Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
31/18.4PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: INIMPUTABILIDADE
IMPUTABILIDADE DIMINUÍDA
PERÍCIA SOBRE O ESTADO PSÍQUICO DO ARGUIDO
Data do Acordão: 01/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (COIMBRA – JL CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 159.º, N.ºS 6 E 7, 351.º E 340.º DO CPP
Sumário: I – A perícia psiquiátrica, reportada no artigo 159.º, n.ºs 6 e 7, do CPP, destina-se a apurar se o arguido sofre de anomalia psíquica capaz de justificar o juízo de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída (artigo 20.º do CCP), e só deve ser realizada ou determinada, ultrapassadas que se mostrem as fases preliminares do processo, quando “se suscitar fundadamente a questão da imputabilidade do arguido” (artigo 351.º do CPP).
II – A margem de liberdade que assiste ao tribunal quanto à necessidade de ordenar a perícia sobre o estado psíquico do arguido não corresponde a um poder discricionário, demandando antes diversas ponderações relacionadas com a limitação de direitos fundamentais e a descoberta da verdade.

III – A história pregressa do arguido – traduzida, fundamentalmente, nos seguintes segmentos textuais inseridos em elementos clínicos àquele alusivos: «na sua narrativa ressaltam múltiplas situações onde o ciúme marca a dinâmica disfuncional do seu relacionamento com (…); a hostilidade parece estar associada a características de personalidade mais agressivas e impulsivas; apresenta uma perturbação de adaptação. Durante as consultas tem vindo a apresentar consciência flutuante, humor disfórico (…). Apresenta reatividade fisiológica associada a sintomatologia depressiva e de ansiedade quando partilha situações consideradas por ele como traumáticas; [o pedido de renovação de colocação profissional] agrava seriamente a sua situação clínica, potenciando os sintomas de stress pós traumático, nomeadamente as reacções fisiológicas, medo intenso, ruminações, sonhos e pesadelos, flashbacks, choro fácil, ideações suicidas, tristeza e depressão, etc. (…).» – impõe, sob pena de violação do n.º 1 do artigo 340.º do CPP, decisão determinativa da realização de perícia psiquiátrica.

Decisão Texto Integral:







Acordam os juízes em conferência na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 31/18.4PCCBR do Tribunal Judicial de Coimbra, Coimbra – JL Criminal – Juiz 1, foi o arguido A. pronunciado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, de um crime de ofensa à integridade física simples, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, de um crime de ameaça agravada e de um crime de difamação, p. e p. respetivamente pelos artigos 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, 143.º, n.º 1, 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a) e 2, com referência às alíneas e) e h), do artigo 132.º, 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), artigo 180.º, todos do Código Penal – [cf. fls. 765 a 774].

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual teve lugar a comunicação de uma alteração da qualificação jurídica relativamente ao número de crimes de difamação [cf. ata de fls. 1147] e, bem assim, em momento subsequente a comunicação da alteração não substancial dos factos [cf. ata de fls. 1269], por sentença de 18 de fevereiro de 2019, objeto de correção a fls. 1279, o tribunal decidiu [transcrição do dispositivo]:

I. Absolver o Arguido A. pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 43.º, n.º 1 do CP, por factos praticados no mês de Julho de 2017, por caducidade do direito de queixa;

II. Condenar o Arguido A. pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do CP, por factos praticados em 31 de Janeiro de 2018, na pena de dois anos e quatro meses de prisão;

III. Condenar o Arguido A. pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, artigo 132.º, n.º 2, al. e) e h), do CP, por factos praticados no dia 9 de janeiro de 2018, na pena de seis meses de prisão;

IV. Condenar o Arguido A. pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime ameaça agravada, p.p. pelo artigo 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, al. a) do CP, por factos praticados no dia 9 de janeiro de 2018, na pena de cem dias de multa;

V. Condenar o Arguido A. pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de difamação, p.p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do CP, por factos praticados no dia 10 de janeiro de 2018, na pena de oitenta dias de multa;

VI. Condenar o Arguido A. pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de difamação, p.p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do CP, por factos praticados no dia 11 de janeiro de 2018, na pena de oitenta dias de multa;

VII. Condenar o Arguido A. pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de difamação, p.p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do CP, por factos praticados no dia 13 de janeiro de 2018, na pena de oitenta dias de multa;

VIII. Condenar o Arguido A. na pena única conjunta de dois anos e seis meses de prisão e na pena única conjunta de cento e sessenta dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros), o que perfaz a quantia global de € 1.120,00 (mil cento e vinte euros);

 […].

3. Por despacho de 14.12.2018 o tribunal indeferiu diligências de prova requeridas na contestação, entre as quais a reconstituição do facto e as perícias psicológicas e psiquiátricas (cf. fls. 885-886).

4. No decurso da audiência de julgamento (cf. ata de fls. 1230 – 1232) pelo arguido foi requerida a sua sujeição a perícia psiquiátrica, diligência que veio a ser indeferida por despacho, exarado em ata, de 6 de fevereiro de 2019.

5. Inconformado quer com os despachos de 14.12.2018 e de 06.02.2019, quer com a sentença proferida a final, recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

(I) Recurso intercalar (despacho de 14.12.2018):

1. O presente recurso visa a revogação, pela declaração parcial de nulidade, do despacho proferido a 14/12/2018, na parte em que indefere a realização de perícias, psiquiátrica e de personalidade, ao arguido, a realização de perícias de personalidade às ofendidas (…) e (…) e parte da prova por reconstituição do facto, todas requeridas pelo arguido na contestação.

2. Não existe qualquer tipo de fundamento para invocar pretensões dilatórias do arguido, já que nada se pôde ou pode alegar que, em consciência, o justifique – não sendo despiciendo o facto de o arguido ter requerido todos os meios de prova indeferidos na contestação, apresentada em tempo.

Quanto às perícias psiquiátrica e de personalidade ao próprio arguido,

3. Importa referir, inicialmente, que não se está no mesmo momento processual aduzido no art.º 351.º n.º 1 do CPP.

4. Quanto à “concretização” de factos relativos à necessidade da realização desta prova pericial, absolutamente essencial para a efetivação dos seus direitos de defesa e a descoberta da verdade material, facilmente se constata que estes resultam líquidos da definição e funções legais das perícias psiquiátricas e de personalidade, e dos quesitos juntos pelo arguido para a sua realização.

5. Devendo também referir-se dizer-se que a necessidade destes meios de prova ressalta de forma notória do processo.

6. Senão vejam-se a esse propósito o ponto 8º da contestação, o ponto 12º do requerimento de alteração do estatuto coativo de 13/12, as indicações no relatório de informação social das ofendidas, elaborado pelos serviços de Clínica Forense do INML (fls. 34 dos autos), bem como as referências do próprio Ministério Público, no auto de 1.º interrogatório judicial de arguido detido constante a fls. 181 a 200 dos autos, relativas à “instabilidade emocional”, “personalidade obsessiva e compulsiva” e “descompensação emocional” do arguido (a fls. 189 dos autos).

7. Para além disto são relevantes o auto de denúncia do arguido/ofendido (fls. 23v a 24v do apenso), as descrições feitas pela ofendida (…) dos acontecimentos (fls. 80 a 86 dos autos), o e-mail difundido pelo arguido aos amigos das ofendidas (fls. 88 a 98), os inúmeros e extensos requerimentos subscritos pessoalmente pelo arguido ao próprio processo (fls. 208, 209-210, 279, 440, 441-449, 450 f/v, 552-553, 554-555, 561-574 e 582-584).

8. Tal conjunto de evidências processuais não necessita de ser alegado especificadamente pelo arguido na contestação, resultando neste caso notoriamente dos autos a potencial existência de anomalia psíquica, ou, no mínimo, de uma afetada condição psíquica/psicológica do arguido que pode influir decisivamente nas suas ações.

9. O arguido cumpriu o ónus de especificar as questões que pretendia ver resolvidas com estas perícias, e fê-lo quando apresentou os quesitos com o requerimento probatório na contestação.

10. Nesta matéria, existe uma diferença clara entre a perícia psiquiátrica médico-legal, prevista no art.º 159.º nº 6 CPP – que serve o propósito de avaliar da existência de alguma causa patológica de inimputabilidade (art.º 20º n.º 1 CP) ou imputabilidade diminuída (art.º 20.º n.º 2 CP), quer para averiguar da passibilidade de culpa, quer relevando na determinação da medida da pena – e a perícia de personalidade, prevista no art.º 160.º CPP – que tem como fito avaliar as “características psíquicas independentes de causa patológica, bem como o grau de socialização”.

11. Claro fica que no caso concreto se suscita a necessidade de averiguar por meio pericial, formal e judicializado, tanto as características da personalidade do arguido como, e especialmente da existência de alguma psicopatologia de que padeça, que seja carecida de tratamento sério e que possa ter influenciado os comportamentos do arguido do dia 9 de janeiro de 2018, como os próprios quesitos juntos claramente indicam.

12. Não procedendo ainda o argumento do Tribunal recorrido quanto aos Docs. 1, 2 e 3 juntos pelo arguido com a contestação, visto e entendido que seja o seu conteúdo.

13. Este segmento da decisão do Tribunal a quo – aliás, com fundamentação manifestamente insuficiente ao desiderato do indeferimento – viola ostensivamente o princípio de investigação e de descoberta da verdade previsto no art.º 340.º n.º 1 CPP, ofendendo os mais básicos postulados constitucionais de garantias de defesa em processo criminal (art.º 32.º n.º 1 do CRP) e direito a uma processo equitativo (art.º 20º n.º 4 CRP), e violando ainda os n.ºs 1 e 3 b) do art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

14. Gerando a nulidade da decisão recorrida nesta parte nos termos previstos no art.º 120.º n.º 2 d) do CPP, por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade, nulidade que aqui se invoca.

Quanto às perícias de personalidade requeridas às ofendidas,

15. O recorrente volta a afirmar perentoriamente que concretizou os factos que pretende provar nos quesitos submetidos com a contestação, almejando ver provados os factos que resultam da resposta às questões colocadas nos quesitos formulados, chamando-se especial atenção para os quesitos 2, 3, 4 e 7.

16. Essas perguntas apontam claramente para o facto de o arguido por em causa a sinceridade das ofendidas em variados momentos, chegando até a questionar-se se poderá ou não aferir-se a sua propensão à mentira e manipulação (questão 3).

17. Tais questões são recondutíveis ao tipo de crime alegadamente em causa – o de violência doméstica – que tem tipicamente esquematizado um perfil psicológico normal de vítima, e do qual decorre necessariamente alguma instabilidade endo-familiar com determinados efeitos.

18. Estes fatores conceptuais, intimamente ligados ao tipo de crime em questão, são mais facilmente verificáveis através de uma perícia de personalidade, parecendo resultar clara a intenção (legitima) do arguido na solicitação deste meio probatório.

19. De facto, como se sabe, cada vez mais a jurisprudência exige, para a consubstanciação do crime de violência doméstica – quando não se veja consubstanciado num só ato de particular gravidade – uma certa postura relacional da vítima e do ofensor, normalmente demonstrativa de uma relação de domínio ou submissão.

20. Relação/ões que importa sufragar, violando, uma vez mais, neste segmento o Tribunal a quo com este segmento da sua decisão os arts. 340.º n.º 1 do CPP e 32.º n.º 1 da CRP, tendo como consequência também a nulidade por errada preterição de diligência essencial à descoberta da verdade material, prevista no art.º 120.º n.º 2 d) CPP, que aqui se argui.

Quanto às requeridas reconstituições de facto,

21. Deverá, em consciência aceder-se à invocação da alínea c) do n.º 4 do art.º 340.º do CPP esgrimida pelo Tribunal recorrido quanto ao indeferimento da reconstituição de facto requerida.

22. Afigura-se, todavia, relevante o contacto pelo Tribunal in loco com os locais de partida, paragem, chegada e com o respetivo percurso, apesar de tal objetivo poder melhor ser conseguido com uma simples inspeção ao local.

23. Sempre será de responder que poderia o Tribunal ter ordenado essa prova, à luz dos seus poderes inquisitórios previstos no art.º 340.º n.º 1 do CPP (“oficiosamente ou a requerimento”).

24. Assim como poderia ter ordenado a reconstituição dos embates nas bombas de gasolina por realização de perícia de engenharia física/mecânica, com base nos documentos do processo, para reconstituição do momento com apoio em simulações computacionais e modelos adequados.

25. É facilmente percetível – até pelo Doc. 4 junto pelo arguido com a contestação – que será importante verificar se os primeiros embates dos carros forma intencionais ou não, e descrever de forma cientificamente precisa o que se passou nos embates posteriores.

Em suma,

26. A decisão recorrida violou assim, nos segmentos e pelas razões apresentadas, por erro de interpretação e de aplicação, a norma constante do artigo 340.º n.º 1 do CPP – resultando na nulidade sanável prevista no art.º 120.º n.º 2 d) do CPP -, desconsiderando também as garantias de defesa processualmente dispostas em favor do arguido, nos termos previstos no art.º 32.º n.º 1 da CRP.

Termos em que,

Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser o despacho de 14/12/2018 revogado na parte em que indefere as diligências probatórias essenciais referidas, e declarada verificada a nulidade destes segmentos decisórios com fundamento no art.º 120.º n.º 2 d) do CPP, com as legais consequências.

(II) Recurso intercalar (despacho de 06.02.2019):

1. O presente recurso visa a revogação total do despacho, lavrado em ata e datado de 06/02/2019, que indeferiu o requerimento do arguido de submissão a perícia psiquiátrica, este produzido ao abrigo do disposto nos arts. 159º, 340º nº 1 e 351º do CPP.

2. Não existe qualquer tipo de fundamento para invocar pretensões dilatórias do arguido, já que nada se pôde ou pode alegar que, em consciência, o justifique – não sendo despiciendo o facto de o arguido ter previamente requerido também a perícia psiquiátrica indeferida na contestação, apresentada em tempo, e só com a apresentação de novos meios probatórios nos autos ter tornado a solicitar a sua realização.

3. Devendo também referir-se dizer-se que a necessidade deste meio de prova ressalta de forma notória do processo.

4. Todavia, o Tribunal a quo entende que não necessita da produção da referida perícia para a boa decisão da causa e descoberta da verdade, já tendo condenado o arguido a 2 anos e 6 meses de prisão efetiva em pena única conjunta.

5. Também o Ministério Público entende que não se afigura necessária a produção de tal perícia, uma vez que já esteve perito presente em audiência – o que, como se verá, se trata de um lapso, seguramente, involuntário.

6. De sublinhar que, apesar de o presente recurso ser interposto de um despacho que indefere perícia psiquiátrica (ou comparência de perito) requerida em audiência, já o arguido anteriormente interpôs recurso do despacho que, em 14/12/2018, lhe indeferiu a submissão ao mesmo tipo de intervenção pericial, ainda antes de começar o julgamento da causa.

7. Já nessa altura o Tribunal a quo entendia que o arguido não densificava suficientemente o pedido (apesar de apresentar quesitos onde se discriminam todas as perguntas a que se almejava resposta clinico-psiquiátrica), considerando ainda que tal pedido era irrelevante e supérfluo.

8. Todavia, já nesse momento constavam dos autos os seguintes dados:

I. Referência na contestação e em requerimento do mesmo dia (13/12/2018) do estado de ansiedade e acompanhamento psiquiátrico e psicológico já de longa data do arguido;

II. Relatório de Psicóloga Clínica de avaliação de personalidade (Doc. 2 junto com a contestação);

III. Relatório de Médico Psiquiatra relativo à influência da medicação prescrita no temperamento e irritabilidade do arguido (Doc. 3 junto com a contestação);

IV. Relatório de Informação Social do INML (fls. 28 a 34 dos autos) onde se conclui, a final (fls. 34), após consulta a informações clínicas (desconhecendo-se, até ao momento, quais), que “atendendo à história pregressa do senhor (…), e tendo em conta, quer o acompanhamento psicológico desde há cerca de 10 anos, segundo reportou a senhora (…), quer o evento em apreço, pensamos que este deverá beneficiar de medidas de apoio especializadas, eventualmente reforço do acompanhamento e/ou internamento em Unidade de Saúde adequada”;

9. Na perspetiva da defesa, tal documentação, aliada às circunstâncias processualmente descritas e a uma série de outra evidências no processo – como os contínuos e extensos requerimentos apresentados pelo próprio arguido – já indiciavam suficientemente a necessidade e essencialidade de produção desse meio de prova,

10. Meio que, como se sabe, se distingue claramente de um simples relatório externo – que não tem o valor da prova pericial deste tipo, que é realizada obrigatoriamente pelo INML – e, também, da perícia de personalidade a que alude o art.º 160º do CPP.

11. Nesta matéria, existe uma diferença clara entre a perícia psiquiátrica médico-legal, prevista no art.º 159º nº 6 CPP – que serve o propósito de avaliar da existência de alguma causa patológica de inimputabilidade (art.º 20º nº 1 CP) ou imputabilidade diminuída (art.º 20º nº 2 CP), quer para averiguar da passibilidade de culpa, quer relevando na determinação da medida da pena – e a perícia de personalidade, prevista no art.º 160º CPP – que tem como fito avaliar as “características psíquicas independentes de causa patológica, bem como o grau de socialização

Assim,

12. Com o normal andamento da lide processual, e com a consequente produção de prova, é lógico que mais alguma prova foi produzida que aponta claramente no sentido da razoabilidade e necessidade da realização de perícia psiquiátrica ao arguido. 

13. É na concatenação entre os indícios que já existiam nos autos previamente ao início do julgamento e os que atualmente constam que se verifica, no entender da defesa, a razão pela qual o despacho proferido a 06/02/2019 é nulo (nulidade prontamente arguida no mesmo dia) nos termos do disposto no art.º 120º nº 2 d) do CPP, por violar o previsto no art.º 340º nº 1 do mesmo diploma, e ainda atentar gravemente contra as garantias de defesa em processo criminal (art.º 32º nº 1 CRP) e com o garantido direito a um processo equitativo (art.º 20º nº 4 CRP).

Com efeito,

14. Desde início o arguido admitiu boa parte dos factos ocorridos no dia 9 de Janeiro de 2018, não só confessando-os, de forma espontânea e, admite-se, um pouco fria e objetiva, mas atesta que depois das duas batidas visíveis no vídeo constante dos autos, avançou na direção do carro da assistente e ofendida e, batendo-lhes de lado, não se lembra de mais, admitindo que as coisas se tenham passado como descritas na acusação naquele dia – veja-se o seu depoimento gravado, iniciado pelas 10h15m e terminado pelas 12h31m do dia 04/01/2019, dos minutos 01:14:39 a 01:15:45 e 01:17:09 a 01:17:42.

15. A assistente refere que haveria múltiplas faces do arguido (“dois (…)”) a partir de 2013 (data do casamento com a ofendida e data em que este deixa o acompanhamento no Hospital de (....) ), e refere que, mesmo depois de esta e a ofendida (…) terem saído do carro, o arguido, vidrado, continuou a embater com o seu veículo no delas - veja-se o seu depoimento gravado, iniciado pelas 16h02m e terminado pelas 17h08m do dia 04/01/2019, dos minutos 10:00 a 12:24 e 43:44 a 44:40.

16. Tais posições deverão ser vistas em conjunto com as das testemunhas que presenciaram, in loco, a ocorrência das bombas de gasolina de (...) , em (...) .

17. As testemunhas (…) - veja-se o seu depoimento gravado, iniciado pelas 14h11m e terminado pelas 14h41m do dia 14/01/2019, dos minutos 02:40 a 03:50, 10:50 a 11:35, 14:10 a 14:35 e 29:28 a 29:43 –, (...) – veja-se o seu depoimento gravado, iniciado pelas 14h57m e terminado pelas 15h05m do dia 14/01/2019, dos minutos 04:23 a 04:40 – e (...) veja-se o seu depoimento gravado, iniciado pelas 15h05m e terminado pelas 15h18m do dia 14/01/2019, dos minutos 06:43 a 07:40 – são unânimes a descrever a forma “apática”, “calma” e “serena” com que o arguido estava encostado na lateral da loja da bomba de gasolina, como falava com as pessoas, estando sempre no mesmo local.

18. Surge de imediato a questão: como é que alguém que vinha em perseguição de outrem, e que finda essa perseguição, após um choque inadvertido entre os veículos, desata a embater na porta lateral do veículo das ofendidas com o seu carro, no momento imediatamente posterior, absolutamente passivo, diz “não querer fazer nenhum mal a ninguém”, de forma “serena”, “encostado a um canto” fitando o chão, sem nunca forçar mais nenhum contacto com as ofendidas?

19. Para responder a essa questão está em particular situação de conhecimento a testemunha (…), que tem a particularidade de ser a única pessoa que viu diretamente o arguido no momento em que este embatia no carro onde seguiam ofendida e assistente – veja-se o seu depoimento gravado, iniciado pelas 14h41m e terminado pelas 14h57m do dia 14/01/2019, dos minutos 01:44 a 02:17, 03:30 a 04:38, 07:19 a 08:18 e 14:29 a 15:20.

20. O seu depoimento é o que afirma com maior clareza a constatação, no comportamento do arguido, de “duas pessoas completamente diferentes”: uma durante os embates e outra no momento posterior, senão vejamos bem as mais claras referências descritivas da testemunha (…) ao que viu:
· Ele estava completamente focado naquilo.
· Não reagiu a nada. A única coisa que ele reagia era ao carro, mais nada.
· O olhar dele estava focado, só olhava para aquilo, dentro do carro. Cá fora ele estava muito mais sereno, uma pessoa que fez aquilo, estava completamente serena.
· Duas reações diferentes. A pessoa que estava dentro do carro naquele momento quando eu vi não é a pessoa que estava cá fora.”
· Lá dentro ele tinha os olhos bem abertos, ele não olhava nem para a direita nem para a esquerda, porque nada do que nós fizéssemos o fazia mover da frente.”

21. Depreendemos, no caso, um agressor que simultaneamente não tem receio de esconder ao mundo a agressão – no caso, as batidas no veículo – e fica acanhado, calmo, sereno, apático no momento imediatamente posterior.

22. Recorde-se que, naquela data, o arguido, que é Chefe da (…), trazia consigo uma arma, mas, colocado numa posição de visibilidade pública após uma ocorrência inusitada, nada faz. 

23. Apesar da testemunha (…) dizer que o arguido, posteriormente, indicou que se ela se tivesse metido à frente do carro que a atropelava, as anteriores testemunhas que estavam no local todas descrevem a postura calma do arguido, que várias vezes terá dito que não queria fazer mal a ninguém e que só queria falar com a ofendida.

24. Em posição igualmente “privilegiada se encontra a testemunha (…), que observou o comportamento e reações do arguido nesse mesmo dia, momento antecedente à ida para o local dos embates, junto à Unidade de Queimados dos CHUC, em (...) – veja-se o seu depoimento gravado, iniciado pelas 15h26m e terminado pelas 15h46m do dia 14/01/2019, dos minutos 01:06 a 02:39 e 12:57 a 13:44.

25. Esta testemunha descreve o arguido como estando “sempre a mexer”, fazendo movimentos de elevar e baixar os calcanhares consecutivamente, como uma espécie de “tique nervoso”, “tipo uma pessoa com álcool, quando está a cambalear”.

26. Ora, não há nos autos qualquer referência ou evidência de consumo de álcool por parte do arguido nesse dia.

Em jeito de parêntesis,

27. Somando o conjunto dos depoimentos assinalados, já se fica com uma noção clara da razão porque se afigura essencial a realização de uma perícia psiquiátrica ao arguido para determinar o seu estado psíquico provável nesse momento, noção reforçada pela seguinte conclusão do relatório de informação social constante, desde o início, nos autos a fls. 28 a 34 (v. fls. 34):

Atendendo à história pregressa do senhor (…), e tendo em conta, quer o acompanhamento psicológico desde há cerca de 10 anos, segundo reportou a senhora (…), quer o evento em apreço, pensamos que este deverá beneficiar de medidas de apoio especializadas, eventualmente reforço do acompanhamento e/ou internamento em Unidade de Saúde adequada.”

28. Voltando atrás, e por desconhecer o conteúdo das informações clínicas consultadas na elaboração do referido relatório, o arguido submeteu-se a uma avaliação completa de personalidade, de cujo relatório final (Doc. 2 junto com a contestação) se pode ler que são traços da sua postura a “inconvencionalidade”, a “extrema honestidade” e a “crise psicológica”, e que pontuou de forma elevada, acima do normal, nas seguintes dimensões:

“2.1 Escala 1 - Hipocondria - O examinado apresenta 75 pontos (interesses exagerados com as funções corporais. Resultados elevados estão frequentemente associados com preocupações com a saúde). 

2.2 Escala 6 – Paranoia – O examinado apresenta 74 pontos (Personalidade Paranoide – desconfiança, rigidez, tendências interpretativas - ou mesmo paranoia). 

2.3 Escala 7 – Psicastenia – O examinado apresenta 71 pontos (quadro associado a fadiga física ou intelectual, podem estar presentes fobias ou compulsões).”

29. De seguida, o arguido, no seguimento dessa avaliação, sendo-lhe recomendado, consultou com médico psiquiatra, que, reconhecendo os elevados níveis de impulsividade da personalidade do arguido no contexto de relações de intimidade, conclui na suspensão da medicação até então prescrita “de forma a obviar e reduzir a impulsividade, a irritabilidade e fazer com que haja melhor controlo do impulso” (cfr. Doc. 3 junto com a contestação).

Retomando a exposição da prova testemunhal,

30. Relevante também se afigura a audição da (tentativa de) inquirição da testemunha (…), assistente social nos serviços do INML em (...) que entrevistou assistente e ofendida no dia seguinte às ocorrências em discussão, que, confrontada com o teor do relatório de fls. 28 a 34, confirmou ser da sua autoria e que tirou as conclusões (“pensamos que este deverá beneficiar de medidas de apoio especializadas, eventualmente reforço do acompanhamento e/ou internamento em Unidade de Saúde adequada”) com base em informação clínica por si consultada e que não foi remetida aos autos.

31. Na inquirição desta testemunha – veja-se o seu depoimento gravado, iniciado pelas 16h02m e terminado pelas 16h26m do dia 14/01/2019, dos minutos 14:13 a 17:10 e 18:47 a 21:59 – conseguimos entender que a posição do Ministério Público, quanto ao indeferimento da perícia psiquiátrica requerida com argumento de ter estado presente um “perito” em audiência, se trata de um lapso.

32. Não esteve nunca em audiência nenhum perito nessa qualidade, dado que não foi chamado quando podia tê-lo sido nos termos previstos no art.º 351º nº 2 do CPP, nem foi permitido que a testemunha (…) aclarasse as razões e os fundamentos documentais da sua conclusão no referido relatório.

33. É claro que a testemunha – como, aliás, admitiu a solicitação do Tribunal a quo – não dispõe de competência para avaliar da necessidade de internamento ou da condição psicopatológica do arguido, mas foi por isso mesmo que a defesa requereu a análise pericial.

34. Similar situação se passa com o depoimento de (…), psicóloga clínica que avaliou a personalidade do arguido a seu pedido – veja-se o seu depoimento gravado, iniciado pelas 16h42m e terminado pelas 16h49m do dia 23/01/2019, dos minutos 03:37 a 05:01 – e que é mais uma suposta “perita” que não depôs como tal, mas apenas como testemunha.

35. Do seu depoimento resulta claramente que a por si feita (Doc. 2) não serve, “só por si” de meio de diagnóstico – “Nós precisamos também do olho clínico, não é?” – e que esse “olho clínico” é uma avaliação psiquiátrica completa, realizada por um médico do Instituto Nacional de Medicina Legal.

36. Nesta fase (audiência/sessão de 23/01/2019) importa recordar que aguardavam os autos ainda pela junção de relatório do médico psiquiatra que acompanhou o arguido no Hospital de (....) entre 2011 e 2013.

37. Os mesmos elementos que entendeu o Ministério Público que “pode tirar essas dúvidas” quanto à necessidade de realização de perícia.

38. Ora, no final do iter processual, chegou aos autos finalmente o relatório relativo ao acompanhamento do arguido no Hospital de (....) entre 2011 e 12013, que, com especial relevo, em primeiro lugar, o seguinte:

A hostilidade (…) parece estar associada a características de personalidade mais agressivas e impulsivas do A. (…). Dada a sua profissão estar enquadrada por limites e regras mais particulares, onde a gestão de tensões e conflitos é importante e necessária, a sua hostilidade pode traduzir-se por ruminações, críticas e ressentimentos. Contudo esta contenção pode quebrar com maior facilidade no contexto das relações de intimidade (…). Dificuldades ao nível do funcionamento atual (…) parecem surgir num quadro de Perturbação da Ansiedade, causa ou consequência de um estado de tensão anterior, alerta e vigilância permanente, com frequentes pensamentos em torno de temas de ciúme, da perseguição e da grandeza (…)”.

39. Se até aqui se verificavam traços de personalidade do arguido tendentes a manifestar exageradamente as frustrações e compulsões no foro da vida íntima, o que se lê de seguida destrona qualquer dúvida quanto à necessidade de avaliar, com precisão e rigor médico, a fisionomia psiquiátrica do arguido, de forma a compreender indelevelmente as motivações, que não os estímulos externos, já avaliados por este Tribunal, que levaram aos acontecimentos de dia 9 de Janeiro de 2018:

 “Nenhuma perturbação grave da personalidade teve expressão suficientemente significativa para ser assinalada como tal, mas é de registar traços associados à Perturbação Limite podem ter alguma influência no comportamento do A. (…) Em termos de síndrome ou perturbações clínicas (…) parece existir sintomatologia associada ao Distúrbio de Stress Pós-Traumático”.

40. Aqui chegados verificamos que um médico psiquiatra confirma a potencialidade de diagnóstico de Distúrbio de Stress Pós-Traumático, fazendo-o com referência a um período que terminou em 2013, 4/5 anos antes das ocorrências em causa nos presentes autos.

41. Consultado o Manual de Psiquiatria Forense (AA.VV, Pactor Edições de Ciências Sociais Forenses e da Educação, Lisboa, 2017) no capítulo 9º (FERNANDO VIEIRA, ANA SOFIA CABRAL e ANTÓNIO JOÃO LATAS), com o título “A (in)imputabilidade e a perícia psiquiátrica prevista no artigo 159º do CPP”, podemos ler em bom português, na pág. 145, o seguinte:

Perturbações de Ansiedade e Somatoformes

Os doentes com estas perturbações são na sua quase totalidade julgados imputáveis, sendo que, em quadros de perturbação de Stress Pós-traumático, por eventual comorbilidade com consumo de drogas e/ou ocorrências dissociativas ou desregulação emocional intensa associada a impulsividade no ato, podem por ventura ocorrer exceções, justificando diminuição, em grau a definir, da imputabilidade admitida.”

42. Sempre com a salvaguarda de melhor opinião e do devido respeito, tem que insistir a defesa no ponto-chave desta problemática: nem a defesa, nem o douto Tribunal, têm a competência médico-cientifica que se exige para determinar se de facto houve condicionantes psiquiátricas na atuação do arguido, cabendo apenas diligenciar, em todas as frentes e possibilidades, pela boa decisão da causa.

43. Mas a defesa teve o cuidado, após a receção desta informação nos autos, de consultar o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, na sua 5ª Edição, produzido pela Associação Americana de Psiquiatria (ou American Psychiatric Association), que é o manual clínico de apoio ao diagnóstico medico-psiquiátrico em uso em Portugal (DSM5).

44. No item 309.81 (F43.10), de págs. 271 a 280, denominado “Transtorno de Stress Pós-traumático”, pode ler-se nas suas características sintomatológicas o seguinte (págs. 274 e 275):

A pessoa pode sofrer estados dissociativos que duram desde alguns segundos até várias horas ou até mesmo dias, durante os quais aspetos do evento são revividos e a pessoa se comporta como se o evento estivesse ocorrendo naquele momento (Critério B3). Esses eventos ocorrem em um continuum desde intrusões visuais ou sensoriais breves de parte do evento traumático sem perda de senso de realidade até a perda total de perceção do ambiente ao redor. Esses episódios, conhecidos como flashbacks, são geralmente breves, mas podem estar associados a sofrimento prolongado e excitação elevada.”

45. Ora, a partir de toda a prova que já foi analisada e perante esta última peça, que com maior propriedade faz referência ao Distúrbio de Stress Pós-Traumático, que, como já se viu, pode ter consequências trágicas na reação a estímulos como os que se verificam ao longo dos presentes autos, só poderia a defesa ver-se obrigada a requerer a perícia psiquiátrica ao arguido e, agora, a apresentar o presente recurso.

46. Resultando neste caso notoriamente dos autos, da conjugação dos documentos e depoimentos apontados, a potencial existência de anomalia psíquica, ou, no mínimo, de uma afetada condição psíquica/psicológica do arguido que pode influir decisivamente nas suas ações.

47. Claro fica que no caso concreto se suscita a necessidade de averiguar por meio pericial, formal e judicializado, tanto as características da personalidade do arguido como, e especialmente da existência de alguma psicopatologia de que padeça, que seja carecida de tratamento sério e que possa ter influenciado os comportamentos do arguido do dia 9 de Janeiro de 2018, de modo a verificar-se de eventual imputabilidade diminuída

48. Esta decisão do Tribunal a quo viola ostensivamente o princípio de investigação e de descoberta da verdade previsto no art.º 340º nº 1 CPP, ofendendo os mais básicos postulados constitucionais de garantias de defesa em processo criminal (art.º 32º nº 1 CRP) e direito a um processo equitativo (art.º 20º nº 4 CRP), e violando ainda os nos 1 e 3 b) do art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

49. Gerando a nulidade do despacho recorrido nos termos previstos no art.º 120º nº 2 d) do CPP, por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade, nulidade que aqui se invoca com as legais consequências.

50. Assim se conclui também no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/10/2013 (ARTUR VARGUES):

I- O Tribunal, ao não determinar, em fase de julgamento, a requerida realização da perícia médico-legal, havendo razões para se suscitarem dúvidas sobre a imputabilidade, inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido, comete a nulidade (sanável) prevista na parte final da alínea d), do nº 2, do art.º 120º, do CPP - omissão de diligência que possa reputar-se essencial para a descoberta da verdade.

(…)

IV- Verificando-se a nulidade por omissão de diligência numa das sessões de julgamento, a nulidade cometida tem como consequência, nos termos do art.º 122º do CPP, a invalidade desta e de todos os atos praticados posteriormente que dela dependem, como seja a sentença.”

51. Secundada por avalizada opinião na doutrina, nas palavras de OLIVEIRA MENDES (in AA.VV., Código de Processo Penal Comentado, 1ª Edição, Almedina, Coimbra, 2014, p. 1110), em comentário ao referido art.º 351º do CPP:

No entanto, face à decisiva importância da questão da imputabilidade diminuída, a qual não pode deixar de se considerar essencial, visto que saber se o arguido é ou não portador de imputabilidade diminuída é indispensável, em princípio, para a boa decisão da causa, entendemos que, perante razões válidas para suspeitar da imputabilidade diminuída do arguido, sobre o Tribunal recai o dever de ordenar a comparência de perito ou de requisitar perícia sobre o estado psíquico do arguido, sob pena de violação do disposto no nº 1 do art.º 340º, a menos que a suspeita sobre a imputabilidade diminuída do arguido ocorra em fase em que o Tribunal já tenha concluído no sentido da absolvição daquele ou da extinção do procedimento criminal.”

52. A decisão recorrida violou assim, pelas razões apresentadas, por erro de interpretação e de aplicação, a norma constante do artigo 340º nº 1 do CPP – resultando na nulidade sanável prevista no art.º 120º nº 2 d) do CPP –, desconsiderando também as garantias de defesa processualmente dispostas em favor do arguido e a um processo equitativo, nos termos previstos nos arts. 20º nº 4 e 32º nº 1 da CRP.

TERMOS EM QUE,

Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser declarada a nulidade do despacho de 06/02/2019, que indefere a realização de perícia psiquiátrica ao arguido para apuramento da psicopatologia de que padece e da existência de imputabilidade diminuída nos acontecimentos de 09/01/2018, porque violador do disposto nos arts. 120º n.º 2 d) e 340º nº 1 do CPP, arts. 20º nº 4 e 32º nº 1 da CRP e art.º 6º nos 1 e 3 b) da CEDH, sendo o mesmo despacho, em conformidade, revogado, com as legais consequências.

(III) Recurso da sentença:

(…).

6. Por despacho exarado a fls. 1040, 1321 e 1381 foram os três recursos admitidos, os dois primeiros a subir com o interposto da decisão final.

7. Em resposta ao segundo recurso concluiu a assistente (…)Por tudo o que supra se expôs se entende não se justificar, por ser desnecessária e meramente dilatória, a perícia requerida”.

8. Reagindo ao recurso interposto da decisão final, concluiu a assistente (…):

(…).

9. Respondendo aos recursos interpostos do despacho 06.02.2019 e da decisão final, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:

I. Requereu o arguido a realização de perícia psiquiátrica ao arguido.

II. Tal incapacidade deverá ser revelada no decurso da audiência de julgamento.

III. A inimputabilidade do arguido deverá ser patente ou revelada no decurso da audiência devendo ser, fundamentadamente, suscitada.

IV. A inimputabilidade do arguido não era evidente.

V. A inimputabilidade do arguido não foi, fundamentadamente, suscitada.

VI. Não deixou o tribunal de apurar ou de se pronunciar relativamente a quaisquer factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa.

VII. Não deixou o tribunal nem deixou de investigar factos que deviam ter sido apurados na audiência.

VIII. A inserção dos factos 104 e 105 não enferma de nulidade o teor da Douta sentença proferida nos autos.

(…).

10. Na Relação a Exma. Procuradora-Geral Ajunta emitiu parecer pronunciando-se no sentido de os recursos não merecerem provimento.

11. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do CPP, concluiu o recorrente conforme já o havia feito nos respetivos requerimentos de interposição de recurso.

12. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto dos recursos

Tende presente as conclusões, pelas quais se delimita e fixa o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no caso em apreço cumpre decidir:

Recurso interposto do despacho de 14.12.2018:

- Se foi violado o artigo 340.º, n.º 1 do CPP, incorrendo a decisão na nulidade prevista na alínea d), do n.º 2, do artigo 120.º do CPP, desrespeitando os artigos 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 4 da CRP, 6.º, n.ºs 1 e 3, alínea b) da CEDH.

Recurso interposto do despacho de 06.02.2019:

- Se ao indeferir a requerida perícia psiquiátrica, incorreu o tribunal na nulidade da alínea d), do n.º 2, do artigo 120.º do CPP, violando o n.º 1 do artigo 340.º do CPP, os direitos de defesa, bem como o direito a um processo justo e equitativo.

Recurso interposto da sentença que pôs termo à causa:

[…]

2. As decisões recorridas

(i) Primeiro despacho recorrido (14.12.2018)

Ficou a constar da decisão em crise [transcrição]:

«(…)

DA RECONSTITUIÇÃO DO FACTO:

Requer o arguido a reconstituição dos factos descritos na acusação pública do artigo 48-75, com fundamento no relato diferenciado das duas visadas naqueles factos, os quais se reportam a uma perseguição encetada pelo arguido, dentro da sua viatura, à viatura onde circulavam (…) e (…), embates provocados pelo veículo do arguido, para imobilização da referida viatura até à chegada da polícia.

Como se depreende da leitura do artigo 150.º do CPP, a reconstituição do facto constitui um meio de prova de verificação residual e apenas quando “houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma”, consistindo a referida diligência na “reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo”.

As declarações a prestar pelas testemunhas (…) e (…), se de teor divergente, serão oportunamente apreciadas pelo Tribunal, cabendo a este apreciar, após ponderação crítica de todos os elementos ao seu dispor, a que relato confere maior credibilidade: se de qualquer das testemunhas, se do arguido.

Nestes termos, a requerida reconstituição que em termos concretos e límpidos significa deslocar-se o Tribunal, refazer o percurso descrito nos artigos 48-75 da acusação pública e ainda assistir ao arguido a proceder ao embate da sua viatura na viatura das testemunhas, não só é de concretização duvidosa, senão impossível, como se afigura desnecessária e dilatória, razão pela qual é a mesma indeferida, cfr. artigo 340.º, n.º 4, al. c) e d) do CPP.

Notifique.

DAS PERÍCIAS PSICOLÓGICAS E PSIQUIÁTRICAS:

Verifica-se do teor da contestação e do requerimento apresentado, não concretizar o arguido que factos pretende provar com as perícias requeridas. Com efeito, nada foi alegado de patológico no que respeita às testemunhas (…) e (…), nem estas se encontram a ser julgadas nos presentes autos, não se vislumbrando que factos essenciais à defesa do arguido os requerimentos probatórios se destinam a comprovar, que propósito ou utilidade para o bom julgamento da causa, razão pela qual são as mesmas indeferidas, nos termos do artigo 340.º, n.º 4, al. b) e d) do CPP.

No que respeita às requeridas perícias psicológica e psiquiátrica ao próprio arguido, verificando-se que o arguido, novamente, não concretiza que factos essenciais para a sua defesa pretende provar, não tendo alegado qualquer imputabilidade diminuída ou patologia com consequências necessárias no seu comportamento em sociedade, a que acresce a junção por este de “ficha de avaliação e desempenho”, de fls. 834v-836, “Relatório de Observação Psicológica”, de fls. 836v-839, e “Relatório Médico-Psiquiátrico”, de fls. 839v-840, indefere-se o requerimento apresentado, por não se alcançar qualquer utilidade para o bom julgamento da causa, nos termos do artigo 340.º, n.º 4, al. b) e d) do CPP.

Notifique».

(ii) Segundo despacho recorrido (06.02.2019)

Ficou a constar da decisão em crise [transcrição]:

«Nos termos do art.º 351.º, n.º 2 e 3, apenas nas circunstâncias em que seja suscitada, fundadamente, a questão da imputabilidade diminuída do arguido, considerando o Tribunal que existe razão justificada para ouvir perito em sede de audiência ou até ordenar uma perícia a estabelecimento especializado, poderá a perícia ser oficiada. Sem prejuízo, desta vez o arguido concretizar as razões pelas quais, na sua ótica, se justifica uma perícia desta natureza, em face da prova já produzida, não suscitou ao Tribunal, pelo menos indiciariamente, que o arguido padeça de qualquer condição que determine que à data dos factos referidos – 09-01-2018 – se encontrasse sem capacidade para dominar os seus atos.

Nestes termos, e em face do adiantado estado deste processo, verificando-se que já existem nos autos inúmeros relatórios, informações clínicas atuais, alguns dos quais posteriores à data em referência, indefere-se o ora requerido por manifestamente dilatório e desnecessário, nos termos do art.º 340.º, n.º 4, als. b) e d) do CPP.

Notifique».

(iii) Sentença recorrida:

Ficou a constar da sentença em crise [transcrição parcial]:

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

2.1. – Matéria de Facto Provada:

Da audiência de julgamento resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:

1. Desde data não concretamente apurada, no ano de 2009, que (…) residia com o arguido na Rua (…), lote (…), fração (…), (…), tendo celebrado casamento civil com este no dia 31.08.2013;

2. Nos anos letivos 2015/2016 e 2016/2017, (…), professora do ensino secundária de filosofia e psicologia, foi colocada na Direção da Escola de (…);

3. Após uma fase inicial em que fazia o percurso (…), (…) passou a ficar em (…) durante a semana, pernoitando em casa da (…), companheira do tio (…), deslocando-se para a residência do casal apenas aos fins-de-semana;

4. Durante o período discriminado em 2), o arguido, durante a semana, exigia que a (…) lhe dissesse onde estava, o que fazia, a que horas entrava e a que horas saía;

5. Durante o período discriminado em 2), o arguido, durante a semana, aparecia sem avisar, mesmo durante a noite, sempre a horas diferentes;

6. Durante o período discriminado em 2), sempre que discutiam, o arguido acusava (…) de o trair, de ser mentirosa compulsiva, promíscua, doente sexual, doente psiquiátrica, que o traía todos os dias com pretos, gregos, velhos, adolescentes, com alunos e alunas, que só servia para sexo, que se oferecia a todos e que só servia para despejar colhões;

7. Durante o período discriminado em 2), sempre que discutiam, o arguido acusava (…) de, antes do casamento com o arguido, ter assaltado casas para dar a cona, ter deixado a filha sozinha, entregue à divina providência, de ter feito do pai da filha um corno manso, que pôs o pai da filha fora de casa porque precisava de lá meter outro, mas que o arguido não permitiria que isso lhe acontecesse;

8. Durante o período discriminado em 2), aos fins-de-semana, em (…), o arguido, sempre que discutia com (…), arremessava coisas para o chão: a maquilhagem quando esta se encontrava a arranjar-se na casa de banho; a loiça, cestos do pão e do lixo, se ambos se encontravam na cozinha;

9. Em data não concretamente apurada, durante o período discriminado em 2), na residência em (...) , em contexto de discussão, o arguido danificou a porta da casa-de-banho, onde (…) se encontrava fechada;

10. Durante o período discriminado em 2), na residência em (…), o arguido partiu três telemóveis pertença de (…), que arremessou para o chão no contexto de uma discussão;

11. Durante o período discriminado em 2), na residência em (…), o arguido, durante uma discussão, rasgou peças de roupa que (…) trazia vestidas;

12. Em data não concretamente apurada, em 2016, foi diagnosticada a (…) artrite reumatóide e fibromialgia, encontrando-se medicada, desde então, com flexiban, medrol, tramadol (toma diária) e ácido fólico, com o propósito de apaziguar as dores, relaxar os músculos e dar-lhe o mínimo de funcionalidade, diagnóstico conhecido pelo arguido desde o primeiro momento;

13. Em data não concretamente apurada, em finais de Junho, inícios de Julho de 2017, (…) encontrava-se a tomar banho na casa de banho afeta ao quarto de casal, com a porta aberta e o arguido, dirigindo-se à filha daquela, (…), começou a dizer-lhe que a mãe não era a pessoa que ela conhecia, que a andava a enganar e que o traía;

14. Como a (…) tivesse colocado os dedos nos ouvidos e lhe dissesse que se recusava a ouvi-lo, o arguido arrancou as portas espelhadas do roupeiro do quarto de casal e atirou-as na direção da (…);

15. A primeira porta que o arguido arremessou na direção da Assistente (…) foi intercetada pela (…), sendo que a segunda porta atingiu a (…) no braço direito;

16. Nesse mesmo dia, o arguido partiu novamente caixas de maquilhagem e o telemóvel da (…);

17. Em Setembro de 2017, (…) foi colocada em (…), na Escola Secundária (…), com contingente especial por doença, por lhe ter sido diagnosticada artrite reumatóide e fibromialgia;

18. Desde Setembro de 2017, o arguido começou a pressionar (…) para sair de casa, dizendo que “a relação estava podre”, que “não aguenta mais”, que a mesma “só tem sexo no corpo, só anda bem a mostrar-se, a dizer que é um avião, a micar gajos, que não aguenta os enxovalhos que a ofendida lhe faz” e que era imperioso que a mesma saísse de casa;

19. Desde essa altura, o arguido começou a impedir (…) de estacionar na garagem o seu carro, obrigando-a a estacionar na rua, tendo o carro sido vandalizado, nunca se tendo apurado quem o estragou;

20. Nesse período, o arguido dizia que a ofendida “era o diabo”, recusava-se a olhar para a ofendida e nalgumas ocasiões fazia as refeições à parte, comendo de costas voltadas para esta;

21. Em data não concretamente apurada, depois de Setembro de 2017, o arguido tirou toda a roupa que sem encontrava dentro da mesa-de-cabeceira da ofendida para o chão, embrulhou o móvel em película e deu-lhe ordens para não colocar lá a roupa e para tratar de tirar as restantes senão iria deitar tudo fora;

22. Desde Setembro 2017, o arguido deixou de usar aliança de casado, passou a dormir em quarto à parte, que estava destinado à M (....) , filha do arguido, recusando qualquer intimidade com a ofendida, porque, segundo dizia àquela “preferia bater punhetas a estar com uma mulher como ela”;

23. Em data não concretamente apurada, após essa data, a ofendida combinou sair à noite com a filha (…) e o arguido para impedir que a mesma saísse trancou-a em casa, levando as chaves;

24. Em data não concretamente apurada, antes do Natal de 2017, o arguido desmontou o quarto de casal, retirando o colchão e desmontou o estrado, esvaziou as mesinhas de cabeceira, atirando a roupa para o chão e envolvendo-as em película, tendo a (…) convencido o arguido a voltar a montar tudo, tendo tal sido realizado por ambos, durante horas;

25. Em data não concretamente apurada, antes do dia 23/10/2017, o arguido mandou cortar o gás da habitação de ambos, para impedir (…) de tomar banho, ficando a casa sem gás, durante período aproximado de 45 dias;

26. Em data não concretamente apurada, antes de 23/10/2017, o arguido desmontou as torneiras da casa de banho;

27. Só com a intervenção da filha da (…), a (…), o arguido foi convencido a montar a cama de casal, a repor as torneiras, assim como a não mandar cortar a água e a eletricidade;

28. O arguido aceitou, mas como contrapartida, exigiu à (…) que convencesse a mãe, (…), a sair de casa até ao dia 27/12/2017;

29. A 07/12/2017, o pai de (…) teve um acidente, caiu na lareira e queimou-se gravemente, com internamento na Unidade de Queimados do Centro Hospitalar e Universitário de (...) ;

30. O acolhimento da mãe de (…), doente de Parkinson e demência, totalmente dependente do marido, na casa do casal, em (…), teve a oposição do arguido, que ripostava dizendo para ela tirar dias de apoio à família e para que fosse viver para casa dos pais, em (…), (…), apesar de saber que (…) tinha fibromialgia e artrite reumatóide e estava colocada em (…) ao abrigo de contingente especial por doença;

31. No dia 21/12/2017, o arguido trancou as portas dos quartos de hóspedes e do quarto destinado à filha dele, de uma outra relação, levando as chaves consigo, para impedir que a mãe da ofendida e a assistente (…) pudessem ali dormir e foi para (…);

32. No dia 21/12/2017, o arguido deixou em casa um escrito em formato impresso, contendo os termos de uma minuta para obtenção de divórcio por mútuo consentimento, para a (…) elaborar e de seguida dar entrada do divórcio;

33. No dia 26/12/2017, (…) abandonou a residência do casal, levando consigo objetos adquiridos na pendência do casamento;

34. Entre o dia 21/12/2017 e o dia 27/12/2017, o arguido não telefonou, não enviou mensagens e não estabeleceu qualquer contacto com (…);

35. Depois do dia 27/12/2017, em data não concretamente apurada, o arguido foi à aldeia onde (…) cresceu com os pais, em (…), à procura desta e, como não a encontrou, falou com familiares desta, em casa do tio (…) e (…), que vivem na vivenda ao lado da casa dos pais desta;

36. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra mencionadas, o arguido disse aos familiares e (…) que a (…) “o traía, que não era mulher de uma foda só”, entre outras obscenidades;

37. Entre o dia 27/12/2017 e o dia 09/01/2018, o arguido andou à procura de (…), querendo saber onde esta estava porque segundo o mesmo dizia: “era um direito seu enquanto marido” e que “quando um homem expulsa a mulher de casa, não é suposto esta sair, esconder onde foi morar e com quem”, ora suplicando, ora exigindo saber onde a mesma morava e com quem, pedindo para que a mesma voltasse para casa;

38. Quando as aulas recomeçaram, no dia 03/01/2018, o arguido estacionou o seu carro perto da Escola onde (…) leciona e aguardou, dentro do veículo, que esta chegasse, não a tendo visto, nem a abordado porque a (…), de propósito, sabendo que ele ali se encontrava, entrou por outro lado;

39. No dia seguinte, (…), por ter a sua casa em obras, foi com o empreiteiro à Central Torneiras, em (…), tendo o arguido aparecido lá, rondado o local e ido embora sem a interpelar;

40. No dia 04/01/2018, o arguido deslocou-se ao local onde a ofendida tem hidroterapia, estacionou o seu carro junto ao veículo da ofendida e pediu para falar com esta, tendo-lhe prometido que se inscreveria em psicoterapia com a Dra. (…);

41. Mesmo perante a recusa de (…) em divulgar onde se encontrava a residir e em regressar a casa, o arguido continuou a enviar-lhe mensagens escritas, perguntando-lhe onde estava e com quem, perguntando-lhe qual a razão desta sair de casa, afirmando que a história iria provar que a ofendida tinha outras intenções e que queria que a mesma voltasse para casa;

42. No dia 09/01/2018, cerca das 16h, (…) deslocou-se ao CHUC para acompanhar o pai numa consulta na Unidade de Queimados, tendo encontrado o arguido, junto ao seu pai, com o saco da roupa do pai desta na mão;

43. Logo que (…) chegou, o arguido insistiu que queria falar com ela, perguntando-lhe onde estava a viver, dizendo-lhe que tinha o direito de saber porque é seu marido;

44. Como (…) se recusasse a dizer onde estava a viver, o arguido puxou-a do hall onde se encontrava o pai desta, agarrou-a pelos ombros enquanto a encostava à parede, puxando-lhe os cabelos no processo, tendo encostado a mão aberta à cara da (…), enquanto a questionava onde estava a viver, dizendo-lhe que não saía dali enquanto esta não lhe dissesse;

45. Nesse instante, surgiram dois bombeiros, que dirigindo-se ao arguido lhe disseram para não continuar com aquele comportamento, tendo-lhe pedido para se ir embora, tendo este recusado;

46. Perante a recusa do arguido em ir-se embora, os bombeiros levaram a (…), juntamente com o seu pai, tendo-a deixado, a seu pedido, junto ao edifício central do CHUC;

47. No dia 09/01/2018, entre as 17:03h e as 18:39, (…) trocou mensagens escritas, pelo telemóvel, com o arguido pedindo para se ir embora, que falariam noutro dia, ao que este respondia: “responde a minha questão, e vem para casa, porque eu não aguento mais. Hoje, ficara tudo decido”, “Esta tudo estragado. O que me estas a fazer so me e furece”, “tens de dizer ao marido onde estas”, “Não me podes tratar assim, como um bicho. Assim, agirei como um bicho”, “(…), vem falar comigo. Eu não irei embora”, “Não vou embora. Hoje tens que dizer ao marido onde esta s e com quem? So quero saber onde esta a minha mulher. Eu, não vou rondar portas. So quero fazer a terapia de casal e estar contigo”;

48. (…) deslocou-se a pé desde o edifício central do CHUC até à unidade de queimados, onde tinha o seu carro, e onde o arguido ainda continuava à sua espera;

49. (…) disse ao arguido que se ia embora, que ia buscar a filha (…) e entrou no seu carro, um veículo da marca (....) , modelo (....) , de cor cinzento claro, matrícula (…), movido a gás, sendo seguida pelo arguido, num veículo da marca (....) , modelo (....) , de cor cinzento escuro, com a matrícula (…);

50. (…) parou o carro na Praça da (…), onde entrou a (…) e o arguido continuou a segui-las, ao volante do seu veículo;

51(…) tentou parar o seu veículo automóvel junto da Esquadra da PSP, na baixa de (…), junto à CGD, mas o arguido parando o seu carro entre estas e a entrada para a esquadra fez com esta desistisse e prosseguisse a marcha;

52. (…) aumentou a velocidade do seu veículo automóvel, não imobilizando o carro perante sinalização vertical de cor vermelha, para tentar despistar o arguido, mas este aumentou também a velocidade, não imobilizando o seu carro perante sinalização vertical de cor vermelha, circulando a poucos metros do veículo conduzido pela (…) e continuou a segui-la;

53. (…) e (…), ao telefone com o arguido, em alta voz, gritavam para que parasse e se fosse embora, ao que o arguido respondia que só iria parar quando soubesse onde a ofendida estava a morar e que naquele dia ia terminar tudo;

54. Na Av. (…), (…), no sentido (…), a (…), sempre seguida pela viatura automóvel do arguido, sem respeitar a distância de segurança, entrou nas bombas de combustível da BP e parou o seu veículo automóvel;

55. Imediatamente o arguido embateu com a frente do seu veículo na traseira do veículo da (…), dando dois toques seguidos;

56. (…) arranca com o carro, sendo embatida terceira vez na parte esquerda traseira do seu veículo automóvel;

57. Já com a viatura automóvel na zona destinada à água e verificação de pressão dos pneus, o arguido continuou a embater no veículo automóvel de (…) e (…), com a parte frontal direita do seu veículo automóvel na porta de lado do condutor do veículo destas;

58. O arguido embatia, fazia marcha atrás para ganhar margem, e voltava a embater, repetindo essa ação, por pelo menos cerca de 5/6 vezes, junto ao local onde se enche os pneus e onde se coloca água nos veículos, no interior do espaço destino à gasolineira;

59. Como o arguido não parava, (…) e (…), tiveram de sair as duas pela porta do pendura;

60. Já com (…) e (…) fora do carro, o arguido continuou a embater no veículo, pelo menos duas vezes, tendo-se este imobilizado no meio da estrada, já fora das bombas, a cerca de 20-30 metros do local onde começaram os embates;

61. As pessoas que se encontravam no local levaram, de imediato, (…) e (…) para dentro do quiosque das bombas de gasolina e trancaram-nas lá dentro;

62. O arguido parou calmamente o seu carro, dirigiu-se ao quiosque das bombas, tentando ainda assim falar com (…), sua mulher, sendo impedido pelas pessoas que ali se encontravam, às quais o arguido dizia para não se meterem, que aquilo era um assunto entre marido e mulher e que não era mais que um acidente;

63. (…) foi logo transportada em ambulância para os CHUC, onde recebeu tratamento médico;

64. A assistente (…) ficou no local e, quando o arguido a viu, disse-lhe que lhe torcia o pescoço quando a apanhasse;

65. A assistente (…) sentiu-se mal e foi de seguida transportada para os CHUC, onde recebeu tratamento médico;

66. Em consequência da atuação do arguido descrita em 55) a 58), (…) sofreu, no pescoço, acentuada contractura para-vertebral, bilateralmente, no tórax, contractura interescapular;

67. Tais lesões determinaram um período de doença fixável em 6 dias, com afetação da capacidade geral e profissional, por igual período;

68. Em consequência da atuação do arguido descrita em 56) a 59), a assistente (…) sofreu, no pescoço, contractura para-vertebral bilateral;

69. Tais lesões determinaram um período de doença fixável em 6 dias, com afetação da capacidade geral e profissional, por igual período;

70. Desde o dia 10.01.2018 até à presente data, (…) foi contactada por várias pessoas, a pedido do arguido, pedindo-lhe para não prestar declarações e para pedir às testemunhas para não falarem;

71. O arguido enviou um “print” à (…), por correio eletrónico, com o nome e o contacto das testemunhas do dia 9/1/2018 dizendo para estas fazerem o que tinham a fazer e que a ofendida lhe estava a dar cabo da vida e que era a culpada disso;

72. No dia 26/01/2018, o arguido enviou a (…) uma mensagem com o seguinte teor: “em ultima ratio apelo à tua douta inteligência e faças parar esta barbárie contra aquele que merecia no mínimo que lhe estendesses uma passadeira vermelha”;

73. Nos dias 11/01/2018, 12/01/2018 e 13/01/2018, o arguido divulgou pela rede de amigos / conhecidos / colegas de faculdade / colegas de trabalho, pelo menos por 6 pessoas, uma mensagem de correio eletrónico de 11 páginas devassando a vida privada de (…), em termos que não correspondiam à imagem que os visados tinham da mesma;

74. No dia 31 de Janeiro de 2018, o arguido introduziu-se na Escola Secundária (…), onde (…) leciona, tendo conseguido chegar junto da sala de professores, e dirigindo-se a esta entregou-lhe um papel e disse-lhe: "Esta é a minha ordem de expulsão da (…). Estás satisfeita?";

75. (…) devolveu-lhe o papel, que lhe pareceu uma notificação, e apressou-se a sair do local, tendo abandonado as instalações da Escola por uma porta alternativa, deslocando-se, de imediato, para o DIAP de (…);

76. Ao atuar do modo descrito em 14), 15) e 55) a 58), quis o arguido molestar fisicamente (…), sua mulher, e (…), filha daquela, o que conseguiu, quanto a esta última em duas ocasiões distintas;

77. O arguido utilizou o seu veículo automóvel como instrumento da sua ação, que sabia ser muito perigoso;

78. Os motivos que determinaram o arguido a atuar conforme supra descrito prendiam-se com o facto de querer saber onde vivia à data a (…), sua mulher;

79. Quis, o arguido, com a sua conduta reiterada, infligir sofrimento físico e psíquico na (…), agredindo-a, maltratando-a, amedrontando-a, perseguindo-a, ofendendo-a na sua honra e consideração, através de insultos e difamando-a, pese embora não ignorasse que devia à visada, na qualidade de sua mulher, especial respeito e consideração;

80. Ao agir da forma descrita em 64), dizendo que lhe torcia o pescoço quando a apanhasse, querendo com isso significar que a matava, teve ainda o arguido o claro e firme propósito de provocar medo e inquietação na assistente (…), ciente de que a sua conduta era adequada a produzir o efeito pretendido;

81. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;

No que respeita à acusação particular de (…) e PIC:

82. Nos dias infra discriminados o arguido enviou mensagem para, pelo menos, os endereços de correio eletrónico aqui indicados:

- 10 de Janeiro de 2018, pelas 23:28h, o arguido enviou do seu endereço de correio eletrónico “ J (....) @gmail.com” para o endereço de email “ E (....) a@sapo.pt”;

- 11 de Janeiro de 2018, pelas 08:34h, o arguido enviou do seu endereço de correio eletrónico “ J (....) @gmail.com” para o endereço de email “ P (....) @sapo.pt”;

- 11 de Janeiro de 2018, pelas 22:19h, o arguido enviou do seu endereço de correio eletrónico “ J (....) @gmail.com” para o endereço de email “ C (....) @gmail.com”;

- 13 de Janeiro de 2018, pelas 12:46h, o arguido enviou do seu endereço de correio eletrónico “ J (....) @gmail.com” para o endereço de email “ M (....) @gmail.com”;

- 13 de Janeiro de 2018, pelas 13:00h, o arguido enviou do seu endereço de correio eletrónico “ J (....) @gmail.com” para o endereço de email “ L (....) @hotmail.com”;

- 13 de Janeiro de 2018, pelas 13:45h, o arguido enviou do seu endereço de correio eletrónico “ J (....) @gmail.com” para o endereço de email “ D (....) @gmail.com”;

83. Do teor da mensagem a que se alude em 82), o arguido profere afirmações contra a assistente (…), afirmando que esta é “manipuladora, astuta e ardilosa”, que no contacto com ela, aquela “…perguntava-me com a falsidade que a caracterizava…”, denegrindo o carácter e a imagem da Assistente perante pessoas que a conhecem há muitos anos, a consideram e estimam, ofendendo a honra e a consideração de uma jovem muito estimada por todos aqueles com quem priva;

84. Com as mensagens enviadas através de correio eletrónico da forma identificada em 82) e 83), a assistente (…) sentiu-se envergonhada, não só pelo teor das afirmações transcritas supra em 83), mas pela forma leviana e ostensivamente humilhante com que se refere à assistente ao longo do texto de 11 páginas que produziu e enviou para amigos comuns, bem sabendo que iria perturbar e ofender a assistente, conhecimento que não o impediu de agir como agiu, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei penal;

85. A conduta do arguido, descrita em 55) a 58) e 64), provocou na assistente medo ansiedade, bem como provocou dores que determinaram um período de doença de 6 dias, com afetação da capacidade geral e profissional, por igual período;

(…).

 Do PIC da Demandante CHUC:

(…).

Mais se apurou:

(…).


*

2.2. – Matéria de Facto Não Provada:

(…).


*

2.3 – Motivação da Matéria de Facto

[…]

3. Apreciação

(i) Recurso do despacho de 14.12.2018

Em crise está a decisão que indeferiu diligências de prova requeridas na contestação, concretamente as perícias psiquiátrica e de personalidade ao arguido e as perícias de personalidade às ofendidas. Já quanto à prova por reconstituição do facto, acabando o recorrente por reconhecer encontrar o respetivo indeferimento arrimo na alínea c) do n.º 4, do artigo 340.º do CPP, não deixa de se insurgir com a circunstância de o tribunal a quo não haver oficiosamente determinado a inspeção ao local e, bem assim a realização de perícia de engenharia física/mecânica - para reconstituição do momento com apoio em simulações computacionais e modelos adequado -, prova que assumiria relevância para aferir da intencionalidade, ou não, dos primeiros embates, do mesmo passo que elucidaria sobre o sucedido nos embates posteriores.

No que respeita à denegação das perícias ao arguido teria o tribunal a quo incorrido na nulidade da alínea d), do n.º 2, do artigo 120.º do CPP, violando o princípio da investigação e da descoberta da verdade (artigo 340.º do CPP), decidindo com desrespeito pelas garantias de defesa em processo criminal, do direito a um processo equitativo, decorrentes dos artigos 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 4 da CRP; 6.º, n.ºs 1 e 3, alínea b) da CEDH. No que concerne às perícias às ofendidas verificar-se-ia igualmente a sobredita nulidade (artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP), bem assim a violação dos artigos 340.º, n.º 1 do CPP e 32.º, n.º 1 da CRP. Nulidade e normas estas que resultariam também verificada e comprometidas no caso relacionado com a prova por reconstituição do facto.

Vejamos.

A invocada nulidade, transversal a todas as situações, ocorre quando se assiste à omissão posterior (às fases de inquérito ou da instrução) “de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade” – (cf. parte final da alínea d), do n.º 2, do artigo 120.º, do CPP).

Iniciando pela requerida reconstituição do facto, em função da “adesão” (revela-se conformado) do recorrente à causa, prevenida na alínea c), do n.º 4, do artigo 340.º do CPP, que conduziu ao indeferimento, a questão reside em saber se ao não determinar, oficiosamente, a inspeção ao local e/ou a realização da dita perícia de engenharia física/mecânica incorreu o tribunal a quo na identificada nulidade, violando o dever de investigação, tendente à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (artigo 340.º, n.º 1 do CPP).

Ora, se é facto que semelhante (s) diligência (s) não foram objeto do requerimento de prova, não menos certo é que ao julgador não se lhe afiguraram as mesmas necessárias para atingir o desiderato a que se reporta o n.º 1 do artigo 340.º do CPP, pois caso contrário tê-las-ia ponderado; acresce não decorrer dos autos que o ora recorrente haja em momento algum apresentado pretensão nesse sentido.

É verdade que a omissão de meio de prova necessário, isto é, essencial para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, quer haja sido ou não requerida, configura a nulidade relativa da alínea d), do n.º 2 do artigo 120.º do CPP, podendo, assim, questionar-se se, no caso, não deveria ter sido oficiosamente determinado. Aqui chegados, independentemente de considerarmos traduzir-se o modo de reação adequado na arguição de nulidade, por parte do interessado, perante o tribunal que proferiu a decisão - o que não ocorreu - sempre se dirá que nenhuma razão plausível se extrai do articulado (contestação) no sentido do caráter essencial das ditas diligências; pelo contrário, num momento em que ainda não se havia dado início à produção de prova em sede de audiência de julgamento, qualquer juízo nesse sentido seria precipitado.

Em suma, não se verifica a arguida nulidade (120.º, n.º 2, alínea d) do CPP), por violação do n.º 1 do artigo 340.º do CPP, como não resulta comprometido o direito de defesa e/ou o direito a um processo justo e equitativo.

E coisa diferente não podemos deixar de concluir quanto às demais nulidades invocadas.

Com efeito no que tange às requeridas perícias de personalidade à “ofendida” (…) e à assistente (…), não se traduzindo em diligência obrigatória, a vacuidade que a tal propósito decorre do articulado (contestação), do qual, como na generalidade dos casos, apenas se extrai não corresponder à verdade a versão dos factos pelas mesmas apresentada – por contraposição à tese do arguido, ora recorrente -, sobretudo numa ocasião em que ainda não haviam prestado depoimento/declarações em sede de audiência de discussão e julgamento – sendo que só estas relevam -, momento em que o julgador e demais intervenientes processuais, designadamente a defesa se mostrarão, pelo contacto direto, em posição de avaliar toda uma panóplia de fatores (expressos e implícitos, da mais variada ordem) capazes de induzir sobre a respetiva credibilidade – não estando então vedado ao arguido confrontá-las, contraditá-las, requerer acareações, se disso for caso -, não poderia conduzir senão à decisão de indeferimento, sem que dai resulte a invocada nulidade, tão pouco a violação das normas ou princípios convocados.

De resto, como já em momento anterior o fizemos, não deixaremos de realçar a circunstância de em momento subsequente do processo, após terem sido ouvidas no decurso da audiência de julgamento, o arguido, sustentado, agora, em aspetos concretos, ter alguma vez sentido a necessidade de retomar a pretensão, o que não lhe estava vedado, posto que cuidasse de concretizar factos capazes de a justificar.

Por fim, quanto às perícias de personalidade e psiquiátrica ao próprio, dir-se-á, como na decisão recorrida, não concretizar, uma vez mais, o articulado em que vem requeridas a razão de ser da pretensão, sendo certo que, ao invés do que defende o arguido, a questão, designadamente da inimputabilidade, mas também dos distúrbios ao nível da personalidade, tem de ser fundadamente suscitada, o que não sucedeu. Mais: concretamente quanto à primeira, vimos entendendo não se bastar com a simples suspeita, tendo, antes, de perspetivar-se em razão de circunstâncias concretas que apontem para uma séria possibilidade de o arguido aquando do cometimento dos factos em causa, sofrer de anomalia psíquica incapacitante da avaliação da ilicitude da sua conduta ou da auto-determinação para poder agir de acordo com o direito, o mesmo se aplicando à questão da imputabilidade diminuída – [cf. acórdão do TRC de 21.02.2018, proferido no âmbito do proc. n.º 500/15.8JACBR-B.C1, no qual a ora relatora interveio na mesma qualidade]. Na verdade, a perícia psiquiátrica, reportada no artigo 159.º, n.ºs 6 e 7, do CPP destina-se a apurar se o arguido sofre de anomalia psíquica capaz de justificar o juízo de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída (artigos 20.º do C. Penal) e só deve ser realizada ou determinada, ultrapassadas que se mostrem as fases preliminares do processo, quando “se suscitar fundadamente a questão da imputabilidade do arguido” (artigo 351.º do CPP), havendo mesmo quem defenda não poder a mesma “ser ordenada, nem realizada, na fase de julgamento antes de iniciada a audiência porquanto o processo penal não comporta, no período destinado às fase preliminares da fase do julgamento, qualquer momento para a produção de prova, salvo nas situações excecionais previstas nos artigos 319.º e 320.º do Código de Processo Penal” – [cf. acórdão do TRL de 05.12.2008, proferido no âmbito do proc. n.º 1044/2008 – 3.ª].

Em síntese, perante a não concretização, pelo recorrente, no articulado em que formulou a pretensão, de factos capazes de fundadamente suscitar a necessidade da realização das referidas perícias, resultando inequívoco não haver o tribunal a quo vislumbrado, em qualquer dos casos, motivos para a determinar - sem olvidar que a perícia sobre a personalidade revela, ou pode revelar, “para a decisão sobre a revogação da prisão preventiva, a culpa do agente e a determinação da sanção” (cf. artigo 160.º do CPP), excluída a primeira situação (o arguido não se encontrava em prisão preventiva), sabido, como é, que o juízo de culpa se reporta ao momento da prática dos factos e que à data em que foi requerida (antes do início da produção de prova) obviamente não havia sido proferida decisão sobre a culpabilidade (cf. artigo 368.º do CPP), apresentando-se, como tal, longínqua a questão da determinação da sanção (cf. artigo 369.º do CPP) – nenhuma censura merece, também nesta parte, a decisão recorrida, a qual não enferma da apontada nulidade, tão pouco se revela violadora das normas, designadamente constitucionais e/ou de direito europeu, ou princípios convocados.

Improcede, assim, na íntegra o recurso.

(ii) Recurso do despacho de 06.02.2019

Insurge-se o recorrente contra o despacho, proferido em ata, de 06.02.2019, que, com fundamento nas alíneas b) e d), do n.º 4, do artigo 340.º do CPP, indeferiu a perícia psiquiátrica, não obstante ter entendido haver, desta feita, o mesmo concretizado as razões pelas quais se justificava a sua realização, não se conformando com a circunstância de a perícia psiquiátrica, por si requerida, ter sido encarada como irrelevante, supérflua ou meramente dilatória.

Em suma, defende o recorrente que a prova produzida quer pessoal, quer documental vai no sentido “da razoabilidade e necessidade” da sua sujeição a perícia psiquiátrica médico-legal (artigo 159.º, n.º 6 do CPP), com o propósito de “avaliar a existência de alguma causa patológica de inimputabilidade (art. 20.º n.º 1 do CP) ou imputabilidade diminuída (art. 20.º n.º 2 do CP)” e que ao assim não ter entendido o despacho em crise enferma da nulidade, prevista na alínea d), do n.º 2, do artigo 120.º do CPP, tempestivamente arguida perante o tribunal a quo.

De facto, de imediato, após a prolação do despacho foi invocada a sobredita nulidade – sobre a qual o tribunal a quo apenas se pronunciou em sede de sentença, não a reconhecendo -, o que não impediu – e, quanto a nós, bem – que ao indeferimento da requerida perícia psiquiátrica tivesse o arguido reagido mediante a interposição de recurso, justamente o que ora nos ocupa [cf. no sentido da recorribilidade da decisão Oliveira Mendes, “Código de Processo Penal”, 2016, Almedina, nota 4 ao artigo 340.º, pág. 1049; Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4.ª edição, Universidade Católica Editora, nota 30 ao artigo 340.º, pág. 882].

Assistirá razão ao recorrente?

A perícia, definida por Germano Marques da Silva como a “atividade de perceção ou apreciação dos factos efetuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos” [cf. “Curso de Processo Penal”, II, Editorial Verbo, 208, pág. 215; no mesmo sentido Maia Gonçalves, inCódigo de Processo Penal”, 17.ª edição, Almedina, 2009, em anotação ao artigo 151.º], justifica o seu valor reforçado, auxiliando o julgador nas conclusões a retirar da prova. Ou seja, as conclusões intermédias dos peritos, mantendo o tribunal a liberdade de apreciação relativamente aos dados de facto que servem de base ao juízo destes, revelam-se indispensáveis sempre que a perceção ou apreciação dos factos recolhidos exigem o conhecimento de “ciências especializadas ou técnicas estranhas à cultura geral do julgador” – [cf. Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, II volume, Lisboa, 1981, pág. 347].

Se é certo que o artigo 151.º do CPP não esclarece se a obrigatoriedade da perícia depende da ponderação da autoridade judiciária, não menos certo é que situações há em que a perícia é legalmente exigível, como sucede no caso do artigo 351.º do mesmo diploma legal, isto é “Quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido” ou mesmo a questão da sua imputabilidade diminuída [cf. os n.ºs 1 e 2 do dito preceito; a propósito da questão da imputabilidade diminuída escreve Oliveira Mendes, in ob. cit., anotação ao artigo 351.º, pág. 1068: “O mesmo já não sucede no que tange à perícia psiquiátrica para determinação de eventual imputabilidade diminuída, como decorre do texto do n.º 2, cuja realização não é obrigatória. No entanto, face à decisiva importância da questão da imputabilidade diminuída, a qual não pode deixar de se considerar essencial, visto que saber se o arguido é ou não portador de imputabilidade diminuída é indispensável, em princípio, para a boa decisão da causa, entendemos que, perante razões válidas para suspeitar da imputabilidade diminuída do arguido, sobre o tribunal recai o dever de ordenar a comparência de perito ou de requisitar perícia sobre o estado psíquico do arguido, sob pena de violação do disposto no n.º 1 do artigo 340.º, a menos que a suspeita sobre a imputabilidade diminuída do arguido ocorra em fase em que o tribunal já tenha concluído no sentido da absolvição daquele ou da extinção do procedimento criminal”]. Neste quadro tem a perícia de ser oficiosamente ordenada. Sem negar que ao julgador assiste uma certa margem de avaliação sobre se o arguido revela indícios de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída, o juízo que formule a tal propósito tem necessariamente de assentar em critérios de razoabilidade, com referência designadamente aos elementos clínicos adquiridos no processo, não se excluindo a ponderação de diferentes meios de prova, cujo teor se revele pertinente. Dito de outro modo, a margem de liberdade que assiste à autoridade judiciária quanto à necessidade de ordenar a perícia não corresponde a um poder discricionário, demandando antes diversas ponderações relacionadas com a limitação de direitos fundamentais e a descoberta da verdade material.

No caso em apreço, o que importa responder é se perante os elementos integrantes dos autos seria razoável que o julgador não tivesse excluído a eventualidade de uma imputabilidade diminuída, suscitando-se-lhe, outrossim, um certo estado de dúvida sobre a questão da imputabilidade.

Independentemente da reprodução [com a indicação dos correspondentes registos áudio] das passagens de depoimentos que, em sede de julgamento, se pronunciaram sobre a “postura” e “reações” do arguido por ocasião dos factos, sobretudo dos que se reportam a janeiro de 2018 [cujo teor, no essencial, encontra correspondência nos registos magnetofónicos], os quais, contudo, não ultrapassam perceções colhidas num ambiente de perturbação que se alastrou aos próprios depoentes, merece-nos particular atenção a informação clinica de 23.01.2019 [subscrita por médico psiquiatra, coordenador da Unidade de Violência Familiar CRI de Psiquiatria do CHUC], bem como a documentação do Centro de Saúde Militar de (...) de 24.01.2019, cuja junção aos autos, conforme decorre do requerimento então apresentado, reforçou a posição do arguido no sentido da necessidade da realização da perícia psiquiátrica [cf. a ata de 06.02.2019, a fls. 1230 a 1232], sendo, de novo, convocados no recurso.

Com efeito, reportando haver sido o arguido acompanhado na Unidade de Violência Familiar do CRI de Psiquiatria de agosto de 2011 a abril de 2013 – tendo a última consulta ocorrido em 8 de abril de 2013 - extrata-se da dita informação clinica: Na altura referiu que “… pede ajuda porque quer compreender como chegou a este ponto”; “Na sua narrativa ressaltam múltiplas situações onde o ciúme marca a dinâmica disfuncional do seu relacionamento com (…)”; “tendo em conta a avaliação clinica, a história pessoal e a problemática relacional que motivou a vinda à UVF foi seguido em consulta de psiquiatria (medicado com psicofármacos) e concomitantemente em Grupo Psicoterapêutico (agressores)”; “em 03.01.2012: dificuldade no relacionamento com os outros (…). A hostilidade parece estar associada a características de personalidade mais agressivas e impulsivas (…)”; “Dada a sua profissão estar enquadrada por limites e regras muito particulares, onde a gestão de tensões e conflitos é importante e necessária, a sua hostilidade pode traduzir-se por ruminações, críticas e ressentimentos (…). Contudo esta contenção pode quebrar com maior facilidade no contexto das relações de intimidade (…) dificuldades ao nível de funcionamento atual (…) parecem surgir num quadro de perturbação da ansiedade, causa ou consequência de um estado de tensão anterior, alerta e vigilância permanente, com frequentes pensamentos em torno de temas de ciúme, de perseguição e de grandeza (…). Nenhuma perturbação grave da personalidade teve expressão suficientemente significativa para ser assinalada enquanto tal, mas é de registar que traços associados à perturbação limite podem ter alguma influência no comportamento do (…). Em termos de síndromes ou perturbação clinicas (…) parece existir sintomatologia associada ao distúrbio de stress Pós-Traumático”.

Por outro lado, da documentação do Centro de Saúde Militar de (...) [de 24.01.2019], dando conta de ter sido o arguido observado em duas consultas [30.10.2018 e 14.11.2018], retira-se: “Apresenta uma perturbação de adaptação; Medicado com Fluoxetina 20 mg e Paliperidona”; “Seguido no Cento de Saúde desde 30.09.2009 em consulta de psicologia. Durante as consultas tem vindo a apresentar consciência flutuante, humor disfórico e cooperação com o processo terapêutico. Apresenta reatividade fisiológica associada a sintomatologia depressiva e de ansiedade quando partilha situações consideradas por ele como traumáticas”; “Da sua história pregressa, parece-nos pertinente salientar situações traumáticas a nível profissional (…) Encontra-se colocado em (...) a título provisório e tem de efetuar anualmente o pedido de renovação da colocação. Este pedido agrava seriamente a sua situação clínica, potenciando os sintomas de stress pós traumático, nomeadamente as reações fisiológicas, medo intenso, ruminações, sonhos e pesadelos, flashbacks, choro fácil, ideações suicidas, tristeza e depressão, etc. (…).”

Os ditos relatórios, os quais não constituindo prova pericial - pois não determinada nos termos do artigo 151.º e ss. do CPP - se encontram sujeitos à livre apreciação (artigo 127.º do CPP), não deixam de incutir uma dúvida fundamentada sobre a questão da inimputabilidade/imputabilidade diminuída do arguido, circunstância que, em nosso entendimento, mesmo a não ter sido a perícia psiquiátrica requerida pela defesa – e foi – onerava o tribunal com o poder-dever de determinar a comparência de perito com vista a pronunciar-se sobre o estado psíquico daquele ou de requisitar a perícia psiquiátrica (artigos 159.º, 351.º e 340.º, n.º 1, todos do CPP), não se reconduzindo a realização da perícia a qualquer das alíneas do n.º 4 do artigo 340.º do CPP, quais sejam: a natureza irrelevante ou supérflua da prova e/ou a finalidade meramente dilatória do requerimento, que sustentaram o indeferimento.

Note-se que o relatório, subscrito por psiquiatra surge apoiado em consultas e acompanhamento ocorridos entre agosto de 2011 e abril de 2013, remontando, assim, a um período significativamente distanciado dos últimos factos relevantes que constituem o objeto do processo (reportados a janeiro de 2018), circunstância que não pode deixar de concorrer para a formulação do juízo de necessidade da realização da perícia psiquiátrica, na qual seja tomado em consideração, com referência aos episódios concretos, o período temporal em que (indiciariamente) terão acontecido. 

O facto de o arguido se ter submetido a duas consultas de psicologia já em data posterior aos acontecimentos não invalida a conclusão, desde logo porque com a perícia psiquiátrica se visa a aferição médica de patologia da mente, enquanto a perícia sobre a personalidade (pese embora a informação clinica do Centro de Saúde Militar de (...) não a consubstanciar) tem como objeto características psíquicas independentes de causas patológicas. Como escreve Santos Cabral, inCódigo de Processo Penal Comentado”, 2016, Almedina, pág. 629, “… enquanto que a perícia psiquiátrica está relacionada com a determinação da inimputabilidade, e assenta em estados patológicos do foro mental (Cf. arts. 159.º, n.ºs 6 e 7, e 351.º), a perícia sobre a personalidade destina-se a avaliar apenas a pessoa do arguido na sua especial, ou particular personalidade, e na sua perigosidade, com a finalidade de uma adequada avaliação da sua culpa ou a uma adequada tomada de posição sobre a revogação da prisão preventiva, (…) ou sobre a sanção a aplicar”, distinção que não invalida que na perícia relativa a questões psiquiátricas não possam também participar especialistas em psicologia – [cf. n.º 6 do artigo 159.º do CPP].

Em suma, a história pregressa do arguido importava, sob pena de violação do n.º 1 do artigo 340.º do CPP, que o tribunal a quo tivesse decidido, senão pela determinação oficiosa da perícia psiquiátrica, pelo deferimento do requerimento nesse sentido apresentado pela defesa.

Procede, assim, o recurso.


*

Prejudicada fica a apreciação do recurso interposto da decisão final.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal

(a) Julgar improcedente o recurso interposto do despacho proferido em 14.12.2018;

(b) Condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs - [cf. artigos 513.º e 514.º do CPP; 8.º do RCP, com referência à tabela III];

(c) Julgar procedente o recurso interposto do despacho proferido em 06.02.2019 e, em consequência, determinar a sua revogação e substituição por outro que requisite a requerida perícia psiquiátrica ao arguido, o que implica a reabertura da audiência de julgamento - tudo sem prejuízo do aproveitamento da prova já produzida nessa sede –, com a observância do contraditório e da eventual produção de prova suplementar, cuja necessidade decorra da ordenada perícia, seguida - cumpridas as formalidades do julgamento - da prolação de nova sentença em conformidade;

(d) Sem tributação;

(e) Julgar prejudicada a apreciação do recurso interposto da sentença.

Coimbra, 22 de Janeiro de 2020

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)