Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
931/11.2TAMGR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: PROCESSO PENAL TRIBUTÁRIO
SUSPENSÃO
Data do Acordão: 06/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA MARINHA GRANDE – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 47.º, N.º 1, DO RGIT
Sumário: Uma acção administrativa especial interposta por sociedade com o estatuto de arguida no âmbito de processo de natureza criminal, nos termos dos artigos 37.º, n.º 1, al. b) e 66.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, visando a condenação da Autoridade Administrativa à prática de acto devido – notificação à primeira das liquidações adicionais de IVA e de IRC -, não determina a suspensão do processo penal tributário prevista no artigo 47.º, n.º 1, do RGIT (redacção da Lei n.º 53-A/2006, de 29-12), porquanto, em causa não está processo de impugnação judicial ou de oposição a execução e a acção intentada não visa discutir situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

Os arguidos A. e B. vieram interpor recurso do despacho, proferido em 2-10-2019, que indeferiu a suspensão dos presentes autos, requerida ao abrigo do disposto no artigo 47º, n.º 1, do RGIT.


*

E, da motivação extraíram as seguintes conclusões:

1. A decisão recorrida que “indefere a requerida suspensão dos presentes autos.”, há de ser revogada, admitindo-se o presente recurso e, deste modo, julgado procedente, suspensos os autos.

a. Antes de mais, dizer que, ao recurso, agora interposto há de ser atribuída subida imediata, porquanto a sua retenção o tornaria absolutamente inútil. Pois que, o efeito não mais poderá ser obtido, ainda que revogada a decisão sob recurso. E, efeito suspensivo, porquanto, além do mais, deste recurso depende a validade ou a eficácia dos actos subsequentes, suspendendo a decisão recorrida nos restantes casos.

Posto isto,

2. Pela Sociedade de ROC’s foi apresentada queixa-crime, participando o que seriam “factos indiciadores de cometimento de Crime Público relativo à existência de dívidas ao Estado e Segurança Social em mora referente aos anos de 2010 e 2011”.

3. De acordo com a mesma queixa-crime, apresentada a 3 de Novembro de 2011, as contas de 2010 não estavam encerradas, sendo que estariam em mora IVA no valor aproximado de 274.000 €, referente aos meses de Novembro de 2010 a Julho de 2011, tratando-se de valores “colhidos por métodos indirectos”

4. Por isso, foi solicitada informação acerca da existência de inquéritos pela eventual prática do crime de abuso de confiança fiscal contra a empresa (…), tendo, por decisão de 5 de Janeiro de 2012, sido delegada “competência no NIC – DF de leiria para que proceda à realização das pertinentes diligências de investigação, em 90 dias”.

5. Por despacho de 9 de Julho de 2019 (?), porquanto, alegadamente, os factos participados seriam susceptíveis de consubstanciar a prática de crime de fraude fiscal qualificado, delegou-se na PJ, DIC de Leiria a investigação, para realizar num prazo de 90 dias.

6. A 20 de Novembro de 2014, foi determinado, nestes autos, que o acto administrativo de liquidação seja realizado nestes autos, sendo que, de acordo com aquela decisão os autos estariam a chegar à fase de apuramento dos valores dos impostos em falta.

7. Até hoje, os arguidos, não foram notificados de qualquer liquidação realizada nestes autos.

8. Foi, nos presentes autos, deduzida acusação contra os arguidos, imputando-lhes a prática de um crime de fraude fiscal, sob a forma consumada e co-autoria, previsto e punido pelo artigo 104.º, n.º 2, als. a) e b) ex vi artigo 103.º, todos do RGIT.

9. Conforme documento junto e cujo teor se dá por reproduzido, a sociedade arguida recebeu, por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira, a missiva que dava conta da Acção Inspectiva.

10. De acordo com a mesma missiva, a Acção Inspectiva, tinha por objecto, enquanto acção inspectiva parcial, o Iva e dizia respeito aos anos de 2010 e 2011.

11. A arguida nunca foi notificada quanto à alteração do âmbito ou extensão da acção inspectiva, como, a ter acontecido, se impunha.

12. Assim, tal fere de nulidade a acção inspectiva, e, logo, nula a acusação recebida.

13. Nulidade que sempre se impunha, atento o lapso de tempo decorrido, sem a prolação de qualquer decisão definitiva.

14. Sendo que, conforme o anexo, que acompanha a referida diligência, “O sujeito passivo poderá, até ao termo do procedimento da inspecção proceder à regularização da sua situação tributária”,

15. Sublinhe-se que ainda não se verificou o termo do procedimento da inspecção.

16. Logo, a verificar-se qualquer irregularidade, a mesma poderia ainda ser corrigida.

17. Não se verificando, por isso, a prática de qualquer crime.

18. E, sempre a sociedade arguida, concluída a inspecção e havendo lugar a correcções de que resultem alterações à matéria tributável ou imposto a pagar, tem ainda o direito, que ainda não lhe foi concedido, de se pronunciar previamente.

19. A verdade é que nada até hoje se verificou, senão o anunciar da inspecção e a realização da mesma, sem mais nada e, nomeadamente, sem a notificação do relatório final da inspecção.

20. Não existindo, designadamente, qualquer liquidação adicional que, agora, atento o lapso de tempo decorrido, também já não pode existir.

21. Sendo que, só depois disso, da acção inspectiva, poderá resultar procedimento criminal, como fosse o presente e, sempre, dentro do âmbito da inspecção.

22. E, apresentados os meios de defesa ao dispor do cidadão/arguidos, sempre os presentes autos teriam de suspender-se.

23. Assim, é a acusação e o procedimento criminal legalmente inadmissível, impondo-se o seu imediato arquivamento.

Sem prescindir,

24. Os factos e direito, objecto dos presentes autos, encontra-se a ser discutidos,

• No âmbito do processo-crime, posteriormente instaurado – conforme documento já junto;

• No âmbito da acção administrativa especial que corre termos no TAF de Leiria, com o número 871/18.4BELRA. Acção de Condenação para a prática de um acto devido (emissão das liquidações adicionais respeitantes ao processo crime) – documento junto.

25. Desta forma, e nos termos do disposto no artigo 47º do RGIT, “se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.”

26. Em suma, e por via da aplicação do artigo 47º do RGIT, conjugado com os artigos 2º, 13º, 32º nº 1 e 212º nº 3 da Constituição da República Portuguesa, o processo penal deverá ser suspenso até que a discussão da situação jurídica tributária esteja concluída e esta fique definitivamente definida.

27. Ora, o artigo 47º nº 1 do RGIT, visa delimitar claramente o âmbito material da jurisdição penal e o âmbito material da jurisdição fiscal, privilegiando, na esteira da lei fundamental, os tribunais tributários na discussão de factos jurídicos tributários.

28. Logo, a única interpretação razoável e capaz de salvaguardar a conformidade do artigo 47º nº 1 do RGIT com o artigo 212º nº 3 da Constituição, será a de, por um lado, antes do prosseguimento de qualquer processo penal, a situação jurídica tributária deverá estar definitivamente decidida e, por outro lado, qualquer meio processual a que se recorra no âmbito do processo tributário onde se discuta a situação jurídica tributária implica a suspensão do procedimento penal, devendo ambas as situações privilegiar-se a competência as instâncias especializadas, neste caso, as tributárias.

29. Neste sentido, Supremo Tribunal de Justiça, acórdão nº 3/2007, de Uniformização de Jurisprudência, “É manifesto que o direito fiscal constitui um ramo de direito público, imbuído de princípios e normas próprios, do ponto de vista quer substantivo quer adjetivo. Uma tal peculiaridade do direito fiscal, justificou a criação de uma ordem jurisdicional própria – os tribunais administrativos e fiscais. Dadas as apontadas especialidades do direito fiscal, a impugnação judicial tributária constitui objeto próprio de apreciação e decisão na competência da jurisdição administrativa e fiscal.”

30. Estabelecendo uniformização da seguinte forma “(…) a impugnação judicial tributária determinava, independentemente de despacho, a suspensão do processo penal fiscal e, enquanto esta suspensão se mantivesse, a suspensão da prescrição do procedimento penal por crime fiscal.”

31. Nestes termos e por tudo supra explanado, deve ser determinada a suspensão dos presentes autos, nos termos do disposto no artigo 47º nº 1 do RGIT.

32. Isso mesmo, foi requerido, por requerimento de fls. 1335 e ss., datado de 10/09/2018:

• O arguido A., veio requerer a suspensão do processo penal tributário, ao abrigo do disposto no artigo 47.º, n.º 1, do RGIT, alegando que no âmbito do processo n.º (…), que corre termos no TAF de Leiria, de condenação para a prática de acto, em que peticiona a condenação da Ré Direcção de Finanças de Leiria – Serviços de Inspecção Tributária a emitir e notificar a sociedade aqui arguida das liquidações adicionais de IVA.

33. Consta dos autos certidão dos articulados apresentados no processo acima referido, comprovando o aventado pelo arguido.

34. Assim, a decisão recorrida viola, nomeadamente, o disposto no artigo 47.º, n.º 1, do RGIT

35. Porquanto, como documentado, está a correr processo, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discute situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.

36. A verdade é que se aguarda o resultado da discussão, no âmbito do TAF da situação de cuja definição depende a qualificação criminal dos factos imputados.

37. Resulta, pois, a existência de uma relação directa entre o que aí se discute e as questões a ponderar para o preenchimento do tipo penal em causa.

38. A suspensão do processo penal tributário é pois, obrigatória, porquanto a questão em discussão no TAF encontra-se como uma verdadeira questão prejudicial no processo penal em curso, nos termos do preceituado pelo n.º 2, do artigo 7.º, do Código de Processo Penal , ou seja, a decisão dessa questão (prejudicial) é absolutamente indispensável para a decisão do crime fiscal ou tributário (questão prejudicada), relativamente à qual se assume como um verdadeiro “antecedente jurídico-concreto”, de carácter autónomo .

39. A suspensão do presente processo penal tributário justifica-se, porquanto a existência da infracção criminal depende da resolução de uma questão de natureza fiscal.

40. Uma vez verificados os pressupostos do artigo 47.º, n.º 1 do RGIT, a suspensão do processo penal é decretada ope legis e até ao trânsito em julgado da decisão da questão prejudicial pela jurisdição tributária.

41. No caso em apreço, está alegada e documentada a existência de processo, respeitando a acção que fundamenta o pedido de suspensão a acção para a prática de acto devido, mormente de liquidação adicional de imposto, pelo que a pretensão do arguido terá de proceder.

42. Do compulso da petição inicial apresentada no processo fiscal resulta a discussão das liquidações dos impostos em causa nos presentes autos, enquanto dívida da sociedade arguida, pelo que igualmente se impõe concluir que em causa está matéria em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos que lhe são imputados no presente processo penal tributário.

43. Naquela acção administrativa especial para a condenação à prática de acto devido, é peticionada a condenação da Direcção de Finanças de Leiria a emitir e notificar à ali Autora, aqui Arguida, as Liquidações Adicionais de IVA e IRC do ano de 2010 e 2011,

44. Precisamente para, posteriormente, serem alvo da competente impugnação.

45. De outro modo, a entender-se conforme decisão recorrida, bastava que a Direcção de Finanças não emitisse, como não emitiu, no caso, as liquidações Adicionais para que os Arguidos se vissem impedidos de, em sede de Tribunal Administrativo e Fiscal, discutir as mesmas Liquidações e, logo, a existência dos impostos que estão na origem do processo crime.

46. Impõe-se, pois, primeiramente, apurar da situação tributária e, só depois, prosseguir com o processo crime que, até lá, há de ser suspenso no imediato, como, justificada e fundadamente requerido.

47. Face ao exposto, há de determinar-se a requerida suspensão dos presentes autos.

Termos em que importa proceder à procedência do recurso, por violação, nomeadamente, do disposto nos artigos supra, e, assim, revogada a decisão recorrida e, logo, declarar-se a suspensão dos autos, nos termos requeridos.


*
Ao recurso dos arguidos respondeu a Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e, confirmada, na íntegra, a decisão proferida.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido, tendo sublinhado:   
Ora, analisadas as questões levantadas de natureza fiscal, temos de concluir que da sua decisão não depende a qualificação dos factos como crime.
Na verdade, será que tem natureza fiscal, a resolver na respectiva jurisdição, a questão da alegada falta de notificação das liquidações? Diga-se desde, já que não.
Trata-se, a meu ver, de questões formais, que poderão ter relevância do ponto de vista estritamente tributário, mas sem projecção penal. Sendo manifesto que, mesmo que em sede da Acção intentada se venha a decidir a favor do autor - isto é que não foi devidamente notificado de toda a dívida - tal em nada afasta a verificação do crime objecto destes autos.
E que é, recorde-se, na vertente fiscal, o crime de fraude fiscal, imputável à sociedade (…) e aos arguidos, consubstanciado, para além do mais, numa prática reiterada no tempo, tal como decorre da acusação, para fazer diminuir a matéria tributável e o valor dos impostos a entregar ao Estado.
A responsabilidade tributária é independente da responsabilidade penal e uma não se confunde, nem afasta, a outra, tendo naturezas diversas.
Basta atentar em que:
No processo penal, as dúvidas sobre a matéria de facto são valoradas a favor do arguido cabendo ao MP/Tribunal fazer a prova da culpa concreta do agente, enquanto que, no processo tributário, de impugnação, existindo indícios de irregularidades, o ónus da prova de que tais irregularidades não se verificaram cabe ao contribuinte;
No processo penal estão em causa condutas lesivas que a lei tipifica como crime por atingirem bens jurídicos essenciais para a vida em sociedade.
No processo tributário trata-se de obter do devedor o pagamento de dívidas fiscais ao Estado, decorrentes do incumprimento de obrigações tributárias.
Não se vê, pois, qualquer óbice a que o processo penal prossiga, por não se encontrarem reunidos os pressupostos para fazer operar a suspensão do mesmo nos termos do art. 47º do RGIT, pois do que se discute na Acção não depende a qualificação dos factos como crime.
A concluir dir-se-á que os impostos em dívida, apurados nos autos, foram liquidados com a acusação, tendo aí os arguidos tido conhecimento dos factos e valores em dívida.
Aí se fará prova, ou não, de que praticaram os factos que lhes são imputados e dos valores em questão, aliás, com mais vantagens para os arguidos, pois que, todas as dúvidas sobre matéria de facto, serão valoradas a seu favor, face à maior exigência probatória do processo penal. Logo inexiste também a pretensa nulidade decorrente da falta de notificação.
Acresce que, a circunstância de só com acusação terem conhecimento do valor em questão, não os impede de pagar a dívida se quiserem, assim, pôr termo à responsabilidade tributária. Sendo que, mesmo que o fizessem até antes da acusação, tal não afastaria a responsabilidade penal pela prática de crime.
De facto, o pagamento apenas poderia ser valorado em sede medida da pena a aplicar, pelo que nenhum prejuízo lhes advém dessa alegada falta de conhecimento prévio.”.
Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, os arguidos responderam reiterando o que afirmaram na motivação do recurso.
Os autos tiveram os vistos legais.
***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta do despacho recorrido (por transcrição):

Em 09/03/2017, foi, nos presentes autos, deduzida acusação contra os arguidos, imputando-lhes a prática de um crime de fraude fiscal, sob a forma consumada e co-autoria, previsto e punido pelo artigo 104.º, n.º 2, als. a) e b) ex vi artigo 103.º, todos do RGIT.

Por requerimento de fls. 1335 e ss., datado de 10/09/2018, o arguido A. veio requerer a suspensão do processo penal tributário, ao abrigo do disposto no artigo 47.º, n.º 1, do RGIT, alegando que no âmbito do processo n.º 871/18.4BELRA, que corre termos no TAF de Leiria, de condenação para a prática de acto, em que peticiona a condenação da Ré Direcção de Finanças de Leiria – Serviços de Inspecção Tributária a emitir e notificar a sociedade aqui arguida das liquidações adicionais de IVA.

Consta dos autos certidão dos articulados apresentados no processo acima referido, comprovando o aventado pelo arguido.

Cumpre apreciar e decidir.

O artigo 7.º, do Código de Processo Penal, consagra o princípio da suficiência do processo penal, segundo o qual nele devem ser resolvidas todas as questões relevantes para o conhecimento do seu objecto.

Em manifesto desvio a tal princípio, estabelece o artigo 47.º, n.º 1, do RGIT se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.

A actual redacção do art. 47.º, n.º 1 do RGIT resultou da alteração introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que passou a fazer depender a suspensão do processo penal tributário, da circunstância de se discutir na impugnação judicial situação de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados.

Resulta, pois, do exposto, que actualmente a suspensão não opera automaticamente com a mera pendência de oposição à execução relativamente aos mesmos factos, antes estando dependente da existência de uma relação directa entre o que aí se discute e as questões a ponderar para o preenchimento do tipo penal em causa.

Tal como veiculado pelo acórdão da Relação de Lisboa, de 10-04-2014, Proc. 438/12.0IDLSB-B.L1-9, rel. Ana Filipa Lourenço, disponível em www.dgsi.pt, “I– A possibilidade de suspensão do processo penal fiscal nos termos do artº 47º nº 1 do RGIT está delimitado por requisitos taxativos e cumulativos. Para que tal suspensão ocorra, é necessário que esteja pendente processo de impugnação judicial ou oposição à execução e que para além disso, nestes se debata uma verdadeira questão prejudicial, ou seja tem que ser ali discutida a situação tributária do arguido, de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos concretos que lhe são imputados no processo-crime;”.

A suspensão do processo penal tributário só será, pois, obrigatória quando a questão em discussão na impugnação judicial/oposição à execução se apresente como uma verdadeira questão prejudicial no processo penal em curso, nos termos do preceituado pelo n.º 2, do artigo 7.º, do Código de Processo Penal, ou seja, quando a decisão dessa questão (prejudicial) seja absolutamente indispensável para a decisão do crime fiscal ou tributário (questão prejudicada), relativamente à qual se assume como um verdadeiro “antecedente jurídico-concreto”, de carácter autónomo.

Naturalmente, a suspensão do processo penal tributário apenas se justifica nos casos em que a existência da infracção criminal depende da resolução de uma questão de natureza fiscal.

Uma vez verificados os pressupostos do artigo 47.º, n.º 1 do RGIT, a suspensão do processo penal é decretada ope legis e até ao trânsito em julgado da decisão da questão prejudicial pela jurisdição tributária.

No caso em apreço, desde logo se impõe concluir que não se verifica o primeiro pressuposto para a requerida suspensão, porquanto não está pendente qualquer processo de impugnação judicial ou oposição à execução, respeitando a acção que fundamenta o pedido de suspensão a acção para a prática de acto devido, mormente de liquidação adicional de imposto, pelo que a pretensão do arguido terá de soçobrar.

Além disso, do compulso da petição inicial apresentada no processo fiscal não resulta sequer que tenham sido impugnadas as liquidações dos impostos em causa nos presentes autos, enquanto dívida da sociedade arguida, pelo que igualmente se impunha concluir que em causa não está matéria em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos que lhe são imputados no presente processo penal tributário.

Face ao exposto, indefere-se a requerida suspensão dos presentes autos.

Notifique.


***

APRECIANDO

O âmbito dos recursos é limitado em função das conclusões extraídas da respectiva motivação, pelos recorrentes, sem prejuízo, no entanto, das questões de conhecimento oficioso, conforme o disposto nos artigos 412º, n.º 1 e 410º, n.ºs 2 e 3 do CPP.

No presente recurso, a questão colocada à apreciação deste tribunal consiste em saber se se verificam os pressupostos para a suspensão dos presentes autos, nos termos do disposto no artigo 47º, n.º 1, do RGIT.

Com interesse para a decisão, de acordo com os elementos disponíveis no presente recurso que subiu em separado, vejamos o seguinte desenvolvimento processual:

- em 3-11-2011, a Sociedade de ROC´s participou o que “seriam factos indiciadores de cometimento de Crime Público relativo à existência de dívidas ao Estado e Segurança Social em mora referentes aos anos de 2010 e 2011”,

- porquanto os factos participados seriam susceptíveis de consubstanciar a prática de crime de fraude fiscal qualificada, a investigação foi delegada na PJ – DIC de Leiria;

- a 20-11-2014, foi determinado, nestes autos, que o acto administrativo de liquidação fosse realizado nos mesmos;

- em 9-3-2017, foi deduzida acusação contra os arguidos [os ora recorrentes e a sociedade (…)] imputando-lhes, sob a forma consumada e em co-autoria, um crime de fraude fiscal p. e p. pelos artigos 103º e 104º, n.º 2, als. a) e b), do RGIT;

- consta da acusação que “os arguidos, por si e em representação da sociedade arguida (…) delinearam um plano, com o objectivo de, enquanto lhes fosse possível, de forma regular e reiterada, obterem à custa do Estado Português vantagens patrimoniais que sabiam não lhes serem devidas, para si e para as sociedades comerciais que representam, através de simulação de fluxos recorrendo a transacções fictícias no âmbito de emissão de facturas sem que exista na realidade o bem ou o serviço transaccionado declarado através de facturação.

Sempre com o fim último de obter devoluções de IVA e/ou bem como empolando custos e diminuindo artificialmente os lucros com efeitos no IRC”;

A acusação identifica as transacções fictícias e o montante da vantagem patrimonial fiscal ilegítima obtida pelos arguidos;

- em 3-8-2018, a (…) intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, contra a Direcção de Finanças de Leiria – Serviços de Inspecção Tributária, acção administrativa especial para a condenação à prática de acto devido (Proc. 871/18.4BELRA), solicitando a Autora que a Ré seja condenada a emitir e notificar a Autora das liquidações adicionais de IVA e IRC dos anos de 2010 e 2011;

- na contestação que apresentou, por impugnação, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) vem dizer que “não recai qualquer dever da Administração liquidar impostos in casu. Isto porque, o dever de liquidar eventuais impostos na esfera da Autora poderá ou não emergir, quando o processo-crime (proc. 931/11.2TAMGR) transitar em julgado conforme determina o artigo 45º, n.º 5, da LGT. Ou seja, eventuais impostos que sejam devidos, só poderão ser liquidados quando findar o processo crime;

- em 10-9-2018, nos presentes autos, o arguido A. veio requerer a suspensão do processo penal tributário, ao abrigo do disposto no artigo 47º, n.º 1, do RGIT, alegando que corre termos no TAF de Leiria, com o n.º 871/18.4BELRA, acção administrativa especial de condenação para a prática de um acto devido (emissão das liquidações adicionais respeitantes ao processo crime), pelo que o processo penal deverá ser suspenso até que a discussão da situação jurídica tributária esteja concluída e esta fique definitivamente definida;

- foi então proferido o despacho recorrido que indeferiu a requerida suspensão dos presentes autos.

 

Dispõe o n.º 1 do artigo 47º do RGIT que «Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.».

O que colocámos em itálico resulta da redacção da Lei n.º 53-A/2006, de 29-12.

Como referem Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos ([1]), em anotação ao artigo 47º do RGIT, “Neste art. 47.º do RGIT tem-se por assente que as questões que são objecto de apreciação no processo de impugnação judicial ou de oposição à execução, nos termos do CPPT constituem questões não penais que não podem ser convenientemente resolvidas no processo penal.

Naturalmente, a suspensão só se justifica nos casos em que a existência de infracção criminal depende da resolução de uma questão de natureza fiscal…

Reconhece-se, nestes casos de estar pendente processo de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal, a competência exclusiva da jurisdição fiscal para decidir essa matéria, o que tem justificação no carácter altamente especializado das questões desta natureza, que está subjacente à atribuição constitucional de competência para o seu conhecimento a essa jurisdição especializada (art. 212.º, n.º 3, da CRP). Por isso, nestes casos em que está já pendente um processo em que vai ser apreciada a questão prejudicial justifica-se plenamente que se aproveite essa situação, atribuindo-se aos tribunais fiscais competência exclusiva para decidir a questão.

Em face desta atribuição de competência exclusiva, nestes casos de pendência de processo de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal, não há fixação de prazo de suspensão, no processo penal tributário, pois ela durará até que transite em julgado a sentença a proferir no processo de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal.

Também Alfredo José de Sousa, in Infracções Fiscais, em anotação ao artigo 50º do RJIFNA, com redacção similar ao artigo 47º do RGIT, considera que “A suspensão de processo penal fiscal em virtude da pendência de processo de impugnação judicial ou oposição à execução afigura-se obrigatória e não apenas facultativa como no processo penal comum. A obrigatoriedade da suspensão do processo penal fiscal é fundamental pois que o montante do imposto discutido na impugnação judicial ou a oposição à execução fiscal é decisivo quer para a definição da existência de fraude fiscal, (alínea a) do n.º 3 do art. 23.º) quer para a determinação da multa aplicável em alternativa à prisão (n.ºs 4 e 5 do art. 23.° e n.ºs 1, 4 e 5 do art. 24.º).

A suspensão do processo penal fiscal nos termos deste normativo prolonga-se até ao trânsito em julgado das decisões da impugnação judicial ou oposição à execução.”

Ora sobre esta questão, em idêntico preceito do RJIFNA, o STJ no acórdão n.º 3/2007, proferido em 12-10-2006 (e publicado no DR, I Série, 37, de 21-2-2007, pág. 1294), fixou jurisprudência no sentido de que «Na vigência do artigo 50º, nº1, do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, a impugnação judicial tributária determinava, independentemente de despacho, a suspensão do processo penal fiscal e, enquanto esta suspensão se mantivesse, a suspensão da prescrição do procedimento penal por crime fiscal.»

Como pode ler-se neste Acórdão “as peculiaridades do direito fiscal, enquanto ramo de direito, justificam o afastamento do chamado princípio da suficiência do processo penal no domínio do direito penal fiscal em termos tais que a impugnação judicial tributária deve ser necessária e exclusivamente apreciada na esfera jurisdicional administrativa-fiscal, motivo pelo qual a pendência aí de tal impugnação constitui causa ope legis de suspensão do procedimento penal fiscal e, em consequência, de suspensão do respectivo prazo prescricional, sem necessidade, pois, de despacho judicial que o declare.

Explicitando.

É manifesto que o direito fiscal constitui um ramo de direito público, imbuído de princípios e normas próprios, do ponto de vista quer substantivo, quer adjectivo. Uma tal peculiaridade do direito fiscal justificou a criação de uma ordem jurisdicional própria - os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Dadas as apontadas especialidades do direito fiscal, a impugnação judicial tributária constitui objecto próprio de apreciação e decisão em sede da jurisdição administrativa-fiscal.

Mais, constitui objecto exclusivo de tal jurisdição, assim se postergando o princípio da suficiência do processo penal.

Nestes termos, se o conhecimento de matéria penal fiscal depender da prévia apreciação de impugnação judicial tributária, esta constitui uma questão incidental op legis ao conhecimento penal e, por isso, suspende o procedimento penal fiscal até que transite em julgado a decisão proferida em sede fiscal quanto à respectiva impugnação, sem necessidade, pois, de despacho judicial nesse sentido.”

Ora, no caso vertente, não se verificam os pressupostos para a suspensão do processo penal tributário previsto no n.º 1 do artigo 47º do RGIT.

Com efeito, a acção administrativa, com o n.º 871/18.4BELRA, que corre termos no TAF de Leiria, não se trata de impugnação judicial ou oposição à execução, mas sim, de uma acção administrativa especial para a condenação à prática de acto devido, nos termos dos artigos 37º, n.º 1, al. b) e 66º, n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

Já a impugnação judicial tributária e a oposição à execução são dois meios judiciais de defesa dos sujeitos passivos contra a AT.

Os fundamentos da impugnação estão enumerados no artigo 99º e, os fundamentos da oposição à execução constam do artigo 204º, ambos do Código de Procedimento e do Processo Tributário (CPPT).

Acresce que, com a acção administrativa especial que intentou a Autora (a sociedade arguida no processo crime) visava que a AT fosse condenada a notificá-la das liquidações adicionais de IVA e IRC do ano de 2010 e 2011, ou seja, nesta acção não se discute a situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados.

Como sublinhou o Exmº PGA no seu Parecer “será que tem natureza fiscal, a resolver na respectiva jurisdição, a questão da alegada falta de notificação das liquidações? Diga-se desde já que não.

Trata-se, a meu ver, de questões formais, que poderão ter relevância do ponto de vista estritamente tributário, mas sem projecção penal. Sendo manifesto que, mesmo que em sede da Acção intentada se venha a decidir a favor do autor - isto é que não foi devidamente notificado de toda a dívida - tal em nada afasta a verificação do crime objecto destes autos.

E que é, recorde-se, na vertente fiscal, o crime de fraude fiscal, imputável à sociedade (…) e aos arguidos, consubstanciado, para além do mais, numa prática reiterada no tempo, tal como decorre da acusação, para fazer diminuir a matéria tributável e o valor dos impostos a entregar ao Estado.

A responsabilidade tributária é independente da responsabilidade penal e uma não se confunde, nem afasta, a outra, tendo naturezas diversas.”.

Por outro lado, tal como a AT deixou assinalado na contestação à acção administrativa, com o n.º 871/18.4BELRA:

“relembre-se que foi o MP da Comarca de Leiria – DIAP que notificou a DF de Leiria do seguinte: Fica V. Exª notificado, na qualidade de Participante, de que atento o valor em causa e a sua complexidade, por força do artigo 7º, n.º 1 do Código de Processo Penal e arts. 6º, 42º, 45º e 47º do RGIT, bem como art. 85º LGT, determina-se que o ato administrativo de liquidação seja realizado nestes autos.

Deste modo, só com o desfecho do processo crime poderá a Administração Tributária notificar a Autora de eventuais impostos que sejam devidos.”

Por conseguinte, não se verificando os pressupostos do artigo 47º, n.º 1, do RGIT, nenhum reparo merece o despacho recorrido que indeferiu a requerida suspensão do processo.


*****

III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso.

Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça.

Coimbra, 24-6-2020

Texto processado em computador e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente - artigo 94º, n.º 2 do CPP

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)


[1] - Regime Geral das Infracções Tributárias, Anotado, 3ª edição, 2008, págs. 399 a 407.