Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
263-B/1998 .C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: CASO JULGADO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
RESPONSABILIDADE
SEGURADORA
Data do Acordão: 06/16/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: BASE XXXVII, Nº4 DA LEI 2127 DE 03/08/1965 E, ACTUALMENTE, ART. 31º, NºS 4 E 5 DA LEI 100/1997, DE 13/09
Sumário: 1. O respeito pela autoridade do caso julgado significa que se deve atender não só à parte conclusiva (dispositiva) da sentença que constitui título executivo, como ainda aos termos em que o tribunal decidiu todas as questões concretamente suscitadas no processo e cuja resolução surge como pressuposto lógico (e necessário) daquela.
2. Nos casos de acidente simultaneamente de viação e de trabalho, o ressarcimento dos danos alusivos à perda da capacidade de ganho por parte da seguradora civil exonera a entidade patronal ou respectiva seguradora, na medida do que foi pago; mas o pagamento por parte da entidade patronal ou respectiva seguradora não libera a seguradora responsável civilmente da obrigação de indemnização.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

Por apenso à execução que A... intentou contra a Companhia de Seguros B... , veio a executada deduzir oposição à execução, pedindo que se decida que “a quantia exequenda é a que resultar da diferença entre o valor de € 124.699,47 e o valor das pensões já pagas até à decisão final, tudo acrescido de juros calculados às taxas legais definidas na sentença, mas a incidirem sobre o valor supra referido e não sobre o valor exequendo, a tais montantes se limitando a execução”.

Para tanto alega, em síntese, o seguinte:

. na parte decisória da sentença que constitui o título executivo, foi fixada a favor do exequente uma indemnização no valor de 28.227.839$00, dos quais 25.000.000$00 corresponde à indemnização devida a título de perda da capacidade de ganho;

. o acidente a que se reportam os autos foi simultaneamente de viação e de trabalho, pelo que, como se referiu na sentença que constitui título executivo, as indemnizações não são cumuláveis mas sim complementares, acrescentando-se aí que “significa isto que se o autor vier a optar pela indemnização fixada neste processo, por via da complementaridade das prestações deve ser deduzida ao valor aqui fixado os valores já pagos pela ré C... a título de pensões”;

. o autor já recebeu a título de pensões a quantia de € 81.834,11 e continuará a receber pensões mensais enquanto os presentes autos correrem os seus trâmites.

Regularmente notificado, o exequente apresentou contestação, pugnando pela manutenção da quantia exequenda nos termos liquidados no requerimento executivo, uma vez que a mesma está dentro dos limites da condenação constante da sentença que constitui o título executivo.

Mais alega que a questão suscitada pela executada/opoente foi devidamente decidida pelo Acórdão da Relação de Coimbra, o qual revogou a decisão proferida nos autos na parte que a oponente invoca, pois decidiu que o exequente tem direito a receber o valor total da indemnização, podendo a seguradora de acidentes de trabalho requerer, se o desejar, a suspensão do pagamento das respectivas pensões, até se atingir o montante recebido pelo sinistrado a título de IPP.

O tribunal considerou que os autos dispõem já de elementos bastantes para o conhecimento do mérito da causa pelo que se proferiu sentença que conclui da seguinte forma:

“Em face do exposto e sem outras considerações, julgo a presente oposição improcedente e consequentemente ordeno o prosseguimento da execução que constitui o apenso A.

Custas pela executada/opoente (art° 446° n2 1 do CPC). Registe e notifique”.

Não se conformando, a executada opoente recorreu, peticionando a revogação da decisão recorrida e que se profira acórdão “que ordene o prosseguimento dos autos a fim de neles se apurar quais os montantes já efectivamente recebidos pelo exequente e satisfeitos pela executada, a título de ressarcimento da incapacidade parcial permanente”.

Formula, em síntese, as seguintes conclusões:

“a) O acidente de que emergem os presentes autos reveste a dupla natureza de acidente de viação e de acidente de trabalho, pelo que as indemnizações que advierem ao lesado por força desse acidente em consequência dessa dupla natureza não se somam antes se completam;

b) Por decisão do Tribunal de Trabalho de Vila Nova de Gaia a D..., Interveniente na presente acção declarativa, foi condenada a pagar a pensão anual e vitalícia de montante de 1.140.297$00 tendo a chamada pago ao sinistrado todas as demais despesas que, posteriormente, lhe foram pagas pela E...e seguidamente a C... e ultimamente a B...já pagaram as pensões até 31 de Dezembro de 2000, faltando liquidar à chamada as pensões relativas a 2001 no valor de 384.000$00;

c) E na acção declarativa de que os presentes autos são apenso a douta sentença decidiu fixar a indemnização a satisfazer ao A. pela "diminuição da capacidade de ganho" em Esc. 25.000.000$00;

d) A presente execução demonstra que o A., aqui Exequente, pretende optar pela indemnização fixada nos autos da presente acção declarativa;

e) Ora, na douta sentença proferida na acção declarativa, no âmbito da rubrica "Acidente de viação e acidente de trabalho" decidiu-se, após se fazer referência aos autos que correm os seus trâmites pelo Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Gaia, que "Significa isto que se o autor vier a optar pela indemnização fixada neste processo, por via da complementaridade das prestações deve ser deduzido ao valor aqui fixado os valores já pagos pela Ré C..., a título de pensões"; (…)

g) A quantia supra-referida de 28.277.839$10 abarca, para além de outras verbas como despesas, danos não patrimoniais e perda de salários, a referida indemnização por "Diminuição da capacidade de ganho" que foi fixada em Esc. 25.000.000$00 mas sem que na parte decisória se faça referência a que haverá que proceder à dedução aos valores já recebidos a título de pensões por acidente de trabalho;

h) Essa obrigatoriedade resulta, não obstante, do passo transcrito na conclusão e) das presentes alegações que tem de ser considerado como integrando a própria decisão porquanto a caso julgado material abrange não só o segmento decisório mas também a decisão das questões preliminares que sejam o antecedente lógico indispensável não sendo, igualmente, de excluir o recurso à parte motivatória para alcançar e fixar o verdadeiro conteúdo da decisão em causa, (…)

j) Conteúdo esse que, no caso vertente, será o de que tendo o A./Exequente optado pelo recebimento da indemnização por acidente de trabalho, no que concerne aos danos futuros deve a indemnização fixada de Esc. 25.000.000$00, hoje €124.699,47, ser reduzida das prestações já efectivamente recebidas pelo exequente no âmbito da indemnização do foro laboral;

k) Pelo que os presentes autos deverão prosseguir para apuramento das quantias efectivamente já satisfeitas ao Autor/Exequente, no âmbito do foro laboral e destinadas a ressarcir o dano emergente da incapacidade parcial permanente para o trabalho do que ficou afectado;

O exequente apresentou contra alegações, formulando as seguintes conclusões:

1ª - No âmbito da acção declarativa, houve recurso da sentença para esta Relação que apreciou a questão que a recorrente agora volta a colocar.

2ª - No douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em julgado, no 10 parágrafo da sua 5ª página, estabelece-se textualmente:

"Por conseguinte, a recorrente (Companhia de Seguros D...), seguradora para a qual a entidade patronal do A. transferira a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho, goza, tão-só, da faculdade de pedir a suspensão do pagamento de pensões destinadas a indemnizar a IPP até se perfazer o montante total que o A. receba a esse título. Pedido a que o A. não pode opor-se."

3ª - Nos termos do decidido nesse acórdão, o recorrido A... tem o direito de receber da oponente/recorrente o valor total da indemnização fixada pela IPP, devendo, posteriormente, a seguradora de acidentes de trabalho requerer a suspensão do pagamento das respectivas pensões, até se atingir o montante recebido pelo sinistrado a esse título (IPP).

4ª - O requerido opta por receber a indemnização devida pelo acidente de viação, aceitando que a seguradora responsável pelo pagamento das pensões devidas pelo acidente de trabalho requeira a suspensão desse pagamento até perfazer o montante atribuído a esse título.

5ª - Assim, tendo em atenção o douto acórdão desta Relação, a oponente, para além do pagamento das quantias que não põe em causa, deverá proceder ao pagamento da totalidade da importância atribuída a título de IPP (€ 124.699,47), tudo acrescido dos respectivos juros, cumprindo, dessa forma, o decidido na sentença e no acórdão que fundamentam a instauração da execução”.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância deu por provada a seguinte factualidade, alterando esta Relação o circunstancialismo aludido sob o nº 5 – a saber, “por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 14.06.2005 que apreciou os recursos referidos em 2 decidiu-se não tomar conhecimento dos recursos interpostos, por se considerar o independente sem efeito e o subordinado inadmissível” –, que nos parecer ter sido incorrectamente consignado, em face do que resulta dos autos, aditando-se ainda a factualidade invocada nos arts.26º a 28º do requerimento inicial, factualidade que o exequente não impugnou:

1-Nos autos de execução que constituem o apenso A foi dada à execução a sentença proferida nos autos principais a qual decidiu:

“ Em face de todo o exposto, o tribunal julga a acção parcialmente procedente por provada e consequentemente:

1. Condena a ré C... a pagar a A... a quantia de 28.227 839$10 - € 140. 799, 95 a título de danos patrímoniais e não patrimoniais acrescida de juros de mora calculados à taxa de 10% desde a data da citação e até ao dia 18 de Abril de 1999 e à taxa legal de 7% a partir de 18 de Abri/ de 1999 até 30 de Abri/ de 2003 e à taxa de 4 % a partir de 1 de Maio de 2003 e até integra/ e efectivo pagamento.

2. Condena a ré C... a pagar à chamada D... a quantia de 384.000$00 -1.915, 38 referente às pensões pagas no decurso do ano de 2001 e juros de mora à taxa de 7% desde a notificação à ré do articulado da chamada e até 30 de Abril de 2003 e à taxa de 4% a partir de 1 de Maio de 2003 e até íntegra/ pagamento”.

2- Pela chamada D... foi interposto recurso da sentença referida em 1, tendo o autor interposto recurso subordinado.

3- No recurso interposto pela chamada D...foi invocada a nulidade decorrente do disposto no artº 668° n° 1 al. d), porquanto a decisão proferida não se pronunciou quanto ao pedido das prestações vincendas a partir de Abril de 2001 e até final, ou em alternativa no valor da reserva matemática constituída pela apelante e que era no montante de 16.721.359$00.

4- Por decisão proferida a fls 231, julgou-se procedente a invocada nulidade, pelo que se supriu a mesma, conhecendo da questão invocada mas julgando improcedente o pedido formulado pela D..., no que concerne às prestações que se vencerem após Abril de 2001.

5 Em 14.06.2005 foi proferido Acórdão por esta Relação de Coimbra, que conclui nos seguintes termos:

“Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento dos recursos interpostos, por se considerar o independente sem efeito e o subordinado inadmissível”.

6. O exequente recebeu, a título de pensões emergentes de acidente de trabalho, vencidas até Julho de 2006, €77.558,29 e entre Agosto de 2006 e Abril de 2007, €4.275,82.

 

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela agravante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C., diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 664.

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, está em causa saber se, em caso de acidente simultaneamente de viação e de trabalho, fixada a medida do ressarcimento do sinistrado pelos prejuízos decorrentes da perda da capacidade de ganho, nos dois foros, pode o sinistrado exigir a cobrança coerciva da indemnização à seguradora civil, abstraindo-se e independentemente das quantias já recebidas no foro laboral, pagas pela entidade patronal ou respectiva seguradora.

No caso e uma vez que as partes, para sustentar os seus pontos de vista, fazem apelo a duas decisões judiciais para concluir em sentido diferente (a executada à decisão da 1ª instância, o exequente a um acórdão desta Relação), cumpre também fazer uma referência breve ao título executivo e ao conceito de caso julgado, começando a nossa análise exactamente quanto a este ponto.

2. O exequente apresentou como título executivo a sentença condenatória proferida nos autos a que esta execução está apensa, pelo que é em face dessa decisão que se determinam os limites da execução (arts. 45º, nº1 e 46º, nº1, al) a), querendo com isto dizer-se que o pedido formulado na execução deve harmonizar-se com o título, não podendo pedir-se mais do que resulta do mesmo [ [1] ].

Abre-se aqui um parêntesis para referir que a acção declarativa foi instaurada contra a Companhia de Seguros C..., sendo do conhecimento público que a executada B... nasceu da fusão da C... com a Sociedade Portuguesa de Seguros, salientando-se que a seguradora laboral que teve intervenção na acção declarativa é D.... 

No caso, o que resulta da sentença proferida?

A parte conclusiva que compõe a mesma (art. 659º, nº2, in fine) é linear, consubstanciando um juízo típico de condenação em quantia certa. Uma interpretação literal e limitada à parte dispositiva da sentença, suporta a pretensão do exequente, no sentido de que este se limitou a pedir, em sede executiva, o que estritamente foi fixado pela 1ª instância, a saber, a quantia de €140.799,86, acrescida de juros, que o exequente liquida no requerimento executivo.

A leitura da decisão deve no entanto ser mais ampla, havendo que precisar o alcance do caso julgado, nos moldes que resultam do disposto no art. 673º.

A sentença recorrida alude expressamente a esta matéria, podendo dizer-se, de forma ampla, que concordamos genericamente com o que aí se referiu.

Em breve síntese, diremos que, aferindo-se o caso julgado pela identidade dos sujeitos, pedido e causa de pedir, nos moldes que resultam do disposto no art. 498º [ [2] ], partilhamos do entendimento segundo o qual “tendo presente a economia processual, o prestígio das instituições judiciárias e a certeza das relações jurídicas, importa se conclua no sentido da extensão do caso julgado material à decisão das questões preliminares que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado”[ [3] ], não obstante o actual código não conter disposição similar à do art. 660º, parágrafo único do Código de 1939 [ [4]  ]. Efectivamente, “a referida circunstância não teve por finalidade a consagração da solução oposta, mas deixar à doutrina o seu estudo mais aprofundado e à jurisprudência a sua solução, caso por caso, mediante os conhecidos processos de integração da lei (Anteprojecto, BMJ, n.º 123, pág. 120)” [ [5] ].

Mas, mesmo que se considerasse que a força do caso julgado “cobre apenas a resposta dada a essa pretensão e não o raciocínio lógico que a sentença percorreu, para chegar a essa resposta”[ [6]], ainda assim, em determinadas situações o intérprete não pode abstrair-se dos fundamentos (premissas) que levaram à conclusão vertida na parte decisória. Como referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, que adoptam essa concepção, “embora se aceite que a eficácia do caso julgado não se estende aos motivos da decisão, é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado [ [7] ]. 

Assim perspectivado o disposto no art. 673º, temos que, no caso em apreço, a sentença proferida na acção declarativa limitou-se a abordar o facto de estarmos perante um acidente simultaneamente de viação e de trabalho nos seguintes termos:

“De acordo com os ensinamentos deste douto acórdão, as indemnizações por acidente de trabalho e de viação não são cumuláveis, mas sim complementares e a reparação das prestações compreende apenas as previstas na Base IX daquela lei. Daqui decorre que não existe comunicabilidade quanto aos danos não patrimoniais; por outro lado prevalece a responsabilidade objectiva do terceiro sobre a responsabilidade da entidade patronal, a qual assume um carácter subsidiário ou residual.

Por via da decisão proferida pelo Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Gaia, a chamada foi condenada a pagar a pensão anual e vitalícia no montante de 1.140.297$59 (facto 22), tendo a chamada pago ao sinistrado todas as despesas que, posteriormente, lhe foram pagas pela E.... Em matéria de pensões a E...e posteriormente a C... e ultimamente a B...já pagaram as pensões até 31 de Dezembro de 2000, faltando liquidar à chamada as pensões relativas a 2001 no valor de 384.000$00.

Significa isto que se o autor vier a optar pela indemnização fixada neste processo, por via da complementaridade das prestações deve ser deduzida ao valor aqui fixado os valores já pagos pela ré C.... a título de pensões” – esclarece-se que o acórdão aludido é o proferido pelo STJ em 24/01/2002, acessível in www.dgsi.pt

Daqui decorre que, ao contrário do que refere a opoente executada, nunca se consignou na sentença em causa qualquer obrigação de dedução, aos valores a pagar ao autor sinistrado, ora exequente, as quantias por este recebidas da seguradora laboral a título de pensão por força de IPP, mas, tão só, como bem se salientou na decisão recorrida, a obrigação de dedução dos valores pagos, a esse título, pela ré/executada, num contexto, portanto, de reembolso.

Ou seja, o que a sentença definiu foi o seguinte: se o autor optar pelo pagamento da indemnização pela perda da capacidade de ganho, fixada no foro civil, pagamento a cargo da seguradora, aí ré, então há que descontar os valores que a esse título (embora com a designação de pensão) recebeu da seguradora laboral e que por seu turno foram já reembolsados pela ré, exactamente em função do direito que assiste à entidade patronal ou à respectiva seguradora, de ser reembolsada da indemnização que tiver pago, direito conferido pela Base XXXVII, nº4 da Lei 2127 de 03/08/1965 e, actualmente, pelo art. 31º, nºs 4 e 5 da Lei 100/1997, de 13/09. O que se compreende, porquanto, se assim não fosse, a ré pagaria duas vezes, ou seja, por um lado ao autor/ sinistrado, por outro à entidade patronal/seguradora respectiva, por força da obrigação de reembolso.

A opoente leu, pois, na sentença, o que nela o Sr. juiz não disse, emergindo essa conclusão com alguma evidência, pese embora as alegações de recurso.

Mas também não tem qualquer sentido, quase raiando o absurdo, a versão do exequente, que, pasme-se, consegue extrair de um acórdão da  Relação que termina decidindo “não tomar conhecimento dos recursos”, o sentido de que esse acórdão “apreciou a questão que a recorrente agora volta a colocar”…

                                             *

Daqui não segue que deva julgar-se a oposição, sem mais, improcedente.

Efectivamente, como decorre da sentença proferida na acção declarativa, está provado que a seguradora laboral, que teve intervenção no processo, pagou ao ora exequente, a título de pensões devidas desde 17/01/1996 a 30.04.2001 a quantia de esc.6.034.088$00, dos quais já foi reembolsada pela seguradora civil – “inicialmente E... e posteriormente pela C... e ultimamente pela B...”, refere-se, sob a alínea CC) dos factos provados –, à excepção da quantia de esc. 384.000$00, em cujo pagamento foi, aliás, condenada, na sequência de pedido formulado pela interveniente.

Assim sendo, na decorrência lógica do que se referiu, tem de atender-se pelo menos a esse valor de esc.5.650.088$00 (esc. 6.034.088$00 – esc. 384.000$00), ou seja, €28.182,52. Considerando os termos da decisão que constitui o título executivo, esse valor, pago pelo aí réu e ora executado/opoente à seguradora laboral (que por seu turno o havia pago ao sinistrado, ora exequente), corresponde ao valor a deduzir à quantia exequenda, nos precisos limites que resultam da sentença, com incidência, obviamente, no cômputo dos juros devidos, uma vez que o exequente, no requerimento de execução, liquidou os juros vencidos sobre o montante de capital de €220.477,90.

Refira-se que há uma ligeira discrepância de valores entre o que foi alegado na acção declarativa e a factualidade que aí de deu por provada – cfr. os arts. 10º a 14º do requerimento apresentado pela chamada, a fls. 44 e 45 desses autos, a que a execução está apensa – mas essa discrepância tem de ser resolvida contra o opoente, atento o trânsito em julgado da sentença.

Em suma, o exequente pretende a cobrança de uma quantia que, em parte, excede o valor que lhe é devido e na medida fixada na sentença que constitui o título executivo.

    

3. Noutra ordem de considerações cumpre referir que não pode sustentar-se, como faz o recorrente nas alegações de recurso, que o pagamento nos moldes pretendidos pelo exequente, consubstancia ou traduz um enriquecimento ilegítimo deste, que dessa forma se vê ressarcido, duplamente, pelos mesmos danos (perda da capacidade de ganho), no foro laboral e no foro civil.

È que só aparentemente se verifica hipótese de cumulação. Efectivamente, a seguradora do acidente de viação surge sempre como a verdadeira responsável [ [8] ], pelo que, efectuando o pagamento devido ao lesado fica, tout court, desonerada da sua obrigação, na estrita medida do que pagou.

Como a jurisprudência vem, cremos que uniformemente, entendendo, o ressarcimento dos danos alusivos à perda da capacidade de ganho por parte da seguradora civil exonera a entidade patronal, na medida do que foi pago, mas o inverso já não é verdadeiro, ou seja, o pagamento por parte da entidade patronal ou seguradora respectiva não liberta a seguradora responsável civilmente da obrigação de indemnização.

Aliás, exactamente para acautelar a hipótese do opoente não correr o risco de pagar duas vezes é que na sentença que constitui o título executivo se ponderou a dedução das quantias já pagas pelo executado, nos moldes a que supra se referiu – daí a procedência parcial da oposição.

É à entidade patronal ou respectiva seguradora que compete, se entretanto foram efectuados pagamentos no âmbito do processo que correu termos no Tribunal do Trabalho, diligenciar com vista ao reembolso (restituição) dessas quantias pelo sinistrado, nos moldes que resultam do disposto nos nºs 2 e 3 da Lei 2127 de 03/08/1965 e, actualmente, pelo art. 31º, nºs 2 e 3 da Lei 100/1997, de 13/09, podendo desde logo instaurar, no foro laboral, acção com vista à suspensão do direito à pensão (art. 151º do Cód. de Processo do Trabalho).

Noutro tipo de condicionalismo, pode a entidade patronal ou respectiva seguradora demandar directamente o responsável civil, como decorre do disposto Base XXXVII, nº4 da Lei 2127 de 03/08/1965 e, actualmente, pelo art. 31º, nºs 4 e 5 da Lei 100/1997, de 13/09. Efectivamente, em face da inércia do sinistrado/lesado, decorrido um ano da data do acidente sem que este tenha feito valer os seus interesses perante o responsável civil, pode a entidade patronal ou respectiva seguradora que houver pago pensões demandar directamente aquele com vista ao reembolso (sub rogação legal). Refira-se que o Dec. Lei 522/85 não prevê o reembolso directo entre seguradoras (cfr. o art. 18º), ao contrário do que acontecia com o Dec. Lei 408/79 de 25 de Setembro (art. 21º, nº1) [ [9] ]. Também não se encontra qualquer disposição similar no novo regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo Dec. Lei nº 72/2008 de 16/04.

Como também pode a entidade patronal ou respectiva seguradora intervir como parte principal no processo que o sinistrado lesado instaurar, como aconteceu no caso em apreço. Se, fixada a indemnização pela perda da capacidade de ganho, a cargo da seguradora com quem o terceiro responsável contratou, ainda assim a entidade patronal ou respectiva seguradora continua a pagar ao lesado/sinistrado as pensões fixadas no âmbito laboral, ao invés de suspender os pagamentos (na medida do que for admissível), sibi imputet – arrisca-se a não ser reembolsada pelo sinistrado se o património deste for insuficiente.

Em todo o caso, todo esse circunstancialismo não é impeditivo do direito do exequente receber a quantia indemnizatória fixada, nos termos indicados e à excepção da quantia de €28.182,52 e juros respectivos, a que supra se aludiu.

                                             *

Conclusões  

1. O respeito pela autoridade do caso julgado significa que se deve atender não só à parte conclusiva (dispositiva) da sentença que constitui título executivo, como ainda aos termos em que o tribunal decidiu todas as questões concretamente suscitadas no processo e cuja resolução surge como pressuposto lógico (e necessário) daquela.    

2. Nos casos de acidente simultaneamente de viação e de trabalho, o ressarcimento dos danos alusivos à perda da capacidade de ganho por parte da seguradora civil exonera a entidade patronal ou respectiva seguradora, na medida do que foi pago; mas o pagamento por parte da entidade patronal ou respectiva seguradora não libera a seguradora responsável civilmente da obrigação de indemnização.

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Termos em que, julgando parcialmente procedente o recurso, revoga-se a sentença recorrida e julga-se parcialmente procedente a oposição à execução, determinando-se a redução da quantia exequenda em €28.182,52, e juros respectivos.

Custas por ambas as partes, quer na 1ª instância quer nesta Relação, na proporção do decaimento.

Notifique.  


[1] Lopes Cardoso, Manual da acção executiva, edição da INCM, 1987, p. 32.

[2] Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 93), refere que pode aceitar-se como exacto que o caso julgado exerce duas funções, uma função positiva e uma função negativa. “Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade; exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal. A função positiva tem a sua expressão máxima no princípio da exequibilidade, consagrado no nº 1 do art. 46º e nos arts. 47º a 49º; servindo de base à execução, o caso julgado afirma inequivocamente a sua força obrigatória, definida no art. 671º.

A função negativa exerce-se através da excepção de caso julgado.

Mas, quer se trate da função positiva, quer da função negativa, são sempre necessárias as três identidades exigidas pelo art. 502º”. Salienta-se que o referido art. 502º corresponde ao actual art. 498.º.

[3] Ac. STJ de 21/11/2004, proferido no processo 04B3703 (Relator: Salvador da Costa), acessível in www.dgsi.pt
[4] Dispunha esse preceito o seguinte: “Consideram-se resolvidas tanto as questões sobre que recair decisão expressa, como as que, dados os termos da causa, constituírem pressuposto ou consequência necessária do julgamento expressamente proferido”.  
[5] Ac. citado. Na doutrina, vide Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, pp. 578 e 579.
[6] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual do Processo Civil, 2ª edição (Revista e actualizada), Coimbra Editora, 1985, p.712.
[7] Obr. cit. p.715. 
[8] Ou como “devedor final”, segundo o Ac. STJ de 22/04/2004, C.J., TIII, p. 251. Refere-se no citado aresto o seguinte: “E, como resulta também da citada Base XXXVII e tem sido sublinhado na doutrina e jurisprudência, na hipótese dessa dupla reparação dos mesmos danos, o devedor último ou final, isto é, o que acaba por suportar o respectivo prejuízo, é o terceiro responsável pelo acidente de viação. E daí que a referida Base preveja o direito de regresso do responsável pelo acidente de trabalho contra esse terceiro pelo que haja pago, sendo que existe também a possibilidade, ora actuada pela A., de sobrestar no pagamento das pensões a vencer até ao montante que, a título de incapacidade permanente, (a que nos interessa aqui), o trabalhador sinistrado já haja recebido do responsável pelo acidente de viação”.
No mesmo sentido, aludindo à prevalência da responsabilidade subjectiva do terceiro sobre a responsabilidade objectiva da entidade patronal, vai o Ac. referido na sentença proferida na acção declarativa, o Ac. STJ de 24/01/2002, CJ, T.I, p 54.
      

[9] Abordando essa matéria, cfr. o Ac. TRC de 23/11/2004, proferido no processo nº 2063/04 (Relator: Isaías Pádua), acessível in www.dgsi.pt