Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
298/10.6TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: QUESTÕES PRÉVIAS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 11/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 338º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Está vedado ao juiz, no início da audiência de julgamento, alterar a qualificação jurídica dada na acusação aos factos imputados ao arguido; se o fizer, o juiz pronuncia-se sobre o próprio mérito do objecto da causa, sendo certo que deste faz parte a qualificação jurídica.
E o mesmo sucede no tempo que decorre entre o saneamento e a audiência de julgamento, sendo certo que, recebida a acusação por despacho, a prolação de despacho em sentido contrário (rejeitando-a), constitui ofensa de caso julgado formal.
Este despacho é ilegal, dado que infringe as disposições do processo penal e, como não é determinada a sua nulidade, sofre de irregularidade, importando a sua invalidade.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 298/10.6TAVIS do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Viseu, foi deduzida acusação pública contra o arguido A…, melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violação de proibições previsto e punido no art. 353.°, do CP.

2. Através de despacho judicial proferido em 19/05/2011, foi rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Público por entender que os factos de que vem acusado o arguido não constituem crime, foi determinado o arquivamento dos autos e dado sem efeito o julgamento designado para aquela data.

3. Inconformado com o assim decidido, recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1ª - Vem o presente recurso interposto da decisão do Mmº Juiz a quo de fls. 76 e ss que deu sem efeito a audiência de julgamento designada e determinou o arquivamento dos autos, por entender que os factos descritos na acusação deduzida pelo MP a fls. 41 e ss não configuram a prática de crime, concretamente do crime de violação de proibições pp pelo artigo 353º do CP, que ao arguido vinha imputado.

2ª- Porquanto tal decisão violou, por errada interpretação, o disposto no mencionado art. 353 do CP, bem assim como o artigo 69 do mesmo diploma.

3ª - Na verdade, entendeu o Mmº Juiz a quo que o artigo 353º do CP não abrange a falta de entrega do título de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir, entendendo que aquela obrigação de entrega extravasa o âmbito de tal pena acessória (previsto no artigo 69), o qual se resume á proibição de conduzir (obrigação de non facere).

4ª - Porém, tal interpretação contraria manifestamente o texto da lei e deixa por explicar as alterações introduzidas pela Lei 59/2007 no artigo art. 353.° do CP.

5ª- Resultando manifesto da referida alteração que quando o legislador se refere à violação de imposições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória, está a abranger a violação da obrigação/imposição de entrega da carta de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir a que alude o artigo 69 do CP.

6ª- Na verdade, como decorre dos artigos 69°, n° 3, do Código Penal e 500°, n° 2 e 4 do CPP a obrigação (sinónimo de imposição) de entrega da carta de condução é inerente à própria pena acessória de proibição de conduzir, não existindo esta sem aquela.

7ª- Como decorre de tais normativos, a condenação em pena de proibição de conduzir implica a imposição ao condenado da obrigação de entrega do título de condução.

8ª- Aliás, a interpretação efectuada pelo Mmº Juiz, salvo o devido respeito por opinião contrária, para além de violar claramente o texto da lei, não tem em conta a unidade do sistema jurídico.

9ª- Na verdade, segundo tal interpretação teríamos de concluir que o legislador tratava de forma mais benévola a violação da «sanção» de natureza criminal do que a violação da correspondente sanção de natureza contra-ordenacional.

10ª- Pelo exposto, deve revogar-se a douta decisão em recurso e ordenar-se a sua substituição por outra que determine o prosseguimento dos autos com a designação de data para julgamento do arguido pelo crime de violação de proibições pp pelo artigo 353º do CP, de que vem acusado.

V. Exas., no entanto, farão JUSTIÇA!”

*

4.  Respondeu o arguido, concluindo ( transcrição):

“1ª Vem o presente recurso interposto pela Digníssima Sra. Procuradora do Ministério Público, da decisão proferida a fls. 76 e seguintes que deu sem efeito a audiência de julgamento designada e determinou o arquivamento dos autos, por considerar que os factos descritos na Acusação de fls.41-42 não constituem crime.

2a - Não concordamos com a integração dos factos no tipo legal do art.º 353° do Código Penal como pretende o recorrente.

3a- Só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória.

4ª - Os arts. 69º do CP e 500º do C.P.P não cominam expressamente a falta da entrega do título de condução com a prática de qualquer tipo legal de crime, antes neles se prescreve que essa falta dita a sua participação ao Ministério Público.

5a - O cumprimento da pena acessória não ocorre de forma imediata e automática a partir do trânsito em julgado da sentença que a aplicou, mas tão só após a entrega espontânea ou forçada do título.

6a - A alínea b) do art.º 348° do Código Penal só prevê a prática do crime por cominação da autoridade ou funcionário nos casos de "ausência de disposição legal".

7a - A função de garantia do princípio da legalidade exige que o legislador formule a lei penal de modo preciso e não susceptível de interpretações gravemente díspares, sobretudo quanto à natureza, âmbito e círculo material da conduta proibida.

8a - A falta de entrega da carta constitui obrigação processual do condenado, não punida penalmente que não integra os elementos objectivos do tipo de ilícito do art. 353.° do Código Penal.

9a - A douta Sentença a quo procedeu ao correcto e criterioso enquadramento jurídico-penal da matéria de facto ali dada como provada e não provada e, consequentemente, não violou, interpretou ou aplicou qualquer norma legal em desconformidade com os Ordenamentos Jurídico-Penal, Processual.

Em consequência, deverá o presente recurso ser julgado improcedente, devendo ser integralmente mantida a douta Sentença a quo.”

*

      5. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal.

      6. Na Relação, o Ilustre Procurador – Geral Adjunto emitiu douto parecer, concluindo (transcrição):

“4. … em face da jurisprudência mais recente desta Relação sobre esta matéria no sentido dos argumentos também defendidos pelo Mm.º Juiz "a quo ", quer-nos parecer que o seu recurso poderá não proceder.

É que, apesar de terem existido algumas divergências nesta matéria, tem sido também entendimento deste Tribunal da Relação de Coimbra que, no que toca à execução desta sanção acessória de proibição de conduzir, está previsto que, feita a cominação para entrega da carta de condução com vista ao cumprimento da medida de inibição de conduzir, a não entrega da carta de condução conduzirá tão só a que se diligencie administrativamente pela sua apreensão.

Assim, no Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 12/07/2011 - Proc. 295/09.4TAVIS.C1 -, refere-se a propósito de factualidade igual à dos autos, designadamente, que:

“Assim como o entende o recorrente, divergindo apenas no seu entendimento de que haveria sido  praticado  o  crime  do  art.   353  do CP,  violação de imposições,  proibições ou interdições. Mas, temos que também aqui não lhe assiste razão.

Como salienta Maia Gonçalves em anotação ao art. 353º do seu CP anotado e comentado, "a violação prevista é só relativamente a proibições ou interdições impostas por sentença criminal a título de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade", sendo que a alteração operada pela L. nº 59/2007 não altera este entendimento, ao acrescentar a violação de imposições. Tem de ser uma imposição relativa a pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade (ou pena aplicada em processo sumaríssimo).

E, a não entrega da licença de condução no prazo legal após o trânsito em julgado da decisão que determinou a apreensão não é pena acessória. A pena acessória consiste na inibição da faculdade de conduzir veículos motorizados, sendo a entrega da carta um meio de facilitar a materialização e até controlo do cumprimento da pena acessória.

Nem a sentença tem que impor a entrega e, não se verificando a entrega voluntária, prescreve o artigo 500, do Código de Processo Penal:

2- No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.

3- Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.

A consequência única da não entrega da licença de condução é, ser ordenada a sua apreensão, (sublinhado nosso).

Neste sentido, os Acs. desta Relação citados, aí se referindo: "A norma do artigo 353º do CP diz quem violar imposições, proibições... determinadas... por sentença criminal ...a título de pena acessória é punido...; não diz imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória"  (sublinhado nosso).

E o Ac. desta Relação proferido no Proc. 1745/08.2TAVIS.C1 "Não comete o crime p. e p. artigo 353° do CP (Violação de imposições, proibições ou interdições) o agente que, condenado em pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, não entrega o título de condução, pese embora a expressa notificação para o efeito levada a cabo pelo tribunal da condenação".

O preceito em causa (art. 353 do CP) não consente a integração nele de comportamentos processuais prévios à execução da sanção acessória, mas tão só comportamentos ou proibições que a integrem."

No mesmo sentido ainda Acórdãos da Relação de Coimbra de 22/04/2009 - Processo 329/07.7GTAVR.C1 (idem), de 14/10/2009 (Processo n.° 513/05.8TAOBR.C1), de 25/11/2009 (Processo 260/08.9TAAND.Cl), de 25/11/2009 (Processo n.° 2158/08.1TALRA.C1), de 21/04/2010 (Processo n.° 253/08.6TAVGS.C1), de 28/04/2010 (Processo n.° 135/08.1TAVGS.Cl) e de 12/05/2010 (Processo n.° 1745/08.2TAVIS.Cl).

5. Nestes termos, face a tudo o que ficou exposto, na medida em que também entendemos que não está prevista para este tipo de situações omissivas a cominação da prática do referido crime de Violação de Proibições, antes tão só a necessidade de actuação administrativa, em consonância com a fundamentação do Mm.º Juiz "a quo", somos de parecer que o recurso do Ministério Público poderá improceder.”

*

      7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP não foi apresentada resposta.

*

      8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

      II. Fundamentação

      1. Delimitação do âmbito do recurso

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões da motivação constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Ed., pág. 335, e Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, pág. 103).

Assim, no caso concreto, a questão que se impõe decidir traduz-se em saber se o Tribunal a quo, perante a factualidade vertida na acusação, deveria ter realizado o julgamento afim de apurar se o arguido/recorrido incorrera na prática de um crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal.

 A decisão recorrida - transcrição

“O arguido vem acusado da prática do crime de violação de proibições, p.p. pelo art. 353.º do Código Penal.

Em tempo recebeu-se a acusação, pese embora outras, pela prática do mesmo crime, tivessem sido rejeitadas, pelos fundamentos que infra se exporão. Isto porque, então, se aguardava por acórdão uniformizador de jurisprudência, vistos os entendimentos opostos que se constataram no Tribunal da Relação de Coimbra sobre esta questão na sequência de decisões proferidas neste mesmo 1.º Juízo Criminal, e acautelando a possibilidade de que a jurisprudência que viesse a ser fixada fosse no sentido de considerar a conduta criminalmente punível.

Tal não veio, contudo, a acontecer, uma vez que foi rejeitado no STJ, por extemporâneo, o recurso foi interposto com vista à uniformização de jurisprudência.

A questão permanece controvertida e o entendimento do julgador, nestes autos, continua a ser aquele que, em tempo e noutros processos, já sustentou levando a rejeitar as acusações ou, como no caso, conhecendo da questão previamente ao julgamento, não o realizasse.

Dada esta explicação, que se impunha por razões de lealdade e coerência processual, a conduta que se imputa ao arguido, como integradora deste crime, traduz-se no facto de este não ter entregue a carta de condução, no prazo legal, para cumprimento da pena acessória em que foi condenado,

O art. 353.º do CP na versão anterior à Lei 59/2007, de 4 de Setembro, dispunha que “quem violar proibições ou interdições impostas por sentença criminal, a título de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”

Com a revisão operada pela Lei 59/2007, foi introduzido no tipo o segmento “imposições”, e substituiu-se “impostas” por “determinadas” passando o tipo a prever, então, que “quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.

A propósito da alteração legislativa, P. Pinto de Albuquerque, no seu “Comentário do Código Penal (...)”, em anotação ao art. 69.º escreveu, na anotação 13. que “ (...) a incriminação neste artigo foi alargada com o propósito de incluir precisamente estes casos de incumprimento de imposições resultantes de penas acessórias. Não sendo da lavra daquele autor o sublinhado que aqui se acrescentou, por relevante, entende-se que, efectivamente, assim não é e, podendo ter sido essa a intenção do legislador, o que se duvida, efectivamente essa intenção não passou para o texto da lei.

 De facto, aqui, por obediência ao princípio da legalidade, a norma haveria de ser estrita e precisa, sem qualquer espaço de ambiguidade para o julgador, o que não sucede com a actual redacção, atentatória, aliás, da própria convenção Europeia dos Direitos do Homem – art. 7.º. Aliás, este mesmo princípio obsta a qualquer interpretação extensiva das normas e, muito mais, ao recurso à intenção do legislador para as interpretar quando no texto não se constata a correspondência verbal inequívoca exigível. E é esta intenção que vem, amiúde, invocada na jurisprudência, mas crê-se que se trata de uma hermenêutica que atenta, manifestamente, contra o assinalado princípio da legalidade.

Aliás, duvida-se que a intenção do legislador tenha sido a de alargar o campo da punição -  e se foi, a técnica legislativa foi deficiente, pela assinalada ambiguidade - isto porque, desde logo, é questionável a dignidade penal da conduta – e isso atenta contra o princípio da intervenção mínima do Direito Penal e contra o princípio da igualdade -  e não se vê como o legislador pudesse querer incriminar, em particular, o incumprimento da obrigação da entrega da carta de condução para cumprimento da pena acessória com uma pena de prisão até 2 anos ou com multa até 240 dias e não punisse o incumprimento de qualquer outra obrigação processual decorrente da aplicação de pena acessória, ou principal, nomeadamente, v.g., a falta de pagamento das guias da multa, ou a fuga do arguido condenado em prisão, que antes de entrar no estabelecimento prisional, pela primeira vez para iniciar o cumprimento da pena, se põe a monte!

E não se vê o porquê de optar pela punição com o crime de violação de proibições quando, para igual conduta, no âmbito das contra-ordenações estradais, previu a punição expressa com a desobediência.

Por outro lado, o legislador não usou a expressão “resultantes de” mas sim “determinadas (...) a título de (...).” e isso faz toda a diferença.

É que da condenação numa pena acessória decorrem ou “resultam” obrigações (que o autor parece querer abranger ao referir “imposições”, mas impropriamente), incluindo processuais e de controlo do próprio cumprimento: desde logo a da entrega da carta. Mas, a determinação a “título de” só se refere, ou só se pode referir, ao conteúdo ou substrato material da própria pena, ou seja, em concreto, a sanção[1] em si: “à proibição de conduzir”, enquanto dever de abstenção.

E o que a norma do art. 353.º do Código Penal diz é que pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória; não diz, imposições (obrigações) processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória. Logo, só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória: v.g. quem conduzir (art. 69.º do CP), quem exercer função (art. 66.º do CP) ou quem violar a suspensão do exercício de funções (art. 67.º do CP). Já não pratica o crime quem não cumpre as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória: v.g, não entrega a carta de condução, não entrega a cédula profissional, não entrega a arma e carteira identificativa de serviço, estas obrigações processuais e não as imposições (a pena) em si.

E não se pode entender que a obrigação de entrega da carta é parte integrante ou o conteúdo da própria pena acessória, isto é, uma imposição em si. Isto porque o legislador define o conteúdo desta no n.º 1 do art. 69.º do Código Penal e o princípio da legalidade e da tipicidade da norma penal não deixam espaço para interpretações que contrariem o elemento literal do tipo: a imposição material penal é a “proibição de conduzir”, tão só.

Entende-se, pois, que a norma do n.º 3 do art. 69.º é meramente processual, ordenadora do cumprimento da pena e com função de controle deste mesmo cumprimento, repete-se, demonstrando-o, aliás, o facto de estar “repetida” no art. 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (com a diferença, apenas, no substantivo “licença” e “título”).

E faz todo o sentido que assim seja, até porque a execução da pena acessória só se inicia com a entrega da carta ou efectiva apreensão, como a jurisprudência definitivamente firmou e o citado autor, aliás, defende em comentário ao art. 500.º do Código de Processo Penal, na sua obra “Comentário do Código de Processo Penal”[2]

Uma nota mais para dizer que esta interpretação que se faz, distinguindo entre imposição penal e obrigação processual, encontra situação paralela no âmbito das infracções contra-ordenacionais estradais: se o condutor infractor sancionado com a inibição de conduzir não entregar a carta para cumprimento da sanção acessória (art. 182.º, n.º 2, al. a) do CE), então, como na proibição de conduzir, é notificado para entregar a carta, porque o cumprimento pressupõe a apreensão (art. 160.º, n.º 1 do CE), assim como na proibição de conduzir o cumprimento só se inicia com a efectiva entrega. Mas, no âmbito das infracções estradais, a notificação é feita com a cominação de condenação pelo crime de desobediência decorrente da falta de entrega (art. 160.º, n.º 3, do CE). E, mais ainda, independentemente disso, se não entregar, sem prejuízo do procedimento criminal, ordena-se a apreensão (art. 160.º, n.º 4, do CE).

Quer dizer, o legislador distinguiu e tratou como entendeu adequado, distintamente, a inibição de conduzir enquanto “proibição” contra-ordenacional” em si, e as obrigações decorrentes dessa inibição, sancionando um outro comportamento, o processual de entrega da carta, com o crime de desobediência. O que não fez no âmbito processual penal, podendo também fazê-lo. E, ao mesmo passo, como no âmbito processual penal, também previu a possibilidade de apreensão da carta para cumprimento da pena.

No âmbito da proibição penal de conduzir, que materialmente é igual à inibição contra-ordenacional (ambas têm o mesmo conteúdo: a impossibilidade de conduzir) o legislador poderia ter adoptado, exactamente o mesmo procedimento e regulamentação processuais, mas não o fez, e notoriamente distinguiu e tratou de forma diferente o que diferente é: a imposição decorrente da sanção acessória e a obrigação processual decorrente da aplicação dessa sanção.

Não podemos presumir que se esqueceu, no âmbito penal, de regular essa matéria ou que a tratou antes unitariamente, fazendo equivaler a obrigação processual á imposição penal.

 Podemos e devemos entender, sim, que tendo podido dar ao instituto o mesmo tratamento que deu no âmbito das contra-ordenações estradais, a propósito da inibição de conduzir, não o fez, e optou por não o fazer, punindo antes, à posteriori, com o crime do art. 353.º a violação do conteúdo material da pena acessória, em vez de punir preventivamente a obrigação processual decorrente da aplicação dessa mesma pena.

Quer dizer, então, e por tudo, que as normas que processualmente regulamentam a execução da pena acessória estão sistematicamente bem delimitadas no código. O substrato material da pena, que aqui nos interessa, é a proibição de conduzir, tão só, e está também ele bem delimitado, excluindo o próprio acto de entrega da carta como elemento integrante desse substrato. Logo, se o arguido condenado não entrega a carta, como é sua obrigação processual, então é ordenada a apreensão. Enquanto não entregar, não se inicia o cumprimento da pena.

Concretizada a apreensão, inicia-se o cumprimento da pena. Se no período que dura a proibição o arguido conduzir, então põe em causa a imposição resultante da pena acessória e comete o crime de violação de proibições.

Assim sendo, e concluindo, a falta de entrega da carta constitui obrigação processual do condenado, não punida penalmente que não integra os elementos objectivos do tipo de ilícito do art. 353.º do Código Penal.

*

Pelo exposto, e por os factos de que vem acusado o arguido não constituírem crime, ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.º 2, al. a) e 3, al. d), do Código de Processo Penal, rejeita-se a acusação e dá-se sem efeito, em consequência, o julgamento.

Sem custas.

Notifique.

Oportunamente arquivem-se os autos.”

*

*   

*

3. Apreciando

Questão prévia

Por despacho proferido em 18-10-2010, transitado em julgado, foi efectuado o saneamento dos autos, recebida a acusação e designada data para julgamento. Na primeira data desiganda, porém, e com as razões explanadas no despacho recorrido, o Juiz a quo proferiu o despacho recorrido e deu sem efeito o julgamento.

A estrutura do processo penal português apresenta a fase de Inquérito, a fase da instrução ( facultativa – arts 286º segs) e a fase do julgamento.

O inquérito é da competência do Ministério Público (art. 262º CPP), sujeito aos princípios de objectividade e da legalidade (art. 283º CPP)., e que no encerramento deduz acusação ( art 262º, CPP), arquiva o inquérito  ou suspende provisoriamente o processo.

Efectuado o saneamento do processo, e recebida a acusação, a discussão sobre as várias soluções de direito aplicáveis ao caso terá lugar na audiência de discussão e julgamento – art 339º, nº 4 do CPP.

Aquando do saneamento do processo, o princípio da acusação impõe a inibição do controlo substantivo da acusação pelo juiz do julgamento. O poder de sindicância da acusação pelo juiz do julgamento engloba no seu âmbito apenas o controlo dos vícios estruturais graves da acusação referidos no art 311º, nº 3, do CPP. ( cfr PP Albuquerque Com CPP pág 790.

Decorre da estrutura acusatória do processo penal, - ac RC de 5/1/2000 na CJ, I, 42  -, que é a acusação que define o objecto do processo e este integra não só os factos mas também a pretensão que nela se formula. O juiz do julgamento, com posição de independência em relação quer ao acusador quer ao acusado, não pode nem deve ultrapassar o objecto que lhe é submetido, sendo certo que este compreende a qualificação jurídica. Até porque um dos requisitos obrigatórios da acusação é a indicação das normas legais aplicáveis. São inseparáveis, na acusação, os factos e a incriminação (os factos e a pretensão).

Consequentemente, está vedado ao juiz, no início da audiência, alterar a qualificação jurídica dada na acusação aos factos imputados ao arguido. Se o fizer, o juiz pronuncia-se sobre o próprio mérito do objecto da causa, sendo certo que desta faz parte a qualificação jurídica.

O mesmo sucederá no tempo que decorre entre o saneamento e a audiência de julgamento.

Com a agravante de que recebida a acusação por despacho, a prolação de despacho em sentido contrário, constitui ofensa de caso julgado formal ( cfr anotações aos arts 277º, 338º, 368º e 375º, no Com CPP de PP Albuquerque, normas que revelam a permanência do caso julgado formal das decisões interlocutórias no CPP)

Assim, o despacho recorrido é ilegal, (embora se compreenda o espírito prático e pragmático da sua oportunidade) dado que infringe as disposições do processo penal, e como não é determinada a sua nulidade, sofre de irregularidade, importando a sua invalidade.

Em resumo, a rejeição da acusação, por falta de objecto e/ou fundamento, proferido despacho de saneamento e designada data para julgamento não pode ser decidida pelo juiz do julgamento. Só poderia ocorrer no momento em que é exarado o despacho nos termos do art.º 311.º do CPP. Com efeito, ao designar data para início do julgamento, o juiz aceitou os factos vertidos na pronúncia e o legislador reservou para a audiência, produzida prova e discutida a causa o momento próprio para conhecimento de todas as questões supervenientes, incluindo a já mencionada discussão das várias soluções de direito aplicáveis ao caso.

III. Dispositivo

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 5.ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra em declarar inválido o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro que designe dia para a audiência de julgamento.

Sem tributação.

    


Isabel Valongo (Relatora)

Paulo Guerra



[1] Vide, P.Pinto de Albuquerque, idem, a pag. 834, quando refere quais os elementos objectivos do tipo, nele não elencando, logicamente, as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena, acessória ou principal.
[2] De salientar que a anotação deste autor ao art. 500.º do CPP é diversa, na terceira edição, daquela que existia nas anteriores, tendo sido retirado um segmento (sem explicação) onde se tratava, também, de forma equivalente à que se citou do CP, a problemática da falta de entrega da carta de condução, deixando em aberto quer a possibilidade de este autor ter mudado de posição que de ter, simplesmente, procedido à reorganização das matérias em anotação.