender um direito afectado pela decisão recorrida, ou seja, o direito ao sigilo bancário.

Ainda que se considere que o direito ao sigilo bancário não é um direito da entidade bancária, mas sim um direito dos titulares das contas em causa, teremos de ter presente o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, nos termos do qual estas entidades estão vinculadas ao dever de observar sigilo sobre as informações bancárias (art. 78º do DL n.º 298/92, de 31 Dez.). 

Por conseguinte, o despacho recorrido ao dirigir a ordem em causa à recorrente, interferindo directamente com o sigilo bancário a que esta entidade estava obrigada, afectou um seu direito/dever, daí decorrendo a legitimidade para a interposição do presente recurso.


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APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, a questão a apreciar consiste em saber se o Mmº JIC podia ter ordenado à recorrente CGD que fornecesse informação sujeita a segredo bancário (antes de esta ter sido dispensada de tal dever), ou deveria, face à recusa da Caixa Geral de Depósitos em fornecer os elementos pretendidos, ter suscitado perante este Tribunal o respectivo incidente, ao abrigo do disposto no artigo 135º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal.

É do seguinte teor o despacho recorrido:

“Os segredos profissionais, bancários, de serviços, ou outros não podem ser encarados de forma absoluta. A Lei do sigilo bancário coexiste, nomeadamente, com a Constituição da República Portuguesa, com o Regime Geral das Contra-ordenações, com o Código de Processo Civil e com o Código de Processo Penal.

A realização da justiça, a descoberta da verdade material, a protecção do cidadão e a pacificação social são valores comunitários que interessam a todos e designadamente aos Bancos.

O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, alterado pela Lei n.º 1/2008, de 3 de Janeiro consagra no art. 78º, n.º 1 que "Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços", sendo que estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias (n.º 2).

Contudo, o art. 79°, n.º 2, al. d), do referido diploma legal excepciona o dever de segredo, nos termos do qual estipula que "Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados: d) Nos termos previstos na lei penal e de processo penal, como é o resulta do disposto nos art°s 135°, n.º 1 e 182°, n.º 2, do Código de Processo Penal.

A Constituição da República Portuguesa - que se impõe até a diplomas legislativos com valor reforçado, como as leis de bases - estatui, no art. 202°, n.º 3, que "no exercício das suas funções os Tribunais têm direito à coadjuvação das outras autoridades",

Aliás, no domínio do Regime Jurídico do Cheque sem Provisão, o legislador consagrou expressamente o dever do Banco colaborar com a investigação (art° 13°-A).

No caso em apreço, é grande o interesse para a descoberta da verdade material e à realização da Justiça que sejam prestadas as informações requeridas pelo Ministério a fls. 37 e 49.

Pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais, e antes de mais, com cópia do presente despacho, notifique a Caixa Geral de Depósitos, agência de Vouzela, para prestar as informações de fls. 37 e 49. ”.


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Sobre o segredo bancário e o regime jurídico que permite a sua dispensa rege o DL n.º 298/92, de 31 de Dez. (que aprovou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras), alterado pelos Decretos-Leis n.º 246/95, 14 de Set., n.º 222/99, de 22 de Jun., n.º 250/2000, de 13 de Out. e n.º 285/2001, 3 de Nov.

Sobre o “Dever de segredo” versa o artigo 78º do citado diploma (conforme transcrição já efectuada no despacho recorrido).

Por sua vez, determina o artigo 79º - “Excepções ao dever de segredo” - , n.º 2, alínea d) que os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo podem ser revelados nos termos previstos na lei penal e de processo penal.

O artigo 84º deste RGICSF preceitua que a violação do dever de segredo é punível nos termos do Código Penal vigente, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março, cujos artigos 195º e 196º prevêem e punem como crime, quer a violação do dever profissional, quer o seu aproveitamento indevido.

O regime do processo penal consta dos artigos 135º, 181º e 182º do CPP.

O respeito pela privacidade do depositante, subjacente a todo e qualquer sigilo bancário, tem de compaginar-se com a realização dos direitos subjectivos através da acção jurisdicional, devendo ceder na medida necessária ao êxito dessa finalidade, só por absurdo se podendo admitir que o pensamento legislativo seria no sentido de paralisar a acção dos tribunais na realização de direitos subjectivos, quando é certo que, ao invés, a ordem jurídica existe, justamente, como um conjunto de meios que deve conduzir à efectiva realização dos fins da actividade judicial previstos basicamente pelo artigo 205º da Constituição – cfr. Ac. RL, de 5-5-2004, no proc. n.º 3946/2004-7, in www.dgsi.pt.

Há, pois, que ponderar os valores e os interesses em conflito.

Ora, como estatui o artigo 135º, n.º 3 do Código de Processo Penal o tribunal competente só pode impor a quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.

Entendemos, assim, que o sigilo bancário, onde está em causa a defesa de direitos particulares - sigilo das relações banco/cliente e sigilo dos factos respeitantes à própria instituição bancária -, não poderá prevalecer face a outros direitos e interesses hierarquicamente superiores, que têm em vista a salvaguarda do interesse geral, como seja, o direito do acesso à justiça e o interesse da comunidade na boa administração e realização da justiça.

Como referem Simas Santos e Leal-Henriques - em anotação ao artigo 135º do CPP, pág. 739 - “Alguém chamou ao segredo bancário um segredo profissional débil, no sentido de que cede perante o dever de cooperação com as autoridades judiciárias, quando particulares exigências de investigação criminal o imponham, mas sempre dentro de apertados limites e rígidas exigências de controle que, tanto quanto possível, harmonizem os dois interesses em confronto”.

No caso vertente, considerando que os elementos solicitados à CGD se destinam à investigação de um processo, sendo manifesta a necessidade das informações, tendo em conta o interesse público do Estado em exercer o “jus puniendi”, justifica-se o seu fornecimento, face à prevalência deste interesse público sobre o interesse privado tutelado pelo sigilo bancário, como é o interesse em estabelecer um clima de confiança dos clientes na banca e na actividade bancária.

Todavia, sendo a recusa da CGD legítima, deveria o tribunal a quo ter suscitado o incidente de quebra do dever de sigilo bancário para apreciação por este Tribunal da Relação.

Este o entendimento do STJ, que no Acórdão n.º 2/2008, de 13-2-2008 (publicado do D.R., 1ª Série, nº 63 de 31 de Março do corrente ano), fixou jurisprudência nos seguintes termos:  

1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário;

2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal;

3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.

Em conformidade, tendo o tribunal a quo ordenado à CGD a remessa de informação bancária sujeita a segredo bancário, sem que tivesse solicitado a intervenção deste tribunal para decidir sobre a quebra do sigilo, sendo este o tribunal competente para o efeito, violou o disposto no artigo 119º, al. e) do CPP, o que determina a nulidade do despacho recorrido.


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III - DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Conceder provimento ao recurso e, em consequência, declarar nulo o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que, aprecie a legitimidade, ou ilegitimidade, da escusa da CGD em fornecer os elementos solicitados, e que decidindo pela legitimidade suscite o respectivo incidente, nos termos do artigo 135º do CPP, para posterior apreciação por este Tribunal da Relação.

Sem tributação.


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                                                        Coimbra,

  


[1] - Que já anteriormente, por duas vezes, se escusara a fornecer tais elementos alegando que os mesmos estão sujeitos a segredo bancário, cfr. fls. 41 e 50.