Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
558/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: DIREITO DE FILHOS MAIORES VISITAREM SUA MÃE
Data do Acordão: 04/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: PROVIDO PARCIAL
Legislação Nacional: ART.º 335.º C.C.
Sumário:

I – Pertence aos direitos de personalidade a visita e o contacto de filhos maiores com a sua mãe, o que não pode ser impedido.
II – Neste domínio, como em geral no direito de família, as decisões devem ter em conta a conflitualidade existente no seio da família e contribuir para o seu apaziguamento em vez de a estimularem.
III – Assim, se os irmãos têm graves conflitos entre eles, o contacto com a mãe não deve ter lugar na casa de um deles, onde a mãe reside.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório.
1. Aa e Ab intentaram procedimento cautelar comum contra F e marido, S e marido e J, pedindo que fosse ordenado a estes que permitam àqueles avistar-se com sua mãe, devendo tais encontros ocorrer quinzenalmente, às segundas-feiras, com início às 10 horas e prolongando-se até às 18 horas desses dias, na casa de habitação da mãe.
Fundamentam o pedido no facto das requeridas, suas irmãs, e respectivos maridos, que têm a mãe a seu cargo, em casa de cada uma delas, alternadamente, não os deixarem vê-la, pelo que o primeiro, emigrado em França, já não vê a mãe há três anos, apesar de já o ter pedido às requeridas e ambos ignoram o estado de saúde da mãe. Dizem que a conduta das requeridas é ilícita, por violar um direito que pertencem aos direitos de personalidade.
2. Os requeridos deduziram oposição, defendendo que a pretensão dos requerentes deve ser julgada improcedente, pelo facto de a mãe de requerentes e requeridas estar de relações cortadas com aqueles, por eles não contribuírem para as suas despesas, tendo já corrido uma acção de alimentos contra eles, os quais, entretanto, já intentaram contra a mãe acções cíveis, com o objectivo de a limitarem economicamente, e uma acção criminal.
3. Foi proferida decisão, determinando que as requeridas permitam o contacto entre a mãe e os requerentes, quinzenalmente, todas as segundas-feiras, entre as 10 e as 13 horas, na residência das requeridas onde a mãe naquele momento se encontrar.
4. Desta decisão, as requeridas interpuseram recurso, concluindo as suas Alegações pela forma a seguinte:
«2º - Ao assim decidir o Mº Juíz a quo não tomou na devida consideração toda a factualidade em que a pretensão dos Requerentes se enquadra, a qual se encontra na ampla documentação junta com a Oposição;
3º - Donde resulta claramente que Requerentes, por uma banda, e Requeridos e a mãe de todos eles, por outra, são inimigos figadais;
4º - Havendo processos judiciais pendentes em abundância, sendo uma ligeireza decretar-se “um regime de visitas”;
7º - Estamos, todavia, no domínio das obrigações naturais;
8º - As obrigações naturais não podem ser exigidas coercivamente;
10º - Também esta pretensão se não enquadra na esfera de protecção conferida aos direitos da personalidade, já que não corporiza qualquer deles;
17º - Esta pretensão de exigirem coactivamente que os irmãos, aqui Agravantes, os recebam no seio dos seus lares, ...
18º - Esta sim violadora da intimidade da vida privada destes, do sossego, paz e tranquilidade dos seus lares;
5. Os requerentes contra-alegaram, terminado as suas Alegações assim:
...
II – Fundamentação.
7. Factos provados
Requerentes e requeridas são filhos de J, que nasceu a 1 de Novembro de 1917. Requerentes e requeridas são irmãos.
A mãe de requerentes e requeridas, devido à sua idade, carece de apoio e cuidados permanentes, a nível de refeições, vestuário e limpeza.
Desde que ficou viúva, o que ocorreu a 5 de Setembro de 1998, reparte os seus dias na companhia das requeridas, passando uma semana em casa de cada uma delas, as quais cuidam da sua alimentação, vestuário, cuidados de higiene, cuidados médicos e de medicamentos.
Os requerentes não vêm a mãe há cerca de três anos.
As requeridas tudo têm feito para que os requerentes não se encontrem com a mãe de todos eles.
Os requerentes querem encontrar-se com a mãe e a mãe também quer ver e encontrar-se com os filhos.
8. O Direito.
O que está em causa é saber se o contacto entre filhos maiores e sua mãe constitui um direito, que possa ser exercido e imposto a outros irmãos que o impeçam. Em caso afirmativo, qual o modo do respectivo exercício, quando há outros direitos em colisão com aquele.
8.1. Estamos de acordo com a sentença sob recurso quando reconhece a existência de um direito de filhos maiores contactarem com sua mãe. E também com a qualificação que foi feita: como direito natural e como direito positivado, quer na Constituição da República, quer no Código Civil.
8.1.1. O Sr. Juiz falou, e nós falamos, em direito natural no sentido de conjunto de princípios superiores dotados de validade eterna e universal, preceitos justos e verdadeiros para todos os povos e em todas as épocas [1], sempre bom e justo; direito inerente à própria natureza das coisa [2], quer se procure o respectivo fundamento num poder superior, quer na própria natureza, quer no próprio homem, donde a diversidade das respectivas posições, desde o jusnaturalismo católico até ao materialista [3]. Ao direito natural, devemos a abolição da escravatura [4], da pena de morte, das torturas no direito criminal, passando pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução de 1789, e actuando, agora, na articulação do direito com a economia, a política, a sociologia, etc..
Portanto, não falamos das obrigações naturais, previstas no artigo 402º do Código Civil, pertencentes ao direito positivo, que os romanos chamavam de ius in civitate positum, exactamente o contraposto do direito natural, que os romanos chamavam de ius naturale.
E, em tal sede, quer a relação materno-filial, quer a ligação efectiva das respectivas pessoas, foi, é e, inexoravelmente, será [5] uma realidade que está para além do direito, ao qual só restará tal reconhecimento: «a família é uma realidade natural e social, cuja existência material, psicológica e moral se manifesta ... . Como se constata tudo são valores ou sentimentos que não são criados pelo Direito, que não existem por este determinar a sua existência - ...» [6].
8.1.2. Também a nossa Constituição reconhece a família como elemento fundamental da sociedade [7] e a todos os indivíduos o direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade [8].
E a lei civil, além de considerar a família como um princípio básico de direito civil, protege «os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade ... moral» [9].
8.1.3. O direito de um adulto ver, contactar e trocar afectos, com sua mãe - conversar, tocar, olhar - é, manifestamente, um direito que tem a ver com a personalidade das pessoas, na medida em que pertence ao mais íntimo do seu mundo afectivo; se este se desenrolar com normalidade, com contactos, com dar e receber, a parte afectiva da nossa personalidade desenvolve-se e expande-se; caso contrário, ela empobrece-se, com inevitável lesão da personalidade, que pode ir ao ponto de provocar desequilíbrios, até chegar, por exemplo, à depressão e à pseudo-senilidade por depressão. Como diz o Prof. Mota Pinto: «estão entre esses comportamentos e realidades (que têm a ver com o surgimento e vida da família) o amor, a amizade, a consciência de se formar um grupo, a confiança, a lealdade, a vida em comum, a solidariedade, uma certa identificação com os outros componentes do mesmo agregado» [10]; e pensamos que é mais do que a consciência de se formar um grupo, é, mesmo, a necessidade de se pertencer a um grupo, sentimento de pertença que é uma necessidade básica da estrutura da própria personalidade.
8.1.4. O que dizemos não tem a ver - não tem só a ver - com os requerentes e sua pretensão, tem também a ver com a mãe dos requerentes. A necessidade daqueles, é a necessidade desta. Qual é a mãe que não quer ver o seu filho? Uma pessoa que é um “pedaço” de si, que é parte dela reproduzida no devir dos tempos? Como é possível ter de se fazer esta pergunta, se a resposta é instintivamente e, pela natureza das coisas, óbvia? Mesmo que essa necessidade se manifeste através da agressividade, da aparência do contrário?
A pretensão dos requerentes é também uma necessidade da mãe deles. Mãe que tem uma idade em que devia ser poupada a este enorme desgosto e desgaste emocional, tanto mais que as pessoas idosas têm uma maior dificuldade em superar contrariedades [11].
8.1.5. A um tal direito - de requerentes e também de sua mãe -, que antes e ao lado dele constitui uma necessidade individual e social, que é vital, tem de corresponder a sua actuação, o que está previsto no referido artigo 70º do Código Civil: «a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida». Ora, tal providência só pode consistir em encontrar um meio de pôr em contacto a mãe e o filho e por aí adiante, porque o sentimento e necessidade de pertença dizem respeito a um grupo de pessoas: no vocábulo “filhos” estão incluídos todos os que descendem de nós [12].
8.1.6. Portanto, até aqui andou bem a sentença sob recurso, reconhecendo o direito e permitindo o seu exercício àqueles que estão impedidos de o fazer.
E o facto da mãe dos requerentes já ser adulta [13], não altera o direito destes. E dela.
8.2. Duas questões se levantam agora:
8.2.1. uma, é a das alegadas más relações entre os requerentes e a mãe, por um lado, e com as requeridas, por outro lado [14]; as más relações enquanto matéria de facto alegada e não contemplada na sentença, mas também nas consequências para decisão que deveria ter sido tomada se tal matéria de facto tivesse sido considerada;
8.2.2. a segunda é a da decisão de permitir o contacto entre os requerentes e sua mãe violar a intimidade da vida privada das requeridas, do sossego, paz, tranquilidade dos seus lares, já que a mãe dos requerentes vive com as requeridas, por períodos alternados [15].
8.2.1.1. Parece-nos que haverá uma certa razão na primeira questão, embora, depois, não se possa tirar conclusão que satisfaça a pretensão dos agravantes.
Estes tinham alegado, efectivamente, um conjunto de factos que traduziam uma péssima relação dentro da família, incluindo acções judiciais em que a mãe demanda os requerentes [16] e estes aquela [17], acções essas para cuja prova juntaram documentos [18]. Na sentença, nada consta sobre tais factos.
Contudo, esses factos não são susceptíveis de alterar o sentido da decisão. Admitimos, mesmo, que esta seja a razão para a não inclusão desses factos na sentença: só interessam os factos relacionados com o não relacionamento dos requerentes e sua mãe. Repare-se que não estão indicados factos não provados; contudo, os documentos juntos permitiriam que os que respeitam às referidas acções se considerassem como provados; por outro lado, os restantes decorrerão da própria pretensão cautelar dos requerentes, os quais não lhes esboçaram a mínima oposição.
Admite-se que tais factos devam ser considerados na decisão a tomar. Contudo, o que vamos dizer no número 8.3. abrangem-nos.
Nestes termos, entendemos que devemos manter a matéria de facto dada como provada, uma vez que os alegados factos acabarão por ser tomados em conta, de forma indirecta, única que admitimos, como se verá.
8.2.2.1. Quanto ao direito dos requeridos a terem tranquilidade, paz e sossego nas suas casa, o que poderá ser posto em causa com a forma como se decidiu o exercício do direito dos requerentes - na casa das requeridas -, é questão que também tem de ser considerada cautelosamente. Tanto que a privacidade das pessoas é também um direito com reconhecimento na Constituição da República. Aliás, uma das normas constitucionais em que se ancora a pretensão dos requerentes - o direito à sua identidade pessoal - dá também guarida à contra-pretensão dos requeridos: «é também a inviolabilidade da personalidade que a Constituição garante através da inviolabilidade do domicílio» [19]; domicílio cuja inviolabilidade está relacionada com o direito à intimidade pessoal e cujas restrições estão sob reserva de lei e sob reserva de decisão judicial [20].
De forma que teríamos aqui uma colisão de direitos, a dirimir de acordo com o artigo 335º do Código Civil; como os direitos aqui conflituantes não são iguais nem da mesma natureza, uma das partes teria de ceder no seu, nos termos do nº 2: «se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior». Cedência essa que teria de ser decidida perante a situação concreta «dando cumprimento ao princípio constitucional da proporcionalidade» [21].
Por este caminho, teríamos de considerar os factos alegados pelos recorrentes que não foram considerados na sentença, uma vez que eles poderiam ter a ver com o abuso de direito que é um caso particular da colisão de direitos [22].
Mas, pensamos que o problema do exercício do direito dos requerentes, na parte em que confronta com o direito dos requeridos, relativamente à privacidade da sua vida, se resolve pela conformação equilibrada daquele, sem necessidade de se confrontar com o direito destes, razão por que deixamos de lado este aspecto, da colisão de direitos.
8.3. Ao afirmar o direito de filhos e mãe de se relacionarem, estamos no domínio dos afectos. É área onde a característica da coactividade se manifesta de forma diferente relativamente à generalidade dos direitos.
Relativamente às coisas e ao seu domínio, o que está entre o homem e a satisfação das suas necessidades materiais e espirituais [23], a matriz tradicional do direito comporta-se de forma perfeita: violado o direito, manu militari, ele é reposto. Não há nenhuma dificuldade nesta actuação, sendo que a firmeza da actuação faz parte da própria restauração do direito. Entretanto, esta actuação foi sofrendo desvios, por se constatar a necessidade de ajustar com mais adequação a forma material de reposição do direito; assim, se até certa altura, o devedor era obrigado a cumprir a sua prestação, podendo até ser privado da sua liberdade se o não fizesse, outra veio depois em que o constrangimento ao cumprimento não podia ir tão longe e até não podia ser exigido o comportamento do devedor: nemo potest precise cogi ad factum.
Se agora entrarmos no domínio dos afectos, do amor e do desamor, então, podemos dizer que o desajustamento do referido mecanismo de imposição do direito é quase total se o não for mesmo em absoluto, uma vez que não há forma de obrigar alguém a gostar de outro, a ter determinado sentimento para com outra pessoa; «se o afecto, a amizade, a dedicação, a solidariedade, etc., são sentimentos incoercíveis, parece que todas as relações e comportamentos que formam o tecido da vida familiar se deveriam situar fora de toda a incidência do Direito, em razão de uma visceral inaptidão deste para aí se manifestar. Ou, pelo menos, a disciplina jurídica desta esfera da vida da pessoa deveria limitar-se ao “direito” que vive e se manifesta na concreta realidade social que é a família» [24]. O Prof. Pereira Coelho refere-se à fragilidade da garantia como um dos caracteres dos direitos familiares, por serem «direitos para cuja violação não há verdadeiramente uma sanção ou só há uma sanção muito imperfeita [25]. O Sr. Prof. Eduardo Santos, à incoercibilidade ou fraca coercibilidade das normas de direito da família [26]. Em França, o Prof. Alain Bénabent refere-se à questão nos mesmos termos [27].
Na área do direito de família, maxime dos direitos pessoais - predominantes neste ramo de direito -, as decisões não podem ser tomadas numa posição exterior à relação em conflito, mas sim com se surgissem do seu interior, tomando em conta a própria a conflitualidade [28], as suas manifestações, enfim a sua dinâmica, de forma a inserir-se e influir nela. As decisões têm de contribuir para o apaziguamento dos conflitos e não contribuir para eles, acabarem por ser mais um elemento de desestabilização. As decisões não podem ser (não conseguem ser) aquilo que, do exterior, se acha que deviam ser, mas o que podem ser, o que conseguirem ser. Nunca podem ser decisões para se imporem de imediato, volens nolens, mas sim para exercerem influência a longo prazo, contando com impasses e mesmo com recuos, desde que esteja traçado um projecto que não seja prejudicado no essencial. Como ensina o Prof. Alain Bénabent, a intervenção do juiz é delicada nas relações que se prendem com o seio da família e a procura da solução não pode ser puramente jurídica, mas também fazer apelo a elementos psicológicos, sociológicos, etc. [29].
Na verdade, lida-se com sentimento ambivalentes, em que se misturam relações de rivalidade, muitas vezes com origem na infância, sentido-se uns preteridos em favor de outros, o que confunde uns e outros - o protegido com sentimentos de culpa, o preterido com raiva -, com manifestações contraditórias e com o exercício do poder numa eterna batalha pela conquista do amor dos pais [30]. Os desentendimentos actuais, quase sempre pretextados por questões materiais, são uma tradução adulta de lutas de infância [31]. A mãe, em lealdade e dívida para com as filhas, mas gostando de todos os filhos, desejando-os a todos e, sobretudo, tendo necessidade de que todos se dessem bem, vive a mesma ambivalência. Não admira que ela tenha dito ao Sr. Juiz que queria ver os filhos; não admirava que, depois, exteriorizasse às filhas sentimento diferente. O que ela deseja mesmo é que alguém, exteriormente, tome uma decisão que satisfaça o seu amor maternal, sem a obrigar a ser desleal para com nenhum dos filhos.
E nenhum deve cobrar à mãe o que lhe der, quer seja em atenção e cuidados, quer em dinheiro. E, para resolver as questões, temos de as separar: as questões materiais, para um lado [32], as pessoais, para outro. Não estamos num domínio em que haja direito de retenção ou de compensação. Trata-se de um filho contactar com a mãe (?), há que resolver isso. Mas, há entre eles outro tipo de problemas (?), é questão que se resolve logo a seguir, depois de satisfeito aquele problema. Na solução daquele, tem de ter-se em consideração estes últimos problemas? Tem de ter-se em atenção tudo o que disser respeito às concretas relações entre essas pessoas [33].
Nestes termos, a decisão que for tomada deve contribuir para o apaziguamento do conflito, deve ter em conta as dificuldades de relacionamento entre os membros da família e as circunstâncias concretas em que eles vivem. A decisão não deve estimular o conflito. Todas as pessoas desejam uma solução que pacifique, porque é difícil viver em “guerra” contínua com os que pertencem à nossa família, porque as pessoas culpabilizam-se, mesmo que, com menos bondade, vão fazendo o que querem. No fundo, todos quererão uma solução pacificadora, embora não consigam assumir essa atitude e até manifestem a contrária. Venha alguém de fora dizê-lo e será bom para todos, tanto mais que, com o andar do tempo, se diluirão os “orgulhos” e todos ficarão ilibados da culpabilidade.
Os contactos dos requerentes com sua mãe não devem ocorrer na casa das requeridas porque, antes da questão do direito destas à inviolabilidade e privacidade dos seus domicílios, vem a necessidade de programar esses contactos de forma a contribuir para a pacificação e a fugir de situações que exacerbem a conflitualidade. Não é a questão dos contactos serem na casa delas; poderíamos pensar noutra situação em que não estivesse em causa um direito conflituante, mas em que a forma do exercício do direito não acautelasse a pacificação geral das relações em questão.
Este tipo de decisões deve ser estudada e programada com outros elementos da comunidade, de forma a ganhar-se conhecimento da situação e operacionalidade. Felizmente, já temos hoje possibilidade de o fazer, quer a nível de organismos públicos - Segurança Social, Instituto de Reinserção Social - quer de entidades privadas - Instituições de Solidariedade Social, Associações, Bombeiros, etc. -. Assim, a procura de uma solução deve ser preparada com um ou mais organismos destes. Conseguir-se-á, certamente, encontrar um local onde ocorram os contactos, até com alguém especializado que ajude nas dificuldades relacionais, se tal for necessário, e um meio de transporte para o efeito. Desta maneira, os requerentes não contactarão com as requeridas, facto que, neste momento, é de todo inconveniente.
III – Decisão.
Pelo exposto, dão parcial provimento ao agravo, mantendo o direito dos requerentes contactarem com sua mãe, mas alterando o local dos encontros, o qual deverá ser definido depois de adequada instrução para o efeito.
Custas em partes iguais por requerentes e requeridos.
20 de Abril de 2004.

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[1] - cf. Prof. Pires de Lima, Noções Fundamentais de Direito Civil, Coimbra Editora, 4ª edição revista e ampliada, 1957, vol. I, pág. 32. Direito absoluto, universal e imutável, como dizia ROUSSEAU.
[2]- rerum natura; naturalis ratio.
[3] - embora, aqui, com um conteúdo variável ou progressivo, em vez da imutabilidade (cf. Dr. Fernando Luso Soares, Teoria Geral do Direito Civil – sumário das lições dadas ao 2º ano, edição da AAFDL, 1977, pág. 99.
[4] - quoad ad ius naturale attinet, omnes homines aequales sunt (Ulpianus, Digesto, 50.17.32).
[5] - Prof. Pires de Lima, obra e volume citados, págs. 38 e 39.
[6] por muito que o senso comum e os seus opinion makers falem em “crise da família, no mundo científico, ninguém quer inventar um sistema que conceba a vida do homem sem ser em sociedade, a sociedade sem família, bem como esta sem aquela (cf. Claude Lévi-Strauss, no Prefácio ao livro História da Família, Terramar, 1996, vol. I; cf. também, pág. 64, sob o título Porquê a Família?).
[7] Prof. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 115. Esta característica, que se chama de institucionalismo, é própria do Direito da Família (cf. Prof. Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, lições ao curso de 1977/78, pág. 66).
[8] artigo 67º.
[9] artigo 26º; cf. a sentença, a fls. 237.
[10] artigo 70º do Código Civil.
[11] ibidem.
[12] «o indivíduo, com o avançar da idade, vai apresentando um prejuízo do equilíbrio homeostático, associado à dificuldade progressivamente crescente em manter o nível máximo de resposta no desempenho físico e mental» (Prof. Adriano Vaz Serra, O Distúrbio de “Stress” Pós-Traumático, Coimbra, 2003, pág. 47).
[13] “filiorum” appellatione omnes qui ex nobis descendunt continentur (Calístrato, Digesto, 50.1.6.220.3).
[14] nº 11 das Conclusões.
[15] nºs. 13 e 14 das Conclusões.
[16] nºs. 12, 17 e 18 das Conclusões.
[17] artigo 14º da oposição dos requeridos.
[18] arts. 17º , 18º, 19 e 20º da oposição dos requeridos.
[19] cópia de um requerimento inicial (fls. 76) e notificações (fls. 74, 75, 77 a 82).
[20] Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1978, pág. 101, anot. ao artigo 33º.
[21] ibidem, pág. 103, anot. ao artigo 34º.
[22] Acórdão do STJ, de 15 de Janeiro de 2004: II - Perante as contradições e colisões normativas desses direitos deve o intérprete, caso a caso, estabelecer limites e condicionalismos de forma a conseguir - dando assim cumprimento ao princípio constitucional da proporcionalidade (artigo 18, nº2 da CRP) - uma harmonização ou concordância prática entre eles (pontos II e III do respectivo sumário; relatado pelo Sr. Conselheiro Ferreira Girão, in www.dgsi.pt - procº 03B3589).
[23] Dr. Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Coimbra Editora, 1929, vol. I, pág. 451.
[24] inter est.
[25] Prof. Mota Pinto, obra citada, pág. 116.
[26] pág. 81.
[27] Direito da Família, Almedina, 1985, pág. 74.
[28] C´ est donc une matière où la règle de droit présente «un grand degré d` ineffectivité: ... . Le législateur est conscient de cette quasi-impuissance de la règle de droit à résoudre le véritable problème qui lui est posé («Droit Civil – La Famille», Litec, 3ª edição, 1988, pág. 11).
[29] cf. último § do nº 8.2.1.1..
[30] L` intervention du juge est délicate dans les rapports qui se nouent au sein de la famille (obra citada, pág. 11); «leur intervention (des magistrats) ne soit plus la pure manifestation d` un pouvoir de décision, mais se nuance de la recherce d` une solution qui ne soit purement juridique, mais qui fasse également appel à des éléments psycologiques, sociologiques, etc» (obra citada, pág. 12).
[31] «... o ódio e o amor são paixões recíprocas. Quantas mais cartas mandava mais atiçava as brasas da sua febre, mas também mais aquecia o rancor feliz que sentia contra a mãe», Gabriel García Márquez, Crónica de uma morte anunciada, pág. 121.
[32] « ... mas quando entra em jogo a posse das coisas terrenas é difícil que os homens raciocinem segundo a justiça» (Umberto Eco, O Nome da Rosa, pág. 53).
[33] cf. último § do nº 8.2.1.1..