Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
829/21.6T8SRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
INEFICÁCIA DA JUSTIFICAÇÃO
COMPRA E VENDA
NULIDADE
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
DOCUMENTOS EXARADOS POR NOTÁRIO
DOCUMENTOS AUTENTICADOS POR NOTÁRIO
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 703.º, N.º 1, ALÍNEA B) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
ARTIGO 291.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I) Os documentos exarados ou autenticados por notário são títulos executivos se revelarem a constituição ou o reconhecimento de alguma obrigação.

II) Assim ocorre com a escritura pública de compra e venda de imóvel no qual um dos outorgantes se assuma como devedor de uma determinada quantia.

III) A exequibilidade referida em I) não se estende à eventual obrigação de restituição do preço por parte do vendedor, decorrente da invocação da nulidade do contrato de compra e venda em resultado da declaração judicial de ineficácia da escritura de justificação notarial que constituiu fundamento de aquisição do direito a favor do vendedor.

IV) O acórdão uniformizador do STJ n.º 3/2018, que determina que “O documento oferecido à execução ao abrigo do disposto no art. 46º, nº1, al. c), do CPC de 1961 (…) que comporte o reconhecimento da obrigação de restituir uma quantia pecuniária resultante de mutuo por falta de forma legal goza de exequibilidade, no que toca ao capital mutuado”, só é aplicável aos negócios nulos por falta de forma.

Decisão Texto Integral:





                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

A..., Lda., intenta a presente ação executiva sob a forma de processo comum, contra B ...,

Com os seguintes fundamentos:

por escritura de “Justificação de Compra e Venda” de 15.011.2017, o ora executado declarou vender ao exequente determinado imóvel, pelo preço de 14.530 €;

a 22.03.2019, a ex-cônjuge do ora executado propôs uma ação declarativa de impugnação notarial invocando ser um bem comum do ex-casal, vindo a ser proferida sentença a declarar ineficaz a escritura determinando-se o cancelamento dos registos de aquisição efetuados com base na dita escritura;

a escritura e a respetiva sentença constituem títulos executivos, sendo que à exequente foi-lhe retirada a posse do terreno em questão.

Em consequência, reclama do executado o valor de 14.530,00 €, acrescida dos respetivos juros legais.

Pelo juiz a a quo foi proferido Despacho a indeferir liminarmente o requerimento executivo, decisão que agora se recorre:

“ . A Exequente intenta a Acção Executiva para pagamento de quantia certa, no montante de €.16.536,64.

São apresentados como títulos executivos:

Uma escritura pública de justificação notarial e de compra e venda, pela qual a aqui Exequente declara comprar um imóvel pelo preço de €. 14.530,00 que já pagou ao aqui Executado.

Uma sentença que declara ineficaz e de nenhum efeito a referida escritura pública e ordena o cancelamento do registo predial da compra.


*

Deste modo, em nosso entender, e sempre salvo o devido respeito por diferente e melhor juízo, é patente que das declarações exaradas na escritura pública não resulta qualquer constituição ou reconhecimento pelo aqui Executado da obrigação de pagamento cuja cobrança coactiva a aqui Exequente pretende obter.

Muito menos, decorre da sentença declarativa qualquer condenação do aqui Executado no pagamento de alguma quantia pecuniária, nomeadamente no pagamento da quantia cuja cobrança coactiva é pretendida, sendo certo que a aqui Exequente formulou pedido reconvencional subsidiário de condenação, o qual não foi admitido, pretendendo agora actuar como se tal pedido tivesse sido admitido e procedente.

Em síntese, deve o requerimento executivo ser liminarmente indeferido por ser manifesta a falta de título executivo.»”


*

Inconformada com tal decisão, a Exequente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
(…)
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se a escritura de justificação notarial, declarada ineficaz e de nenhum efeito, por sentença proferida na correspondente ação de impugnação, que ordenou o cancelamento dos registos de aquisição efetuados pelos réus com base em tal escritura, constitui título executivo relativamente à obrigação de devolução do preço pago pelo comprador.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
 Negando a decisão recorrida exequibilidade aos títulos apresentados pelo exequente para o efeito: a) Escritura de justificação notarial e compra e venda – pela qual o aqui executado invocou ter adquirido o imóvel dela objeto por partilha verbal na sequência do seu divórcio e a sua aquisição por usucapião, declarando, ainda, vendê-lo ao aqui exequente – e b) sentença proferida na ação de impugnação de escritura de justificação notarial, que julgando procedente a ação, declarou ineficaz tal escritura, não podendo os réus através dela registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado, o juiz a quo proferiu despacho a indeferir liminarmente o requerimento executivo.
Insurge-se o Apelante contra o decidido, com a seguinte argumentação:
- a escritura de justificação notarial declarada ineficaz e determinado o cancelamento do registo, por ser também nula, nulidade que é de conhecimento oficioso, é título executivo, nos termos do artigo 703º, nº1, al. b), do CC;
- como tal, assiste à exequente o direito à devolução do preço pago, restituição que resulta do disposto no artigo 289º do CC, sem necessidade de ter de recorrer à ação declarativa;
- a seu favor invoca o Ac. STJ nº3/2018, segundo o qual a nulidade do título importa a devolução do valor entregue (no caso mutuado), nos termos do artigo 289º, nº1 do CC.
Não podemos dar razão à Apelante
Antes de mais, cumpre salientar que, se a Apelante, no requerimento executivo, assumiu que o título executivo por si apresentado era um título complexo composto pela escritura e de justificação e compra e venda e pela sentença proferida em sede de ação de impugnação da escritura notarial, nas suas alegações de recurso pugna pela exequibilidade da “escritura de impugnação declarada ineficaz e determinado o cancelamento do registo”.
Por outro lado, faz assentar a obrigação exequenda – de devolução do preço recebido pelo vendedor – na nulidade daquela escritura de justificação notarial, nulidade que sendo de conhecimento oficioso conferiria exequibilidade a tal escritura, nos termos do art. 703º, nº1, al. b), CPC.
Ora, a obrigação de devolução do preço pago pelo comprador nunca derivaria de uma eventual nulidade da escritura de justificação notarial, sendo antes um dos possíveis efeitos da declaração da nulidade do contrato de compra e venda, também formalizado nessa mesma escritura, mas com completa autonomia.
Por outro lado, atentar-se-á que a ação de impugnação de escritura de justificação notarial, incidindo sobre a escritura de “Justificação e Compra e Venda”, e embora esta formalize dois distintos atos – a declaração de justificação notarial relativamente a determinado imóvel e, ainda, a declaração de compra e venda do mesmo à terceira outorgante –, apenas tem por objeto a justificação notarial através dela formalizada.
A al. b) do artigo 703º do CPC atribuiu exequibilidade aos “documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação”.
Têm força executiva os documentos exarados ou autenticados por notário ou por outras entidades com competências semelhantes, sempre que revelem a constituição ou o reconhecimento de alguma obrigação, como ocorre com a escritura pública de compra e venda de imóvel, ou de mútuo, no qual um dos outorgantes se assuma como devedor de uma determinada quantia[1].
Ora, a obrigação cujo cumprimento coercivo a exequente aqui pretende executar – de devolução do preço por si pago pela compra do prédio, com fundamento na posterior declaração de ineficácia da escritura de justificação notarial do direito a favor do transmitente e do cancelamento dos registos de aquisição efetuados com base em tal escritura (decretada por sentença judicial), e de lhe ter sido entretanto retirada a posse do imóvel – não se mostra constituída, não emerge daa escritura de compra e venda, dependendo da alegação e prova de uma série de factos de ocorrência posterior, não dispensando a propositura de uma ação judicial que reconheça a existência do direito exequendo.
A tal respeito, afirma António Abrantes Geraldes: “Constando do documento contratual a constituição de uma determinada obrigação (v.g., entrega do imóvel em certa data), apenas esta é revestida de exequibilidade, sendo o documento insuficiente para exigir o cumprimento coercivo da obrigação cuja causa que resulte de qualquer outra vicissitude (v.g., obrigação de entrega sequencial à resolução do contrato). Com efeito, implicando a resolução contratual a antecipação da obrigação de restituição, a verificação do respetivo condicionalismo não emerge do próprio documento, exigindo a invocação e prova de outros factos que terão de ser submetidos à discussão contraditória a realizar em sede de ação declarativa[2]”.
Por outro lado, nada obstando a que o título executivo seja o resultado da conjugação de diversos documentos, também da conjugação da escritura de compra e venda com a sentença proferida na ação de impugnação da escritura de justificação notarial – que veio a declarar tal escritura ineficaz com o consequente cancelamento dos registos com base nela efetuados – não resulta, por si só, constituída a obrigação exequenda.
Na ação de impugnação da escritura de justificação notarial, sendo uma ação de simples apreciação negativa, destina-se, única e exclusivamente, a declarar a ineficácia de tal escritura (que tem por objetivo o reatar do trato sucessivo) – e o cancelamento dos registos feitos com base na mesma.
O pedido aí formulado e que foi julgado procedente foi:
1. que se declare impugnado, para todos os efeitos o facto justificado na escritura pública de justificação notarial, por o primeiro réu não ter adquirido o prédio nela identificado por usucapião;
2. que se declare ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura, por forma a que os réus não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado;
3. que se ordene o cancelamento dos registos de aquisição efetuados pelos réus na dita escritura.
Nessa ação de justificação notarial [cuja sentença não constituiria título executivo, por só as sentenças condenatórias poderem ser títulos executivos, ao abrigo da al. a), do nº1 do artigo 703º], nada foi decidido quanto ao negócio de compra e venda feito em simultâneo com justificação notarial, negócio este cuja (in)validade não foi objeto de apreciação.
É certo que dela resultará que o demandado não é titular do direito referido na escritura de justificação notarial[3], tornando a sequente venda a non domino.
Mas, da conjugação da escritura de compra e venda com essa declaração de procedência da ação de impugnação, não se extrai, sem mais, a obrigação do vendedor de devolução do preço, resultante de alguma nulidade que o tribunal de execução houvesse de conhecer oficiosamente.
O Acórdão citado pelo Apelante a tal respeito – Acórdão do STJ para fixação de jurisprudência nº3/20018, publicado no DR, 1ª série, nº 35, de 19 de fevereiro de 2018 –responde à questão de saber se, estando o negócio jurídico subjacente à escritura particular oferecida à execução afetado de invalidade formal, esta acarreta a inexequibilidade daquele. Reporta-se àqueles casos em que, por ex. um contrato de mútuo nulo por falta de forma, no qual fora acordada a restituição da quantia em dívida e respetivos juros, continua a ser título executivo para efeitos da obrigação de restituição da quantia mutuada, agora já não em cumprimento do contrato, mas, enquanto obrigação de restituir o prestado na sequência de tal nulidade. Segundo tal acórdão, uma vez constatada a nulidade do negócio subjacente ao título executivo apresentado e sendo esse vício do conhecimento oficioso, tal título pode valer de fundamento, não para o cumprimento específico do contrato, mas para a restituição do que houver sido prestado, como consequência legal da nulidade, nos termos do art. 289.º, n.º 1, do CC.
Ora, a situação em apreço nada tem a ver com as considerações e pressupostos em que se move tal Acórdão do STJ.
No caso em apreço, não só, não se verifica qualquer nulidade do título por vício de forma, como as obrigações decorrentes do contrato de compra e venda constantes de tal escritura foram devidamente cumpridas – a compradora aqui exequente pagou ao vendedor o respetivo preço e, aparentemente, e a vendedora terá procedido à entrega do imóvel (do por si alegado no requerimento executivo inicial decorre ter a compradora entrado na respetiva posse).
Ainda que se interprete o pensamento da Apelante no sentido de que tal negócio de compra e venda seria nulo (e não é essa a sua alegação, mas, sim, que “a escritura de justificação notarial, declarada ineficaz, (…) por ser também nula, nulidade de conhecimento oficioso, é titulo executivo”, não invoca, sequer, qual o fundamento de onde faz decorrer tal nulidade.
 Ainda que considerássemos que a Apelante se esteja a referir a uma nulidade da venda por ser a non domino – e tal nulidade não resulta da sentença proferida no âmbito da ação de impugnação justificação notarial, onde apenas se decide que, não tendo o réu logrado demonstrar os factos em que se baseou para o reconhecimento do direito exarado na escritura, esta deixa de produzir os seus efeitos, não podendo constituir base para a partir dela levar o facto a registo –, nunca o tribunal de execução poderia conhecer oficiosamente de tal nulidade: não só, os autos não dispõem dos elementos factos para o efeito, como não é este o procedimento a adequado à alegação e produção de prova com vista à declaração de tal nulidade, que a doutrina configura como uma nulidade atípica[4].
Concluindo não pode aqui a exequente pretender obter o cumprimento coercivo de uma obrigação decorrente de uma nulidade do contrato não declarada e para a qual não dispõe de qualquer título.

A apelação será de improceder sem outras considerações.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela apelante.         

                                                                            Coimbra, 09 de novembro de 2021


[1] “António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, pp. 22-23.
[2] “Títulos Executivos”, artigo publicado in “A Reforma da Ação Executiva”, Revista THEMIS, Ano IV – N. 7 - 2003, p. 46. Em igual sentido se pronunciou o Ac. STJ de 16.04.74, in BMJ nº236, p. 108, onde se afirma que “não é tão pouco exequível o título que formalize o contrato em cujo incumprimento se funde o direito a indemnização, ainda que as partes neles tenham estabelecido uma clausula penal.”
[3] Fernando Pereira Rodrigues, “Usucapião, Constituição Originária de Direitos Através da Posse”, Almedina, p. 79.
[4] Cominando embora o artigo 892º a venda de bens alheios com a nulidade, os artigos 892º e ss., estabelecem regras que se desviam do regime geral da nulidade, nomeadamente quanto às regras para arguir a nulidade, aos efeitos da mesma e à possibilidade de sanar o vício – Yara Miranda, “Venda de Coisa Alheia”, in THEMIS, ANO VI – Nº11 – 2005, p.131. A nulidade, não só, tem de ser invocada pelas partes, como o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa-fé – neste caso, o vendedor não só não pode invocar a nulidade, como tem de a sanar, adquirindo a coisa ou o direito vendido –, como não pode opô-la ao vendedor de boa-fé ao comprador doloso. Por outro lado, os princípios gerais, expressos no artigo 289º, sobre os efeitos da nulidade, são, em certa medida, afastados pelo artigo 894º do CC –  Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. II, 3ª ed., pp. 191-192.