Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
112/08.2GDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE RAPOSO
Descritores: PROVA
VALORAÇÃO
VÍCIOS
CRIME DE AMEAÇAS ATRAVÉS DE TERCEIRO
Data do Acordão: 09/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 152º, 410º, 412º CPP
Sumário: 1. A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: na “revista alargada” de âmbito mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal; através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º nº3, 4 e 6, do mesmo diploma.
2. No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido artigo 410º, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.
3. No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nº 3 e 4 do art. 412º do Código de Processo Penal.
4. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
5. A sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações: A que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam; A que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;A que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;A que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado artigo 412º) Também neste sentido o Acórdão da Relação de Lisboa, de 10.10.07, noproc. 8428/2007-3, em www.dgsi.pt..
6. No crime de ameaças o que releva é a indispensabilidade de que o sujeito passivo tome conhecimento da ameaça, sendo irrelevante que a ameaça seja feita através de terceira pessoa.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
O arguido A..., casado, aposentado, foi condenado, por convolação jurídica do imputado crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153° .º 1 e 155° al. a) do Código Penal, pela prática como autor material de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153° nº 1 do Código Penal, na pena de 65 dias de multa, à taxa diária de €: 7,50, fixando a prisão subsidiária em 43 dias.
Foi julgado parcialmente procedente por parcialmente provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente contra o arguido e, em consequência, foi condenado no pagamento ao assistente da quantia de €:700,00 pelos danos não patrimoniais sofridos e absolvido do pedido de indemnização civil deduzido nos autos em tudo quanto excede a presente condenação.
*
Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. A douta sentença de fls. deve ser revogada.
2. Para decidir quanto aos pontos de facto a), b) e e) da fundamentação, o Tribunal "a quo" valorou, essencialmente (se não unicamente...) os depoimentos das testemunhas R... e C....
3. A 1ª das testemunhas (ver supra a referência à gravação) é a esposa do assistente Luciano.
4. I.e., esposa do interessado directo na sorte dos autos (tanto mais que o assistente deduziu pedido de indemnização civil).
5. A 2ª das testemunhas é prima do assistente (cf. acta de fls., aos costumes).
6. Analisados ambos, constata-se que a testemunha C... - quanto ao facto supra referido em a) - referiu, de facto, em julgamento, que ouviu o arguido dizer "se ele cá voltar eu parto-o todo" (vide ainda a sentença de fls., ponto 1.3 "Motivação").

7. O depoimento da testemunha não se afigurou isento nem credível.
8. A testemunha C... não explicou adequadamente o motivo pelo qual, às 17hOO (hora a que ocorreram os factos, alegadamente), se encontrava na rua, de forma a ouvir as expressões alegadamente proferidas pelo arguido.
9. A C... afirmou que "não viu" o arguido, mas tão-só que o "ouviu".
10. Mais afirmou que, no fim da "discussão", se aproximou da prima - R... – tendo-lhe perguntado o que é que se tinha passado.
11. Referindo que não viu o arguido.
12. A C... referiu ainda que houve uma "discussão", ou seja, que a R... e o seu interlocutor trocaram afirmações.
13. Todavia, instada a esclarecer o que foi dito pela prima, não soube esclarecer, afirmando "não se recordar" ou não ter percebido.
14. Isto é, a C... revelou só ter ouvido o que fora afirmado pelo arguido...
15. Arguido que, note-se, não viu.
16. Só tendo associado os factos à pessoa do arguido porque a prima - R... -lhe disse que era o arguido quem ali tinha estado (i.e., depoimento indirecto...).
17. Ambas as testemunhas, C... e R..., na parte que respeitava ao conteúdo das afirmações alegadamente proferidas pelo arguido, reproduziram, "ipsis verbis", sem qualquer hesitação, e em puro decalque, trechos integrais das acusações, pública e particulares.
18. Fazendo-o relativamente a factos ocorridos há cerca de um ano – considerando a data do julgamento – e sem qualquer motivo aparente para tão apurada memória (note-se que a testemunha C..., espontaneamente, referiu ter ficado com a sensação de que devia "memorizar" a data para fins judiciais... I).
19. Ainda quanto ao ponto a) da matéria de facto, as testemunhas C... e R... não conseguiram evitar algumas (evidentes e sonantes) contradições.
20. Do exposto resulta uma evidente (ainda que frágil...) articulação entre os depoimentos das referidas testemunhas, "traída" pelo aspecto dissonante do teor da discussão.
21. Com efeito, a testemunha C... "inovou", dizendo que houve troca de palavras entre a prima e o arguido, enquanto a R... referiu em Tribunal, num primeiro momento, que disse ao arguido (em face das referidas expressões) "diga lá outra vez"/"repita lá isso", e num segundo momento, que teria balbuciado apenas "hã", "hã"...
22. Se a esta realidade somarmos o facto de que o arguido referiu não ter visto a testemunha C... no local (coincidindo com a mulher do assistente no ponto segundo o qual esta estava acompanhada de uma criança de colo),
23. E de não se ter apurado a distância concreta a que esta estava do local onde a "discussão" teve lugar, nem o "tom" em que as palavras foram proferidas (i.e., permitindo apurar se estava ou não em condições de ouvir a discussão),
24. Afigura-se difícil convencermo-nos de que a referida C... esteve de facto no local,
25. E que ouviu realmente o que afirmou ter ouvido.
26. Com efeito, para quem esteve no julgamento - como o ora subscritor - foi por demais evidente o "desconforto" exibido pela testemunha C... (contrastando, em boa verdade, com a "segurança" exibida pela mulher do assistente...), expresso no riso nervoso e forçado, no constante desvio do olhar e no permanente esfregar de mãos...
27. O que, em nosso - sinceramente (bem) modesto - entender, justifica a renovação da prova, permitindo ao Tribunal "ad quem", pela imediação com a prova, aperceber-se das incongruências relevadas pelo Tribunal "a quo".
28. Considerando-se como não provada a matéria de facto constante dos pontos a) e b) da fundamentação da sentença de fls.
29. Note-se que a mesma testemunha, C..., referiu que "medo, medo... não, não sei, acho que sim... não sei" (em resposta à questão sobre se o assistente teria sentido medo em resultado das expressões alegadamente proferidas pelo arguido).
30. Conduzindo a que, na insuficiência do depoimento da testemunha "directa" C..., se dê como não provada a matéria constante do ponto e) da fundamentação.
31. Acresce que, e ainda quanto ao ponto e) da fundamentação, diga-se que - sem prescindir - os factos imputados ao arguido deveriam ser idóneos a causar medo (de acordo com a teoria objectivo-individual).
32. Ora, se de facto o assistente tivesse sentido mal estar, nervosismo e inquietação em consequência da conduta do arguido - cf. ponto e) -, decerto teria deixado de passar no caminho, com medo de que as represálias prometidas se concretizassem efectivamente.
33. Todavia, ninguém foi capaz de o afirmar de modo sério e convincente.
34. Do exposto decorre que o "medo" sentido pelo assistente é mais "nominal" do que "real", não se sustentando em factos concretos, como deveria.
35. Assim, não nos parece que tais expressões tenham sido adequadas a causar receio ou medo por parte do assistente de que as mesmas pudessem ser concretizadas.
36. Pelo que, não se verifica o preenchimento do crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153°, nº 1, do CP, devendo absolver-se o arguido, com as legais consequências, absolvendo-se ainda o arguido do pedido cível deduzido pelo assistente, "in totum", e com as devidas e legais consequências.
37. Sem prescindir ou conceder do exposto, mas por mero dever legal de patrocínio, sempre se dirá que
38. A pena de multa fixada ao arguido – i.e., 65 dias multa à razão de 7,50€ por dia - se afigura excessiva e desproporcionada.
39. Quer no que tange aos dias de multa - factor "culpa" - quer no que se reporta ao "quantum" diário - factor "capacidade económica".
40. Dos factos apurados - a manterem-se, claro - não resulta que o arguido tenha actuado com uma culpa particularmente intensa.
41. Como não resulta que o assistente tenha sentido um medo tão intenso que tenha sido condicionada a sua liberdade de actuação e de decisão (no fundo, aquilo que se pretende proteger com a incriminação).
42. Logo, a condenação do arguido em 65 dias de multa com base na gravidade do dano - dano esse que, salvo o devido respeito, se ficou em "meias tintas" - é manifestamente excessiva.
43. Afigurando-se como adequada uma condenação em 40 dias de multa.
44. No que tange ao "quantum" diário",
45. Com efeito - e com relevo ainda para a "quantificação" dos danos morais - deu-se por provado que "O arguido está reformado e recebe uma pensão de reforma de cerca de €800. Vive com a mulher, que é doméstica, em casa própria".
46. Considerando – como factos notórios que são... – que o arguido é uma pessoa de idade avançada (vide os autos) e que é sabido que as "domésticas" não auferem pensão (i.e., a não ser pensões de "sobrevivência", ridiculamente pequenas...), o Tribunal não podia ignorar que os 800,00€ de pensão que o arguido recebe são a dividir por "duas bocas".
47. O que significa que cada um dos membros do agregado familiar do arguido tem um rendimento útil "per capita" inferior a 400,00€.
48. Assim sendo, parece-nos evidentemente excessivo o "quantum" de 7,50€/dia, em violação do disposto no artigo 47° do CP, o que se invoca.
49. Devendo o mesmo ser reduzido para 5,00€ dia.
50. Fixando-se a multa devida pelo agente em 200,00€, uma quantia que se reputa(ria) de adequada e justa, quer à gravidade dos factos, quer à condição económica do agente, e adequada a assegurar a finalidade preventiva da punição (associada que vai ao "shaming" de ter de pagar ao vizinho, i.e., ao facto de ficar "vencido", factor extremamente importante na não prevaricação futura).
51. As afirmações, a terem sido proferidas, não são especialmente desvaliosas e depreciativas, considerando o contexto sócio-económico em que foram proferidas (a que se soma tratar-se de um meio rural, no qual as mesmas perdem parte do seu conteúdo pejorativo) e a pessoa dos agentes.
52. O próprio Tribunal "a quo" - e bem - desvalorizou o "medo" sentido pelo assistente, considerando não haver motivos - ou melhor, factos que para aí apontassem - para que este considerasse a sua vida em perigo.
53. Considerando a prática dos nossos Tribunais, parece-nos que a quantia de 700,00€ é excessiva e desrazoável.
54. "ln casu", estamos em crer que uma importância em torno dos 400,00€ de indemnização seria suficiente para reintegrar os (eventuais) danos do assistente.
Termos em que deve dar-se provimento ao recurso revogando-se a decisão recorrida, em conformidade com as conclusões, absolvendo-se o arguido.
NORMAS VIOLADAS:
- artigos 47° e 153° do Código Penal;
- artigos 494° e 496°, nº 1, do Código Civil.
*
Respondeu o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso, sintetizando a sua posição com as seguintes conclusões:
Não tendo o recorrente cumprido o ónus imposto pelo art. 412°, nº 3 e 4 do C.P.Penal, a decisão impugnada nos termos do nº 3 do citado art. 412° do CPPenal não pode ser conhecida por manifesta ausência de fundamento do recurso.
A prova produzida foi correctamente valorada.
Os factos provados consubstanciam a prática de um crime de ameaças, p. e p. pelo art. 153° do CPenal.
A multa aplicada ao arguido traduz uma equilibrada e adequada aplicação dos critérios estabelecidos nos arts. 40°, 4 e 71 ° do C .Penal.
Quanto à parte civil, atento o valor do pedido de indemnização em causa, o recurso não é admissível.
Não foram violadas quaisquer normas legais, nomeadamente, dos arts. 47° e 153° do C.Penal e 494° e 496°, nº 1 do Código Civil.
Vossas Excelências, Senhores Desembargadores, negando provimento ao presente recurso, farão JUSTIÇA.
Respondeu também o assistente, sustentando a improcedência do recurso, concluindo nos seguintes termos:
1. A decisão da matéria de facto, designadamente quanto às alíneas a), b) e e) dos factos provados, deve manter-se inalterada, por se encontrar devidamente fundamentada, não se verificando qualquer erro na sua apreciação.
2. O arguido, com a sua conduta, preencheu todos os pressupostos ou requisitos do crime de ameaça p.e p. pelo art. 153.°, n.º 1, do Cód. Penal.
3. A pena fixada e a quantificação dos danos morais não são excessivas, encontrando-se devidamente justificadas ou fundamentadas.
4. A sentença não violou o disposto nos artigos 47.° e 153º do Cód. Penal e 494.° e 496º n.º 1 do C.Civil, nem quaisquer outras disposições legais.
Termos em que, deve a decisão recorrida manter-se inalterada, assim se negando provimento ao presente recurso, como é de JUSTIÇA!
O recurso foi admitido.
*
Nesta instância, o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto por ter sido requerida a realização de audiência.
*
Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (arts. 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal na versão introduzida pela Lei 48/07 de 29.8).

II – FUNDAMENTAÇÃO
As relações reconhecem de facto e de direito, (art. 428º do Código de Processo Penal), e no caso foi interposto recurso sobre a matéria de facto.
É jurisprudência constante e pacífica (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação Com algumas especificidades no que respeita à impugnação da matéria de facto, como afirma o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005 “a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões. Esta posição mantém a sua actualidade com a versão introduzida pela Lei 48/07 de 29.8 ao Código de Processo Penal que manteve a divergência entre a redacção dos nºs 2 e 3 do art. 412º do Código de Processo Penal. (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.95, publicado no DR Iª série-A, de 28.12.95).
*
Previamente, importa apreciar as questões suscitadas pelo Ministério Público na sua resposta, a saber:
1. Conhecimento do recurso em matéria de facto.
2. Admissibilidade do recurso da parte cível, atendendo ao valor.
***
questões prévias
Conhecimento do recurso em matéria de facto
O Recorrente afirma discordar da matéria de facto dada como provada.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: na “revista alargada” de âmbito mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal; através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º nº3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido artigo 410º, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nº 3 e 4 do art. 412º do Código de Processo Penal.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa Acordãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.307, Proc. 07P21, e de 23.507, Proc. 07P1498, em www. dgsi.pt..
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder à tríplice especificação estabelecida no artigo 412º nº 3 do Código de Processo Penal:
Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das “concretas provas” corresponde à indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretende, dos vícios previstos no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permite evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430º do Código de Processo Penal).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nº 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal). É nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411º nº4 desse diploma.
Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 Proc. 07P4375, em www.dgsi.pt., a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
· A que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
· A que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
· A que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
· A que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado artigo 412º) Também neste sentido o Acórdão da Relação de Lisboa, de 10.10.07, noproc. 8428/2007-3, em www.dgsi.pt..
No caso vertente, como decorre da análise da motivação e das conclusões, o Recorrente limita-se a indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados – factos a), b) e e) – a salientar palavras soltas descontextualizadas que terão sido proferidas pelas testemunhas R... e C... que, na sua perspectiva deveriam levar a que o tribunal a quo não lhes conferisse credibilidade e a indicar que a renovação da prova deve incidir sobre esses depoimentos mas, não fazendo qualquer referência à existência de provas que impõem decisão diversa como impõe a al. b) do nº 3 do art. 412º do Código de Processo Penal e sem as menções a que alude o nº 4 do referido art. 412º.
Por outro lado, como se disse, as referências entre aspas ao que as testemunhas disseram limita-se à reprodução de palavras soltas ou pequenas frases descontextualizadas, que aqui transcrevemos:
Relativamente aos factos provados a) e b), em relação à testemunha C... reconhece que a mesma afirmou que o arguido disse “se ele cá voltar eu parto-o todo”, para depois dizer que tinha ido “despejar o lixo”, que afirmou que “não viu” o arguido mas só o “ouviu” e referiu a “discussão”
Em relação à testemunha R... chama a atenção que, primeiro, disse ao arguido depois dele ter proferido as expressões “diga lá outra vez”/”repita lá isso” para num segundo momento dizer que apenas balbuciou “hã, hã”.
Relativamente ao facto provado e), limita-se a reproduzir que a testemunha C... referiu, a propósito do medo que o assistente teria sentido, “medo, medo … não, não sei, acho que sim … não sei”.
Basta a leitura deste conjunto de palavras descontextualizado para concluir que são manifestamente insuficientes para satisfazer a exigência de indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, nos termos da al. b) do nº 3 do art. 412º do Código de Processo Penal.
Assim, o Recorrente ficou claramente aquém das exigências de especificação legalmente impostas para o recurso amplo sobre a matéria de facto.
Mais concretamente: não se vislumbra que o recorrente tenha cumprido adequadamente o ónus de especificação das concretas provas gravadas, com indicação (concretizada) das passagens das gravações em que se fundava a impugnação (não havendo lugar a transcrição) e que são aquelas que o tribunal deveria ouvir (para além de outras que reputasse de relevantes), caso fosse suscitada, no recurso, a impugnação ampla da matéria de facto. Para tanto não basta respigar, aqui e ali, frases de testemunhas, sendo exigível a indicação concretizada dos factos mal decididos e das concretas provas que impõem decisão diversa.
Aliás, apesar das aludidas referências a depoimentos prestados, o que o recorrente pretende suscitar, afinal, é a questão do vício a que se reporta a al. c) do n° 2 do art. 410° do Código de Processo Penal, quando afirma ter havido uma «errónea apreciação da matéria de facto», admitindo-se que se refere a um erro notório na apreciação da prova, como bem salienta o Ministério Público na sua resposta ao recurso.
*
Efectivamente, resulta claro que o Recorrente se limita a discordar da valoração feita pelo Tribunal à prova produzida em audiência de julgamento, apenas pondo em causa a isenção e credibilidade das testemunhas que refere.
Ora, a simples divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o Tribunal firmou sobre esses factos, não pode – no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova (art. 127° do Código de Processo Penal) – servir de base à impugnação da matéria de facto
Assim, tal como sustenta o Ministério Público na sua resposta deve o recurso ser rejeitado nesta parte, considerando-se assente a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida Não havendo lugar direito a convite ao aperfeiçoamento dessa motivação porque “se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação as especificações ordenadas pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, não há lugar ao convite à correcção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correcção das conclusões da motivação” – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.3.06, no proc. 06P461, em www.dgsi.pt e acórdão do Tribunal Constitucional nº 140/04 (IIª Série do DR, de 17.4.04)..
Admissibilidade do recurso da parte cível
O arguido discorda da indemnização civil a que foi condenado pagar ao ofendido a título de danos morais, no montante de € 700,00, na sequência do pedido de € 1000,00 formulado, considerando suficiente a quantia de € 400,00.
Nos termos do nº 2 do art. 400° do Código de Processo Penal, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada desfavorável para o recorrente em valor superior a metade dessa alçada.
Assim sendo e considerando que a alçada do Tribunal de 1ª instância era de € 5000 (art. 24° da LOFTJ - Lei 3/99, de 13.01, com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei 303/2007, de 24.08), atento o valor do pedido cível em questão, nesta parte o recurso não é admissível.
*
Face ao supra decidido quanto às questões prévias, são as seguintes as questões a decidir:
1. Erro notório na apreciação da prova
2. Elementos do tipo: Medo e ameaça através de terceiro
3. Pena concreta de multa e seu quantitativo diário.
Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada e subsequente motivação:
1.1. Factos provados:
a- No dia 24 de Março de 2008, pelas 17hOO, o arguido dirigiu-se à esposa do assistente L..., a Senhora Dona R… e, visando o assistente, proferiu as seguintes asserções: "Se ele voltar a pôr os pés neste caminho parto-lhe os cornos" ( ... ) "se ele vier aqui corto-o aos bocados" ( ... ) "eu parto-o todo se ele cá voltar".
b- O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, pretendendo infundir no assistente um fundado receio de que um mal futuro lhe sucederia, nomeadamente à sua própria vida, o que logrou, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
c- Entre a filha e o genro do arguido e o assistente e a mulher existe um litígio por causa de um caminho, que tem motivado a propositura de acções cíveis.
d- O arguido e o assistente não se falam há cerca de 5 anos.
e- O assistente sentiu mal estar, nervosismo e inquietação e evita cruzar-se com o arguido, temendo que este o desfeiteie ou agrida
Condições pessoais do arguido:
f- O arguido está reformado e recebe uma pensão de reforma de cerca de €:800.
Vive com a mulher, que é doméstica, em casa própria.
Não tem antecedentes criminais.
1.2. Factos não provados:
Com relevo para a decisão da causa, nenhum facto se provou para além dos que nessa qualidade se descreveram.
Não se provou designadamente que:
- ao dizer "se ele voltar a pôr os pés neste caminho, parto-lhe os cornos", o arguido quis ofender a honra e consideração do assistente, agindo de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
- o assistente deixou de passar no caminho
1.3. Motivação:
Para dar como provados os factos supra descritos o Tribunal valorou diversos elementos probatórios, devidamente correlacionados, com recurso às regras da lógica e às máximas da experiência, maxime as declarações prestadas em audiência de julgamento pela testemunha R..., mulher do assistente, que de modo credível relatou o episódio em causa, dizendo concretamente que quando saiu de casa com o neto, no dia e hora em causa nos autos, viu o arguido a cavar o caminho, e que este, quando a viu, proferiu, exaltado, as expressões dadas como provadas.
Igualmente valorado foi o depoimento da testemunha C..., que credivelmente relatou que ouviu o arguido a dizer "se ele cá voltar eu parto-o todo".
Tomou-se ainda em consideração o depoimento do assistente, a quem a mulher contou o que sucedera, quando ele chegou a casa, no dia em causa, provocando neste medo de que o arguido concretize a ameaça.
Cumpre referir que, atenta a credibilidade que se reconheceu a estas testemunhas e ao assistente, foi desvalorizado o depoimento do arguido, que negou ter praticado tais factos.
No que concerne às consequências que da prática destes factos advieram para o assistente, valorou-se o depoimento deste e o das testemunhas R..., José Carlos, C... e José Machado, prestados neste sentido.
Os factos referentes ao relacionamento entre o assistente e o arguido provaram-se com fundamento no teor dos depoimentos do assistente e do arguido, que a este respeito coincidiram, correlacionados com o teor do documento de fls. 35 a 55.
Quanto às circunstâncias pessoais e económicas do arguido considerou-se o teor do depoimento deste.
No que respeita aos antecedentes criminais, valorou-se o teor do certificado de registo criminal junto aos autos.
Quanto aos factos não provados, cumpre referir que não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para lá dos que, nessa qualidade, se descreveram.
Relativamente aos factos que constam da acusação particular e do pedido de indemnização civil que não se deram como provados nem como não provados, trata-se de factos irrelevantes para a decisão da causa. -
Adiante, enquadrado na análise jurídica, o tribunal a quo esclarece que:
Indispensável é, para a punição do crime, que o sujeito passivo da ameaça tome dela conhecimento, sendo irrelevante a forma utilizada pelo agente do crime, que este ameace directa e pessoalmente ou que utilize um meio ou se sirva de terceira pessoa.
Revertendo ao caso dos autos à luz de quanto vai dito e considerando o contexto em que as expressões ameaçadoras em causa foram proferidas, concretamente o facto da família do arguido e o assistente terem um conflito a respeito de um caminho e do assistente e o arguido não se falarem há 5 anos, julgamos que efectivamente o assistente, ao tomar delas conhecimento, as sentiu como credíveis.
Sobre a determinação da medida da pena à ora Recorrente a sentença recorrida, depois de concluir pela suficiência da aplicação de pena de multa, afirma:
Determinação da medida concreta da pena:
Dentro das moldura penais abstractas, deverão as penas ser concretamente determinadas em conformidade com o sistema dos dias de multa proposto pelo legislador no nº 2 do art.47° daquele diploma legal procedendo-se à fixação, em primeiro lugar, do número de dias de multa de acordo com o princípio regulador formulado no art.40º, e, seguidamente, do quantitativo diário a achar dentro dos limites definidos na lei considerando, para o efeito, a situação económico-financeira do arguido, bem como os encargos pessoais que ficaram demonstrados.
No que ao número de dias de multa diz respeito, importa considerar que, nos termos que resultam do art.71° do CP, deverá a pena ser concretamente determinada, dentro dos limites da lei, em função da culpa do agente e das exigências da prevenção.
Tendo, pois, em conta o princípio geral que acaba de ser formulado, deverão ser neste momento consideradas todas aquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal convocado nem tendo sido já atendidas para efeitos de agravação, sejam expressivas da culpa do arguido e da medida das necessidades de prevenção.
No caso em apreço, depõe contra o arguido, logo ao nível do tipo-de-ilícito, a gravidade da violação jurídica cometida, atento o dano (medo e inquietação) efectivamente ocasionado, representando o grau máximo de concretização do perigo considerado, e evidenciando uma intensa afectação do bem jurídico protegido. Mais há que valorar o dolo directo com que agiu.
Em face de tudo o exposto, julga-se adequada a aplicação ao arguido, pela prática do crime de ameaça, de uma pena de 65 dias de multa.
No que concerne ao quantitativo diário, tendo em conta a factualidade descrita, julgamos adequado, dentro dos limites constantes do n.º 2 do art. 47° do CP, fixar o quantitativo diário em €:7,50. -
***
Verificação da existência dos vícios do art. 410º do Código de Processo Penal: Erro notório na apreciação da prova.
O Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada e admitida, depois e se for o caso, dos vícios do nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal.
Cumpre, então, agora, apreciar da existência de algum desses vícios.
Estabelece o art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., pg. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pg. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pg. 77 e ss..
Existe o vício previsto na alínea a) do nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal quando a factualidade dada como provada na sentença não permite, por insuficiência, uma decisão de direito ou seja, quando dos factos provados não possam logicamente ser extraídas as ilações do tribunal recorrido. A insuficiência da matéria de facto determina a incorrecta formação de um juízo, porque a conclusão ultrapassa as respectivas premissas Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.05.1998, Proc. nº 98P212, em www.dgsi.pt.. Dito de outro modo: quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto com relevo para a decisão Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pg. 69..
Existe o vício previsto na alínea b), do n.º 2 do art. 410.º quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada, entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada, entre a fundamentação probatória da matéria de facto, e ainda entre a fundamentação e a decisão Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2.ª ed., pg. 340 e ss..
Finalmente, ocorre o vício previsto na alínea c), do nº 2 do art. 410º quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente Germano Marques da Silva, ob. cit., pg. 341 e ss. e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.10.96, Proc. nº 045267, www.dgsi.pt.. Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.
No caso vertente, não se verificam os vícios da sentença a que se refere a al. a) e b) do art. 410º do Código de Processo Penal.
*
Merece análise mais detalhada, face ao supra exposto sobre a rejeição da impugnação ampla, a existência do “erro notório na apreciação da prova” a que afinal se pode resumir a crítica do Recorrente à matéria de facto considerada assente.
A questão, tal como a Recorrente a configura, prende-se com a constatação de que a prova se baseou nos depoimentos da mulher e da prima do assistente, respectivamente R... e C....
Como resulta dos factos provados e da motivação a existência de conflitos antigos a propósito da existência de um caminho, o contexto rural em que a situação se desenrola e as expressões proferidas conferem plausibilidade à verdade dos factos que vieram a ser considerados provados. Como é consabido, ainda hodiernamente, especialmente em zonas de maior ruralidade, do Norte ao Sul do país, as questões ligadas á propriedade rústica, às suas extremas e servidões podem originar querelas que se prolongam no tempo, arrastam-se nos tribunais e produzem episódios de violência grave.
A constatação destas realidades significa que os factos em apreço nos autos estão em consonância com o que nos ensinam as regras de experiência. Bem assim, face às consequências que por vezes advêm destes confrontos, o medo sentido pelo assistente é normal, aceitável e adequado à gravidade da discórdia e, apesar do tom dubitativa da testemunha C..., encontra-se afirmado pelo assistente e testemunhas, como o Recorrente reconhece na sua motivação e resulta da fundamentação da sentença recorrida.
Por outro lado, os factos deste jaez ocorrem normalmente em ambientes restritos, com poucas ou nenhumas testemunhas, apresentando-se em tribunal duas versões antagónicas e inconciliáveis.
As testemunhas reduzem-se, frequentemente, ao próprio ofendido e, quanto muito, uma ou duas pessoas da sua família ou relações. Em oposição apresenta-se o arguido com a sua versão dos factos, acompanhado, quanto muito, por uma ou duas testemunhas, com relacionamento semelhante.
Por isso, o princípio da livre apreciação da prova tem aqui uma especial importância.
Cabe ao tribunal avaliar, com razoabilidade e de acordo com as regras de experiência, com base nas provas produzidas e com respeito pelas regras de produção da prova.
A atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, no proc. 0314013, em www.dgsi.pt.
Da análise da prova nada resulta que ponha em crise o juízo de credibilidade que o tribunal recorrido formulou, nem a verosimilhança e a plausibilidade do depoimento das testemunhas em causa, pese embora a sua relação de parentesco com o assistente.
Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática e processualmente válida –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. E não será a circunstância, normal nas lides judiciais, de se contraporem, pela prova pessoal (declarações e testemunhos), versões por vezes discrepantes, a impor que o julgador seja conduzido, irremediavelmente, a uma situação de dúvida insuperável.
Por outro lado, a função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados e não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão, certamente difícil, de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos.
Ora, no caso dos autos a prova produzida foi adequadamente valorada e não houve qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova acolhido, de forma expressa, no art. 127º do Código de Processo Penal, como resulta da análise da fundamentação da sentença e das regras da experiência Regras da experiência, em que se incluem as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, p. 127, citando F. Gómez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184).
Por isso, a invocação da violação desse princípio não pode servir para o recorrente sindicar a livre apreciação da prova produzida em audiência, realizada pelo tribunal recorrido como se disse supra.
Neste sentido, a apreciação da prova deve ser fundamentada nas “regras da experiência” e na “livre convicção” do juiz, por decorrência directa do art. 127º do Código de Processo Penal. Por isso e porque o art. 374º nº 2 do Código de Processo Penal exige o “exame crítico das provas” é que o tribunal deve fundamentar a decisão em operações intelectuais que permitam explicar a razão das opções e da convicção do julgador, a sua lógica e raciocínio, sendo certo que “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” Acórdão do Tribunal Constitucional 198/2004 de 24.03.2004, DR, II S, de 02.06.2004.
Ora, como se viu, a sentença proferida pelo Tribunal a quo assenta em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova.
Não se verifica, assim, o vício do erro notório na apreciação da prova.

Elementos do tipo: Medo; ameaça através de terceiro
Invoca o Recorrente que não se verifica o preenchimento do tipo de ameaça porque as expressões proferidas não foram adequadas a provocar medo no assistente.
No crime de ameaça “exige-se apenas que a ameaça seja susceptível de afectar, de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação”, ou seja, actualmente, após a Revisão de 1995, o crime de ameaça deixou “de ser um crime de resultado e de dano, (…) passando a crime de mera acção e de perigo” Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, T I, pg. 348; acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 9.1.08 e de 26.5.09, nos proc.s 823/05.4TACBR e 209/04.8GBSRT.C1, ambos em www.dgsi.pt.
Como se viu, ao contrário das pretensões do Recorrente, ficou demonstrado que com as asserções proferidas o arguido logrou efectivamente infundir no assistente receio de que um mal futuro lhe sucederia, temendo este que o arguido o desfeiteie ou agrida.
Com tais factos provou-se mais do que a norma exige: para além da adequação que a norma exige e que aparece como indiscutível como resulta do que supra se afirmou sobre as consequências deste tipo de questiúnculas rurais e a sentença também refere expressamente (transcrição supra), provou-se, ainda, que o assistente efectivamente sentiu medo.
Alude ainda o Recorrente (na motivação) a que o eventual conteúdo intimidatório das afirmações produzidas perderia a sua acuidade pela forma “indirecta” como foi veiculado.
Porem, ao fazer o enquadramento jurídico-penal, o tribunal a quo também refere a indispensabilidade de que o sujeito passivo tome conhecimento da ameaça e a irrelevância da ameaça ser directa e pessoal ou através de terceira pessoa, de acordo com a doutrina Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, T I, pg.s 344 e 347 a 348. e a jurisprudência Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.12.01, no proc. 2880/2001, em www.dgsi.pt., . Essa irrelevância, aliás, resulta directamente da norma.

Pena concreta de multa e seu quantitativo diário
Invoca o Recorrente que não agiu com uma culpa particularmente intensa e que o assistente não sentiu um medo tão intenso que justifique uma pena superior a 40 dias de multa.
Da análise da sentença resulta que a M.mª Juiz a quo seguiu um procedimento de determinação da pena de multa isento de reparos.
Perante pena compósita alternativa de prisão ou multa, optou pela aplicação de multa, de harmonia com o disposto no artigo 70.º do Código Penal, por entender que a aplicação desta satisfazia plenamente as finalidades da punição. Para tal efeito valorou a ausência de alarme social causado por crimes como o dos autos, a ausência de antecedentes criminais e a inserção social e familiar do arguido.
Depois, ponderando o disposto nos art.s 40º, 47º e 71º do Código Penal elencou os factores de determinação da pena concreta, salientando “a gravidade da violação jurídica cometida, atento o dano (medo e inquietação) efectivamente ocasionado, representando o grau máximo de concretização do perigo considerado, e evidenciando uma intensa afectação do bem jurídico protegido” e “o dolo directo com que agiu”.
Concluiu, fixando a pena em 65 dias a multa.
A ponderação da intensidade da culpa do arguido À culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos), pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena do condenado servir de instrumento a tais exigências (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.6.06, no proc. 06P1561, em www.dgsi.pt., , por um lado e da intensidade do medo do assistente, por outro, encontra perfeita adequação na pena concreta encontrada.
Esta pena, dentro dos limites definidos na lei, mostra-se justa e adequada, tendo em vista os dois grandes parâmetros referidos no nº1 do artigo 71º do Código Penal: a culpa do agente e as exigências de prevenção e os fins das penas expressos no art. 40º nºs 1 e 2 do Código Penal: protecção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade, sem ultrapassar a medida da culpa.
*
Relativamente ao quantitativo diário da pena de multa o tribunal limita-se a afirmar que teve em conta a factualidade descrita e os limites do nº 2 do art. 47º do Código Penal.
A norma em apreço, para além dos limites, estabelece os critérios que devem ser ponderados na fixação do quantitativo diário da pena de multa: “em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais”.
Assim, importa ponderar os únicos factos que o tribunal a quo considerou assentes e que, embora abreviados, permitem, ainda assim, avaliar de forma bastante a situação económica e financeira e os encargos do arguido:
O arguido está reformado, recebe uma pensão de reforma de cerca de 800 € e vive com a mulher, que é doméstica, em casa própria.
Sustenta o Recorrente que o quantitativo diário deve ser fixado em 5 € tendo em atenção que, sendo a mulher doméstica o montante de pensão serve para sustentar o agregado familiar composto por duas pessoas.
O limite mínimo legal da pena de multa está fixado em 5 € (art. 47º nº 2 do Código Penal) e deve ser reservado para situações de pobreza e precariedade económica que não é a do arguido, que habita casa própria e tem rendimentos provenientes da sua pensão superiores aos da média dos portugueses – o montante mínimo do quantitativo diário da pena de multa deve ser aplicado aos arguidos de mais baixos rendimentos, designadamente àqueles que nem sequer ganham o suficiente para fazer face às necessidades mais elementares Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.10.06, no proc. 06P2810, em www.dgsi.pt. .
Por outro lado, importa ponderar que “mantém actualidade a jurisprudência do acórdão do STJ de 2 de Outubro de 1997 in Col. Jur. Acs do STJ, V, tomo 3, 183, de que o montante diário da multa deve ser fixado em termos de constituir um sacrifício real para o condenado sem no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respectivo agregado familiar” Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.12.07, no proc. 07P3758, em www.dgsi.pt. .
Ponderando todos estes factores, reputamos como ajustado para que o arguido, ora Recorrente, sinta a multa como um sacrifício real mas sem pôr em causa a satisfação das necessidades básicas do seu agregado familiar a manutenção do quantitativo diário da multa em 7,5 € - o montante global da multa é, assim, correspondente a pouco mais de metade do rendimento mensal do arguido.

III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs. (arts. 513º nº 1 do Código de Processo Penal e 87º nº 1 al. b) do Código das Custas Judiciais).
Coimbra, 9 de Setembro de 2009
(Texto elaborado, revisto e rubricado pelo relator
e assinado por este e pelo Ex.mo Adjunto)

(Jorge Simões Raposo)

(Fernando Ventura)