Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
377/15.3GBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
CRIME PUNÍVEL COM PENA DE PRISÃO DE DURAÇÃO SUPERIOR A CINCO ANOS
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL SINGULAR
Data do Acordão: 06/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 281.º, N.º 1, E 16.º, N.º 3, DO CPP
Sumário: A suspensão provisória do processo não é aplicável aos crimes puníveis com pena de prisão de quantitativo máximo superior a cinco anos, salvo casos expressamente previstos na lei, mesmo que o Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do CPP, entenda que, na concreta situação, a pena não deve exceder o referido limite.
Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

Por despacho proferido a fls. 885/887, o Mmº JIC decidiu não aplicar a Suspensão Provisória do Processo por falta de um pressuposto legal (ser o crime imputado aos arguidos punível com pena de prisão superior a 5 anos).


*

Os arguidos, A., B e C., inconformados com o despacho proferido interpuseram o presente recurso (na mesma peça processual), extraindo da motivação as seguintes as conclusões:

1. Os arguidos aqui Recorrentes, encontram-se pronunciados pela prática de um crime de violação das regras de segurança, p. e p. pelo art. 152°- B, n.ºs 1, 2 e 4 al. b) do Código Penal, por referência ao art. 15°, n.ºs 1, 2 als. a), b), c), d), e) e l) e n.º 3 da Lei 102/2009 de 10 de Setembro; ao artigo 3°, als. a) e e) do DL n.º 50/2005 de 25 de Fevereiro e aos arts. 42° n.ºs 1 e 2 e 44° n.ºs 1 e 2 do DL n.º 310/2002 de 18 de Dezembro, e art. 11º, n.º 2 e 90°-A a 90°-M do Código Penal.

2. Por despacho datado de 17.07.2018, foram o Recorrentes notificados que lhes iria ser proposta a suspensão provisória do processo.

3. A Mma Magistrada do Ministério Publico pronunciou-se no sentido da inadmissibilidade legal da suspensão provisória do processo, escudando­-se para o efeito, em dois fundamentos: "o artigo 16º, n.º 3 do CPP respeita à repartição de competência para julgamento, em face da pena a aplicar em concreto, enquanto o requisito estipulado no 1 do artigo 281° do CPP se reporta à moldura legal abstrata. .../… Em face do exposto, entendemos não ser aplicável nos autos a suspensão provisória do processo (cf. Diretiva 1/2014PGR)".

4. Entenderam e entendem os Recorrentes, que o Ministério Publico não declarou a sua oposição nos termos estritos dos artº 307º e 281º do CPP, e que devia ser comunicado aos arguidos nos termos do art. 282º as injunções e regras de conduta propostos e em consequência ser determinada a Suspensão Provisória do Processo.  

5. Assim não o determinou o Mmo Juiz que, entre outras considerações, entende ".../... Não aplicar a SPP do processo por falta de um pressuposto legal. Notifique"

6. Compete, ao Juiz de Instrução verificar a existência dos pressupostos legais da suspensão provisória do processo e entre eles necessariamente formular um juízo sobre a adequação das injunções e regras de conduta às necessidades de prevenção que se fazem sentir no caso.

7. Daí que, encerrado o debate instrutório, o juiz de instrução profere despacho de pronúncia ou não pronúncia, mas determina, se for o caso, a suspensão provisória do processo. Neste sentido, AC da RP, datado de 18-02-2009, n.º conv. JTRP00042207, in www.dgsi.pt. o que aconteceu.

8. Ora, do contraditório do Senhor Magistrado do Ministério Publico não se retira expressamente ou se infere sequer a não concordância. Em momento algum se encontra uma discordância quanto à Suspensão Provisória do Processo, mas sim que a mesma contende com a falta de um pressuposto legal para ser proposta.

9. No caso dos autos a inadmissibilidade legal resulta da conjugação das normas dos art.s 16°, n.º 3 e 281°, n.º l.

10. Entendem os Recorrentes que esta posição do Ministério Publico é puramente formal, na verdade, traduz-se num claro dever de ofício, a interpretar, mal, com o devido respeito, que muito é, e a aplicar a Diretiva 1/2014 à fase instrutória.

11. Tal diretiva, e porque apenas disso se trata, não pode ir além, em termos processuais, da fase em que o Dominus é do Ministério Publico, pois que da mesma resulta “.../... que visa apoiar e incrementar a sua utilização e promover uma atuação mais eficaz e homogénea do Ministério Público, na fase de inquérito.”

12. Coloca-se a questão jurídica de saber se se pode aplicar a suspensão provisória do processo quando está em causa um crime (ou um concurso de crimes) cuja moldura penal abstrata seja superior a cinco anos, mas que, pelo recurso ao mecanismo do artigo 16.°, n.º 3 do CPP, tenha sido reduzida a cinco anos.

13. Está deste modo verificado o pressuposto legal do n.º l do art. 281°? Com a devida vénia a resposta é afirmativa. (Neste sentido, cfr. TORRÃO, Fernando, obra citada na motivação.)

14. O MP por força do princípio da oportunidade ajusta uma moldura penal abstratamente aplicável a situações em que, a culpa do agente, as exigências de prevenção a existirem se situam no âmbito da pequena criminalidade para a qual existe um tratamento diferenciado na nossa lei, como decorre do ponto 5 do preâmbulo do CPP, resultando deste entendimento a redação do art. 16° n.º 3.

15. O que impede de circunscrever a aplicação / interpretação desta norma à pura questão de competência material do tribunal singular. Tem que se considerar, também, verificado o pressuposto do n.º 1 do art. 281°, permitindo deste modo, ao juiz de instrução propor a suspensão provisória do processo, quando este entenda que, o cumprimento das injunções e regras de conduta responde suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.

16. Prova de que tal entendimento - restrito à competência material do tribunal, não procede é o disposto no art. 50° do CPenal "o tribunal suspende a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos .... "Consequentemente, permite ao Juiz de julgamento a suspensão de uma pena, prevista para os crimes cuja moldura penal abstratamente punível seja superior a cinco anos, e que por força do art. 16° n.º 3 sejam julgados no tribunal singular.

17. Pretendendo-se com o art. 16° n.º 3, sujeitar um tribunal coletivo à obrigação de julgar um crime, que, face à factualidade carreada para os autos se insere, afinal na pequena criminalidade, é juridicamente insustentável.

18. Não existe, com a devida vénia, qualquer diferença substancial ou formal entre ser acusado por crime cujo limite máximo de cinco anos de prisão se encontra estabelecido a priori na lei ou ser-se acusado por crime cujo limite máximo de cinco ano de prisão é estabelecido pelo MP ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 16º CPP.

19. O tribunal de julgamento, não está impedido de proceder à suspensão da pena aplicada, tem até o poder-dever de o fazer, impondo-se o ónus de fundamentar quando não o faz, não se encontrando no nosso CPP qualquer diferenciação no tratamento dado aos crimes previstos no CP cujo moldura abstratamente aplicável sejam os 5 anos ou aqueles que por força da aplicação do n.º 3 do art. 16° o sejam também.

20. Estão, in casu, preenchidos os pressupostos materiais do art. 281°, foi fixada a pena de prisão não superior a 5 anos; inexiste assistente; ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza; Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza; Ausência de um grau de culpa elevado. Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.

21. Ao considerar que falta um pressuposto legal, in casu o n.º 1 do art 281º, enviando o processo para julgamento em clara violação dos princípios de economia e celeridade processual, sujeitando o arguido à estigmatização de um julgamento, em circunstâncias que se revelam político-criminalmente desajustadas, incorre a presente decisão de que ora se recorre, na violação do princípio da proibição do excesso constante do art. 18°, n.º 2 da CRP, o que se invoca.

22. Face à lei penal Constitucional vigente, não existe qualquer diferença entre ser-se acusado por crime cujo limite máximo de 5 anos de prisão se encontre estabelecido a priori na lei ou ser-se acusado por crime cujo limite máximo de 5 anos de prisão é estabelecido pelo Ministério Público ao abrigo do disposto no artigo 16.°, n.º 3 do CPP.

23. A interpretação dos preceitos legais citados (art. 16° n.º 3 e 281° n.º 1 do Código de Processo Penal) - no sentido de que o art. 16°, n.º 3 respeita à repartição de competência para julgamento, em face da pena a aplicar em concreto, enquanto que o n.º 1 do art. 281° se reporta à moldura penal abstrata, impedindo, por falta da verificação de um dos pressupostos materiais, a suspensão provisoria do processo, está ferida de inconstitucionalidade material, por ofensa aos art.s 13°, 20°, n.º 4 e 202°, n.º 2 da CRP, o que se invoca.

24. Ao decidir como decidiu, violou o presente despacho as normas constantes dos arts.16°, n.º 3, 281°, n.º l , 282°, e 307° do CPP, art. 50° do CP e dos art.s 13°, 18°, n.º 2, 20°, n.º 4 e 202°, n.º 2 da CRP.


*

A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo defendeu a improcedência do recurso, com a consequente manutenção do despacho recorrido.

Nesta instância, também a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, os arguidos responderam reiterando os fundamentos da motivação do recurso.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta do despacho recorrido:

Suspensão provisória do processo requerida pelos arguidos:

Resulta dos autos que os arguidos C., A. e B. foram pronunciados pela prática, como autores materiais e sob a forma consumada, de um crime de violação de regras de segurança, p. p. pelo artigo 152º-B, nº 1, 2 e 4 b) do Código Penal, em referência ao artigo 15º, nº 1 e 2, a), b), c), d), e) e l) e nº 3 da Lei 102/2009, de 10.09., ao artigo 3º, a) e e) do DL 50/2005, de 25.02. e aos artigos 42º, nº 1 e 2 e 44º, nº 1 e 2 do DL 310/2002, de 18.12, e ainda, quanto à arguida, aos artigos 11º, nº 2 e 90-A a 90-M do Código Penal.

Mais se evidencia que ao crime em causa corresponde pena de 2 a 8 anos de prisão;

Em relação ao pressuposto da SPP de o crime não ser punível com pena de prisão superior a cinco anos, numa primeira análise pareceu-nos tal ser possível, tanto mais que o MP vem utilizando tal instituto de um modo regular em relação ao crime de homicídio por negligência previsto no art.º 137º do CPP- embora este crime não seja punível com pena de prisão superior a cinco anos - e em relação ao qual já demos a nossa concordância por diversas vezes.

Em todo o caso, foi determinado o exercício do contraditório quanto a tal questão.

A Digna Magistrada do MP pronunciou-se, a fls. 872, no sentido da inadmissibilidade legal de tal pretensão.

Os arguidos através da sua ilustre defensora pronunciaram-se, a fls. 880 ss, no sentido de ser legalmente admissível a pretensão dos arguidos nos termos que aqui se reproduz.

Cumpre apreciar e decidir.

Em primeira linha, cumpre referir que, salvo o devido respeito, o d. Acórdão da Relação do Porto de 26-04-2017 - ao contrário do que o sumário podia dar a entender - não aponta no sentido de ser legalmente admissível a SPP mesmo que o crime seja punível com pena de prisão superior a cinco anos e o MP tenha usado da faculdade prevista no art.º 16º, n.º 3 do CPP por no corpo do acórdão resulta peremptoriamente:

O pressuposto de o crime não ser punível com pena superior a 5 anos é óbvio. A moldura abstracta da pena a aplicar pela prática de um crime de roubo simples é de 8 anos de prisão. A utilização do artº 16º, n.º 3 do CPP tem efeitos na composição do tribunal e fixação de limite máximo de pena aplicável e nada tem a ver com a composição do litígio. Os pressupostos do art. 16º, n.º 3 do CPP e o instituto da SPP destinam-se a finalidades diversas. Extrair ilações, com recurso ao disposto no artº 307º, n.º 2 do CPP, comparando o regime de SPP com a faculdade de utilização do artº 16º, n.º 3 (competência do tribunal singular) do mesmo diploma é ir além da vontade legislada.

Também o d. Acórdão da Relação de Guimarães de 10-12-2007 se pronunciou no sentido da inadmissibilidade legal da SPP em caso de estar em causa crime punível com pena de prisão de máximo abstracto superior a cinco anos como no caso era o crime de peculato, nos seguintes termos :

I- A suspensão provisória do processo apenas está prevista para os casos em que o crime for punível com prisão não superior a cinco anos (art. 281º, n.º 1 do CPP), não se aplicando, pois, ao crime de peculato, punível com pena de prisão até 8 anos.

II- Se o MP fez a declaração prevista no art. 16º, nº 3 do CPP, a pena abstracta de oito anos fixada no art. 375º, nº 1 do Cod. Penal, não se convola numa pena abstracta de cinco anos, pois aquela declaração do MP só condiciona a «pena concreta», não alterando a «moldura penal abstracta».

III- Ou seja, o tribunal determina a «pena concreta» partindo da moldura penal abstracta fixada pelo legislador e ponderando os elementos a que os arts. 71º e ss do Cod. Penal mandam atender e, se porventura chegar a uma pena superior a cinco anos, ela é reduzida até este patamar.

IV- É isso que resulta do segmento da norma “não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos” do art. 16º, nº 3 do CPP, não passando a atitude do Ministério Público de num juízo de prognose, ponderando as diversas variáveis atendíveis na fixação da pena concreta, pois tem por seguro que esta não ultrapassará os cinco anos.

Na verdade, o instituto da SPP em conformidade com o d. Acórdão do STJ, de 13/02/08 (www.dgsi.pt) resulta que através da Lei n.º 48/2007, o legislador acentuou a natureza de poder-dever conferido pela norma do n.º 1 do art.º 281º do CPP ao Ministério Público - e na instrução ao JIC - ao substituir a expressão "pode (...) decidir-se (...) pela suspensão do processo" por esta outra, claramente impositiva: "oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina (...) a suspensão do processo», mas já assim se devia entender no domínio da redacção dada pela Lei n.º 59/98, mas pretendeu-se afastar a interpretação de que "o pode decidir-se" constituía uma mera faculdade concedida ao Ministério Público a usar discricionariamente e afirmar a interpretação de que verificados os respectivos pressupostos, se impunha ao Ministério Público a suspensão provisória do processo.

Por outro lado, o acrescentamento, no mesmo n.º 1 do art. 281.º do CPP, da expressão "oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente" reforça ainda esta interpretação e dá direitos acrescidos a estes sujeitos processuais, a que hão-de necessariamente corresponder as acções, os expedientes necessários à sua concretização, dentro da garantia de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrada (art. 20.º) e levada ao art. 2.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 4.º do CPP: «2. A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.

(…) O arguido e o assistente podem, pois, pedir hoje ao Ministério Público ou ao juiz de instrução a suspensão provisória do processo, a qual não pode deixar de ser determinada, se se verificarem os respectivos pressupostos: no decurso do inquérito, ao Ministério Público por requerimento; findo o inquérito, ao juiz de instrução, na "acção" adequada à efectivação desse direito e que só pode, pois, ser constituída pelo requerimento de abertura de instrução em que se pede que se analisem os autos para verificar se se verificam os pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo e que em caso afirmativo se diligencie, além do mais, pela obtenção da concordância do Ministério Público, tal como o impõe o n.º 2 do art. 307.º do CPP, pois só esse requerimento abre a possibilidade ao juiz de instrução de proferir a decisão a que se refere o art. 307.º e que inclui, como se viu, a possibilidade de suspender provisoriamente obtida a concordância do Ministério Público

(...) »

O instituto da suspensão provisória do processo é uma manifestação dos princípios da diversão, informalidade, cooperação, celeridade processual, princípios estes que assumem uma importância crescente no processo penal, com o objectivo de, sempre que possível, deve evitar-se os julgamentos com eventuais efeitos socialmente estigmatizantes e penas potencialmente criminógenas. Por outras palavras, a suspensão provisória do processo é uma medida de “diversão com intervenção”, sendo expressão do princípio da oportunidade, entendido este como “uma liberdade de apreciação do MP - no caso dos autos por parte do JIC - relativamente à decisão de acusar apesar de estarem reunidos os pressupostos legais (gerais) [do dito dever]” (Pedro Caeiro, «Legalidade e oportunidade: a perseguição penal entre o mito da “justiça absoluta” e o fetiche da “gestão eficiente” do sistema», in RMP nº 84, Out/Dez. 2000, p. 32 ), mas essa liberdade de apreciação do Ministério Público está sujeita, ainda assim, ao princípio da legalidade, embora este se encontre limitado pelo princípio da oportunidade “sendo os tópicos político-criminais os da intervenção mínima, da não estigmatização do agente, do consenso e da economia processual” (Pedro Caeiro, ob. cit., p. 39; entre outros, Acs. do TC nº 67/2006, DR II de 9/3/2006, nº 116/2006 consultado em www.tribunalconstitucional.pt) e n.º 144/2006, DR II de 3/5/2006), em que «Privilegiando o diálogo e o consenso», reconduz-se este instituto a um «quadro de ilicitude, culpa e exigências de prevenção de baixa intensidade», assim se viabilizando «o arquivamento do processo, com força de caso julgado material, sem fazer passar o arguido à fase do julgamento (art. 282 n.º 3 CPP)”» (Ana Paula Guimarães, «Da impunidade à impunidade? O crime de maus tratos entre cônjuges e a suspensão provisória do processo», in Liber discipulorum para Figueiredo Dias, pp. 865 e 866.

Mas claro está que tal instituto tem apenas aplicação na pequena e média criminalidade, o que pela ratio do mesmo, afasta a aplicação de uma solução de consenso em relação a crimes particularmente graves como são os que são punidos com uma pena de prisão superior a cinco anos e onde as exigências de prevenção já não se podem considerar de baixa densidade e mesmo que em sede da medida da pena não venha a ser aplicada no caso concreto pena superior a cinco anos.

No caso dos autos, e salvo melhor opinião, sendo o crime punível com pena de prisão superior a cinco anos afastada está a possibilidade de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo.

Em todo o caso, e mesmo que se admitisse o contrário, e tratando-se uma decisão de “consenso”, a falta de concordância do MP com a aplicação da SPP afastaria a possibilidade da sua aplicação.

Pelo exposto, decide-se não aplicar a SPP do processo por falta de um pressuposto legal.


***

APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, a questão suscitada consiste em saber se: …….….. tendo os arguidos sido acusados da prática de um crime punível, em abstracto, com pena de prisão superior a 5 anos, mas tendo o Ministério Público feito uso da faculdade prevista no artigo 16º, n.º 3, do CPP (por entender que não lhes deve ser imposta superior a 5 anos), se podem beneficiar da Suspensão Provisória do Processo.


*

Dizem os arguidos:

Coloca-se a questão jurídica de saber se se pode aplicar a suspensão provisória do processo quando está em causa um crime (ou um concurso de crimes) cuja moldura penal abstrata seja superior a cinco anos, mas que, pelo recurso ao mecanismo do artigo 16.°, n.º 3 do CPP, tenha sido reduzida a cinco anos.

Está deste modo verificado o pressuposto legal do n.º l do art. 281°? Com a devida vénia a resposta é afirmativa.

Face à lei penal Constitucional vigente, não existe qualquer diferença entre ser-se acusado por crime cujo limite máximo de 5 anos de prisão se encontre estabelecido a priori na lei ou ser-se acusado por crime cujo limite máximo de 5 anos de prisão é estabelecido pelo Ministério Público ao abrigo do disposto no artigo 16.°, n.º 3 do CPP.

Desde já adiantamos que não podemos concordar com tal posição.

Versa o artigo 16º do CPP sobre a competência do tribunal singular, estabelecendo o n.º 3 que «Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 14º [cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja superior a 5 anos de prisão (…)], mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos.».

Acrescentando o n.º 4 que «No caso previsto no número anterior, o tribunal não pode aplicar pena de prisão superior a 5 anos.».

Portanto, a opção pela faculdade a que alude o artigo 16º, n.º 3, apenas tem efeitos na composição do tribunal (singular) e na fixação do limite máximo da pena (não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos).

É um facto que, por força do n.º 4, o juiz, aquando da determinação da pena concreta aplicável, está condicionado pelo entendimento do MP (que requereu a intervenção do tribunal singular para julgar um crime que, em princípio, deveria ser julgado por um tribunal colectivo) visto que não pode utilizar toda a moldura abstracta correspondente ao crime.

Todavia, tal não significa, como pretendem os recorrentes, que tendo o MP feito uso da faculdade do artigo 16º, n.º 3, houve uma alteração da moldura abstracta do crime.

In casu, se o MP usou da referida faculdade, a pena abstracta, com limite máximo de oito anos de prisão, correspondente ao crime de violação de regras de segurança, p. e p. pelo artigo 152º-B, n.º 1, n.º 2 e n.º 4, al. b) do Código Penal, não se convola numa pena abstracta (com limite máximo) de cinco anos, pois, aquela declaração do MP só condiciona a pena concreta, não alterando a moldura penal abstracta. – neste sentido o Ac. RG de 10-12-2007, proc. 2168/07-2, in www.dgsi.pt.

“O n.º 3 constitui uma norma de determinação concreta de competência, com base em critérios que são próprios do Ministério Público como titular da acção penal e órgão da acusação, compreendida ainda como manifestação directa do princípio acusatório: o MP no uso dos poderes, processuais e estatutários, de sujeito processual na conformação material da acusação, determina a fixação de um máximo para a medida da pena aplicável perante as circunstâncias do caso. A formulação do juízo pelo MP pressupõe uma compreensão e avaliação prévias da dignidade penal e da gravidade do caso objecto de acusação, situando-os em concreto, com fundamento em motivação objectiva, dentro de uma sub-moldura da pena inferior à moldura prevista para o respectivo tipo legal de crime.” – Cons. Henriques Gaspar, em anotação ao art. 16º do Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 77.

Vejamos o seguinte desenvolvimento processual:

- os recorrentes foram acusados, ao abrigo do disposto no artigo 16º, nº 3 do CPP, pela prática de um crime de violação de regras de segurança, p. e p. pelo artigo 152º-B, nº 1, nº 2 e nº 4 alínea b) do Código Penal, o qual é punível, em abstracto, com pena de 2 a 8 anos de prisão – fls. 469/475;

- não se conformando com tal despacho, todos os arguidos requereram a abertura de instrução (fls. 523/529, a C.; fls. 553/560, A.; fls. 630/639, B.), pugnando pela sua não pronúncia e, subsidiariamente, os arguidos A. e C., pela Suspensão Provisória do Processo.

- a decisão instrutória (fls. 840/865) pronunciou os arguidos, pela prática dos factos e do crime constantes da acusação; e, no final desta decisão, o Mmº JIC equacionou a possibilidade da suspensão provisória do processo; ……….. e,

 - determinou que o Ministério Público se pronunciasse sobre tal questão, visto que a SPP pressupõe um acto de “consenso” e em face da moldura abstracta do crime ser punível com pena de prisão superior a cinco anos – fls. 871;

- por não se verificar o pressuposto de o crime ser punível com pena de prisão não superior a 5 anos, ainda que na acusação tenha feito uso do disposto no artigo 16º, n.º 3 do CPP, a Magistrada do Ministério Público entendeu que, por não se verificar o pressuposto do n.º 1 do artigo 281º do CPP, não é aplicável aos autos a suspensão provisória do processo – fls. 872;

- foi, então, proferido o despacho recorrido.

A suspensão provisória do processo é um mecanismo utilizado para situações de pequena criminalidade ([1]), desencadeado pelo MP, que exige o consenso entre o MP, o juiz de instrução, o arguido e o assistente e a verificação dos demais pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 281º do CPP.

Por esta via, antes de deduzir acusação, o MP (obtida a concordância do juiz) poderá suspender o processo mediante a imposição de injunções e regras de conduta ao arguido; se as mesmas forem cumpridas, o processo é arquivado, em caso contrário o processo prossegue - art. 282º, n.º 3 do CPP.

A suspensão provisória do processo é ainda admissível na fase de instrução, nos termos do artigo 307º, n.º 2 do mesmo diploma, sendo então da iniciativa e da responsabilidade do juiz de instrução, com a necessária concordância do Ministério Público.

Prevê o n.º 1 do artigo 281º do CPP os requisitos legais, cumulativos, que permitem a aplicação da suspensão provisória do processo. Assim:

«Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções ou regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:

a) Concordância do arguido e do assistente;

b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;

c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza;

d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;

e) Ausência de um grau de culpa elevado; e

f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.»

Como verificamos, começa o preceito com “Se o crime for punível”, tal significando que terá de se atender à moldura penal abstracta do ilícito em causa – a qual não poderá ser superior a 5 anos.

No caso vertente, estando os arguidos acusados da prática de crime punível, em abstracto, com prisão de 2 a 8 anos, é bom de ver que não poderão beneficiar da suspensão provisória do processo. Neste sentido vêm os Acórdãos da RG de 10-12-2007 (já citado) e, da RP de 20-6-2012, proc. n.º 90/11.0GFPRT.P1 e, de 26-4-2017, proc. 191/15.6SMPRT-AP1.

Acresce que, na situação dos autos, como se constatou e foi sublinhado no despacho recorrido, o Ministério Público não deu a sua concordância à suspensão do processo.

A propósito, dá-se nota de que a Magistrada do Ministério Público quando se pronunciou sobre não ser aplicável aos autos a SPP, referiu a Directiva 1/2014 da PGR.

Nesta Directiva n.º 1/2014, de 15-1-2014, da Procuradoria-Geral da República constava que a SPP “não é aplicável, salvo nas situações expressamente previstas na lei, à criminalidade grave. O disposto no n.º 3 do artigo 16º do Código de Processo Penal respeita à repartição de competência para julgamento entre tribunais em função da medida da pena concretamente aplicável no processo, mas não altera a distinção qualitativa entre pequena e média criminalidade e criminalidade grave, que se reflete na medida da pena abstratamente aplicável ao crime justificada por razões de protecção do bem jurídico.”

Posteriormente, a Directiva n.º 1/2015, de 30 de Abril, da PGR ([2]), que alterou e republicou a Directiva n.º 1/2014 respeitante à SPP, veio concretizar, ao dizer que a SPP não é aplicável aos crimes puníveis com pena de prisão de duração superior a 5 anos, salvo nos casos expressamente previstos na lei, mesmo que o magistrado entenda que, no caso concreto, a pena não deveria exceder os 5 anos de prisão.”

Está esta Directiva em sintonia com a letra da lei.

Concluímos, pois, que não assiste razão aos recorrentes.

Invocando o disposto no artigo 50º do CP, segundo o qual o tribunal suspende a pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos …, argumentam os recorrentes que “É assim, permitido ao Juiz de Julgamento, que proceda à suspensão da pena prevista para os crimes cuja moldura penal abstractamente punível seja superior a cinco anos, após a aplicação do 16º, n.º 3!  Juridicamente se concluiu que, se é permitido expressamente o mais, também que ser permitido o menos!”

Mal se compreende a argumentação dos recorrentes. No artigo 50º do CP está em causa a suspensão da pena concreta, que não pode ser superior a 5 anos. Isto, independentemente de o limite máximo da pena abstracta correspondente ao crime ser superior e/ou de o MP ter usado do mecanismo do artigo 16º, n.º 3 do CPP.  E, como é sabido, pena concreta não é igual a moldura penal abstracta, distinguindo o legislador as duas situações.

Por fim, alegam os recorrentes que:

- Ao considerar que falta um pressuposto legal, in casu o n.º 1 do art 281º, enviando o processo para julgamento em clara violação dos princípios de economia e celeridade processual, sujeitando o arguido à estigmatização de um julgamento, em circunstâncias que se revelam político-criminalmente desajustadas, incorre a presente decisão de que ora se recorre, na violação do princípio da proibição do excesso constante do art. 18°,  n.º 2 da CRP, o que se invoca. E que,

- A interpretação dos preceitos legais citados (art. 16° n.º 3 e 281° n.º 1 do Código de Processo Penal) - no sentido de que o art. 16°, n.º 3 respeita à repartição de competência para julgamento, em face da pena a aplicar em concreto, enquanto que o n.º 1 do art. 281° se reporta à moldura penal abstrata, impedindo, por falta da verificação de um dos pressupostos materiais, a suspensão provisoria do processo, está ferida de inconstitucionalidade material, por ofensa aos art.s 13°, 20°, n.º 4 e 202°, n.º 2 da CRP, o que se invoca.

Afigura-se-nos que, mais uma vez, os recorrentes carecem de razão.

A inconstitucionalidade material é um vício substancial do conteúdo do acto; e ocorre quando o conteúdo de um norma viola preceitos ou princípios constitucionais.

Ora, como vem referido no Código de Processo Penal Comentado, 2014, a págs. 77/78 “A possibilidade de conformação pelo MP da moldura da pena aplicável, e em consequência da determinação em concreto da competência do tribunal singular, está prevista desde a versão originária do CPP, tendo suscitado discussão no plano da conformidade constitucional. O TC, desde o acórdão n.º 393/89, de 18 de Maio de 1989 (e abundante jurisprudência posterior), caucionou a constitucionalidade da solução.”

E, na situação em análise, com a interpretação dada aos artigos 16, n.º 3 e 281º, n.º 1 do CPP pelo tribunal a quo não é afrontado qualquer princípio constitucional.

Por outro lado, o princípio da proibição do excesso é um princípio jurídico-constitucional (de que são exemplo, também, o princípio da constitucionalidade, o princípio da legalidade e o princípio da imparcialidade) e, como tal, trata-se de um princípio necessário à caracterização e definição jurídica da ordem constitucional.

Sendo o princípio da proporcionalidade ou “da proibição do excesso” consagração do princípio constitucional da restrição mínima dos direitos ou interesses fundamentais constitucionalmente  protegidos, como impõe o n.º 2 do artigo 18º da CRP ……. in casu, se falta um dos requisitos legalmente exigidos para a suspensão do processo, de acordo com o disposto no n.º 1 do citado artigo 281º, não se vislumbra qualquer restrição injustificada de direitos, liberdades e garantias dos arguidos consagrados na CRP.

De qualquer forma, também não seria de aplicar a SPP aos autos dada a discordância do MP.


*****

III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso.

Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se em 3 UC´s a taxa de justiça.


*****

Coimbra, 26 de Junho de 2019

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)


[1] - cfr. ponto  n.º 6 do preâmbulo do CPP.
[2] - Publicada no DR, II Série, de 18-5-2015.