Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
525/14.0TBMGR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: LIVRANÇA
RELAÇÕES IMEDIATAS
PRESCRIÇÃO
CONTRATO DE MÚTUO
ABUSO DE DIREITO
SUPRESSIO
Data do Acordão: 04/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - INST. CENTRAL - 2ª SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 17, 70, 77 LULL, 310, 311, 334 CC
Sumário: 1. Nas relações imediatas, a prescrição da obrigação fundamental acarretará, em regra, a extinção da obrigação cambiária.

2. O artigo 311º do CC, que prevê o alargamento do prazo prescricional para os créditos reconhecidos por sentença ou outro título executivo, não será aplicável às obrigações cambiárias, por estas se encontrarem sujeitas aos prazos especiais de prescrição previstos no artigo 70º da LULL.

3. No mútuo bancário, em que o reembolso da dívida foi objeto de um plano de amortização, composto por diversas quotas, que compreendem uma parcela de capital e outra de juros remuneratórios, que se traduzem na existência de várias prestações periódicas, com prazos de vencimento autónomos, cada uma destas prestações mensais encontrar-se-á sujeita ao prazo prescricional privativo de cinco anos, previsto na al. g), do artigo 310º, do CC.

4. Se, em caso de incumprimento, o mutuante considerar vencidas todas as prestações, ficando sem efeito o plano de pagamento acordado, os valores em divida voltam a assumir em pleno a sua natureza original de capital e de juros, ficando o capital sujeito ao prazo ordinário de 20 anos.

5. O não exercício prolongado de um direito não é suficiente para preencher o abuso de direito, sendo ainda necessária a alegação de um investimento na confiança e que o exercício tardio acarreta uma desvantagem injustificada para a contraparte.

Decisão Texto Integral:






Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

Por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa que contra si e outra foi instaurada pelo N (…), S.A., veio o executado A (…) deduzir a presente oposição à execução por embargos, peticionando a extinção da instância executiva, pelo reconhecimento da exceção de prescrição ou, caso assim se não entenda, por preenchimento abusivo.

Alegando, para o efeito e em síntese:

a livrança foi assinada em branco, tendo sido preenchida posteriormente sem o seu consentimento;

o único financiamento que contraiu junto da exequente data de 2002, há mais de 12 anos, já se encontrando há muito a obrigação prescrita;

por referência à data que consta da livrança, 14.01.2002, o valor preenchido pela exequente contemplará ainda juros, impostos e encargos, desde há mais de cinco anos, importâncias estas que já se encontrarão prescritas, nos termos do disposto no artigo 310º CC, bem como quaisquer outras prescrições renováveis, nos termos da alínea g), do mesmo preceito;

verifica-se um manifesto abuso de direito por parte do exequente em fazer uso de uma livrança em branco que detém há vários anos, preenchendo-a em abril de 2014, por montante que se desconhece.

O exequente apresentou contestação defendendo a improcedência da oposição, com a seguinte alegação:

a livrança exequente cauciona um financiamento/empréstimo, sob a forma de “Crédito ao Consumo/ (...) ”, concedido pelo exequente ao executado, no valor de 10.329,75 €, devidamente formalizado por contrato celebrado a 14.01.2002;

o executado assinou o contrato subjacente à emissão da livrança que cauciona o mútuo em causa;

do empréstimo que lhe foi concedido, nada, ou quase nada, foi pago, na medida em que o capital em dívida é de 10.089,95 €, à data do incumprimento, 15.03.2002;

o exequente interpelou o executado por diversas vezes para pagar, a ultima das quais  em 19.03.2014, onde o exequente comunicou ao executado o preenchimento da livrança, o valor que foi aposto na livrança, 28.086,38 €, a data de vencimento da livrança, 11.04.2014, e as diversas formas e locais para efetuar o pagamento da dívida;

o prazo geral é de 20 anos e o da prescrição cambiária é de três;

quanto aos juros vencidos, tendo sido capitalizados na livrança, nãos e pode mais falar em juros, mas em capital, capital esse com direito a ser remunerado, com juros á taxa legal, desde o vencimento da livrança.

Considerando conterem os autos todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito, pelo juiz a quo foi proferido saneador/sentença a determinar a extinção da execução por verificação da exceção de prescrição.


*

Não se conformando com tal decisão, o embargado/exequente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem por sumula[1]:

(…)


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Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 675º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões a decidir seriam as seguintes:
1. Nulidade da sentença.
2. Prescrição.
3. Em caso de improcedência da prescrição, apreciação do abuso de direito invocado pelos embargante, cujo conhecimento foi considerado prejudicado na sentença recorrida.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
São os seguintes, os factos tidos em consideração pelo tribunal a quo:

1.º O embargado deu à execução uma livrança, emitida no valor de 28.086,38€, onde consta, como data de emissão, 2002-01-14 e, como data de vencimento, 2014-04-11, na qual o embargante surge como subscritor – cfr. livrança junta a fls. 14 dos autos de execução, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

2.º A livrança destinou-se a garantir o cumprimento das obrigações emergentes de um financiamento/empréstimo, sob a forma de “crédito ao consumo”, concedido pelo embargado ao embargante, no valor de 10.329,75€, formalizado em 14-01-2002 – cfr., documento de fls. 78, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

3.º A livrança foi entregue ao embargado assinada pelo embargante no lugar reservado ao subscritor, encontrando-se os restantes elementos em branco.

4.º Foi o embargado quem, posteriormente, apôs na livrança os restantes dizeres que dela agora constam, designadamente o valor, o local e a data de emissão e a data de vencimento.

5.º Em 21-01-2002, o embargado disponibilizou a importância de 10.329,75€ ao embargante, por crédito na sua conta bancária – cfr. extrato bancário de fls. 79, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.
Teremos ainda em consideração os seguintes factos, pelo relevo que apresentam para a decisão das questões objeto do recurso:
6. Segundo o acordado, o financiamento/empréstimo era pagável em 36 meses, em prestações sucessivas de capital e juros (doc.1 junto com a contestação).
7. Segundo o acordado, o montante e a data de vencimento da livrança ficaram embranco para que o Banco os fixasse na data que julgasse conveniente, pelo montante que compreenderá o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora e outros encargos, completando assim o seu preenchimento (doc. 1).
8. Por conta do referido empréstimo, o executado/embargante apenas pagou duas prestações, sendo o capital em dívida, à data do incumprimento, 15.03.2002, na quantia de 10.089,95 €.

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1. Nulidade da sentença com fundamento na al. c), do nº1 do artigo 615º do CPC.

Como é óbvio, a alegada errada aplicação dos factos ao direito relativamente à apreciação da questão da prescrição não integra a nulidade prevista na al. c), do nº1 do artigo 615º do CPC, ou qualquer outra nulidade da sentença.

É entendimento pacífico que a oposição entre os fundamentos e a decisão capaz de importar a nulidade da decisão respeita unicamente à contradição lógica – por ex., se na fundamentação da sentença, o juiz seguir uma determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente – não abarcando o erro de julgamento – errada subsunção dos factos à norma jurídica ou à sua errada interpretação[2].

A sentença recorrida não se encontra assim afetada pela invocada nulidade.

2. Prescrição da obrigação subjacente.
Após julgar improcedentes todos os demais fundamentos dos presentes embargos (com exceção do abuso de direito, exceção cujo conhecimento entendeu prejudicado pela procedência da exceção de prescrição), o juiz a quo veio a considerar prescrita a obrigação decorrente do contrato de financiamento que deu origem à subscrição da livrança, pelo decurso do prazo de cinco anos previsto no artigo 310º do Código Civil: quanto aos juros, por força da alínea d) e, quanto ao capital, por força da alínea g), da invocada norma.
O Apelante/exequente insurge-se quanto a tal entendimento defendendo, que, por um lado, haverá que distinguir entre a dívida de juros sujeita ao prazo de prescrição de cinco anos e a dívida de capital, sujeita ao prazo ordinário de 20 anos; por outro lado, com a capitalização de juros vencidos efetuada com o preenchimento da livrança não se pode mais falar em juros, mas em capital, capital este que tem direito a ser remunerado, desde o vencimento da livrança.
Apreciemos, assim, a invocada exceção de prescrição do direito de crédito do exequente.

Apesar de nos encontramos perante o exercício de uma ação cambiária – o executado é acionado pelo portador/exequente, enquanto subscritor da livrança exequenda e com fundamento na relação cambiária ou cartular –, o embargante não vem invocar o prazo de prescrição de três anos previsto para a obrigação cambiária (artigo 70º da LULL, aplicável à livrança por força do artigo 77º), invocando antes a prescrição da obrigação subjacente ou fundamental.

A livrança exequenda foi subscrita pelo embargante, no âmbito da celebração de um contrato de mútuo celebrado entre si e o Banco Exequente, encontrando-nos no domínio das relações imediatas.

A par da obrigação cambiária resultante da assinatura do título por parte do embargante (relação cartular), existem e subsistem as obrigações decorrentes da celebração de um contrato de mútuo entre o embargante e o Banco exequente (relação fundamental ou subjacente). O negócio cambiário possui uma causa (contrato de mútuo) que levou à subscrição da livrança. Em simultâneo com tais negócios existirá ainda uma convenção executiva entre o subscritor e o beneficiário da livrança, um acordo que explica a subscrição do título, fazendo a ligação entre a relação fundamental e o negócio cambiário.

De harmonia com o disposto no artigo 17º da L.U.L.L. (aplicável às livranças por força do disposto no artigo 77º), no domínio das relações imediatas podem, em regra, ser invocadas as exceções inerentes à relação fundamental ou subjacente.

Nas relações imediatas, isto é, nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador/sacado, sacador/tomador, tomador/1º endossado, etc.), nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extracartulares, é comum afirmar-se que tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstrata, ficando sujeita às exceções que nessas relações pessoais se fundamentem[3].

Ou, como prefere Carolina Cunha[4], sendo a obrigação cambiária instrumental da relação fundamental (instrumentalidade que é definida pela convenção executiva) é legítimo que as vicissitudes que afetem a relação subjacente tenham reflexos na pretensão cambiária.

Quanto à determinação sobre quais as vicissitudes causais que relevam e em que termos, deverá ser levada a cabo partindo do teor da convenção executiva, dependendo dos contornos da situação concreta. Sempre que o devedor esteja em condições de fazer valer factos extintivos da pretensão fundamental do credor, o carater instrumental da pretensão cambiária determina a sua vulneração: a circunstância de a obrigação fundamental não se ter validamente constituído ou de vir a ser extinta não pode deixar de comprometer irremediavelmente a obrigação cambiária criada para a solver, garantir, novar, etc.[5].

A prescrição da obrigação subjacente, atribuindo ao beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou se se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (artigo 304º, CC), acarretará, assim, em regra, a extinção da obrigação cambiária.


*

Vejamos, então, se a obrigação fundamental, decorrente do incumprimento do contrato de financiamento e respetivos juros, se encontra prescrita.

No caso em apreço, foi acordado entre as partes (mutuante e mutuário) que o aqui embargante entregaria ao Banco mutuante uma livrança “cujo montante e data de vencimento se encontram em branco para que o Banco os fixe em data a julgar conveniente pelo montante que compreenderá o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora e outros encargos, completando, assim, o seu preenchimento” (doc. de fls. 78).

O montante aposto na livrança (28.086,38 €) compreende a quantia de 10.089,95 €, a título de capital, e a quantia de 17.996,43 € a título de juros.

A obrigação de restituição do capital mutuado encontra-se, por regra, sujeita ao prazo geral ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309º do Código Civil.

O artigo 310º, do Código Civil, consagra um prazo especial de cinco anos, mais curto, justificado pelo facto de se encontrarem em causa direitos que têm, em geral, por objeto prestações periódicas.

Os juros – convencionais ou legais – são uma das hipóteses expressamente abrangidas pelo referido curto de prazo de prescrição de cinco anos, por força da alínea d) do artigo 310º CC.

À data em que a livrança foi preenchida, encontrar-se-iam, assim, prescritos todos os juros, convencionais ou legais, vencidos há mais de cinco anos – e não a totalidade dos juros incluída no montante aposto na livrança, como foi decidido pelo tribunal a quo.

Defende o apelante, que, tendo os juros sido capitalizados aquando da subscrição da livrança, a partir de tal momento não se pode mais falar em juros, pelo que os mesmos perdendo a natureza de juros, não poderiam ser abrangidos pela prescrição de cinco anos.

Não podemos aderir a tal entendimento. Encontrando-se prescritos os juros vencidos há mais de cinco anos (e tratando-se de prescrição extintiva) aquando do preenchimento da livrança, não podiam os mesmos ter sido objetivo de capitalização nessa data, não colhendo a argumentação da apelante.

Mais defende o apelante que, existindo um título executivo preenchido em virtude do incumprimento do contrato subjacente, lhes seria aplicável o prazo prescricional de 20 anos, por força do artigo 311º, nº1 do Código Civil.

Dispõe o nº1 do artigo 311º do CC: “O direito para cuja prescrição, bem que só presuntiva, a lei estabelecer um prazo mais curto do que o prazo ordinário fica sujeito a este último, se sobrevier sentença passada em julgado que o reconheça, ou outro título executivo.

Prevendo a lei para os juros um prazo mais curto do que o ordinário, será que poderemos considerar que, encontrando-se os mesmos cobertos por um título executivo – livrança –, se lhes aplica o nº 1 do artigo 310º, ficando sujeitos ao prazo de 20 anos?

De harmonia com o disposto em tal norma, por efeito do trânsito em julgado da sentença os prazos curtos de prescrição convertem-se no prazo ordinário: interrompido o prazo curto pela citação, interrupção que se mantém enquanto durar o processo e até á sentença final, transitada esta, os direitos prescritíveis em curto prazo, uma vez reconhecidos por sentença, tornam-se prescritíveis no prazo ordinário[6].

É certo que a referida norma prevê tal alargamento do prazo não só para os créditos reconhecidos por sentença mas, igualmente, para outros títulos executivos.

Contudo, a referida norma nunca poderia vigorar para os créditos cartulares, uma vez que a obrigação cambiária se encontra sujeita aos prazos especiais de prescrição contidos no artigo 70º da LUUL (três anos no caso de ações instauradas contra o aceitante, um ano se instauradas contra os endossantes e sacador, e seis meses, dos endossantes uns contra os outros e contra o sacador).

Por outro lado, atentar-se-á em o alargamento do prazo de 20 anos previsto no artigo 311º, respeita ao prazo de prescrição do crédito exequendo, pelo que se contará unicamente a partir da formação do título. Ora, o que aqui se discute é a eventual prescrição da obrigação fundamental cujo montante veio a ser aposto na livrança.


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A sentença recorrida julgou igualmente prescrita a obrigação de capital, por integração na alíneas e) – as quotas de amortização de capital pagáveis com os juros – e g) – quaisquer outras prestações periodicamente renováveis –, do artigo 310º, solução com a qual discordamos.

O artigo 310º consagra uma prescrição de curto prazo (encontramo-nos ainda dentro das prescrições extintivas), encontrando a sua razão de ser na proteção do devedor, pela acumulação da sua dívida que, de dívida de anuidades, pagas com os seus rendimentos, se transformaria em dívida de capital suscetível o arruinar, se o pagamento lhe pudesse ser exigido de um golpe ao cabo de um número demasiado de anos[7].

Abrangendo tal norma os juros (quaisquer juros, convencionais ou legais, moratórios ou remuneratórios), que constituem a prestação que mais fortemente levou os legisladores a criar o prazo de prescrição de cinco anos, considerou-se que com os mesmos devem prescrever as quotas de amortização de capital, se deverem ser pagas como adjunção aos juros, pois se assim não fosse, poderia dar-se uma acumulação de quotas de amortização, se ter pretendido suavizar o reembolso do capital e trata-lo como juros[8].

A previsão normativa da alínea e) abrange, pois, as hipóteses de obrigações periódicas, pagáveis em prestações sucessivas e que correspondam a duas frações distintas: uma de capital e, outra, de juros em proporção variável, a pagar conjuntamente. Cada quota de amortização corresponderá, assim, ao valor somado do capital e dos juros correspondentes, pagáveis conjuntamente[9].

Resultando as quotas de amortização do capital, da estipulação, entre as partes, de um plano de reembolso gradual e periódico de capital, que visa facilitar e agilizar o pagamento através do fracionamento da dívida em parcelas do capital – e em que cada prestação é composta por uma parcela de capital e outra de juros –, faz sentido a existência de um prazo prescricional de curta duração aplicável a cada prestação que se vença, considerada individualmente, como obrigação autónoma[10].

No caso em apreço, a livrança foi entregue como garantia de cumprimento de um contrato de financiamento/empréstimo, sob a forma de “crédito ao consumo”, formalizado em 14.01.2002, pagável em 36 meses, em prestações sucessivas de capital e juros.

Assim sendo, tendo o reembolso da dívida sido objeto de um plano de amortização, composto por diversas quotas, que compreendem uma parcela de capital e outra de juros remuneratórios, que se traduzem na existência de várias prestações periódicas com prazos de vencimento autónomos, cada uma destas 36 prestações mensais encontrar-se-ia sujeita a um prazo prescricional privativo de cinco anos[11].

Contudo, dos elementos constantes dos autos resulta que não é essa a dívida que aqui se executa – tendo sido pagas unicamente as duas primeiras prestações das 36 acordadas para a restituição integral do capital (abrangendo cada uma delas os juros remuneratórios, comissões, etc.), o capital que aqui se pede, e que foi aposto na livrança – no valor de 10.329,75 € –, não corresponde à soma de cada uma das restantes 34 prestações, mas, sim, à totalidade do capital em dívida à data do incumprimento, 15.03.2002.

Com efeito, a exequente, socorrendo-se do acordado sob o ponto 8 das Condições Gerais do contrato (fls. 78 v), e em conformidade com o disposto no artigo 781º do CC, e face ao não cumprimento atempado da 3ª prestação, terá considerado vencidas todas as restantes, com a “obrigatoriedade de pagamento imediato de todas as prestações em falta acrescidas de juros de mora à taxa de 2%”.

O vencimento imediato das prestações restantes, significa que o plano de pagamento escalonado anteriormente acordado deixa de estar em vigor, ocorrendo uma perda do benefício do prazo de pagamento contido em cada uma das prestações: desfeito o plano de amortização da dívida inicialmente acordado, os valores em dívida voltam a assumir a sua natureza original de capital e de juros. Desfeita a ligação anteriormente contida em cada uma das prestações entre uma parcela de capital e outra a título de juros, nenhuma razão subsiste para sujeitar a dívida de capital e a dívida de juros ao mesmo prazo prescricional: os juros que se forem vencendo prescreverão no prazo de cinco anos, e o capital, no valor de 10.329,75 €, encontrar-se-á sujeito ao prazo ordinário de prescrição de 20 anos.

Concluindo, apenas os juros se encontram sujeitos ao prazo de prescrição de cinco anos.

Quanto a uma eventual interrupção da prescrição, e ao contrário do defendido pelo Apelante, não se afigura necessária qualquer produção de prova para apuramento de tal matéria. Incumbindo ao credor a alegação e prova de que ocorreu algum facto interruptivo, o exequente/apelante limitou-se a alegar que “o executado/embargante foi interpelado por diversas vezes, pelo embargado para pagar a dívida aqui em causa, a última das quais, através de carta datada de 19-03-2014”.

Alegar que “foi interpelado por diversas vezes”, sem concretização de qualquer data não terá qualquer relevância (uma vez que a cada interrupção, o prazo volta de novo a correr, haveria que ter alegado a concreta data de cada uma das interpelações). Assim sendo, temos uma única interpelação, datada alguns dias antes da data de vendimento aposta na livrança – a carta é datada de 19 de março de 2014, e pela mesma é dado conhecimento ao embargante de que a livrança irá ser preenchida, coincidindo a data limite de pagamento com a data de vencimento aposta na livrança – 11 de abril de 2014.

Concluindo, encontrar-se-ão prescritos apenas os juros vencidos mais de cinco anos antes da data em que procedeu à liquidação do montante em dívida e ao preenchimento da livrança – 19 de março de 2014 –, devendo o exequente, na execução, proceder à reformulação da quantia exequenda, apresentando um novo cálculo das quantias em dívida, descontados os juros que se encontravam prescritos à data do preenchimento da livrança.

Tendo o tribunal recorrido deixado de apreciar a questão do abuso do direito, por a considerar prejudicada face à decisão por si proferida de procedência total da prescrição do crédito exequendo, a revogação parcial de tal decisão impõe o conhecimento daquele fundamento dos embargos, ao abrigo do disposto no nº2 do artigo 665º do CPC[12].

3. Abuso de direito.

Invoca o embargante a existência de abuso de direito por parte do exequente ao fazer uso de uma livrança em branco que detém há mais de dez anos, preenchendo-a em abril de 2014, ofendendo a segurança jurídica e as práticas bancárias.

Ora, constituirá um abuso de direito, que o credor, que é titular de um crédito sujeito a um prazo de prescrição de 20 anos, espere cerca de 10 anos para preencher uma livrança que detém em seu poder – ao abrigo de uma cláusula constante do pacto de preenchimento, que lhe permite fixar o vencimento na data que julgar conveniente” – a fim de acionar o montante em dívida?

Pela nossa parte, não descortinamos qualquer abuso de direito na instauração da presente ação executiva, em qualquer uma das modalidades de abuso configuradas pela doutrina[13], sendo certo que a embargante não indica qualquer outra circunstância fundamentadora do abuso para além de uma alegada inatividade na cobrança do crédito por 10 anos.

Há abuso de direito sempre que o seu titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social deste direito – artigo 334º do Código Civil.

Entendendo-se a boa-fé como norma de conduta, significa que as pessoas se devem comportar, no exercício dos seus direitos e deveres, com honestidade, correção e lealdade, de modo a não defraudar a legítima confiança ou expectativa dos outros.

Segundo Paulo Mota Pinto[14], o artigo 334º consagra uma conceção objetivista do abuso, indicando como critérios o excesso manifesto (no sentido de clamoroso) dos limites impostos:

1º) pelos bons costumes – trata-se de uma cláusula geral que reenvia para os princípios impostos pela consciência social dominante, tendo uma componente descritiva (são os costumes) e outra normativa (os bons costumes);

2º) pela boa-fé – o critério da boa-fé aqui indicado tem apenas aplicação no quadro de relações especiais, entre cujos intervenientes se possa formar uma “legitima expectação de conduta”;

3º) pela função económico-social do direito – apelando-se aqui aos juízos de valor positivamente consagrados na própria lei[15].

Como refere Antunes Varela, “para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder”[16].

Ou, como acentua Manuel de Andrade[17], é preciso que o direito seja exercido “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.

“De qualquer modo, para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito[18]”.

Um dos comportamentos que tem vindo a ser considerado como uma das variantes do abuso de direito, por violação manifestamente excessiva dos limites impostos pelo princípio da boa-fé, associado precisamente aos casos de inatividade do credor relativamente ao exercício de um direito, é a denominada “supressio”.

“A supressio (supressão) abrange manifestações típicas de “abuso de direito” nas quais uma posição jurídica não sendo exercida, em certas circunstâncias e por certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa-fé[19]”.

Com a supressio não se pretende penalizar o não exercício do direito pelo seu titular, considerando-o um desvalor em si mesmo, mas sim beneficiar a contraparte, evitando que o exercício retardado do direito surja, para esta, como uma injustiça, quer infligindo-lhe uma desvantagem desconexa na panorâmica geral do espaço jurídico, quer acarretando-lhe um prejuízo não proporcional ao benefício colhido pelo exercente[20].

Podemos assim dizer, sinteticamente, que a supressio se traduz no não exercício do direito durante um lapso de tempo de tal forma longo que crie na contraparte a representação de que esse direito não mais será exercido, conduzindo o exercício tardio a uma desvantagem injustificada para esta.

Segundo António Menezes Cordeiro, a figura da supressio, destinada a proteger a confiança de um beneficiário pressupõe:

- um não-exercício prolongado;

- uma situação de confiança;

- uma justificação para essa confiança;

- um investimento de confiança;

- a imputação da confiança ao não exercente.

“O não exercício prolongado estará na base, quer da relação de confiança, quer da justificação para ela. Ele deverá, para ser relevante, reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição de um beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não mais será exercida. O investimento de confiança traduzirá o facto de, mercê da confiança criada, o beneficiário não poder ser desamparado sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis. Finalmente: tudo isto será imputável ao não-exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela sua inação. Não se exige culpa: apenas uma imputação razoavelmente objetiva[21]”.

No caso em apreço, o embargante limita-se a invocar o decurso do tempo, desacompanhado de qualquer outra circunstância relacionada, nomeadamente um eventual investimento resultante da confiança gerada pelo não exercício do direito, ou a ocorrência de quaisquer danos gerados pela quebra da confiança e pelo exercício tardio do direito.

Não se considera, assim, abusiva a instauração da presente execução.

A apelação é de julgar parcialmente procedente.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida, considerando-se prescritos unicamente os juros vencidos há mais de cinco anos, tendo por referência a data de preenchimento da livrança (19 de março de 2014), determinando-se o prosseguimento da execução para pagamento dos montantes devidos a título de capital, no valor de 10.329,75 €, acrescida dos respetivos juros vencidos nos cinco anos anteriores a 19.04.2014.

Custas da apelação pelo apelante e pelo apelado, na proporção do vencimento.

                                                                          

 Coimbra, 26 de abril de 2016

Maria João Areias ( Relatora )

Fernanda Ventura

Fernando Monteiro

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. Nas relações imediatas, a prescrição da obrigação fundamental acarretará, em regra, a extinção da obrigação cambiária.

2. O artigo 311º do CC, que prevê o alargamento do prazo prescricional para os créditos reconhecidos por sentença ou outro título executivo, não será aplicável às obrigações cambiárias, por estas se encontrarem sujeitas aos prazos especiais de prescrição previstos no artigo 70º da LULL.

3. No mútuo bancário, em que o reembolso da dívida foi objeto de um plano de amortização, composto por diversas quotas, que compreendem uma parcela de capital e outra de juros remuneratórios, que se traduzem na existência de várias prestações periódicas, com prazos de vencimento autónomos, cada uma destas prestações mensais encontrar-se-á sujeita ao prazo prescricional privativo de cinco anos, previsto na al. g), do artigo 310º, do CC.

4. Se, em caso de incumprimento, o mutuante considerar vencidas todas as prestações, ficando sem efeito o plano de pagamento acordado, os valores em divida voltam a assumir em pleno a sua natureza original de capital e de juros, ficando o capital sujeito ao prazo ordinário de 20 anos.

5. O não exercício prolongado de um direito não é suficiente para preencher o abuso de direito, sendo ainda necessária a alegação de um investimento na confiança e que o exercício tardio acarreta uma desvantagem injustificada para a contraparte.


[1] Face ao nítido incumprimento do ónus de sintetizar os fundamentos do recurso, em violação do dever que lhe é imposto pelo nº1 do artigo 639º do NCPC.
[2] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 704.
[3] Cfr., Prof. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, 1994, pág. 449 e 450.
[4] “Manual de Letras e Livranças”, Almedina 2016, págs. 66 a 69.
[5] Neste sentido, Carolina Cunha, “Manual (…), págs. 67 a 69.
[6] Adriano Vaz Serra, “Prescrição (…)”, BMJ nº 106, pág. 133.
[7] Adriano Vaz Serra, “Prescrição Extintiva e Caducidade”, BMJ nº 106, Maio 1961, pág. 107, nota 675, citando Planiol, Ripert e Tissier.
[8] Adriano Vaz Serra, artigo e local citados, pág. 113 e 114.
[9] Ana Filipa Morais Antunes, “Algumas Questões sobre Prescrição e Caducidade”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia, III Vol., pág. 44.
[10] Ana Filipa Morais Antunes, “Algumas Questões (…)”, pág. 45, e ainda “Prescrição e Caducidade, Anotação aos Artigos 296º a 333º do Código Civil”, pág. 128.
[11] Cfr., neste sentido, Acórdão do TRP de 24-03-2014, relatado por Correia Pinto, disponível in www.dgsi.pt.
[12] No caso em apreço entendemos não haver lugar à audição prévia das partes prevista no nº3 do artigo 665º CPC, porquanto, tendo o juiz a quo procedido ao conhecimento do mérito no despacho saneador, fê-lo após notificar as partes de que os autos permitiam o conhecimento imediato do mérito da causa, tendo procedido à realização de audiência prévia com vista a facultar às partes a discussão de facto e de direito.
[13] Dentro dos comportamentos que têm vindo a ser considerados como concretizações do abuso de direito, por violação manifestamente excessiva dos limites impostos pelo princípio da boa-fé, António Menezes Cordeiro distingue cinco institutos: venire contra factum proprium, inalegabilidade formal, supressio, tu quoque e desequilíbrio no exercício - Cfr., “Do Abuso do Direito: Estado das Questões e Perspectivas”, estudo publicado na ROA, Ano 65, Vol. II, Set.2005, disponível in http://www.oa.pt.
[14] Cfr., “Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire contra factum proprium) no Direito Civil”, estudo publicado in Boletim da FDUC, Volume Comemorativo, Coimbra 2003, pag. 316 e 317.
[15] No abuso de direito pretende-se impedir que a norma seja desvirtuada no seu real sentido e alcance, ou seja, pretende-se aplicar a norma, mas com plena fidelidade ao seu espírito – cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações Em Geral”, Vol. I, Almedina, 9ª ed., pág. 565, nota (2).
[16] Cfr., “Das Obrigações em Geral, Vol. I, pág. 564.
[17] “Teoria Geral da Relação Jurídica”, I, 1960, pág. 63.
[18] Antunes Varela, obra citada, pág. 565.
[19] Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português”, I Parte Geral, Tomo IV, 2005, pág. 311.
[20] Cfr., Acórdão do TRP de 15.012.2005, relatado por Deolinda Varão, disponível in www.dgsi.pt
[21] Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil”, vol. citado, pag. 324.