Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
488/03.8TBPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ACÇÃO DE CONDENAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
PROPRIEDADE
Data do Acordão: 10/24/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342º Nº1, 892º E 1311º Nº1 DO CC
Sumário: 1. O que individualiza a acção de reivindicação é a concomitância de dois requisitos ao nível do pedido: o do reconhecimento do direito de propriedade do autor e o da restituição da coisa, a acatar pelo demandado, simples possuidor ou detentor.
2. Tem-se considerado que apenas é essencial o pedido de restituição, podendo, em face da causa de pedir, tornar-se implícito o reconhecimento da propriedade.

3. Quando, embora se invoque a aquisição do direito de propriedade, a restituição tenha por fundamento não a ofensa directa da actuação dos poderes respectivos, mas a nulidade (ou ineficácia) de um ou mais negócios jurídicos virtualmente translativos do direito – uma ou mais vendas a non domino – cuja declaração também é pedida, a acção é meramente de condenação mas não de reivindicação. O autor continua na posse da coisa (ao passo que o reivindicante é sempre o proprietário não possuidor). A restituição que se pede é, afinal, a negação de um direito conflituante e não propriamente a recuperação da coisa objecto do direito.

4. Dado que os autores omitiram a alusão a qualquer modo de aquisição originária do direito de propriedade (usucapião, acessão, etc), ainda que a benefício do alienante, ou de factos dos quais o direito se pudesse presumir, como o registo predial de aquisição (art.7º do CRPR) ou a posse (art.1268º do CC), e que a simples aquisição derivada não é cabalmente certificativa da recepção do direito alienado, visto o princípio nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet, não foi alegado o facto jurídico constitutivo de que promanou a pretensa propriedade dos autores sobre o prédio rústico em causa.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível da Relação de Coimbra:

A... e mulher B..., intentaram a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário contra:

C... e marido D...;

E... e F...;

H... e mulher I...

alegando, em síntese, que são donos de determinado prédio rústico, por o terem adquirido através de escritura pública de compra e venda celebrada a 29 de Novembro de 1969; que os 1ºs RR., invocando o "desconhecimento dos antepossuidores", indevidamente conseguiram fazer registar a seu favor a aquisição do referido prédio mediante a apresentação de uma escritura de habilitação de herdeiros de uma tal Iria dos Santos; que dessa forma o imóvel foi sucessivamente objecto de venda aos 2ºs RR. e, posteriormente, aos ora 3ºs RR., vendas ineficazes por inexistência do direito logo nos 1ºs RR.; que os AA. sofreram um choque profundo quando souberam da "usurpação", computando-se esse dano não patrimonial em € 3.500; bem como deixaram de concretizar a venda do prédio por € 14.950, que, entretanto, já haviam negociado com um tal com J....

Formulam então os seguintes pedidos:

a) Ser decretada a nulidade da aquisição do terreno - artigo matricial rústico n° 8162 de Vila Nova de Poiares - pelos lºs RR;

b) Ser decretada a nulidade dos negócios jurídicos celebrados entre os lºs RR. e os 2ºs RR. e entre estes e os 3ºs RR, nos termos e de acordo com os efeitos previstos nos artigos 289° e 291° do Código Civil;

c) E, por maioria de razão, o terreno rústico - artigo matricial n° 8162 - deverá ser desanexado do artigo urbano n° 4690, com as legais consequências;

d) Serem os RR. condenados, solidariamente, a restituírem o terreno - artigo matricial rústico n° 8162 da freguesia de Santo André, Vila Nova de Poiares - aos AA., atendendo à ineficácia dos negócios jurídicos celebrados;

e) Serem cancelados os registos na Conservatória do Registo Predial que colidam com os direitos de propriedade dos AA., mormente o registo de aquisição dos lºs RR. e os registos dos 2ºs e 3ºs RR, de harmonia com o disposto no art. 8° do C.R.P.;

f) Serem canceladas todas as inscrições na Repartição de Finanças de Vila Nova de Poiares, voltando o terreno a ficar inscrito em nome dos AA.;

g) Os RR devem ser condenados, solidariamente, no pagamento de uma indemnização por danos morais no valor nunca inferior a €3.500 (Três mil e quinhentos euros);

h) Deverão, ainda, os RR. ser condenados, solidariamente, a ressarcirem os AA. no valor de € 14,950 (catorze mil novecentos e cinquenta euros) resultante da frustração do negócio acordado com J... devida pela apropriação indevida do terreno pelos RR.;

i) Caso se entenda, ainda assim, que o terreno não possa ser devolvido aos AA., devem os RR. ser condenados, solidariamente, no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais no valor de €14.950 (catorze mil novecentos e cinquenta euros), nos termos do artigo 289°, n° l do C.C., acrescida de uma indemnização por danos morais no valor de € 3.500 (três mil e quinhentos euros).

Citados todos os RR. nenhum deles contestou a acção.

Considerados confessados os factos articulados pelos AA. e cumprido o disposto no art.º 484 nº 2 do CPC, o M. mo Juiz, ao abrigo dos art.ºs 2º, nº 1 al.ª a) e 3º nº 2 do CRP, proferiu despacho determinando a suspensão da instância até os AA. comprovarem o registo da acção, cuja certidão viria oportunamente a ser junta aos autos.

Seguidamente foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente por parcialmente provada, decidiu:

a) Declarar a nulidade da aquisição do terreno - art.º matricial rústico n° 8162 de Vila Nova de Poiares - pelos lºs RR;

b) Declarar a nulidade dos negócios jurídicos celebrados entre os lºs RR. e os 2°s RR. e entre estes e os 3ºs RR;

c) Ordenar a desanexação do terreno rústico - art.º matricial n° 8162 - do artigo urbano n° 4690;

d) Condenar os RR., solidariamente, a restituírem o terreno - artigo matricial rústico n° 8162 da freguesia de Santo André, Vila Nova de Poiares - aos AA;

e) Ordenar o cancelamento dos registos na Conservatória do Registo Predial que colidam com os direitos de propriedade dos AA., mormente o registo de aquisição dos lºs RR. e os registos dos 2ºs e 3ºs RR;

f) Ordenar o cancelamento de todas as inscrições na Repartição de Finanças de Vila Nova de Poiares, voltando o terreno rústico a ficar inscrito em nome dos AA.;

g) Condenar os RR., solidariamente, a pagarem aos AA. uma indemnização por danos morais no valor de € 1,000 ( mil euros);

h) Condenar os RR., solidariamente, a ressarcirem os AA. no valor de €14,950 (catorze mil novecentos e cinquenta euros) resultante da frustração do negócio acordado com o Sr. J... por força da apropriação do terreno.

i) Absolver os RR. do demais peticionado pelos AA.

Inconformada, interpôs a Ré I... recurso de apelação rematando a sua minuta de alegações com as seguintes conclusões:

a) O primeiro pressuposto para a procedência da vertente acção de reivindicação, em conformidade com o artigo 1311° do Código Civil, consistia na prova do direito de propriedade dos AA. relativamente ao imóvel inscrito na matriz predial rústica sob o nº 8162, da freguesia de Santo André de Poiares.

b) E para que tal prova tivesse sido obtida, não bastava aos AA. juntarem um título translativo de propriedade (escritura de compra-venda outorgada em 1969), pois tal negócio jurídico não constitui o referido direito, até por que também não estabeleceram o trato sucessivo da cadeia de transmissões.

c) Para não terem necessidade de alegar a aquisição originária do direito de propriedade, os AA. teriam de gozar de uma presunção de titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em dissídio, a qual não se vislumbra no caso "sub judice".

d) Os AA. não alegaram e não provaram factos que demonstrassem a sua posse, constituída pelo corpus e pelo animus (cf. artigo 1251° do Código Civil) e, por isso, por um lado, não gozam da presunção legal estabelecida no artigo 1268° do Código Civil e, por outro lado, não demonstraram ter adquirido originariamente o referido prédio (cf. artigo 1316° do Código Civil).

e) Sendo que, para o instituto da usucapião funcionar teria de ser expressamente invocado (cf. artigo 1288° do Código Civil - o que não foi feito) e a posse (não alegada e não provada) teria de revestir determinadas características (cf. artigo 1256° do Código Civil - também não alegadas e não provadas).

f) Os AA. não gozam da presunção legal estabelecida no artigo 7° do Código do Registo Predial, pois não têm o prédio inscrito no registo a seu favor.

g) A recorrente e o respectivo cônjuge, conforme resulta dos autos, gozam da presunção de propriedade decorrente do registo predial.

h) Os AA. não são proprietários do imóvel em dissídio e, por isso, a decisão em crise violou os artigos 1251°, 1265°, 1256°, 1268°, 1287°, 1288°, 1311°, 1316°342°, 349° e 350°, todos do Código Civil, o artigo 7° do Código do Registo Predial e os artigos 264°, 467°, n° 1, alínea d), e o 659°, n° 3, todos do Código de Processo Civil.

i) E, por conseguinte, expressamente se impugna a conclusão plasmada no ponto l da matéria dada por provada na sentença "sub judice".

j) A conformação do pedido na acção de reivindicação radica no pedido da declaração do direito de propriedade e subsequentemente pelo pedido de restituição da coisa.

k) Os AA. não peticionaram a declaração do respectivo direito de propriedade e, não sendo declarado tal direito, devia a sentença declarar improcedentes todos os pedidos, e, muito em especial, o pedido de restituição da coisa.

l) A sentença "sub judice" violou os artigos 1311° e 1305°, todos do Código Civil, e os artigos 498°, n° 3, 467°, n° 1, alínea e), e o 659°, n° 3, todos do Código de Processo Civil.

m) O prédio que os AA. reivindicam não existe juridicamente.

n) A recorrente e o respectivo cônjuge adquiriram o prédio urbano actualmente inscrito sob o n° 4690 na respectiva matriz predial da freguesia de Santo André de Poiares.

o) Os AA. não são interessados na declaração de nulidade da aquisição dos RR., em especial da recorrente e do seu cônjuge, dado não existir correspondência material e formal entre os prédios (o adquirido pela recorrente e o reivindicado pelos AA.).

p) Destarte, a decisão recorrida violou, além do mais, os artigos 892° e ss. e 286° e ss., todos do Código Civil.

q) A aquisição da Recorrente e do seu cônjuge jamais podia ser declarada totalmente nula, uma vez que, quando muito, no que se não concede, estaríamos perante a compra-venda de um bem parcialmente alheio.

r) Assim, não pode aplicar-se, sem mais, o regime previsto no artigo 892° do Código Civil, pois o artigo 902° do mesmo diploma estabelece apenas nulidade parcial do contrato.

s) A sentença postergou os artigos 892° e ss., o artigo 902°, e os artigos 286° e ss., todos do Código Civil.

t) A verificação da responsabilidade civil extra-contratual por factos ilícitos (artigos 483 e ss. do Código Civil) pressupõe a verificação de pressupostos cumulativos: o facto, a ilicitude, a imputação (em termos de culpa), o dano, e o nexo de causalidade.

u) Só com a alegação e prova de tais elementos, que incumbia aos AA., ora recorridos, é que "nascia" a obrigação de indemnizar (artigos 562° e ss. do Código Civil).

v) Os AA. não alegaram e, por isso, não provaram todos os elementos da predita responsabilidade civil, maxime em relação à recorrente, pois designadamente, não alegaram e não provaram a culpa e o nexo de causalidade.

w) Devia a sentença ter absolvido os RR. dos pedidos de compensação por danos não patrimoniais e patrimoniais e, ao não o fazer, violou os comandos ínsitos aos artigos 483° e ss. e 562 e ss., todos do Código Civil, bem como os artigos 267°, 467°, n° 1, alínea d) e o artigo 659°, n° 3, todos do Código de Processo Civil.

x) Em suma, todos os RR. deviam ter sido absolvidos de todos os pedidos.

Responderam os AA., pugnando pela manutenção do sentenciado.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:

I. Os AA. adquiriram o prédio rústico, sito em Vale da Casa, confrontando a norte com Barroca, a nascente com Levada do Moinho, a poente com serventia e a sul com a Estrada Nacional nº 2, inscrito na matriz da freguesia de Poiares, Santo André, sob o art. 8162, por escritura pública de compra e venda, celebrada no 20º Cartório Notarial de Lisboa, em 29 de Novembro de 1969.

II. Sensivelmente, em Março do corrente ano, o Sr. J... contactou os AA. para a possibilidade de lhe alienarem o terreno identificado no artigo precedente.

III. Terreno que outrora fora cultivado pelo interessado, na qualidade de rendeiro.

IV. Acordados os termos do negócio e quando se preparavam para a formalização da compra e venda do terreno, o Sr. J... solicitou junto da Repartição de Finanças de Vila Nova de Poiares os documentos necessários para efeitos da celebração da escritura pública.

V. O Sr. J... verificou que na certidão da Caderneta Predial emitida pela referida Repartição de Finanças configuravam, enquanto titulares actuais do prédio inscrito sob o artigo urbano nº 4690 – que resultou da anexação dos artigos matriciais rústicos nos 8162 e 8163 e do artigo matricial urbano 1055 – H... e mulher I....

VI. Tendo, de imediato, transmitido tais factos aos AA.

VII. Os referidos titulares, H... e mulher I..., são pessoas que os AA. nunca conheceram.

VIII. O prédio, inscrito sob o artigo 8162, foi registado em nome dos 1os RR., juntamente com outros prédios, com a alegação de que os antepossuidores eram desconhecidos, “por se tratarem de factos muito antigos”.

IX. O prédio estava inscrito na respectiva matriz em nome dos AA.

X. Entre os AA. e os 2os RR. não figuram, de permeio, os 1os RR. que supostamente haveriam adquirido o terreno, posto que, a certidão da Repartição de Finanças de Vila Nova de Poiares é despida de qualquer referência aos 1os RR.

XI. Os 1os RR. requereram o registo em seu nome, na qualidade de herdeiros de Iria dos Santos, invocando, para tal, que o prédio (artigo matricial 8162) fazia parte da herança e que os “segundos antepossuidores eram desconhecidos”.

XII. Na declaração de liquidação de sisa nº 297/2000 de 31 de Julho de 2000 o 2º R. declarou que vai comprar a C... e marido e a José Jorge dos Santos Lopes e mulher o prédio rústico inscrito sob o artigo 8162.

XIII. Os AA. anualmente deslocam-se a Vila Nova de Poiares.

XIV. Os AA. e a sua família são conhecidos no meio.

XV. Os AA. sofreram um choque profundo quando tiveram conhecimento da situação relativa ao prédio rústico 8162.

XVI. Os AA. são pessoas honestas e sensíveis, incapazes de fazerem mal a alguém.

XVII. Os AA. tinham acordado alienar o terreno ao Sr. J..., pelo valor de € 14.950.

XVIII. Os AA. ainda não se recompuseram do choque que sofreram.

XIX. Andam cabisbaixos e sem vontade de voltarem a Vila Nova de Poiares.


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As questões suscitadas na apelação - delimitadas pelas conclusões da alegação, nos termos dos art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC - podem resumir-se do seguinte modo:

1 - A falta de prova pelos AA. do elemento da causa de pedir correspondente à titularidade efectiva ou presumida da propriedade do imóvel;

2 - A necessidade de formulação do pedido de reconhecimento da propriedade dos AA.;

3 - A inexistência jurídica do prédio reivindicando;

4 - O carácter parcial da eventual nulidade das vendas entre os RR.

5 - A obrigação de indemnizar que recaiu sobre os RR.

1ª Questão.

Sobre a qualificação da acção.

Entende a apelante (conclusão 1ª) que a acção é de reivindicação.

Vejamos se assim é na realidade.

O jus reivindicandi é a manifestação da supremacia universal do direito do proprietário que, impondo-se erga omnes, determina a passividade dos restantes sujeitos jurídicos e a reposição intrínseca da plenitude do gozo do objecto.

O que individualiza esta acção - e dá tradução adjectiva a um poder simbólico do proprietário - é a concomitância de dois requisitos ao nível do pedido: o do reconhecimento do direito de propriedade do autor e o da restituição da coisa, a acatar pelo demandado, simples possuidor ou detentor, conforme o nº 1 do art.º 1311 do Código Civil.

Tem-se considerado que apenas é essencial o pedido de restituição, podendo, em face da configuração da causa de pedir, tomar-se por implícito o reconhecimento da propriedade (entre outros, o Ac. da Rel. de Lx.ª de 19/06/74 in BMJ 238-p.278).

Quando, embora se invoque a aquisição do direito de propriedade, a restituição tenha por fundamento não a ofensa directa da actuação dos poderes respectivos, mas a nulidade (ou ineficácia) de um ou mais negócios jurídicos virtualmente translativos do direito - uma ou mais vendas a non domino - cuja declaração também é pedida, a acção é meramente de condenação mas não de reivindicação. Nesta hipótese não estão em confronto a propriedade e a detenção da coisa, esta como poder de facto que afronta a plenitude do exercício daquele direito. O autor continua na posse da coisa (ao passo que o reivindicante é sempre o proprietário não possuidor). A restituição que se pede é afinal a negação de um direito conflituante e não propriamente a recuperação da coisa objecto do direito.

É o que justamente sucede no caso dos autos.

Os AA. afirmam-se donos e também detentores do imóvel - cfr. o alegado em 43 a 45 da p.i. - pelo que não visam específicamente a restituição deste, devendo entender-se com o alcance acima apontado a terminologia empregue na alínea d) do pedido.

A causa de pedir da acção e os pressupostos do direito accionado.

Substancia-se a acção na declaração de nulidade das vendas realizadas entre os 1ºs e os 2ºs RR. e, sequencialmente, entre estes e os 3ºs RR (aqui se integrando a ora apelante). Invalidade apoiada no facto de, segundo a petição, logo com o primeiro acto translativo, aqueles 1ºs RR., C... e marido D..., prevalecendo-se de um registo de aquisição que irregularmente haviam logrado, terem vendido o imóvel constituído pelo art.º 8162 da matriz rústica de Santo André de Poiares supostamente pertencente aos AA..

Apreciando.

O art.º 892 do Código Civil comina a nulidade da venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar.

Tem sido entendido na doutrina que em relação ao verdadeiro proprietário a venda efectuada a non domino é res inter alios, e, portanto, ineficaz, verificando-se a nulidade apenas nas relações contratuais entre vendedor e comprador (Vaz Serra, RLJ 106 - p.26). A nulidade só procederia no âmbito da responsabilidade contratual. A ineficácia dispensa o verdadeiro dono da obtenção da prévia declaração de nulidade da venda se quiser reivindicar a coisa vendida directamente do adquirente (por não a possuir). Mas nada obsta a que, porque nisso sempre terá interesse, o proprietário requeira ao tribunal a declaração de ineficácia do negócio viciado.

Os AA. pedem a declaração de nulidade das vendas. Porém, ao tribunal, ao abrigo do disposto nos art.ºs 661 e 664 do CPC, seria lícito convolar tal qualificação para a ineficácia .

Indispensável era para os AA. a demonstração, mediante o concurso dos inerentes factos constitutivos, de que a coisa pertencia a outrem - neste caso a eles próprios - e não aos supostos vendedores ilegítimos.

Em face da ausência dessa prova, a acção, ex vi do disposto no art.º 342, nº 1 do CC, tem necessariamente de naufragar.

Com efeito, não foi alegado o facto jurídico de que promanou a pretensa propriedade dos AA. sobre o prédio rústico integrado pelo art.º 8162 da matriz respectiva de Santo André de Poiares.

A tal propósito, tão só afirmaram os AA. terem comprado o imóvel por escritura pública de compra e venda de 29 de Novembro de 1969 (art.º 2º da p.i.) e que o mesmo se encontrava inscrito em seu nome na matriz (art.º 14 da p.i.). Omitiram, pois, a alusão a qualquer modo de aquisição originária do direito (usucapião, acessão, etc.), ainda que a benefício do alienante, ou de factos dos quais o direito se pudesse presumir, como o registo predial de aquisição (art.º 7 do CRP) ou a posse (art.º1268 do CC). Aparentemente, os AA. confundem a inscrição fiscal com a inscrição no registo predial.

A simples aquisição derivada não é cabalmente certificativa da recepção do direito alienado, visto o princípio nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet.

De resto, os 3ºs RR., últimos adquirentes na cadeia das transmissões impugnada, têm a seu favor a presunção resultante do registo da aquisição do imóvel a seu favor (art.º 5º do CRP), presunção que não foi, apesar de tudo, ilidida.

Consequentemente, na procedência global das conclusões A a I da apelação, conducentes ao total insucesso da acção, em função da não comprovação do pressuposto basilar da violação do direito dos AA., mostra-se inútil a tomada de posição sobre as conclusões J e seguintes.

Ficando, assim, prejudicada a análise das restantes questões do recurso, claramente subsidiárias da eventual ausência de fundamento do primeiro problema ali abordado.

Pelo exposto, julgando a apelação procedente, revogam a sentença e, na improcedência da acção, absolvem os RR. de todos os pedidos formulados.

Custas pelos apelados.