Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
228/04.4TBILHV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
PROMESSA DE VENDA
NULIDADE DO CONTRATO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONSTITUIÇÃO
ALIENAÇÃO
BEM IMÓVEL
SOCIEDADE
DÍVIDA
SÓCIO
VÍCIOS
VONTADE
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Data do Acordão: 03/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÍLHAVO - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 236º, Nº 2, 280º, Nº 1, E 829º-A, DO C.CIV.; 6º, Nº 2, E 246º, Nº 2, AL. C), DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS.
Sumário: I – Incidindo o direito de propriedade sobre a totalidade das coisas que constituem o seu objecto, não podem as suas partes integrantes ou componentes ser objecto de direito de propriedade de titular diferente, sendo o destino jurídico da coisa unitário.

II – Daí que para se proceder à venda de parte concreta de edifício seja necessário constituí-lo previamente em propriedade horizontal, podendo posteriormente proceder-se à venda individualizada das suas fracções autónomas.

III – Isso, no entanto, não impede que se celebre contrato-promessa de compra e venda de parte de edifício, correspondente a fracção autónoma após posterior submissão daquele prédio ao regime de propriedade horizontal, considerando os efeitos meramente obrigacionais daquele negócio jurídico.

IV – Este contrato-promessa só será nulo se for impossível a constituição do edifício em propriedade horizontal de modo a permitir a individualização da parte prometida vender como fracção autónoma, pois, nesse caso, o seu objecto será impossível – artº 280º, nº 1, do C. Civ.

V – A constituição de um edifício em propriedade horizontal exige, como requisito de interesse público, que a administração pública verifique e certifique a possibilidade do mesmo ser dividido nas fracções pretendidas, de modo a que seja viável a sua utilização para o fim a que estão destinadas.

VI – O acto de alienação de imóveis de uma sociedade integra o núcleo de competência relativamente exclusiva dos sócios, donde resulta que se o pacto social não dispuser de outro modo, só eles poderão decidir sobre a alienação de bens imóveis da sociedade, não podendo os gerentes, sem estarem cobertos por essa deliberação prévia, praticar tal acto por sua iniciativa – artº 246º, nº 2, al. c), do Código das Sociedades Comerciais.

VII – Sendo o contrato-promessa de alienação de um bem imóvel duma sociedade um acto negocial preparatório daquele acto de alienação, integra também a referida reserva relativa dos sócios, pelo que os gerentes não poderão praticá-lo em nome da sociedade sem os sócios terem decidido a sua outorga.

VIII – Porém, a falta de deliberação em Assembleia Geral sobre a alienação do bem imóvel prometido vender não afecta a validade nem a eficácia do contrato-promessa celebrado, desde que todos eles intervenham no mesmo em representação da sociedade.

IX – O nº 2 do artº 6º do C. S.C. dispõe que as liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta, pelo que a capacidade jurídica das sociedades comerciais, apesar do seu escopo lucrativo, compreende a prática de actos gratuitos, desde que estes possam ser incluídos numa prática generalizada habitual por parte das sociedades comerciais.

X – O pagamento de dívidas dos sócios pela sociedade embora não possa ser considerado uma prática usual, também não deve ser excluído, sem mais, dos “fins” das sociedades comerciais.

XI – Na verdade, se a primeira finalidade duma sociedade comercial é a obtenção de lucro, a última finalidade é a sua distribuição pelos sócios, e esta distribuição tanto pode ser efectuada através da entrega de receita, como de bens da sociedade, conforme resulta do disposto nos artºs 31º e 32º do C.S.C., assim como pode essa entrega ser efectuada por transmissão directa do património da sociedade para o património dos seus sócios, como por transmissão para o património de terceiros credores desses sócios, com o acordo destes, para liquidação das suas dívidas.

XII – A divergência bilateral e consensual entre a vontade e a declaração, sem que se revele que essa divergência procure enganar terceiros, é uma questão que deve ser resolvida no âmbito da interpretação dos negócios jurídicos, tendo inteira aplicação a regra constante do artº 236º, nº 2, do C. Civ., segundo a qual o contrato deve valer com o sentido correspondente ao da vontade real das partes.

XIII – A sanção pecuniária compulsória prevista no nº 1 do artº 829º-A, do C.Civ., apenas está prevista como instrumento de coacção ao cumprimento de obrigações de prestação de facto e não de entrega de coisa.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Os Autores instauraram a presente acção declarativa, com processo ordi­nário, pedindo a condenação da Ré a:
a) deixar imediatamente livres e devolutas e a entregar aos Autores as divisões que ocupa no primeiro andar do edifício identificado (no art. 1º da petição inicial) e que integrarão a fracção que, pelo contrato referido, se comprometeu a vender aos Autores;
b) pagar aos Autores a indemnização de € 1.000,00 por mês desde 20 de Dezembro de 2003 até à data da entrega das referidas divisões aos Autores;
c) pagar a sanção pecuniária compulsória de € 1.000,00 por dia desde o oitavo dia após citação até à do efectivo cumprimento do pedido na alínea a).
Para fundamentarem a sua pretensão alegam, em síntese:
Ø A Ré é proprietária de um prédio urbano, sito na Gafanha da Nazaré, tendo a mesma, por contrato de 20 de Dezembro de 2001, prometido vender-lhes, a eles, ou a sociedade por eles nomeada, até à realização da respectiva escritura, parte do primeiro andar desse edifício, pelo preço de 20.000.000$00 (€ 99.759,58).
Ø O preço foi pago na sua totalidade, tendo-se a Ré obrigado a submeter aquele prédio ao regime da propriedade horizontal, por forma a que a parte prome­tida vender constitua uma fracção autónoma.
Ø A Ré não obteve os documentos necessários para o efeito.
Ø Foi também acordado que os Autores entrariam, na data da celebração daquele contrato, na posse da parte do imóvel prometida vender, ficando a Ré a usar, gratuitamente, durante dois anos, as divisões que aí ocupava, que deveria deixar livres em 20 de Dezembro de 2003.
Ø A Ré recusa-se a entregar as divisões do imóvel que ocupa, tendo as mesmas um valor locativo não inferior a € 1.000,00 por mês.

A Ré contestou, alegando em síntese:
Ø É obrigação dos Autores promoverem as diligências necessárias à constituição da propriedade horizontal, o que não têm feito, além de ser da sua responsabilidade a realização das obras necessárias para tal.
Ø A Ré apenas está obrigada a assinar os documentos necessários, gozando, como proprietária, do pleno direito de uso sobre tal imóvel e ditas divisões, não podendo eles ter posse própria sobre as mesmas com base em tal contrato-promessa, sendo a referida cláusula nula.
Ø Sendo improvável o deferimento do pedido de viabilidade de constitui­ção da propriedade horizontal resta aos Autores receberem o valor que pagaram no âmbito daquele contrato, tendo na mesma data sido celebrado um outro contrato-promessa de compra e venda de quotas sociais, onde vem indicado o pagamento de 20.000.000$00, como quitação do preço da venda daquela fracção, não tendo aqueles pago o valor que referem.
Ø Os gerentes não tinham autorização para vender aquele imóvel, pelo que tal contrato é nulo.
Concluíram pela improcedência da acção.

Os Autores replicaram, concluindo pela improcedência das excepções invocadas.

Veio a ser proferida sentença que julgou a causa nos termos seguintes:
Pelo exposto, decide-se:
a) condenar a Ré a deixar imediatamente livres e devolutas e a entregar aos Autores as divisões que ocupa no primeiro andar do edifício (identificadas em r) supra) e que integrarão a fracção que, pelo contrato referido, se comprometeu a vender aos Autores;
b) condenar a Ré a pagar aos Autores a indemnização mensal que se vier a liquidar, com o limite do pedido a esse respeito (€ 1.000,00 mensais), desde 20 de Dezembro de 2003 até à data da entrega das referidas divisões aos Autores;
c) condenar a Ré a pagar a sanção pecuniária compulsória de € 300,00 (trezentos euros) por dia, a contar da notificação da sentença e até à da efectiva entrega daquelas divisões aos Autores (sendo esse montante destinado, em partes iguais, aos Autores e ao Estado);
         
                                             *

Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a Ré, apresentando as seguintes conclusões:
(………………………………………………………………………)
Conclui pela procedência do recurso.

Foram apresentadas contra-alegações que concluíram pela improcedência do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.

                                             *

1. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações da recorrente, cumpre apreciar as seguintes questões:
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f) O contrato-promessa é nulo porque foi celebrado sem a Assembleia Geral da Ré ter autorizado a sua outorga?
g) O contrato-promessa é nulo porque não foi respeitada a tramitação prevista no art.º 397º, n.º 2, do C.S.C.?
h) O mesmo contrato-promessa é nulo porque se destinou a satisfazer interesses pessoais dos sócios da Ré e dos Autores, alheios aos fins da Recorrente?
i) A exigência do cumprimento duma cláusula do contrato-promessa pelos Autores traduz-se num abuso de direito porque estes sabem que não é possível a constituição da propriedade horizontal, não provaram ter efectuado diligências no sentido de a obterem e não a obtiveram?
j) Não foi demonstrada a existência de prejuízos que justifiquem a proce­dência do pedido indemnizatório?
l) A falta de prova do valor locativo da parte do prédio em causa não permite uma condenação em quantia ilíquida?
m) A indemnização não poderá reportar-se a um período com início em 20/12/2003?
n) Não pode a recorrente ser condenada numa sanção compulsória?
o) O termo inicial da sanção compulsória não pode fixar-se em momento anterior ao trânsito em julgado?
p) A fixação do termo inicial da sanção compulsória em momento ante­rior ao trânsito em julgado viola princípios constitucionais?

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2. Da nulidade da sentença

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3. Os factos
3.1. Da necessidade de ampliação da matéria de facto

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3.2. Da impugnação da matéria de facto considerada provada

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3.3. Factos provados

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4. O direito aplicável

4.1. Da nulidade do contrato-promessa

A sentença recorrida fundamentou a condenação da Ré a restituir aos Autores parte de um imóvel e a pagar-lhes uma indemnização pelo atraso nessa restituição e uma sanção compulsória na obrigação assumida por aquela, em con­trato-promessa, celebrado entre ela, como promitente-vendedora, e os Autores, como promitentes-compradores, de ceder a estes antecipadamente a posse da parte do imóvel prometida vender.
A Ré questiona esta condenação, invocando, além do mais, a nulidade daquele contrato-promessa.
Fundamenta esta nulidade nas seguintes causas.
- era impossível a constituição em propriedade horizontal do prédio que integrava a parte prometida vender;
- o contrato-promessa foi outorgado pelos representantes da Ré sem auto­rização da Assembleia Geral;
- o contrato-promessa foi outorgado sem que tenham sido cumpridas as formalidades previstas no art.º 397º, do C.S.C.;
- a celebração do contrato-promessa destinou-se a satisfazer interesses pessoais dos sócios da Ré e dos Autores, alheios à Recorrente.

4.1.1. Da impossibilidade de constituição da propriedade horizontal

Os Autores, como promitentes-compradores, e a Ré, como promitente-vendedora, celebraram um contrato-promessa de compra e venda de parte de um prédio urbano, ficando a última obrigada a submeter o referido prédio ao regime da propriedade horizontal de forma a que a parte prometida vender constituísse uma fracção autónoma.
Foi acordado que a escritura do negócio prometido seria celebrada no prazo de 30 dias após a conclusão do processo de constituição da propriedade horizontal e respectivo registo consignando-se que “na eventualidade, remotamente considerada, de ser legalmente impossível a sujeição do prédio ao regime da pro­priedade horizontal” a Ré restituiria aos Autores a quantia de 20.000.000$00 “rela­tiva ao preço por ela já recebido”.
Incidindo o direito de propriedade sobre a totalidade das coisas que cons­tituem o seu objecto, não podem as suas partes integrantes ou componentes serem objecto de direito de propriedade de titular diferente, sendo o destino jurídico da coisa unitário.
Daí que para se proceder à venda de parte concreta de edifício seja neces­sário constitui-lo previamente em propriedade horizontal, podendo posteriormente proceder-se à venda individualizada das suas fracções autónomas.
Isso, contudo, não impede que se celebre contrato-promessa de compra e venda de parte de edifício, correspondente a fracção autónoma após posterior submissão daquele prédio ao regime de propriedade horizontal, considerando os efeitos meramente obrigacionais daquele negócio jurídico.
Este contrato-promessa só será nulo se for impossível a constituição do edifício em propriedade horizontal de modo a permitir a individualização da parte prometida vender como fracção autónoma, pois, nesse caso, o seu objecto será impossível (art.º 280º, n.º 1, do C. Civil).
Não estamos, pois, perante uma condição suspensiva do contrato-pro­messa, como erradamente a qualifica o recorrente, mas sim perante uma obrigação acessória do contrato-promessa, cujo cumprimento é essencial para o cumprimento da obrigação principal que é a celebração do contrato prometido.
Realce-se que o incumprimento desta obrigação nunca será causa de nulidade do contrato-promessa, mas apenas a sua impossibilidade originária, ou seja a demonstração que aquela constituição da propriedade horizontal é impossível, cabendo o ónus dessa demonstração à Ré, nos termos das regras de repartição do ónus de prova constantes do art.º 342º, do C. Civil.
A Recorrente vem alegar que, neste caso, é legalmente impossível a constituição da propriedade horizontal de modo a autonomizar a parte prometida vender, uma vez que a entidade administrativa competente não viabilizará essa pretensão devido àquela parte não possuir instalações sanitárias e devido à parte restante deixar de ter as condições exigíveis para ser licenciada a actividade que nela se exerce.
A constituição de um edifício em propriedade horizontal exige como requisito de interesse público que a administração pública verifique e certifique a possibilidade do mesmo ser dividido nas fracções pretendidas de modo a que seja viável a sua utilização para o fim a que estão destinadas.
Sendo a finalidade pretendida para a parte do edifício prometida vender a de “escritório, com acesso próprio”, é necessário que a mesma disponha de instala­ções sanitárias próprias para que a administração viabilize a constituição da proprie­dade horizontal, conforme resulta do disposto no art.º 38º, do Regulamento Geral de Higiene e Segurança do Trabalho nos Estabelecimentos Comercias, de Escritório e Serviços, aprovado pelo D.L. nº 243/86, de 20 de Agosto.
Provou-se que as instalações que aí existiam foram desactivadas por ordem de autoridade sanitária, mas que é possível a sua construção noutro local da mesma parte prometida vender, pelo que a falta actual dessas instalações se não permite neste momento a viabilização da constituição da propriedade horizontal, não é causa de impossibilidade definitiva de sujeição do prédio a este regime. A constru­ção destas instalações está incluída nas diligências que é necessário realizar para submeter o prédio ao regime da propriedade horizontal, permitindo assim a celebra­ção do negócio prometido, pelo que a manter-se a situação de ausência destas instalações, estaremos perante um caso de incumprimento da prestação acessória do contrato-promessa e não de um caso de impossibilidade originária de cumprimento deste contrato.
O facto do art.º 663º, n.º 1, do C. P. Civil, dispor que a sentença deve cor­res­ponder à situação existente no momento do encerramento do julgamento, não obsta a este raciocínio, uma vez que apesar de nesse momento não se encontrarem cons­truídas as instalações sanitárias, o que para esta questão releva é a sua possibili­dade de construção, para se averiguar da impossibilidade de constituição da proprie­dade horizontal, e essa possibilidade nesse momento existia.
Quanto à alegação de que a parte restante do edifício deixa de ter as con­dições exigíveis para nela funcionar a actividade para a qual está licenciada, isso não resulta dos factos provados, nem sequer da totalidade dos factos alegados pela Ré.
Como já acima se referiu, se destes últimos podemos concluir que o licenciamento actual teve presente a utilização da totalidade do edifício e que será necessário obter novo licenciamento para a Ré poder exercer a sua actividade na parte do edifício que restará após a alienação da parte prometida vender, estando a constituição da propriedade horizontal dependente desse licenciamento, não existem quaisquer dados que, por ora, permitam afirmar que não será licenciada tal utilização dessa parte do edifício.
O D.L. 69/2003, de 10 de Abril, não impede, à partida, o licenciamento de estabelecimentos, após se ter efectuado uma divisão do edifício onde anterior­mente funcionava um estabelecimento industrial, com o objectivo de passarem a funcionar, em fracções autónomas distintas daquele edifício, o mesmo estabeleci­mento e um escritório. Esta hipótese está abrangida pelo conceito de alteração prevista no art.º 9º, do referido diploma.
Não estando, pois, demonstrada, e era à Ré que competia fazê-lo, a impossibilidade originária de constituição da propriedade horizontal de modo a que a parte do edifício prometida vender integre uma fracção autónoma, não se pode concluir pela nulidade do contrato-promessa celebrado, com este fundamento.

4.1.2. Da falta de autorização da Assembleia Geral

Provou-se que o contrato-promessa foi outorgado por todos os sócios da Ré, em representação desta, sem que antes tenha sido deliberado pela Assembleia Geral autorizar a prática deste acto.
Defende a Recorrente, invocando o disposto no art.º 246º, n.º 2, c), do C.S.C., que esta falta de autorização torna nulo o contrato-promessa.
Dispõe aquele normativo:
Se o contrato social não dispuser diversamente, compete também aos sócios deliberar sobre…a alienação de bens imóveis….
O acto de alienação de imóveis da sociedade integra o núcleo de compe­tência relativamente exclusiva dos sócios, donde resulta que se o pacto social não dispuser de outro modo, só eles poderão decidir sobre a alienação de bens imóveis da sociedade, não podendo os gerentes, sem estarem cobertos por essa deliberação prévia, praticar tal acto por sua iniciativa.
Sendo o contrato-promessa de alienação de um bem imóvel duma socie­dade um acto negocial preparatório daquele acto de alienação, integra também a referida reserva relativa dos sócios, pelo que os gerentes não poderão praticá-lo em nome da sociedade sem os sócios terem decidido a sua outorga.
Apesar de se ter provado que os sócios da Ré não decidiram em Assem­bleia Geral celebrar o referido contrato-promessa, provou-se que nesse acto intervie­ram em representação da Ré todos os sócios desta, pelo que não se coloca qualquer problema quanto à vinculação da sociedade ao acto praticado, pois não existe aqui uma dissociação entre a titularidade do poder decisório e o poder representativo [1], uma vez que as pessoas que tinham competência para decidir foram exactamente as que representaram a sociedade Ré no acto.
Por isso a falta de deliberação em Assembleia Geral sobre a alienação do bem prometido vender não afecta a validade nem a eficácia do contrato-promessa celebrado.

4.1.3. Da falta de cumprimento da tramitação prevista no art.º 397º, n.º 2, do C.S.C.

Este preceito, que se insere na disciplina das sociedades anónimas, dispõe que são nulos os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, directamente ou por pessoa interposta, se não tiverem sido previamente autorizados por deliberação do conselho de administração, na qual o interessado não pode votar, e com o parecer favorável do conselho fiscal.
Ora, nem a sociedade em causa é uma sociedade anónima a que se apli­que este preceito, nem o contrato-promessa celebrado teve como outorgantes a sociedade e alguns dos seus administradores, uma vez que os Autores quando outorgaram este contrato já nenhum deles era seu gerente.
Daí que não houvesse lugar ao cumprimento da tramitação exigida no referido normativo, não resultando da sua omissão a nulidade do contrato-promessa.

4.1.4. Do facto do negócio prometido não se inserir nos fins da Ré

Da leitura conjugada do contrato-promessa de cessão de quotas referido em XII e dos termos do contrato-promessa aqui em discussão resulta que a outorga do negócio prometido visa transmitir para os Autores parte de um imóvel perten­cente à Ré, como forma de pagamento de parte do preço (20.000.000$00) das quotas que os Autores cederem aos sócios da Ré. Daí que se diga neste contrato-promessa que a Ré já recebeu o preço da parte do imóvel prometida vender (20.000.000$00).
Daqui resulta que o texto do contrato-promessa de compra e venda enco­bre uma vinculação de pagamento em espécie (pela Ré) de divida de outrem (dos seus actuais sócios), através de dação em cumprimento (transmissão da propriedade de parte de imóvel em substituição dos 20.000.000$00).
A Ré não recebeu 20.000.000$00 pela transmissão da parte do seu prédio prometida vender, destinando-se antes essa transmissão a pagar uma dívida dos sócios da Ré.
Estamos perante um negócio em que existe uma divergência entre o declarado e a vontade real dos outorgantes, resultando essa divergência de acordo celebrado entre eles, constante do contrato-promessa de cessão de quotas, mas que não se pode considerar simulado, nos termos do art.º 240º, do C. Civil, porque não está demonstrado que a essa divergência tenha presidido o intuito de enganar tercei­ros.
A divergência bilateral e consensual entre a vontade e a declaração, sem que se revele que essa divergência procure enganar terceiros, é uma questão que deve ser resolvida no âmbito da interpretação dos negócios jurídicos, tendo inteira aplicação a regra constante do art.º 236º, nº 2, do C. Civil, segundo a qual o contrato deve valer com o sentido correspondente ao da vontade real das partes [2].
O contrato-promessa celebrado entre Autores e Ré, deve, portanto, ser lido como consubstanciando uma promessa de transmissão do direito de propriedade sobre parte de prédio pertencente à Ré, a constituir em propriedade horizontal, como pagamento de parte do preço - 20.000.000$00 - das quotas da Ré que os Autores cederam aos actuais sócios desta.
Alega a recorrente que o circunstancialismo acima evidenciado revela que a celebração do contrato prometido visa satisfazer interesses pessoais dos sócios e não da sociedade, pelo que escapa ao seu objecto social, sendo por isso nulo.
O contrato-promessa será efectivamente nulo se o negócio prometido for proibido por lei, nos termos do art.º 280º, do C. Civil.
A posição da recorrente retoma a ideia do conhecido princípio da espe­cialidade, enquanto limitação à capacidade jurídica das pessoas colectivas, incluindo as sociedades comerciais. Segundo este princípio que invoca o carácter meramente instrumental do reconhecimento pelo Direito de personalidade jurídica às pessoas colectivas, a capacidade jurídica destas não abrange a prática de actos estranhos às finalidades que presidiram à sua constituição e que norteiam a sua actividade [3].
Esta tese que teve antecedentes na doutrina anglo-saxónica da proibição da prática pelas pessoas colectivas de actos ultra vires e nas restrições continentais aos apelidados bens de mão-morta [4], reflectiu-se em Portugal, sucessivamente, na redacção do art.º 34º, do Código de Seabra [5], no art.º 160º, nº 1, do C. Civil de 1966 [6], e no art.º 6.º, n.º 1, do C.S.C. [7].
Seguiu-se, assim, as orientações nos direitos inglês e francês em que as limitações à capacidade de gozo de direitos das pessoas colectivas não resultavam apenas da natureza destas, mas também dos seus objectivos, ao contrário dos direitos alemão e italiano em que a única limitação imposta à capacidade jurídica deste tipo de entes advém da sua natureza [8].
Curiosamente, a nossa Constituição, relativamente aos direitos consigna­dos constitucionalmente, dispõe que as pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza – art.º 12º, n.º 2-, omitindo quaisquer limitações resultantes das suas finalidades [9], sem que esta formulação implique necessariamente, atento o seu alcance, um juízo de inconstitucionalidade sobre as limitações impostas pelo legislador ordinário, desde que não ofendam direitos constitucionalmente garantidos [10].
Contudo, quer a doutrina [11], quer a jurisprudência [12], sobretudo a partir  da vigência do C. Civil de 1966 [13], fizeram quase sempre uma leitura destas disposi­ções no sentido de minorar o alcance do princípio da especialidade, de modo a não prejudicar o comércio jurídico e a confiança daqueles que negoceiam com pessoas colectivas.
A doutrina tradicional [14] que aceita que “os fins” de cada pessoa colectiva são um elemento restritivo da sua capacidade económica, cominando com a nulidade a prática de actos estranhos a esses fins, acentuou que o fim duma pessoa colectiva não é delimitado pelo seu objecto estatutário, mas sim pelo escopo típico da pessoa colectiva que integra, sendo certo que o fim duma sociedade comercial é o da obtenção de lucros para distribuição pelos seus sócios. Além disso, apercebendo-se que muitos actos que, pelo seu conteúdo e objectivo imediato, aparentemente não perseguem o escopo típico da pessoa colectiva em causa, mediatamente visam atingir resultados que se inserem na sua finalidade existencial, fez ressaltar o seg­mento das disposições legais acima referidas que se refere aos actos que são conve­nientes aos fins da pessoa colectiva, inserindo-os neste âmbito.
No entanto, alguns autores [15], recusam que o escopo duma pessoa colec­tiva possa restringir a sua capacidade jurídica, a qual apenas divergirá da capacidade das pessoas singulares pela sua diferente natureza, pelo que a prática de actos isolados estranhos às finalidades da pessoa colectiva, caso não seja expressamente proibida por lei, não determinará a sua nulidade, podendo apenas suscitar-se um problema de abuso de representação, por parte da pessoa que o pratica em nome da sociedade.
Apesar desta última posição evitar limitações injustificadas à liberdade de actuação das pessoas colectivas, que resultam na aplicação da pesada sanção da nulidade a actos que não ferem quaisquer interesses dignos de tutela [16], cremos que ela não é defensável de iure constituto.
Anteriormente à entrada em vigor do C.S.C., perante a ausência duma norma específica, discutiu-se sobre se a capacidade jurídica das sociedades comer­ciais também estava limitada pelos seus fins, nos termos do art.º 160º, n.º 1, do C. Civil [17].
Mas o C.S.C., veio por cobro a esta discussão, reflectindo o referido prin­cípio da especialidade no n.º 1, do art.º 6º, nos mesmos termos em que tinha sido enunciado no C. Civil de 1966, e sendo o legislador conhecedor da orientação doutrinária e jurisprudencial que se tinha desenvolvido na vigência deste diploma, procurou nos dois números seguintes do mesmo artigo solucionar algumas questões que a aplicação do art.º 160º, n.º 1, do C. Civil, tinha suscitado, nomeadamente a prática de actos gratuitos (nº 2) e a prestação de garantias a dívidas de terceiros (n.º 3), enquanto nos números 4 e 5, transpôs a solução exigida pela Directiva 68/151/CEE, do Conselho da Comunidade Económica Europeia, de 9 de Março de 1968 [18], para as consequências da actuação dos órgãos da sociedade para além do objecto social definido pelas cláusulas estatutárias e pelas deliberações sociais, o que, relativamente às sociedades por quotas voltou a retomar no art.º 260º, do C.S.C..
Assim, enquanto nos três primeiros números do art.º 6º, do C.S.C., esta­mos perante uma definição do âmbito da capacidade jurídica das sociedades comer­ciais, com recurso ao princípio da especialidade, já nos dois últimos números estamos perante uma definição do grau de vinculação das sociedades comerciais perante os actos praticados pelos seus órgãos representativos dentro do seu escopo típico, mas para além da sua vontade social expressa nos estatutos ou em deliberação [19].
No presente caso estamos perante um contrato-promessa em que a Ré, que é uma sociedade por quotas, promete transmitir aos Autores o direito de pro­priedade sobre uma fracção predial que lhe pertence, para pagamento de uma dívida dos seus sócios, relativa ao preço das quotas que adquiriram na Ré.
O negócio prometido traduz-se, pois, numa dação em cumprimento de dívida de terceiros  - os sócios da Ré.
Não se tendo provado que nas relações entre a sociedade Ré e os seus sócios tenha sido acordada a prestação por estes de qualquer contrapartida pelo pagamento dessa dívida pela Ré, há que concluir que estamos perante um negócio gratuito [20].
O n.º 2, do art.º 6º, da C.S.C., dispõe que as liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta, pelo que a capacidade jurídica das sociedades comerciais, apesar do seu escopo lucrativo, compreende a prática de actos gratuitos, desde que estes possam ser incluídos numa prática gene­ralizada habitual por parte das sociedades comerciais.
Note-se que este preceito não salvaguarda a validade da prática pela sociedade de actos gratuitos que mediatamente se inserem na actividade lucrativa das sociedades comerciais (como, por exemplo, a oferta de prendas aos melhores clientes, os apoios a eventos culturais ou desportivos), uma vez que estes já se enquadravam nos fins perseguidos pela sociedade, nos termos do n.º 1, do art.º 6º, do C.S.C., mas sim aqueles que, apesar de serem presididos por um espírito completa­mente desinteressado, se justifica a sua admissibilidade pela sua aceitação social (aqui se devendo incluir as campanhas de solidariedade) [21].
O pagamento de dívidas dos sócios pela sociedade se não pode ser consi­derado uma prática usual, não deve ser excluído, sem mais, dos “fins” das socieda­des comerciais.
Na verdade, se a primeira finalidade duma sociedade comercial é a obten­ção de lucro, a última finalidade é a sua distribuição pelos sócios.
E esta distribuição tanto pode ser efectuada através da entrega de receita, como de bens da sociedade, conforme resulta do disposto nos art.º 31º e 32º, do C.S.C. [22], assim como pode essa entrega ser efectuada por transmissão directa do património da sociedade para o património dos seus sócios, como por transmissão para o património de terceiros credores desses sócios, com o acordo destes, para liquidação das suas dívidas.
A lei apenas acautela, nestes casos, o interesse dos credores da sociedade e a estabilidade desta, condicionando o exercício dessa distribuição de bens sociais à situação líquida da sociedade - art.º 32º, do C.S.C..
Nada tendo sido alegado quanto à existência duma situação impeditiva, nos termos deste preceito, da entrega aos sócios do bem prometido alienar, não é possível concluir que essa alienação seja um acto proibido por lei.
E o facto da dívida dos sócios a liquidar com a alienação prometida res­peitar ao preço de aquisição de participações sociais na sociedade Ré, também não determina que esse negócio seja considerado contrário à lei.
É certo que o n.º 1, do art.º 322º, do C.S.C., aplicável às sociedades anó­nimas, proíbe que uma sociedade conceda empréstimos, ou por qualquer forma forneça fundos ou preste garantias para que um terceiro subscreva ou por qualquer meio adquira acções representativas do seu capital, o que abrange o pagamento de dívida relativa à aquisição de participação social na própria sociedade.
Esta proibição resulta da transposição do comando constante do art.º 23º, da Directiva nº 77/91/CEE, do Conselho da Comunidade Económica Europeia, de 13 de Dezembro de 1976, o qual, por sua vez, se inspirou no art.º 54º, da Companies Act 1948, então vigente no Reino Unido.
O propósito desta proibição é o de impedir que através destes negócios se encobrisse a aquisição de acções pela própria sociedade, nos casos em que tal negócio não é permitido por lei [23].
Se nas sociedades por quotas também não é admissível a aquisição pela sociedade das participações sociais a não ser nos casos expressamente previstos na lei – art.º 220º, do C.S.C. -, neste tipo de sociedades o legislador já não sentiu necessi­dade de prevenir uma eventual aquisição por simulação subjectiva, não tendo proibido o apoio financeiro da sociedade à aquisição de participações sociais nela própria, como resulta de não ter incluído o art.º 322º, do C.S.C., na remissão cons­tante do n.º 4, do art.º 220º, do C.S.C..
 A consagração de um regime muito menos restritivo para a aquisição de participações próprias para as sociedades por quotas e a maior dificuldade em realizar uma aquisição simulada neste tipo de sociedades fortemente personalistas, justificam que não tenha sido prevista uma proibição idêntica à estipulada para as sociedades anónimas no art.º 322º, do C.S.C.. Por isso, não é defensável a aplicação do disposto neste preceito, às sociedades por quotas, por analogia.
Deste modo, se conclui que a origem da dívida dos sócios a satisfazer com a alienação de bem social prometida, não determina a invalidade do contrato prometido.
Tendo nesse contrato-promessa intervindo todos os sócios da Ré e não se conhecendo qualquer disposição estatutária que proíba este acto, também não se coloca uma questão de abuso de representação, contrária ou estranha à vontade social, a regular nos termos dos n.º 4 e 5, do art.º 6º, e do art.º 260º, do C.S.C..
Assim, não sendo o negócio prometido estranho aos “fins” da Ré e não se mostrando que o mesmo é proibido por lei, o facto dele satisfazer os interesses pessoais dos sócios daquela não é suficiente para determinar a nulidade do contrato-promessa aqui em análise.

4.2. Do abuso de direito

A recorrente alegou ainda que os Autores ao exigirem o cumprimento da cláusula do contrato-promessa em que se convencionou a entrega antecipada aos Autores da parte do edifício prometida vender incorrem em abuso de direito, uma vez que sabem que a constituição da propriedade horizontal é impossível, não provaram ter efectuado diligências no sentido de a obter e não a obtiveram
Conforme já acima se concluiu não se encontra demonstrado que a cons­tituição da propriedade horizontal que viabilize a outorga do contrato prometido seja impossível, pelo que não pode esse elemento ser considerado para ponderação duma eventual situação de abuso de direito.
Quanto à alegação que os Autores não demonstraram ter efectuado dili­gências no sentido de obterem a constituição do prédio em causa em propriedade horizontal, nem a mesma corresponde à verdade, uma vez que se provou que aqueles têm promovido diligências tendo em vista obter a autorização camarária para sujeitar o prédio ao regime de propriedade horizontal, nem a falta de prova de um facto seria suficiente para a verificação duma situação de abuso de direito.
Finalmente, não se vê que o facto dos Autores solicitarem a entrega da parte do imóvel prometido vender, nos termos acordados no contrato-promessa, sem que ainda esteja constituída a propriedade horizontal, viole as regras da boa-fé, os bons costumes ou a finalidade do direito exercido, uma vez que esse acordo de entrega antecipada do bem prometido alienar, pressupôs precisamente a impossibili­dade do negócio prometido se realizar imediatamente pela necessidade da constitui­ção da propriedade horizontal.
Não há, pois, razões para que se considere que o exercício pelos Autores do seu direito seja abusivo.

4.3. Da inexistência de prejuízos

A recorrente questiona a procedência do pedido indemnizatório, alegando que não se provaram quaisquer prejuízos que justifiquem esta condenação.
Os Autores pediram que a Ré fosse condenada a indemnizá-los do pre­juízo consistente em não poderem utilizar as divisões que a Ré se comprometeu a entregar e não cumpriu, alegando que estas têm um valor locativo não inferior a € 1.000,00 por mês.
Apenas se provou que a Ré deveria desocupar dois gabinetes, o compar­timento de informática, a sala de reuniões, dois w.c. e o bar, dois anos após a outorga do contrato-promessa em causa, isto é, em 20.12.2003, e que ainda não o fez, continuando a ocupar as referidas divisões.
Estamos perante uma situação de mora no cumprimento duma obrigação de transferência do poder de gozo de uma coisa.
Dispõe o art.º 804º, n.º 1, do C. Civil, que a simples mora constitui o deve­dor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
Para que se constitua a obrigação de reparação não basta que se constate a situação de mora, mas também que desta resultem prejuízos concretos para o credor.
Os Autores entendem que a mera frustração da possibilidade de utilização do bem que já lhes deveria ter sido entregue deve ser indemnizada, o que a sentença recorrida acolheu ao condenar a Ré a pagar uma indemnização pelo atraso na entrega antecipada do bem prometido vender, conforme se acordou no contrato-promessa, sem que se tenha provado qualquer prejuízo concreto para os Autores causado por esse atraso.
Será que deve ser indemnizado tal “dano abstracto”?
Visando o ressarcimento dos danos a reconstituição da situação que exis­tiria caso não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação – art.º 562º, do C. Civil –, apenas são indemnizáveis os danos efectivamente verificados e não os mera­mente putativos, hipotéticos ou possíveis, exigindo-se que ocorra uma altera­ção negativa no património, na pessoa ou no modo de vida do lesado [24].
Neste caso verifica-se a demora na disponibilidade de uso de um bem, sem apuramento de consequências concretas negativas para o património, pessoa ou modo de vida do lesado, não se tendo demonstrando que tenha existido qualquer alteração ao modo como a vida teria decorrido se a situação de mora não tivesse sucedido.
Essa frustração da possibilidade de utilização do bem, só por si, não importa qualquer alteração efectiva para o património, a pessoa, ou o modo de vida do lesado, embora tenha aptidão para causar tais alterações, como suas consequên­cias.
E estas alterações, caso se verifiquem, é que integram a categoria de pre­juízos efectivos, justificativos do seu ressarcimento. Não sendo estes alegados e prova­dos, aquela mera frustração da possibilidade de utilização antecipada do bem prometido vender não é ressarcível, sob pena de se indemnizar um prejuízo inexis­tente, ocorrendo um enriquecimento injustificado do credor.
Assim, deve o recurso proceder nesta parte, revogando-se o correspon­dente segmento da decisão recorrida e absolvendo-se a Ré do pedido indemnizatório formulado.
Perante esta decisão fica prejudicada a apreciação das questões da possi­bilidade de condenação em indemnização ilíquida e do início da contagem da indemnização.

4.4. Da sanção compulsória

A sentença recorrida, a pedido dos Autores, condenou a Ré, em sanção compulsória, nos termos permitidos pelo art.º 829º- A, nº 1, do C. Civil, a pagar uma quantia de €. 300,00 por cada dia de atraso, após a data da prolação da sentença, na entrega do bem prometido vender.
A sanção compulsória foi introduzida no nosso sistema jurídico-civil pelo Decreto-lei nº 262/83, de 16 de Junho, que aditou ao C. Civil o artigo 829º - A [25], tendo muito presente o modelo francês das astreintes.
A sua adopção visou suprir as insuficiências e inaptidão das figuras da execução específica e sub-rogatória, para obter eficazmente o cumprimento das obrigações infungíveis a que o credor tem direito. Sendo nestas obrigações impres­cindível uma conduta – activa ou passiva – do devedor, criou-se um meio indirecto de pressão, decretado pelo juiz, destinado a induzir aquele a cumprir a obrigação a que está adstrito e a acatar a respectiva injunção judicial.
É, pois, uma medida coercitiva de carácter patrimonial, seguida de sanção pecuniária, na hipótese daquela mensagem não conseguir compelir o devedor ao cumprimento.
Conforme se referiu no preâmbulo daquele Decreto-lei:
A sanção pecuniária compulsória visa, em suma, uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de absten­ção infungíveis.
Com estes objectivos estipulou-se no n.º 1, do art.º 829º - A, do C. Civil:
Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento duma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.
Alega, em primeiro lugar, a recorrente que não pode ser fixada uma san­ção compulsória, nos termos deste preceito, em processo declarativo.
Conforme já se constata das considerações acima efectuadas a sanção pecuniária compulsória prevista no n.º 1, do art.º 829º - A, do C. Civil, apenas está prevista como instrumento de coacção ao cumprimento de obrigações de prestação de facto e não de entrega de coisa.
Nestas, uma vez que não é imprescindível um comportamento do deve­dor, dado que é possível a realização pelo tribunal de tal prestação, o processo executivo para entrega de coisa certa, é suficiente para assegurar o cumprimento da injunção judicial, conforme prevê o art.º 827º, do C.P.Civil, não se justificando a previsão de qualquer medida compulsória do cumprimento.
Ora, tendo sido ordenado pela sentença recorrida a entrega de parte de prédio urbano livre e devoluto, não é possível fixar-se sanção pecuniária compulsó­ria como medida acessória daquela condenação, dado não existir previsão legal que a contemple.
Assim, deve ser julgado procedente o recurso nesta parte, revogando-se o correspondente segmento da decisão recorrida e absolvendo-se a Ré do pedido de fixação de sanção pecuniária compulsória.
Perante esta decisão fica prejudicada a apreciação das questões relativas ao momento em que operava esta sanção.

                                              *

Decisão

Pelo exposto julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pela Ré e, em consequência:
a) revogam-se os segmentos da sentença recorrida em que se condenou a Ré a pagar uma indemnização aos Autores, a liquidar posteriormente, e se fixou uma sanção pecuniária compulsória, e, em sua substituição, absolve-se a Ré dos respecti­vos pedidos.
b) confirma-se, no demais, a sentença recorrida.

                                             *

Custas da acção e do recurso em igual proporção por Autores e Ré.


[1] Neste sentido, João Espírito Santo, em Sociedade por quotas e anónimas. Vinculação: objecto social e representação plural, pág. 431, da ed. de 2000, da Almedina.
[2] Neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, em Teoria geral do direito civil, vol. II, pág. 34, da ed. de 2002, da Almedina, Oliveira Ascensão, em Direito civil. Teoria geral, vol. II, pág. 224, nota 319, da ed. de 2003, da Coimbra Editora, e Carlos Mota Pinto, em Teoria geral do direito civil, pág. 465, da 4ª ed., da Coimbra Editora.
[3] Para uma abordagem profunda deste princípio e sua aplicação vide João Espírito Santo, na ob. cit., pág. 99 e seg. 

[4] Sobre estas figuras, Cunha Gonçalves, em Tratado de direito civil em comentário ao Código Civil Português, vol. I, pág. 800-808, da ed. de 1929, da Coimbra Editora, Menezes Cordeiro, em Manual de direito das sociedades, vol. I, Das sociedades em geral, pág. 319-320, da ed. de 2004, da Almedina, Raul Ventura, em Objecto da sociedade e actos ultra vires, na R.O.A., Ano 40 (1980), pág. 6-59, e, sobretudo, João Espírito Santo, na ob. cit., pág. 123-148, e 218-273.

[5] Este preceito dispunha que as associações ou corporações, que gozam de individualidade jurídica, podem exercer todos os direitos civis relativos aos interesses legítimos do seu instituto.
   Vide, sobre o acolhimento do princípio da especialidade por este preceito, Guilherme Moreira, em Instituições de direito civil, vol. I, pág. 316, da ed. do autor de 1907, Cunha Gonçalves, na ob. cit., pág. 808-810, Manuel de Andrade, em Teoria geral da relação jurídica, vol. I, pág. 123-125, da ed. de 1983, da Almedina, Cabral de Moncada, em Lições de direito civil, pág. 362-363, nota 3, da 4ª ed., da Almedina, e João Espírito Santo, ob. cit., pág. 148-153.

[6] Lê-se neste preceito que a capacidade das pessoas colectivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins.
   Quer no art.º 5º do Anteprojecto da autoria de Ferrer Correia (B.M.J. n.º 67, pág. 248), quer no anteprojecto saído da 1ª revisão Ministerial não existia qualquer menção a uma limitação da capacidade jurídica das pessoas colectivas resultante dos seus fins, tendo essa referência sido introduzida no anteprojecto saído da 2ª revisão ministerial.
   Sobre o conteúdo do princípio da especialidade no C. Civil de 1966, vide Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil anotado, vol. I, pág. 165, da 4ª ed., da Coimbra Editora, Castro Mendes, em Teoria geral do direito civil, vol. I, pág. 234-237, da ed. de 1978, da A.A.F.D.L., Carlos Mota Pinto, em Teoria geral do direito civil, pág. 317-319, da 3ª ed., da Coimbra Editora, e em Notas sumárias sobre alguns aspectos da doutrina das pessoas colectivas no Código Civil de 1966, na RDES, Ano XIV, n.º 1 e 2, pág. 63-65, Rodrigues Bastos, em Notas ao Código Civil, vol. I, pág. 215, da ed. do autor de 1987, Oliveira Ascensão, em Teoria geral do direito civil, vol. I, pág. 261-269, da 2ª ed., da Coimbra Editora, Carvalho Fernandes, em Teoria geral do direito civil, vol. I, pág. 592-601, Heinrich Hörster, em A parte geral do Código Civil Português, pág. 390-391, da ed. de 1992, da Almedina, Menezes Cordeiro, em Tratado de direito civil português, vol I, tomo III, pág. 591-600, da ed. de 2004, da Almedina, e Pedro Pais de Vasconcelos, em Teoria geral do direito civil, vol. I, pág. 106-110, da ed. de 1999, da Lex, e em As pessoas colectivas no Código Civil – 30 anos depois, na Themis, ed. especial de 2008, pág. 235-245, e João Espírito Santo, na ob. cit., pág. 153-168.

[7] Dispõe este preceito, que se limitou a copiar a redacção do art.º 160º, n.º 1, do C. Civil, que a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim…
   Sobre o conteúdo do princípio da especialidade no C.S.C., vide Brito Correia, em Direito comercial – Sociedades comerciais, 2º vol., pág. 245-253, da ed. de 1989, da A.A.F.D.L., Oliveira Ascensão, em Direito comercial – sociedades comerciais, vol. IV, pág. 49-57, da ed. de 1993, da A.A.F.D.L., Pedro Albuquerque, em A vinculação das sociedades comerciais por garantias de dívidas de terceiro, na R.O.A., Amo 55 (1995), vol. III, pág. 689-711, e em Da prestação de garantias por sociedades comerciais a dívidas de outras entidades, na R.O.A., Ano 57 (1997), vol. I, pág. 69-147, Carlos Osório de Castro, em Da prestação de garantias por sociedades a dívidas de outras entidades, na R.O.A., Ano 56 (1996), vol. II, pág. 565-593, e em De novo sobre a prestação de garantias por sociedades a dívidas de outras entidades: luzes e sombras, na R.O.A., Ano 58(1998), vol. II, pág. 825-857, Pupo Correia, em Direito comercial, pág. 355-356, da ed. de 1988, da Universidade Lusíada, Júlio Elvas Pinheiro, em O justificado interesse próprio do garante: sobre o art.º 6º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais, na R.F.D.U.L., vol. XXXVIII (1997), n.º 2, pág. 485-505, Pinto Furtado, em Curso de direito das sociedades, pág. 268-270, da 3ª ed., da Almedina, Pereira de Almeida, em Sociedades comerciais, pág. 32, da 3ª ed., da Coimbra Editora, Coutinho de Abreu, em Curso de direito comercial – das sociedades, vol. II, pág. 182-203, da ed. de 2002, da Almedina, Menezes Cordeiro, em Manual de direito das sociedades, vol. I, pág. 319-330, da ed. de 2004, da Almedina, João Labareda, em Direito societário português – algumas questões, pág. 167-195, ed. de 1998, da Quid iuris, Alexandre Soveral Martins, em Da personalidade e capacidade jurídicas das sociedades comerciais, em Estudos de direito das sociedades, pág. 82-85, da 5ª ed., da Almedina, e Agostinho Cardoso Guedes, em A limitação dos poderes dos administradores das sociedades anónimas operadas pelo objecto social no novo Código das Sociedades Comerciais, na R.D.E., 13º ano (1987), pág. 127-159.

[8] Sobre a evolução desta questão nestes sistemas jurídicos vide João Espírito Santo, na ob. e loc. cit. na nota 3.

[9] Jorge Miranda, sobre esta omissão, opina que …cada pessoa colectiva somente pode ter os direitos conducentes à prossecução dos fins para que exista, os direitos adequados à sua especialidade – é o princípio geral de Direito (artigo 160º, n.º 1, do Código Civil) e que a Constituição se dispensa de reproduzir (em Constituição portuguesa anotada, tomo I, pág. 114, da ed. de 2005, da Coimbra Editora).

[10] Vide, neste sentido, Osório de Castro, em De novo sobre a prestação de garantias por sociedades a dívidas de outras entidades: luzes e sombras, na R.O.A., Ano 58 (1998), vol. II, pág. 831.

[11] Vide as opiniões expressas nas obras referenciadas nas notas 6 e 7.

[12] Vide os seguintes acórdãos:
- da Relação do Porto, de 13.4.1999, na C.J., Ano XXIV, tomo 2, pág. 193, relatado por Pelayo Gonçalves.
- do S.T.J., de 18.5.1999, no B.M.J. nº 487, pág. 324, relatado por Torres Paulo.
- da Relação do Porto, de 20.5.1999, na C.J., Ano XXIV, tomo 3, pág. 189, relatado por Custódio Montes.
- da Relação de Lisboa, de 27.1.2000, na C.J., Ano XXV, tomo 1, pág. 100, relatado por Silva Salazar.
- do S.T.J., de 17.2.2000, no B.M.J. nº 494, pág. 366, relatado por Sousa Inês.
- do S.T.J., de 21.9.2000, no B.M.J. nº 499, pág. 354, relatado por Abel Freire.
- da Relação de Coimbra, de 17.10.2000, na C.J., Ano XXV, tomo 4, pág. 37, relatado por Ferreira da Barros.
- do S.T.J, de 13.5.2003, relatado por Pinto Monteiro, acessível no site www.dgsi.pt.
- do S.T.J., de 28-10-2003, relatado por Moreira Alves, acessível no site www.dgsi.pt.
- da Relação de Lisboa, de 14.4.2005, relatado por Olindo Geraldes, acessível no site www.dgsi.pt,.
- da Relação de Guimarães, de 27.3.2008, relatado por António Magalhães , acessível no site www.dgsi.pt.
- da Relação de Lisboa, de 17.6.2008, relatado por Luís Espírito Santo, acessível no site www.dgsi.pt.

[13] Contudo, já Manuel de Andrade, na vigência do Código de Seabra defendia que a restrição imposta pelo art.º 34º, do Código de Seabra deveria ser entendida em termos hábeis…uma vez que certos actos que à primeira vista podem afigurar-se estranhos a esta finalidade, verifica-se depois serem-lhe pertinentes enquanto se destinam a proporcionar à pessoa colectiva meios económicos para o conseguimento de tal finalidade (na ob. e loc. cit. na nota 4).

[14] Inserem-se nesta corrente as posições de Pires de Lima/Antunes Varela, Mota Pinto, Castro Mendes, Rodrigues Bastos, Carvalho Fernandes, Heinrich Hörster, Brito Correia, Carlos Osório de Castro, Júlio Elvas Pinheiro, Pinto Furtado, Coutinho de Abreu, João Labareda, Alexandre Soveral Martins, Pereira de Almeida e João Espírito-Santo, nas ob. e loc. cit. nas notas 6 e 7.

[15] Oliveira Ascensão, Menezes Cordeiro, Pedro Pais de Vasconcelos, e Pedro Albuquerque, nas ob. e loc., citados nas notas 6 e 7.

[16] Vide a crítica efectuada por Agostinho Cardoso Guedes, na ob. cit., pág. 141-142, à limitação resultante da adopção do princípio da especialidade.

[17] Vide, sobre esta discussão, Cunha Gonçalves, na ob. cit., pág. 809, Ferrer Correia, em parecer pub. na C.J., Ano XI, tomo 1, pág. 10, Vaz Serra, em anotação ao acórdão do S.T.J., de 11-3-1969, na R.L.J., Ano 103, pág. 270, Raul Ventura, em Objecto da sociedade e actos ultra vires, na R.O.A., Ano 40 (1980), pág. 5 e seg. e João Espírito Santo, na ob. cit., pág. 153-154.

[18] Vide, sobre esta Directiva e a sua transposição para o direito interno português, Raul Ventura, em Adaptação do direito português à 1ª Directiva do Conselho da Comunidade Económica Europeia sobre direito das sociedades, no B.M.J. (Documentação e Direito Comparado), n.º 2, pág. 89-228, Brito Correia, em A harmonização das leis sobre sociedades de responsabilidade limitada no âmbito do mercado comum europeu, na Revista Colecção Divulgação do Direito Comunitário, Ano 2º, nº 3, , 1ª parte, pág. 15 e seg.,e João Espírito Santo, na ob. cit., pág. 274-320.

[19] Vide, neste sentido, Raul Ventura, em Sociedades por quotas, vol. III, pág. 169, da ed. de 1991, da Almedina, Brito Correia, Carlos Osório de Castro, Pupo Correia, Júlio Elvas Pinheiro, Coutinho de Abreu, e Pereira de Almeida, nas ob. e loc. cit. na nota 7.

[20] Vide, neste sentido, Antunes Varela, em Ensaio sobre o conceito do modo, pág. 135-136, e nota 1, das pág. 135-140, da ed. de 1955, da Atlântida, Vaz Serra, em Responsabilidade patrimonial, no B.M.J. nº 75, pág. 267, nota 398, e Coutinho de Abreu, na ob. cit., pág. 194.

[21] Neste sentido, Coutinho de Abreu, na ob. cit., pág. 193-194.

[22] Neste sentido, Menezes Cordeiro, em Manual de direito das sociedades, vol. I, pág. 543-545, e 325, nota 862, corrigindo a afirmação de Carvalho Fernandes feita na ob.cit., pág. 598, de que eram nulas as doações de bens da sociedade a sócios.
[23] Neste sentido, Raul Ventura, em Estudos vários sobre sociedades anónimas, pág. 377-378, da ed. de 1992, da Almedina, João Labareda, em Das acções das sociedades anónimas, pág. 81-82, da ed. de 1988, da A.A.F.D.L., e Menezes Cordeiro, em Manual de direito das sociedades, vol. II, pág. 656-658, da ed. de 2006, da Almedina.
[24] Neste sentido, Galvão Telles, em Direito das obrigações, pág. 375, da 7ª ed., da Coimbra Editora, C. Massimo Bianca, em Diritto civile, vol. 5, pág. 127, da reimpressão de 1995, da Giuffrè, Guido Alpa, em Trattato di diritto civile, vol. IV, pág. 616-617, da ed. de 1999, da Giuffrè, e Dieter Medicus, em Tratado de las relaciones obligacionales, vol. I, pág. 289-291, da trad. espanhola, de 1995, da Bosch.
[25] Sobre os antecedentes desta figura, Pedro Albuquerque, em , na R.O.A., Ano 65 (2005), vol. II, pág.