Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3020/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Data do Acordão: 11/22/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 212º, Nº 3 DA CONSTITUIÇÃO E 4º DO ETAF.
Sumário: I – A competência, enquanto medida de jurisdição de cada Tribunal que o legitima para conhecer de determinado litígio, como pressuposto processual, afere-se nos termos em que a acção é proposta (pedido e causa de pedir) , ou seja pela relação jurídica tal como o autor a configura .
II – Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, que permite reservar para certas categorias de tribunais o conhecimento de certas causas, atendendo à especificidade das matérias .

III – As expropriações têm lugar através de um acto administrativo – o acto declarativo de utilidade pública - , de execução continuada, face ao que o expropriado está legitimado a impugnar a sua legalidade, através do recurso contencioso de anulação, sendo inequívoca a competência dos Tribunais Administrativos para o efeito .

IV- Numa segunda fase, todos os litígios referentes à indemnização já são da competência dos Tribunais comuns .

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

A Autora - A...,- instaurou na Comarca de Leiria ( 2º Juízo Cível ) acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra o Réu – B....
Alegou, em resumo:
Por despacho do Secretário de Estado do Ordenamento do Território e da Conservação da Natureza, de 17/11/99, foi declarada a utilidade pública da parcela nº12 que se integrava na área de dois prédios da Autora.
A DUP deu origem ao processo de expropriação amigável nº1466/01, que culminou com o contrato de cessão celebrado, por escritura pública, entre a Autora e o Réu, por escritura pública, através do qual aquela transferiu para o Réu duas parcelas de terreno, comprometendo-se este pagar à Autora, como efectivamente pagou, uma indemnização no montante de 13.825 299$00 ( 68.960,30 € ).
A Autora celebrou este contrato não só na pressuposição de a DUP era válida, como também no facto de a Câmara Municipal de Leiria ter assumido o compromisso de que iria autorizar e licenciar para o remanescente dos terrenos, onde se integrava a parcela nº12, uma área equivalente à que autorizaram para a área de terreno antes da expropriação.
Acontece que a DUP é nula, pois foi emitida em 17/11/99, com base no CExp./91, quando nessa data já estava em vigor o CExp./99, sem que tivesse sido fundamentada, como determina o art.13º, e a CML propõe-se indeferir os projectos de construção apresentados pela Autora, com fundamento de os mesmos ultrapassarem os índices de construção fixados para aquela zona.
A Autora contratou com o Réu numa situação de erro, conferindo-lhe o art.252 nº1 do CC o direito de requerer a anulação do contrato de expropriação amigável, ou em alternativa a resolução ou modificação do contrato, nos termos do art.437 do CC.
Concluiu pedindo cumulativamente:
a) – A declaração de nulidade do acto administrativo D.U.P., praticado pelo Secretário de Estado do Ordenamento do Território, por falta de fundamentação, nos termos das disposições conjugadas dos art. 133º, nº1 do C.P.A., e 13º Cód. das Expropriações
b) - Ser o contrato de cessão da propriedade das parcelas descritas no art. 2º da presente acção, celebrado em consequência do processo de expropriação amigável nº 1466/01 que se iniciou com a D.U.P. supra aludida, ser anulado com fundamento no art. 252º, nº 1 do C.C.
c) - Ou, caso assim se não entenda, ser o contrato de cessão da propriedade das parcelas descritas no art. 2º da presente acção, celebrado em consequência do processo de expropriação amigável nº 1466/01 que se iniciou com a D.U.P. supra aludida, declarado resolvido ou modificado nos seus termos com fundamento nos art. 252º, nº 2 e 437º do C.C., devendo neste último caso, ser a Ré condenada a pagar à A. uma justa indemnização pela expropriação, de montante a liquidar em execução de sentença.
d) - Em alternativa, deve a R. ser condenada a pagar à A. indemnização em quantia a liquidar em execução de sentença, por violação do art. 227º do C.C.
Contestou o Réu, defendendo-se, além do mais, com a excepção da incompetência material, visto que a DUP, sendo um acto administrativo, está sujeito a impugnação nos tribunais administrativos.
Replicou a Autora, sustentado a competência material do tribunal da Comarca de Leiria, pois a matéria submetida à apreciação não é exclusivamente a da validade das DUP.
Seguiu-se audiência preliminar, após o que foi proferida decisão a julgar procedente a excepção da incompetência absoluta do tribunal, absolvendo o Réu da instância.
Inconformada, a Autora recorreu de agravo, formulando as seguintes conclusões:
1º) - O presente pleito traduz-se numa acção em que está em causa o direito de propriedade da Autora sobre faixas de terreno dos respectivos imóveis ou a indemnização a que tem direito pela sua ocupação pelo Réu, em virtude de vícios no contrato celebrado.
2º) – Tais questões são da esfera de competência dos tribunais comuns, como tem sido entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência.
3º) – O despacho recorrido violou o disposto nos arts.66 e 96 do CPC, 18 nº1 da LOTJ e art.4º nº1 f) do ETAF.
Contra-alegou o Réu, preconizando a improcedência do recurso e o M.mo Juiz manteve a decisão recorrida.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A competência, enquanto medida de jurisdição de cada tribunal que o legitima para conhecer de determinado litígio, como pressuposto processual, afere-se nos termos em que a acção é proposta (pedido e causa de pedir), ou seja pela relação jurídica tal como o autor a configura ( cf., por ex., Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol.1º, pág.110, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág.88; Ac do STJ de 3/2/87, BMJ 364, pág.591, de 12/1/94, C.J. ano II, tomo I, pág.38 ).
Nos termos do art.66 do CPC, “ são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Neste mesmo sentido já estabelecia o art. 14 da LOTJ (DL 38/87 de 23/12), tal como agora o artigo 18º da LOFTJ.
Consagra-se aqui a competência residual dos tribunais judiciais. Assim, são da competência destes tribunais (antes designados de tribunais comuns) as causas que não forem atribuídas por lei a qualquer jurisdição especial.
A competência dos tribunais judiciais é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual.
E, segundo o artigo 67 do CPC, as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.
Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, que permite reservar para certas categorias de tribunais o conhecimento de certas causas, atendendo à especificidade das matérias.
O art.209 da Constituição prevê a existência de várias categorias de tribunais, incluindo aí, nomeadamente, os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais.
O nº 1 do seu art. 211 da Constituição estabelece que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
Dispõe o nº3 do art. 212, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, com tradução semelhante na lei ordinária, conforme art.4º do ETAF (aprovado pelo DL nº 129/84, de 27/04).
Por conseguinte, os tribunais administrativos apenas são competentes para dirimir litígios emergentes de relações jurídico-administrativas.
Ressalva, contudo, o nº1 do art. 4º do ETAF, a existência de recursos e acções que estão excluídos da jurisdição administrativa, designadamente as questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público.
Neste caso não se verifica uma relação jurídica de direito administrativo, e, portanto, os tribunais administrativos não são competentes para o seu julgamento - e as acções cuja apreciação pertença por lei à competência de outros tribunais – postulando-se, assim, uma cláusula de natureza residual.
Por “ relação jurídica de direito administrativo “ entende-se ser “ aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres aos particulares perante a administração” ( cf. Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. 3º pág. 439).
Para Gomes Canotilho/Vital Moreira( Constituição da República Portuguesa Anotada, pág.815 ), as relações jurídicas administrativas caracterizam-se por um duplo requisito:
“ As acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos, é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público; as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo.
“ Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza privada ou jurídico-civil “.
A declaração de utilidade pública é o facto constitutivo da relação de expropriação, (cfr. Marcelo Caetano, Estudos de Direito Administrativo, pág. 182, e Fernando Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, págs. 110 e 178).
As expropriações têm lugar através de um acto administrativo – o acto declarativo de utilidade pública – de execução continuada, dado que apesar de alguns efeitos se produzirem com a sua publicação, são diferidos para momento posterior.
Tratando de um acto administrativo, o expropriado está legitimado a impugnar a sua legalidade, através do recurso contencioso de anulação, sendo inequívoca a competência dos tribunais administrativos, para o efeito.
Estando a nulidade da declaração de utilidade pública, enquanto acto administrativo, subtraída à apreciação dos tribunais comuns, também não pode ser conhecida como questão incidental ou prejudicial, nos termos do art.96 nº1 do CPC e 134 nº2 do CPA ( cf., por ex., Ac STJ de 18/1/96, C.J. ano IV, tomo I, pág.15 ).
É certo que a declaração de utilidade pública não transfere a propriedade dos bens expropriados para a entidade expropriante, competindo a mesma ao tribunal comum ( art.51 nº5 do CExp./99 ), mas a transferência não constitui um acto judicial do ponto de vista material, já que o juiz comum não tem qualquer poder de julgamento ou de apreciação da (i)legalidade da expropriação, limitando-se ao simples controlo da regularidade formal do procedimento expropriativo.
O mesmo não sucede relativamente à caducidade da declaração de utilidade pública, que pode ser apreciada pelo tribunal comum competente para conhecer do recurso da decisão arbitral ( art.13 nº4 do CEx./99 ), pois neste caso não se vai apreciar a validade intrínseca do acto, mas apenas a declarar as consequências do decurso do prazo.
Sendo assim, relativamente ao primeiro pedido de declaração de nulidade do acto administrativo da declaração de utilidade pública, no âmbito do processo de expropriação nº 1466/01, o tribunal comum da Comarca de Leiria é materialmente incompetente.
Porém, contrariamente ao exposto no despacho recorrido, a apreciação dos demais pedidos que contendem com o acordo celebrado entre as partes para a fixação da indemnização, é da competência dos tribunais comuns.
O processo expropriativo inicia-se obrigatoriamente com a chamada “expropriação amigável”, devendo a entidade expropriante procurar chegar a acordo com o expropriado e demais interessados ( art.33 do CEx./99 ), designadamente sobre o montante da indemnização e a forma de pagamento, podendo abranger outras condições, cuja descrição prevista no art.34 é meramente exemplificativa.
O acordo é obrigatoriamente formalizado por escrito (formalidade ad substantiam ), antes da adjudicação judicial da propriedade, através de escritura de expropriação amigável ou auto de expropriação amigável ( art.36 do CExp./99 ), podendo ser precedido de um contrato-promessa.
Pois bem, no âmbito do processo de expropriação amigável nº1466/01, as partes acordaram sobre o montante da indemnização que formalizaram através de escritura pública.
Com os demais pedidos formulados, pretende a Autora a anulação do acordo, com base no erro, ou em alternativa a resolução ou modificação do mesmo, com fundamento no art.447 do CC, ou ainda uma indemnização por responsabilidade pré-contratual ( art.227 do CC ).
Não está em causa uma relação jurídica administrativa, disciplinada por normas de direito público administrativo, mas a apreciação de uma questão de direito privado, sendo irrelevante a circunstância de intervir no acordo uma entidade pública.
O acordo de expropriação amigável não reveste a natureza de um contrato administrativo, na acepção definida nos arts.178 nº1 do Código de Procedimento Administrativo e 9 nº1 do ETAF, ou seja, não se traduz num acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa.
Muito embora exista um nexo de interdependência entre o efeito expropriativo, provocado pela declaração de utilidade pública, criando para o particular a sujeição à expropriação, e a indemnização, a verdade é que no acordo expropriatório a entidade expropriante não intervém com a supremacia de autoridade, limitando-se a propor a compensação a pagar, segundo o esquema proposta/aceitação.
Tem sido esta a orientação do Tribunal de Conflitos, designadamente no Acórdão de 3/4/2003 ( www dgsi.pt/jsta ) ao decidir que o julgamento das questões relativas a expropriações, numa primeira fase há o acto administrativo de declaração de utilidade pública, cujos eventuais vícios são sindicáveis pelos tribunais administrativos; numa segunda fase, todos os litígios referentes à indemnização são da competência dos tribunais comuns.
Em resumo, o Tribunal da Comarca de Leiria é materialmente incompetente para conhecer do pedido de nulidade da declaração de utilidade, que deu origem ao processo de expropriação amigável nº1466/01, sendo competente relativamente aos demais pedidos.
III – DECISÃO

Pelo exposto, na parcial procedência do agravo, decidem:
1)
Confirmar o despacho recorrido, na parte em que julgou o Tribunal da Comarca de Leiria ( 2º Juízo Cível ) materialmente incompetente para conhecer do pedido de declaração de nulidade do acto administrativo D.U.P., praticado pelo Secretário de Estado do Ordenamento do Território e absolveu o Réu da instância.
2)
Revogar o despacho recorrido, na parte em que julgou o Tribunal da Comarca de Leiria materialmente incompetente para conhecer dos demais pedidos formulados na acção e absolveu o Réu da instância.
3)
Condenar a Autora nas custas, em ambas as instâncias, na proporção de 25%, estando o Réu subjectivamente isento da parte restante.
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Coimbra, 22 de Novembro de 2005.