Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4260/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. GARCIA CALEJO
Descritores: INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 02/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ART.º 287º AL. E) DO C. P. CIVIL
Sumário:

A instância extingue-se por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.º 287º al. e) do C. P. Civil, quando uma ocorrência processual torna a instância desnecessária.
Tendo sido deferido, no âmbito de um processo de procedimento cautelar, o arrolamento dos bens do casal, o recurso interposto da decisão, não se tornou inútil, em virtude de os cônjuges converterem o processo de divórcio litigioso em mútuo consentimento. É que, tendo as partes relacionado o bem em causa como litigioso, não quiseram dar como assente que ele era bem comum, sem qualquer discussão. Tiveram antes de deixar a este Tribunal superior a decisão sobre a questão, visto que a respectiva resolução já havia sido suscitada em sede de recurso. Daí que não se possa dizer que a instância de recurso se tenha tornado desnecessária ou inútil. Antes pelo contrário, a decisão sobre a questão continua necessária e conveniente.
A indemnização devida por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges, não por efeito a aplicação analógica do disposto na al. d) do art.º 1733º n.º 1, mas sim de acordo com o disposto no art.º 1722º n.º 1 al. c). É que existindo uma violação de um direito pessoal, evidentemente que a indemnização correspondente, é resultante de direito próprio anterior (v.g. o direito à integridade física). De resto, os correspondentes bens (resultantes de indemnizações por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges) são até incomunicáveis, de acordo com o disposto nos art.º 1699º n.º 1 al. d) e 1733º n.º 1 al. d). Ou seja, tais bens são incomunicável por força da lei.
Decisão Texto Integral: ag-4260/03



Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- No Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz, A, por apenso ao processo de divórcio n.º 472/02 do 2º Juízo e nos termos do art. 427º do C.P.Civil, veio propor a providência cautelar de arrolamento contra B, pedindo que se proceda ao arrolamento de quaisquer contas bancárias até ao montante de 25.000 Euros, importância que integra o património comum do casal.
1-2- Por decisão de 25-11-02, o M.º Juiz deferiu a providência, ordenando o arrolamento de qualquer conta bancária de que seja titular a requerida B, até ao montante de 25.000 Euros.
1-3- Não se conformando com esta decisão, dela veio recorrer a requerida, recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
1-4- A recorrente alegou, tendo concluído da seguinte forma:
1ª- A indemnização auferida pelo cônjuge, por acidente de viação, que sofreu, é bem incomunicável, nos termos do art. 1733º n.º 1 al. d) do C.Civil, que embora vigorando para o regime de comunhão geral, deve aplicar-se ao regime de comunhão de adquiridos, por analogia
2ª- Assim, tal bem é próprio desse cônjuge.
3ª- Como tal, não é passível de arrolamento pelo outro cônjuge.
4ª- A decisão proferida, violou o disposto no art. 1733º n.º 1 al. d) do C.Civil e o n.º 1 do art. 427º do C.P.Civil.
1-5- O recorrido respondeu às alegações, sustentando o não provimento do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
1-6- Entretanto, por despacho judicial de 26-3-03, foi julgada extinta por inutilidade superveniente da lide, a instância de recurso, já que as partes transformaram a acção de divórcio litigioso, em divórcio por mútuo consentimento, tendo relacionado, como integrando o património comum, o direito de indemnização correspondente à quantia de 25.000 Euros recebida pela requerida/mulher.
1-7- Não se conformando com esta decisão, dela veio recorrer a requerida, recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
1-8- A recorrente alegou, tendo concluído da seguinte forma;
1ª- As partes ao denominarem de bem litigioso um bem que relacionaram, para efeitos de divórcio por mútuo consentimento, após a interposição de recurso onde a natureza desse bem deve ser apreciada, não quiseram dar-lhe a qualificação de bem comum do casal.
2ª- A interpretação contrária e que levou ao decretamento da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, viola o disposto nos arts. 264º e 287º do C.P.Civil.
1-9- O recorrido respondeu às alegações, sustentando o não provimento do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, há que apreciar e decidir.
II- Fundamentação:
2-1- Estão em apreciação os dois agravos já acima referenciados. Pela lógica das coisas, caberá conhecer em primeiro lugar o agravo do despacho que declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide e só depois, se essa decisão não for confirmada, se deverá conhecer do agravo da decisão que decretou o arrolamento dos bens do casal.
Posto isto, vejamos:
O presente procedimento cautelar de arrolamento foi interposto pelo requerente/marido com o fundamento de que, em processo de divórcio ( e em reconvenção ) havia pedido a dissolução do casamento que havia celebrado com a requerida/mulher ( em 28-11-70 ), com a declaração desta como única e exclusiva culpada do divórcio, sendo certo que, dias antes de 10-8-00, a requerida havia recebido uma indemnização de 25.000 Euros de uma Companhia de Seguros para ressarcimento de danos emergentes de um acidente de viação, quando circulava numa viatura pertencente ao casal, quantia que, por fazer parte do acervo dos bens comuns do casal (atendendo ao regime de bens do casamento, comunhão de adquiridos ), deve ser arrolada, o que termina por pedir.
Como já se disse acima, o M.º Juiz deferiu o procedimento cautelar.
Posteriormente a este deferimento e à interposição de recurso da decisão por banda da requerida, requerente e requerida, converteram o processo de divórcio litigioso em mútuo consentimento, tendo relacionado como bens comuns ( litigiosos ), entre outros, o direito a indemnização correspondente a 25.000 Euros recebido pela A. da Companhia de Seguros ....
Em face do facto de as partes terem relacionado este bem ( que recorde-se, integrou o fundamento e pedido de arrolamento ), o M.º Juiz considerou a instância de recurso extinta por inutilidade da lide.
Terá sido esta decisão correcta ?
É esta a questão que nos é submetida para apreciação e decisão.
Como se sabe, a instância extingue-se por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 287º al. e) do C.P.Civil, quando uma ocorrência processual torna a instância desnecessária.
Portanto a pergunta que haverá a fazer é a de saber se o relacionamento daquele bem tornou o recurso desnecessário.
E a, nosso ver, a resposta não poderá deixar de ser negativa. É que tendo as partes relacionado o bem como litigioso, não quiseram dar como assente que o mesmo era bem comum, sem qualquer discussão. Tiveram antes a intenção de deixar a este tribunal superior a decisão sobre a questão, visto que a respectiva resolução já havia sido suscitada em sede de recurso. Ou por outras palavras, ao relacionarem o bem como litigioso, as partes demonstraram que não é pacífico, entre elas, a natureza do bem, em termos de ser comum ou não. Ao relacionarem o bem na forma como o fizeram, não alteraram, a nosso ver, a sua posição sobre a questão. Daí que não se possa dizer que a instância de recurso se tenha tornado desnecessária ou inútil. Antes pelo contrário, a decisão sobre a questão continua necessária e conveniente.
O agravo será procedente.
A procedência do agravo, com a pertinente revogação do despacho que julgou o recurso inútil, implica o conhecimento do recurso interposto pela requerida em relação ao deferimento do arrolamento do bem em causa ( a importância de 25.000 Euros recebido pela A. da Companhia de Seguros “O Trabalho” na sequência de um acidente de viação por ela sofrido ).
Os cônjuges casaram sob o regime de bens de comunhão de adquiridos (regime supletivo -vide doc. de fls. 4 do processo de divórcio apenso- ).
Segundo este regime só serão bens próprios os indicados nas alíneas a), b) e c) do art. 1723º do C.Civil.
Evidentemente que aqui não é possível englobar o bem em causa, razão por que a agravante defende que é seu bem próprio ( é, segundo refere, bem incomunicável ), de harmonia com o art. 1733º n.º 1 al. d) do C.Civil, aplicável ao regime de comunhão geral, mas que deve aplicar-se ao regime de comunhão de adquiridos, por analogia.
Como ponto prévio não podemos de deixar de salientar que a agravante não dá qualquer razão para a aplicação da disposição em causa ao regime de comunhão de adquiridos, por analogia. Isto é, a agravante não justifica, mesmo de forma sintética, o seu entendimento.
De qualquer forma vejamos:
Estabelece o art. 1733º n.º 1 al. d) do C.Civil, em relação ao regime de comunhão geral de bens:
São exceptuados da comunhão as indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges ou contra os seus bens próprios”.
No regime de comunhão geral de bens, como se sabe, o património comum do casal, é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei. Neste regime, os bens comuns constituem pois a regra, sendo os próprios a excepção. Como próprios, em divergência com a regra da comunicabilidade, entendeu o legislador considerar os bens de carácter estritamente pessoal, onde, patentemente, se inserem as indemnizações a que se refere a disposição salientada.
No regime de comunhão da adquiridos, já a regra não será a comunicabilidade dos bens, pois serão considerados bens próprios, os bens que cada um tiver à data da celebração do casamento, os bens que lhe advierem depois do casamento por sucessão ou doação e os bens adquiridos na constância do casamento, por virtude de direito próprio anterior ( art. 1722º n.º 1, als. a), b) e c) do C.Civil ). Serão, por sua vez, bens comuns, o produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos ( onerosamente ) na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei ( art. 1724º als. a) e b)).
As disposições deste regime são aplicáveis à comunhão geral de bens, com as necessárias adaptações, nos termos do art. 1734º.
Quer isto dizer que, por um lado, o regime de comunicabilidade de bens está claramente definido nas disposições invocadas e pelo outro que o regime de comunhão de adquiridos é aplicável ao regime de comunhão geral de bens e não o contrário.
Pese embora estas deduções, a nosso ver, a indemnização devida por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges, é bem próprio de cada cônjuge, não por efeito a aplicação analógica do disposto na al. d) do art. 1733º n.º 1, mas sim de acordo com o disposto no art. 1722º n.º 1 al. c). É que existindo uma violação de um direito pessoal, evidentemente que a indemnização correspondente é resultante de direito próprio anterior ( v.g., o direito à integridade física ). De resto, os correspondentes bens ( resultantes de indemnizações por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges ) são até incomunicáveis, de acordo com o disposto nos arts. 1699º n.º 1, al. d) e 1733º n.º 1 al. d). Ou seja, tais bens são incomunicável por força da lei ( neste sentido P.Coelho, Curso de Direito de Família, 1977, pág. 410 )
Podemos pois concluir que os bens em análise, no regime de comunhão de adquiridos e por força da lei, são bens próprios de cada cônjuge.
Entendemos porém que esta questão teórica não é terminante para alterar a decisão recorrida, visto que a ora agravante não alegou factos materiais concretos que pudessem levar à aplicação das disposições evidenciadas. Com efeito, a indemnização de que se trata, diz respeito a factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges. Ora a agravante ( e o agravado ) apenas alegam que a indemnização em causa derivou de um acidente de viação, acrescentando este que na altura a requerida circulava com um veículo do casal. Ou seja, não está alegado ( e muito menos provado ) que a indemnização emergiu de qualquer facto verificado contra a pessoa da requerida, pelo que não se pode concluir que a indemnização tendesse a ressarcir um bem de carácter estritamente pessoal da mesma.
Por isso não se poderá defender, por falta de elementos concretos, que a indemnização possa ser considerada um bem próprio da requerida.
O agravo improcederá.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, dá-se provimento àquele agravo. Nega-se porém provimento a este agravo, mantendo a decisão que decretou o arresto.
Custas naquele agravo, pelo agravado. Custas neste agravo pela agravante.