Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1339/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: CURA MARIANO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FRACÇÃO PREDIAL
FIM DIVERSO DO CONSTANTE DO TÍTULO CONSTITUTIVO DO REGIME DA PROPRIEDADE HORIZONTAL
INEFICÁCIA RELATIVA DO CONTRATO AOS DEMAIS CONDÓMINOS
Data do Acordão: 05/09/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 280º, Nº 1; 294º E 1422º, AL. C), DO C. CIV. .
Sumário: I – É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, ou contrário à lei (artº 280º, nº 1, do C. Civ. ).
II – Só é legalmente impossível o objecto de um negócio, quando a lei ergue a esse objecto um obstáculo tão insuperável como o que as leis da natureza põem aos fenómenos fisicamente impossíveis, o que só pode suceder em relação a realidades de carácter jurídico (v.g. negócios jurídicos e direitos, os quais poderão ser objecto de contrato-promessa ou cessões de créditos) .

III – No caso em que o objecto de um contrato de arrendamento urbano é a cessão remunerada do gozo de um imóvel, não se pode dizer que seja legalmente impossível, podendo apenas questionar-se a sua ilicitude, por contrariar disposição legal .

IV – Mas essa ilicitude só pode ocorrer quando a lei contrariada tem cariz imperativo, visando proteger interesses de ordem pública, como resulta do artº 294º do C. Civ. .

V -. Colidindo um contrato de arrendamento urbano com a proibição estabelecida no artº 1422º, nº 1, al. c), do C. Civ. - segundo a qual os condóminos não podem dar à sua fracção uso diverso do fim a que é destinada -, como é o caso dos autos em que se invocou e provou que o contrato de arrendamento impugnado teve por finalidade o exercício do comércio na fracção arrendada, enquanto no título constitutivo da propriedade horizontal esta se destinava a armazém - existe uma desconformidade entre a finalidade aqui consagrada e o fim permitido pelo contrato - , mas não tendo aquela proibição natureza imperativa, não está ferido de nulidade esse contrato, nos termos do artº 280º, nº 1, do C. Civ. .

VI – Mas relativamente aos demais condóminos, uma vez que deve ser sempre salvaguardado o seu direito de impedirem que qualquer fracção seja usada para fim diverso do constante do título constitutivo da propriedade horizontal, não pode o arrendatário opor-lhes o seu direito locatício, pelo que o contrato de arrendamento é ineficaz relativamente a esses condóminos (ineficácia relativa), impondo-se ao locador e ao locatário o dever de respeito pelo fim da fracção autónoma arrendada, com a consequente proibição de praticarem actos que alterem o fim dessa fracção .

Decisão Texto Integral:
Autor: A...

Réus: B...
C...
D...

*
O Autor instaurou a presente acção declarativa constitutiva e de conde-nação, que seguiu a forma de processo sumário, contra os Réus B..., na qualidade de herdeira e cabeça de casal da herança aberta por morte de E..., e C..., pedindo ao tribunal que condene a 1ª ré a respeitar o fim da fracção “B”, que é para arma-zém, impedindo-a de praticar actos que alterem o fim da fracção, e que declare a nulidade do contrato de arrendamento, em virtude do mesmo violar o título cons-titutivo da propriedade horizontal do prédio.
Para tanto, invocou, em síntese, o seguinte:
- o Autor é dono de diversas fracções autónomas do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Rua Paiva Couceiro, n.º 26, na Guarda, sendo a 1ª Ré dona duma fracção autónoma do mesmo prédio (a designada pela letra “B”), fracção esta que, segundo o título constitutivo, se destina a armazém.
- o marido da 1ª Ré deu de arrendamento ao 2º réu a referida fracção “B”, o qual a utilizou para armazém.
- no entanto, há mais de 10 anos, o mesmo tem vindo a exercer no local a actividade de carpinteiro, escultor e pintor, aí recebendo os seus clientes, tudo como se de uma verdadeira oficina e loja comercial se tratasse, o que contraria a finalidade da fracção, tal como destinada pelo título constitutivo da propriedade horizontal.
- tendo por base tal título constitutivo, a 1ª Ré apenas poderia arrendar tal fracção exclusivamente para armazenar bens (não para qualquer utilização comercial) e o 2º Réu apenas poderá exercer os direitos que o senhoria poderia exercer (se o senhorio não podia exercer actividade comercial, o Réu também não o poderia fazer).

A 1ª Ré, regularmente citada, não deduziu oposição.

O 2º Réu deduziu oposição, na qual pugna pela improcedência da acção. Para tanto, alega, em síntese, o seguinte:
- a petição inicial, por referir que a fracção da 1ª Ré é a designada pela letra “A” e que a fracção do Autor é a designada pela letra “B”, é inepta.
- a esposa do Autor deveria ser demandada conjuntamente com a 1ª Ré, por ser também herdeira da herança em causa, o que configura ilegitimidade pas-siva.
- o exercício do direito do Autor caducou.
- o título constitutivo poderá ser posterior ao contrato de arrendamento, não afectando a relação contratual; sendo anterior, tal contrato de arrendamento foi celebrado pelo sogro do Autor e marido da 1ª Ré e foi-o para comércio, não para armazém.
- quer a 1ª Ré, quer o seu marido, quer sua filha, mulher do Autor, sem-pre concordaram com a utilização dada à fracção pelo Réu e que o próprio Autor deu autorização expressa e tácita para o mesmo ali exercer tal actividade, tradu-zindo a sua pretensão um nítido abuso de direito e má-fé, devendo como tal ser sancionado, indemnizando o réu em € 3 000,00, para ressarcir custas, despesas e honorários.
O Autor exerceu o seu direito de resposta à excepções, alegando o seguinte:
- numa acção anterior que lhe foi instaurada o Réu admitiu o exercício da actividade referida no local.
- instaurou a acção na qualidade de condómino, pelo que não tinha que vir acompanhado da sua mulher.
- instaurou a acção por ser o gestor do património de que faz parte o acervo hereditário do seu sogro, tendo conhecimento da posição da sua sogra e da sua mulher.
- a instituição da propriedade horizontal é anterior ao contrato de arren-damento em causa.
Concluiu como na petição inicial e requereu a intervenção provocada como Ré da sua esposa, D....

Este chamamento foi admitido, não tendo a chamada apresentado qual-quer contestação.

O tribunal proferiu despacho saneador, onde analisou a validade e regu-laridade da instância, tendo julgado improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial, tendo julgado as partes legítimas (após intervenção da chamada) e julgado improcedente a excepção de caducidade do direito.

Procedeu-se a julgamento, tendo posteriormente sido proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, julgando improce-dente o pedido de declaração da nulidade do contrato de arrendamento, condenou a 1ª Ré e a interveniente, na qualidade de herdeiras da herança aberta por óbito de E..., a respeitarem o fim da fracção autónoma designada pela letra “B”, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 1404/19900703, finalidade esta que é para armazém, proibindo-as de praticar actos que alterem o fim da respectiva fracção.

Desta sentença recorreu o Autor, com os seguintes fundamentos:
“- O contrato de arrendamento viola o título constitutivo da propriedade horizon-tal, sendo certo que restrições de origem negocial fazem parte integrante do estatuto do condomínio e tem natureza real e consequentemente, eficácia erga omnes. Prevalecem sobre qualquer negócio obrigacional que com elas se não harmonize.
- O titulo constitutivo não foi alterado e enquanto tal situação não acontecer, o contrato de arrendamento ofende o título constitutivo e o preceito legal previsto na alínea c), do n° 2, do 1422° do C.C.
- O contrato de arrendamento, nos termos do 280°/1 é, em virtude do facto de o necessário consentimento nunca existir, uma vez que o recorrente é condómino do prédio e um dos interessados na nulidade do contrato de arrendamento, legalmente impossível.
- A norma legal prevista no 1422° do C.C., pese embora o facto de poder ser alte-rada, de forma indirecta, pela alteração do título constitutivo, o próprio interessado sozinho não pode afastar o seu conteúdo, necessitando, por isso, do consentimento da totalidade dos condóminos e ainda, da redução da alteração do titulo a escritura pública, tal foi a protecção que o legislador pretendeu dar aos interesses subjacentes à mesma, o que não aconteceria se a norma tivesse uma natureza exclusivamente supletiva.
- O titulo constitutivo incorpora interesses de natureza pública, que impõe a parti-cipação da entidade administrativa na análise dos pressupostos de qualquer alteração em relação ao que foi inicialmente aprovado e consta do projecto designadamente a conforma-ção das condições técnicas da fracção para ai se desenvolver uma nova finalidade, emitindo para o efeito a entidade administrativa a respectiva autorização ou licença até para poste-riormente ser apresentada na escritura pública.
- A mera alteração do fim constante do título constitutivo sem a prévia avaliação da entidade administrativa viola, certamente normas de natureza imperativa, bem como a ordem jurídica pública e administrativa, designadamente os art°s 6° e 8° do REGEU, pelo que se conclui pela nulidade do contrato de arrendamento por violação da lei imperativa.
- A sentença proferida viola o disposto nos nº, 668º do C.P.C., 1422° do C.C. e 6°e 8° do REGEU”.
Concluiu pela revogação da sentença recorrida.

Não foram apresentadas contra-alegações.

*
1. O objecto do recurso
Encontrando-se o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, cumpre apurar do destino jurídico do con-trato de arrendamento sobre fracção predial, celebrado para finalidade que contra-ria o disposto no respectivo título constitutivo.

2. Os factos
Neste processo encontram-se provados os seguintes factos:

I - Por escritura pública de constituição de propriedade horizontal e divi-são, outorgada no Cartório Notarial da Guarda no dia 10 de Março de 1975, foi constituído em regime de propriedade horizontal o prédio urbano, com logradouro com a área de 120,40 m2, composto por subcave, cave, rés-do-chão, 1º, 2º e 3º andares, todos com direito e esquerdo, e sótão para arrecadações, sito na Rua Paiva Couceiro, freguesia de S. Vicente, concelho da Guarda, descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 46205 e omisso na respectiva matriz (alí-nea A dos factos assentes).

II - Através da mesma escritura pública foram criadas as seguintes frac-ções autónomas: “A” – subcave direita; “B” – subcave esquerda; “C” – cave direita; “D” – cave esquerda; “E” – rés-do-chão esquerdo; “F” – rés-do-chão direito; “G” – 1º andar direito; “H” – 1º andar esquerdo; “I” – 2º andar direito; “J” – 2º andar esquerdo; “L” – 3º andar direito; “M” – 3º andar esquerdo; tendo-se fixado, além do mais, que as fracções “A” e “B” são amplas e destinadas a armazém e que o logra-douro fica a pertencer a tais fracções (alínea B dos factos assentes).

III - Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 1404/19900703 o prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, correspondente ao anterior 46205, composto pelas fracções autónomas “A”, “B”, “C”, “D”, “E”, “F”, “G”, “H”, “I”, “J”, “L” e “M”, situado na Rua Paiva Cou-ceiro, n.º 26, com a área coberta de 213,60 m2 e descoberta de 120,40 m2, inscrito na matriz sob o artigo 1077º, mostrando-se inscrita a constituição da propriedade horizontal desde 20/3/1975 (alínea C dos factos assentes).

IV - A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente à sub-cave direita e destinada a armazém, encontra-se inscrita em nome de D... Pereira e A... (alínea D dos factos assentes).

V - A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente à sub-cave esquerda e destinada a armazém, encontra-se inscrita em nome de E... e esposa, B... (alínea E dos factos assentes).

VI - A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “C”, correspondente à cave direita e destinada a habitação, encontra-se inscrita em nome de D... Pereira e A... (alínea F dos factos assentes).

VII - A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente à cave esquerda e destinada a habitação, encontra-se inscrita em nome de D... Pereira e A... (alínea G dos factos assentes).

VIII - A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “E”, correspondente ao rés-do-chão esquerdo e destinada a habitação, encontra-se inscrita em nome de Maria Antonieta Vaz da Silva e Sá (alínea H dos factos assentes).

IX - A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “F”, correspondente ao rés-do-chão direito e destinada a habitação, encontra-se inscrita em nome de D... Pereira e A... (alínea I dos factos assentes).

X - A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “G”, correspondente ao 1º andar direito e destinado a habita-ção, encontra-se inscrita em nome de Manuel de Almeida Fonseca e Maria de Lurdes Alves Quinaz da Fonseca (alínea J dos factos assentes).

XI - A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “H”, correspondente ao 1º andar esquerdo e destinado a habi-tação, encontra-se inscrita em nome de E... e B... (alínea K dos factos assentes).

XII - A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao 2º andar direito e destinado a habitação, encontra-se inscrita em nome de Armando Manuel Pimenta Gonçalves e Maria de Lurdes Gil Campos Henriques (alínea L dos factos assentes).

XIII - A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “J”, correspondente ao 2º andar esquerdo e destinada a habita-ção, encontra-se inscrita em nome de D... Pereira e A... (alínea M dos factos assentes).

XIV - A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “L”, correspondente ao 3º andar direito e destinada a habita-ção, encontra-se inscrita em nome de D... Pereira e A.... (alínea N dos factos assentes).

XV - A aquisição do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “M”, correspondente ao 3º andar esquerdo e destinada a habi-tação, encontra-se inscrita em nome de E... e de B... (alínea O dos factos assentes).

XVI - Por documento particular, datado de 3 de Janeiro de 1977, E... declarou dar de arrendamento a C..., que declarou tomar de arrendamento, para comércio, contra o pagamento de uma renda mensal de 2.000$00, pelo prazo de 1 ano, com início no dia 1/9/1976 e termo no dia 31/8/1977, prorrogável por iguais períodos, a sub-cave esquerda do prédio sito na Rua Paiva Couceiro, n.º 26, na Guarda (alínea P dos factos assentes).

XVII - O Autor, através de carta registada, notificou o Réu da actualiza-ção legal das rendas para o ano de 2002 (alínea Q dos factos assentes).

XVIII - O Autor, através de carta datada de 15/11/2002, notificou o Réu da actualização legal das rendas para o ano seguinte, solicitando que a partir do mês seguinte passasse a emitir os cheques em seu nome (alínea R dos factos assentes).

XIX - É o Autor quem gere o património que faz parte do acervo here-ditário do seu sogro (alínea S dos factos assentes).

XX - E... faleceu no dia 25/12/1997, no estado civil de casado com B..., tendo deixado a suceder-lhe, como únicos e universais herdeiros, o seu cônjuge, B..., e a sua filha, D... Pereira, casada, sob o regime de comunhão de adquiridos, com A... (doc. de fls. 116-118).

XXI - O Réu C... tem vindo a exercer na fracção autónoma designada pela letra “B”, há mais de 10 anos, a actividade de carpinteiro, escultor e pintor, aí executando molduras, telas e restauração de mobiliário (respostas aos quesitos 1º e 2º).

XXII - Aí corta, parte, liga e une, prega madeira, constrói telas e faz esculturas para pôr no mercado, e aí recebe os clientes que procuram os seus trabalhos e serviços (respostas aos quesitos 3º e 4º).

*
3. O direito aplicável
Na sentença recorrida sustentou-se que o contrato de arrendamento de fracção predial para fim diverso do constante do título constitutivo do regime da propriedade horizontal relativo ao prédio onde se situa essa fracção não é nulo, como pretende o recorrente, mas simplesmente ineficaz face aos condóminos não outorgantes naquele contrato.
Alega o recorrente que contrariando aquele contrato a proibição estabe-lecida no artº 1422º, c), do C.C., estamos perante um contrato com objecto legal-mente impossível.
Na verdade, é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legal-mente impossível, ou contrário à lei (artº 280º, nº 1, do C.C.).
Só é legalmente impossível o objecto de um negócio, quando a lei ergue a esse objecto um obstáculo tão insuperável como o que as leis da natureza põem aos fenómenos fisicamente impossíveis, o que só pode suceder em relação a reali-dades de carácter jurídico (v.g. negócios jurídicos e direitos, os quais poderão ser objecto de contratos-promessa ou cessões de créditos).
Neste caso, em que o objecto do contrato impugnado é a cessão remu-nerada do gozo de um imóvel, não se pode dizer que seja legalmente impossível, podendo apenas questionar-se a sua ilicitude, por contrariar disposição legal.
Mas essa ilicitude só ocorre quando a lei contrariada tem cariz impera-tivo, como resulta do disposto no artº 294º, do C.C. [ Vide neste sentido PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, em “Teoria geral do direito civil”, vol. I, pág. 332, da ed. de 1999, da LEX, HEINRICH HORSTER, em “A parte geral do Código Civil Portugês”, pág. 519-520., da ed. de 1992, da Almedina, e MENEZES CORDEIRO, em “Tratado de direito civil português”, vol I, tomo 1, pág. 423, da ed. de 1999, da Almedina.].
Na verdade, os preceitos da lei que estatuem sobre o conteúdo dos negócios jurídicos nem sempre são normativamente mais fortes que as cláusulas que com eles colidam, sendo apenas ilícitas aquelas que contradigam normas com uma força injuntiva (normas imperativas).
Nos casos em que a própria lei não denuncia a sua força, a sua derroga-bilidade pelo negócio celebrado é aferida pelas razões que presidiram à sua estatui-ção. Se ela visa proteger interesses de ordem pública, estamos perante uma norma imperativa que se sobrepõe à vontade negocial das partes. Se ela apenas pretendeu proteger os interesses destas, elas próprias poderão renunciar a essa protecção.
Assim, o contrato de arrendamento em causa só será nulo se a disposi-ção legal por ele afrontada tiver natureza imperativa, por visar a satisfação de interesses de ordem pública, isto é de toda a sociedade.
A norma com a qual o contrato de arrendamento em causa colide é a proibição estabelecida no artº 1422º, nº 1, c), do C.C., segundo a qual os condómi-nos não podem dar à sua fracção uso diverso do fim a que é destinada.
Neste caso invocou-se e provou-se que o contrato de arrendamento impugnado teve por finalidade o exercício do comércio na fracção arrendada, enquanto no título constitutivo da propriedade horizontal esta se destinava a arma-zém, pelo que existe uma desconformidade entre a finalidade aqui consagrada e o fim permitido pelo contrato de arrendamento celebrado.
Ora a proibição constante da alínea c), do artº 1422º, do C.C., visou real-çar que o fim a que se destina cada fracção, apesar de ser uma menção facultativa do título constitutivo duma propriedade horizontal, se constar desse título integra o estatuto jurídico do condomínio, vinculando os condóminos [ E não só, pois esse estatuto tem eficácia erga omnes. Vide neste sentido PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, em “Código Civil anotado”, vol. III, pág. 427, da 2ª ed., da Coimbra Editora, e HENRIQUE MESQUITA, em “A propriedade horizontal no Código Civil português”, na R.D.E.S., Ano XXIII (1976), nº 1-2-3-4, pág. 121-123.]. Com esta proibição não se prossegue qualquer interesse público, defendendo-se apenas os próprios condóminos contra utilizações inesperadas das fracções integrantes do condomínio, que poderiam frustrar as suas expectativas conferidas pelo conteúdo do título constitu-tivo da propriedade horizontal. Não há qualquer interesse da sociedade em que seja respeitada a destinação das fracções constante do título constitutivo da propriedade horizontal, sendo esse interesse apenas dos condóminos.
O facto dos imóveis urbanos só poderem ser utilizados para fins devi-damente licenciados pelas entidades administrativas competentes em nada colide com a conclusão acima retirada, uma vez que apenas se pondera uma desconformidade entre o objecto do arrendamento e o fim constante do título constitutivo da propriedade horizontal e não uma desconformidade com a finalidade licenciada.
Não tendo a regra do artº 1422º, c), do C.C., natureza imperativa [ Vide, neste sentido, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, em “Código Civil anotado”, vol. III, pág. 427, da 2ª ed., da Coimbra Editora, HENRIQUE MESQUITA, em “A propriedade horizontal no Código Civil português”, na R.D.E.S., Ano XXIII (1976), nº 1-2-3-4, pág. 123, nota 100, ARAGÃO SEIA, em “Propriedade horizontal”, pág. 108, da ed. de 2001, da Almedina, FRANCISCO LOURENÇO, em sentença do Tribunal de Almada, publicada na C.J., Ano IV, tomo 4, pág. 1362, e os seguintes Acórdãos:
? da Relação do Porto, de 29-10-1992, na C.J., Ano XVII, tomo 4, pág. 263, relatado por FERNANDES MAGALHÃES.
? da Relação de Coimbra, de 10-1-1995, na C.J., Ano XX, tomo 1, pág. 15, relatado por EDUARDO ANTUNES.], o facto do fim consagrado no contrato de arrendamento impugnado se revelar con-trário a essa norma, não determina a nulidade desse contrato, nos termos do artº 280º, nº 1, do C.C., sendo o mesmo válido [ No mesmo sentido, defendendo a mera ineficácia do contrato de arrendamento relativamente aos condóminos, opinaram os autores e arestos citados na nota anterior.
Defendendo a nulidade do contrato de arrendamento, pronunciou-se o Acórdão da Relação de Lisboa, de 19-10-1979, na C.J., Ano IV, tomo 4, pág. 1205, relatado por JOSÉ VAZ.].
Mas, relativamente aos demais condóminos, uma vez que deve ser sem-pre salvaguardado o seu direito de impedirem que qualquer fracção seja usada para fim diverso do constante do título constitutivo da propriedade horizontal, não pode o arrendatário opor-lhes o seu direito locatício, pelo que o contrato de arrenda-mento é ineficaz relativamente a esses condóminos (ineficácia relativa), como bem opinou a sentença recorrida.
Por estes motivos deve ser julgado improcedente o recurso interposto, pelo Réu, confirmando-se a sentença recorrida.

*
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo Autor e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

*
Custas do recurso pelo Autor.

*
Coimbra, 9 de Maio de 2006