Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1676/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS VIEIRA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
MÁ FÉ
PROCESSO PENAL
Data do Acordão: 07/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA E EM PARTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 456º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ARTIGO 4º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: 1- O Código de Processo Penal regula exaustivamente o sancionamento dos comportamentos processuais incorrectos.
2. Por isso, não é subsidiariamente aplicável em processo penal o instituto da má fé previsto no artº. 456º do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral:
Acórdão em conferência na secção criminal deste Tribunal da Relação:
A Direcção-Geral de Viação – Delegação de Viação de Viseu, perante o auto de notícia nº 242111335, levantado pela GNR, instaurou processo de contra-ordenação ao arguido A..., portador do Bilhete Identidade 11251645, emitido por Viseu, e da carta /licença de condução n. P-1168081, residente em RUA S. MIGUEL, 24 R/C ESQ. ABRAVESES 3501-204 VISEU Portugal.

Organizado o respectivo processo veio, no final, a ser proferida decisão, datada de 24 de Maio de 2005, sendo aplicada ao arguido uma coima no valor de Euros 130 (cento e trinta Euros) e ainda a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 150 dias pela prática da contra-ordenação ao disposto no art.º 4 n° 1 do Código da Estrada.
Desta decisão interpôs o arguido recurso de impugnação judicial.
Proferido despacho liminar de recebimento do recurso de impugnação, foi igualmente determinada a apensação dos autos de recurso de contra-ordenação nº 4732/05.9TBVIS.
Por requerimento dirigido aos autos, na própria audiência de julgamento, o arguido alegou a que a decisão administrativa recorrida, porque não assinada nem rubricada pelo Senhor Delegado da Viação de Viseu, enfermava de vício de inexistência jurídica para todos os efeitos mormente para promover os autos de contra-ordenação os quais por isso deveriam ser declarados inválidos.

Relegada a apreciação e decisão do requerimento assim interposto para a decisão a proferir a final, realizou-se o julgamento, e proferiu-se sentença na qual se conheceu da questão prévia, indeferindo-a e condenando o arguido, como litigante de má-fé, na multa de 10 Ucs, por aplicação do disposto no artº 456º/1/2/ alíneas a), b) e d) do C.P.Civil, por referência ao disposto no artº 4º do C.P.Penal.
Quanto ao mais confirmou-se a decisão impugnada.
Inconformado interpôs recurso o arguido para o Tribunal da Relação de Coimbra, concluindo na sua motivação:
CONCLUSÕES:
I - O Código do Processo Penal não contém norma expressa relativa à má-fé, encontrando-se vedado o recurso ao Código do Processo Civil, perante a desarmonia de princípios neste particular, não havendo sequer fundamento para sustentar o entendimento de que há lacuna (art ° 4º, do Código do Processo Penal).
II - Assim, a condenação do arguido em processo penal como litigante de má-fé, por aplicação do art.s 456º, do CPC, ex vi, do artº 4.°, do CPP, constitui, salvo o devido respeito, uma violação ao direito de defesa do arguido, como garantia constitucional (art.s 32º, nº 1, da CRP), ao direito de acesso aos tribunais no sentido de que não pode ser limitativa do direito de defesa (art. 20º nº 4 da CRP), bem como uma violação ao princípio da proporcionalidade, inserto no art. 18º, da CRP
III - O recorrente foi condenado como litigante de má-fé, sem que lhe fosse dado conhecimento do propósito de tal condenação, pelo que aquele não teve qualquer oportunidade de se pronunciar sobre a questão e de alegar algo em sua defesa, antes de ter sido proferida a decisão condenatória.
IV - A condenação do recorrente como litigante de má-fé, na sentença sindicada, constitui uma decisão surpresa e, por isso, ilícita, nos termos do n.º 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil.
V - Pelo que a sentença recorrida é nula nessa parte
O Magistrado do Ministério Público junto do tribunal da 1ª instância veio, em resposta ao recurso assim interposto, alegando em conclusão:
1º - Deve revogar-se a douta sentença proferida na parte em que condenou o arguido como litigante de má-fé, assim se dando, nessa parte, provimento ao recurso.
2° - Na parte restante, e que é perfeitamente cindível da primeira, deve o recurso ser rejeitado por manifesta improcedência ( art. 420, n° 1 do CPP, 74, n° 4 e 75, n° 1 do RGCC).
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação, emitiu parecer em que sufragando as razões aduzidas pela Sra. Procuradora-Adjunta no tribunal da 1ª instância, se pronuncia pelo parcial provimento do recurso no que concerne a condenação do arguido como litigante de má-fé, e pela rejeição na parte restante.

Foi dado ao disposto no artº 417º nº 2 do CPP.

Assim que, colhidos os Vistos legais, cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO:
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros, o Ac. do STJ de 19-6-96 , no BMJ 458° , pág. 98 ).
Acresce que no caso concreto do recurso em processo contra-ordenacional os Tribunais da Relação conhecem apenas de direito – artº 75º do DL 433/82 de 27/10.
No caso dos autos as questões submetidas à apreciação deste Tribunal da Relação em face das conclusões do recorrente são equacionadas nos seguintes termos:

II – O C.P.Penal não contempla a possibilidade de condenação do arguido como litigante de má-fé, estando vedada a aplicação subsidiária do CPC nesta parte porque em desarmonia com os princípios que regem o processo penal.
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Os autos prosseguem assim apenas para apreciação da questão relativa à litigância de má-fé.

II – A questão a este propósito vem equacionada pelo recorrente no sentido de a decisão recorrida dever ser revogada por o C.P.Penal não contemplar a possibilidade de condenação do arguido como litigante de má-fé, estando vedada a aplicação subsidiária do CPC nesta parte porque em desarmonia com os princípios que regem o processo penal.

A decisão recorrida perante a arguição do arguido de que a decisão administrativa enfermava de inexistência pronunciou-se no sentido de a mesma revelar “manifesta má-fé, nos termos do disposto no artigo 456. °/1/2, a), b) e d) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.° do Código de Processo Penal”, concluindo pela condenação do arguido/recorrente, A..., como litigante de má-fé, na multa de 10 (dez) Ucs.

A posição assim assumida na decisão recorrida pressupõe desde logo uma primeira questão, que é a de saber-se até que ponto existe de facto, neste aspecto, da lei processual penal, uma lacuna que tenha de ser integrada pela citada norma da lei adjectiva civil.
A resposta não poderá deixar de ser negativa. Com efeito, o legislador processual penal preocupou-se, sobretudo no actual CPP, em estabelecer uma regulamentação completa e autónoma do processo penal, em termos de funcionar completamente por si, procurando regulamentar todos os aspectos referentes ao processamento inerente à perseguição dos ilícitos penais, por forma autónoma do CPC e dos institutos a este inerentes.
Aliás, e como se refere em douto acordão do STJ de 26-06-2002, in CJ, Ac STJ, Ano X, t. II, págs. 229 e 230, no que se refere concretamente a comportamentos processuais menos correctos, o legislador processual penal foi regulamentando o seu sancionamento no âmbito da legislação processual penal, de forma específica, consentânea com a natureza específica do processo penal. Assim o artº 30º do DL 35007 de 13-10-1945, que previa o sancionamento do denunciante que procedesse com má-fé.
O actual artº 520º alínea e) do CPP prevê igualmente uma sanção específica para o denunciante que agir de má-fé.
O sancionamento da actuação imprudente ou negligente no âmbito do processo penal encontra ainda, de forma genérica, uma sanção específica nos termos do artº 420º nº 4 do CPP.
Da mesma forma nos artigos 223º nº 6 e artº 456º ambos do CPP.
Ainda no mesmo sentido, o artº 342º nº 1 e 2 do CPP , referente às declarações do arguido relativas à sua identificação.
Ou seja. Nas situações em que entendeu dever sancionar as condutas que de alguma forma se aproximam das situações sancionadas como litigância de má-fé no processo civil, o legislador processual penal previu sanções específicas, nenhuma delas se aproximando do carácter indemnizatório associado à litigância de má-fé.

Acresce que, a particular natureza do processo penal, subtraído à disponibilidade dos intervenientes, orientada para a realização do interesse público, “ num quadro de acção e de intervenção processual que não se assume nunca como um processo de partes “ não é compaginável com o instituto da litigância de má-fé do processo civil, ao qual subjaz o pressuposto de liberdade de actuação e de disposição processuais próprios daquele tipo de processo.

Por sobre tudo isso, e no que concerne concretamente o caso do arguido, a desadequação dos princípios subjacentes à condenação como litigante de má-fé e o estatuto que é o do arguido, patenteia-se ainda com mais evidência, atenta a especial garantia do direito de defesa que, desde logo em sede constitucional - artº 32º nº 1 da CRP - lhe é assegurado. Com efeito, a lei parte da ideia base de que a intervenção do arguido no processo tem por finalidade apenas a sua defesa, e desta ideia base faz derivar um conjunto de direitos para garantia daquele mesmo direito de defesa. Garantia de que o arguido poderá intervir processualmente sempre que o entender, apenas orientado pelo que seja a sua estratégia de defesa, sendo-lhe reconhecido um direito genérico à jurisdição , e concretamente o direito ao recurso – nº 1 do referido artº 32º da CRP e 401º do CPP - oferecendo provas e requerendo as diligências que tiver por pertinentes – artº 28º nº 2 da CRP e artº 61º al. f) do CPP – prestando ou recusando a sua colaboração sem que o seu silêncio o possa desfavorecer de qualquer forma – artº 343º nº 1 e 345º do CPP . Em todas estas situações estamos perante direitos que fazem parte integrante do estatuto do arguido que não são compatíveis com o instituto da litigância de má-fé, a que estão subjacentes princípios como o dever de cooperação para a realização célere da justiça e descoberta da verdade.

Por isso que o facto de não ter previsto a condenação nos termos específicos do litigante de má-fé não pode ser considerado como lacuna da lei, antes como vontade manifesta do legislador processual penal de assim proceder. Não pode dizer-se que exista lacuna da lei quando o silêncio da lei surge justificado por razões político-jurídicas, como correspondendo a uma opção do legislador que, conscientemente não tratou juridicamente um certo caso.
Não sendo pois aplicável subsidiariamente o instituto da litigância de má-fé previsto no CPC, não pode manter-se a decisão recorrida neste particular porque destituída de fundamento legal.

DECISÃO
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, acordam os juízes na secção criminal deste tribunal da Relação decidindo:

A – Rejeitar por manifesta improcedência o recurso interposto no que concerne a alegada inexistência da decisão administrativa atento o preceituado nos arts. 403º nº 1 e 420º nº 1) do C.P.P. condenando o arguido nas custas do processo com taxa de justiça que se fixa em 4 Ucs, a que acrescem 3 Ucs de taxa de justiça nos termos do artº 420º nº 4 do CPP.
B – Revogar a decisão recorrida na parte correspondente à litigância de má-fé, assim dando, nessa parte provimento ao recurso interposto.

Custas pelo arguido, pelo decaimento parcial, com taxa de justiça que se fixa em 4 Ucs, a que acrescem 3 Ucs nos termos do nº 4 do artº 420º do CPP.

Coimbra,