Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3984/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: SERRA LEITÃO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
NEXO DE CAUSALIDADE
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 02/10/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE VISEU - 1ª JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 389º DO C. CIV. .
Sumário: I – Embora o valor probatório da prova pericial seja da livre apreciação do tribunal, impõe-se que uma qualquer discordância com os resultados periciais seja devidamente fundamentada .
Decisão Texto Integral: Acordam os juizes da Secção Social do T. Relação de Coimbra
Frustrada a fase conciliatória A..., intentou acção especial emergente de acidente de trabalho, contra B... e C..., alegando em resumo:
- No dia 17/12/01 quando laborava por conta, sob as ordens e orientação da 2º Ré sofreu um acidente;
- Dele resultaram diversas sequelas, que lhe provocaram ITA até à data da alta, sendo que lhe foi atribuída uma IPP de 0% com o que não concorda
- A sua empregadora tinha a respectiva responsabilidade infortunística, transferida para a seguradora pelo competente contrato de seguro
Termina pedindo a condenação das RR no pagamento de :
a)- € 150 respeitantes a gastos com transportes e despesas medicamentosas;
b)- € 678, 80 como indemnização por ITA
c)- uma pensão anual e vitalícia que vier a ser fixada de acordo com a IPP de que é portador e se mostre devida, desde a data da alta( 18/2/02).
d)- juros moratórios legais
Citadas contestaram as RR invocando em síntese
A seguradora:
- Admitiu a existência do contrato de seguro;
- Afirmou desconhecer as circunstâncias em que o acidente ocorreu
- De qualquer forma dele não resultaram quaisquer sequelas para o A, inexistindo nexo de causalidade entre as que ele apresenta e o sinistro
Pediu a sua absolvição.
A empregadora-
- Aceitou o acidente como sendo de trabalho
- Contudo apenas se responsabiliza pelo proporcional relativo ao subsídio de alimentação, que não estava abrangido pelo contrato de seguro e apenas no que concerne à incapacidade temporária.
- Na verdade não aceita que o A tenha ficado com qualquer IP, nem tão pouco que as lesões de que ficou portador tenham algo a ver com o sinistro.
Concluiu afirmando que aceita responsabilidade que lhe venha a caber, em termos proporcionais e após a fixação das incapacidades.
Foi proferido despacho saneador e determinado o desdobramento do processo, para fixação da incapacidade do A, para o trabalho, nos termos dos artºs 118º, 131º nº 1 e) e 132º nº 1 do CPT.
Realizada a competente junta médica foi atribuída ao A uma IPP de 15%, o que foi confirmado por decisão judicial.
Prosseguindo o processo seus regulares termos veio a final a ser proferida decisão que
Na parcial procedência da acção condenou as RR a pagar ao A na proporção respectivamente de 87, 76% e 13, 24%
a)- o capital de € 12. 293, 59, referente à remição da pensão anual e vitalícia de € 722, 60, com início de vencimento em 7/2/02;
b)- a importância de € 707, 11 a título de indemnização por ITA;
c)- juros de mora às taxas de 7%-ano- até 1/5/03 e d e4% a partir de então, calculados desde as datas do vencimento das prestações em dívida até efectivo pagamento( excepto no tocante à importância dos subsídios de férias e de natal, no montante global de € 101, 02, computados a partir de 7/2/02 dia posterior ao da alta),
absolvendo-as dos restantes pedidos.
Discordando apelou a Ré seguradora, alegando e concluindo:
1- o sinistrado já sofria de dores no abdómen anteriores ao acidente dos autos;
2- A torção do cordão espermático que o A sofreu, não resultou de qualquer traumatismo violento, resultante do acidente dos autos;
3- De toda a documentação médica junta aos autos não resulta que, alguma vez o A fizesse hematoma, ou outro, na região do baixo ventre;
4- Do depoimento do Sr, médico indicado como 4ª testemunha e conforme documentação da douta decisão recorrida, este sempre referiu que o A ligava o seu estado clínico a esforço físico realizado na sua actividade profissional;
5- Este Sr. Médico esclareceu o Tribunal que não vê ou viu qualquer relação directa ou necessária entre aquele eventual esforço físico e a torção do cordão espermático;
6- Com base nesta prova testemunhal prestada por médico indicado pelo A e que o assistiu, nunca poderia ser dada a resposta que foi dada ao quesito 3º
7- Antes deveria ter sido dada resposta diametralmente oposta, ou seja que do acidente dos autos não resultou a lesão que o A apresentava;
8- Há assim total discrepância entre a prova produzida e a que consta da fundamentação de fls. 3 da douta decisão, com a resposta dada ao quesito 3º
9- Tendo sido, nos termos do artº 139º do CPT solicitada a realização do exame por médicos urologistas em Coimbra, só o resultado inequívoco deste exame quanto à existência de nexo causal, poderia presidir à procedência da acção;
10- Tal exame apenas referiu que o A sofria de IPP de 15%, não fazendo qualquer referência a que tal IPP era resultante do acidente dos autos
11- Não fazendo referência a tal nexo de causalidade, forçoso é concluir que a lesão do A, não resultou do acidente;
12- Se assim não fosse, os peritos médicos teriam respondido que havia relação entre a patologia apresentada pelo A e o acidente, o que não foi o caso;
13- No caso dos autos, a prova que imperava fazer ao A era de natureza objectiva e estritamente técnica, não logrando o A provar por esse inquestionável e único meio, o nexo causal entre o acidente a lesão;
14- A invocação de eventual inexistência de qualquer anomalia congénita do A e as demais considerações de ordem médica, no nosso modesto entender, extravasam em absoluto, os poderes de cognição do Mtº Juiz “ a quo”
15- Existe contradição notória relativamente à resposta ao quesito 3º e à fundamentação que a suporta;
16- O Mtº Juiz “ a quo” na nossa modesta opinião, não considerando como negativa a falta de nexo causal, deveria atender o pedido de esclarecimento ou, inclusive, promovê-lo oficiosamente;
17- O ónus da prova competia ao A, havendo elementos probatórios suficientes nos autos que afastam a prerrogativa que a lei atribui ao A em desfavor da Ré, não havendo no caso, lugar a qualquer inversão desse ónus;
18- Ao condenar-se a recorrente foram violados, entre outros as normas constantes dos artºs 659º, 587º do CPC, 342º nº 1 do CCv e 140º nº 2 do CPT.
Não houve contra alegações.
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, tendo o Ex. mo Sr. PGA emitido douto parecer, no sentido da respectiva improcedência, cumpre decidir cumpre decidir
Dos Factos
Foi a seguinte a factualidade dada como assente na 1º instância
a) – O A. prestava a sua actividade para “C...”, sob a autoridade, direcção e fiscalização desta, exercendo as funções inerentes à sua categoria profissional de “pedreiro”, mediante a retribuição mensal de € 426.47, acrescida de subsídios de férias e de Natal de igual montante cada, e € 82,85 x 11 de subsídio de alimentação. (A)
b) – A responsabilidade emergente de acidentes de trabalho encontrava-se transferida para a Ré Seguradora através de contrato titulado pela apólice n.º 21185731, assumindo a mesma Ré a transferência de responsabilidade pelo montante de € 426,47 x 14.
c) – O A. nasceu em 06.7.1973.
d) – Pelas 15 horas do dia 17.12.2001, em Benespera, concelho da Guarda, ocorreu um acidente em que foi vítima o autor, quando prestava a actividade aludida em a).
e) - O referido acidente consistiu em o A. ter sofrido torção do cordão espermático direito (três voltas completas), quando, assumindo determinada postura (corporal) e em esforço, pretendia colocar manualmente uma pedra no muro que então construía ao serviço da Ré; desse evento resultaram as lesões descritas nos autos, nomeadamente a fls. 98, 164, 165 e 172 (maxime, a consequente e posterior necrose testicular por falta de imediata intervenção cirúrgica).
f) – Que o tornaram portador de ITA desde o acidente até 06.02.2002 (data da alta).
g) – Em razão das lesões decorrentes do acidente o A. foi submetido a uma intervenção cirúrgica (orquidectomia direita, com orquidopexia do testículo contralateral), ficando portador de sequelas traduzíveis numa IPP de 15 %.
Do Direito
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações, que se delimita o âmbito da impugnação- artºs 684 n.º 3 e 690º nºs 1 e 3 ambos do CPC-.
Pelo que e no caso concreto, a única questão a dilucidar é a de se saber se entre o acidente sofrido pelo A e as patologia clínica que apresentou, existiu o necessário nexo de causalidade , para que se concluir pelo direito à reparação infortunística, peticionado.
Na sentença sob protesto conclui-se pela afirmativa conforme resulta das respostas dadas aos quesitos 3 e 4- cfr. pontos e) a g) f da fundamentação de facto -.
Ora bem.
No fundo o que a recorrente pretende é que se altere a facticidade dada como assente, relativamente ao ponto em causa.
Como se sabe –e uma vez que não foi feita a gravação da prova produzida- a possibilidade da pretendidas modificação, pelo tribunal de recurso, apenas é possível nos estreitos limites estabelecidos no artº 712º do CPC.
No caso concreto e pela natureza técnica da questão colocada, naturalmente que os únicos elementos probatórios a ter em conta, cingem-se a relatórios médicos, perícias, depoimentos de técnicos etc.
E perante todos aqueles que se encontram nos autos- e com o devido respeito por opinião diversa- não vislumbramos como se pode concluir do modo como sucedeu na 1ª instância.
Na verdade os relatórios e fichas clínicas juntos aos autos, limitam-se como é natural, a explicitar a patologia apresentada pelo ora recorrido e a terapêutica medicamente determinada.
Pelo que e relativamente à existência ou inexistência do nexo causal entre as lesões e o acidente, nada adiantam.
Acresce que, quer por perícia da seguradora, quer através da que foi feita pelo Sr. Perito médico do Tribunal, foi afastada de forma explícita a tal causalidade( cfr. fls. 33 e 46 respectivamente).
E segundo a fundamentação de facto plasmada a fls. 231 e conforme o depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento, por médico especialista em urologia( testemunha aliás arrolado pelo próprio A), o referido nexo de causalidade não é admitido em termos de mínima previsibilidade.
Finalmente a junta médica limitou-se a verificar a existência das lesões e a atribuir uma IPP, e isto de forma inexplicável- já que tinha, sido formulados quesitos relativos à eventual ligação entre o sinistro e a patologia sofrida pelo A( ver apenso para fixação de incapacidade).
Esses quesitos porém , não obtiveram qualquer resposta, contrariamente ao que deveria ter sucedido.
Mas como nem oficiosamente, nem por requerimentos das partes, foram determinados( ou solicitados ) esclarecimentos ou feitas reclamações, o que o artº 587º do CPC permitia, temos que ater-nos ao que essa perícia revela.
O que nada é relativamente à existência do tal nexo causal.
Temos em suma, que numa situação de carácter especificamente técnico, os elementos probatórios dessa índole, são de molde a afastar, ou pelos menos de colocar sérias reservas relativamente à causalidade entre o acidente e a patologia de que o A era portador.
É certo que o valor probatório da prova pericial é de livre apreciação pelo Tribunal- artº 389º do CCv-
Contudo a lógica aconselha, porque o julgador por via de regra não terá conhecimentos específicos de todas as matérias que se lhe deparam( no caso concreto de medicina), que em caso de discordância com os resultados periciais, a mesma seja fundamentada.
E no caso em apreço, essa fundamentação, a nosso ver- e sempre com a ressalva do respeito devido por entendimento diverso- carece da mínima base científica, antes se apoiando em depoimentos de circunstância de testemunhas presuntivamente também sem qualquer conhecimento técnico relativamente á matéria de que se trata, já que são trabalhadores da construção civil.
Em resumo: nem através da utilização de presunções judiciais( cfr. artº 349º do CCv) que importam que entre o facto conhecido de que o julgador retira ilações para firmar um desconhecido e este último exista uma sequência de razoabilidade lógica, compaginável com a experiência comum da vida, se pode alcançar a conclusão de que as sequelas que o A apresenta foram causadas pelo acidente em análise.
E nem se argumente em contrário, com o apelo à presunção legal estabelecida no artº 6º nº 5 da LAT e n o artº 7º nº 1 do D.L. 143/99 de 30/4.
É certo que com base nestes normativos, nas hipóteses em que a lesão corporal, perturbação ou doença seja reconhecida a seguir a um acidente, deve presumir-se como consequência deste.
E nos termos do artº 350º nº 1 do CCv quem tem a seu favor uma presunção legal, não necessita de provar o facto a que ela conduz.
Todavia no caso em apreço, a doença de que sofria o A foi reconhecida ou constatada, quer logo a seguir ao acidente, quer no local e no tempo de trabalho.
O que significa que não funcionando a dita presunção, ressurge a regra geral relativa ao ónus da prova e contida no artº 342º nº 1 do CCv, de que o nº 6 do citado artº 6º é mero corolário.
Na verdade aí se diz que se a lesão corporal, perturbação ou doença não for reconhecida a seguir a um acidente, compete ao sinistrado ou aos beneficiários legais provar que foi consequência dele.
Em resumo: os elementos existentes no processo, impõem uma resposta negativa à questão da causalidade entre as sequelas que o A apresenta e o acidente que sofreu.
Logo afastada está a responsabilidade de reparação infortunística que impendia sobre a recorrente.
Termos em que e concluindo, revogando-se a decisão recorrida e na procedência da apelação, se absolve a recorrente de todo o peticionado.
Sem custas por o A delas estar isento- artº 2 º nº 1 l) do CCJ. -.