Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2463/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 11/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.334 DO CC
Sumário:
1) - Comprovando-se que a Ré, há mais de vinte anos, se instalou no prédio da Autora ( gare rodoviária ) para aí exercer a venda de bolos, com conhecimento de todos os directores que antecederam a actual Direcção, sem nunca haver da parte deles qualquer oposição expressa a tal situação, estamos perante a figura do “ precário “, também designada de “ comodato precário “, traduzida na concessão do gozo de uma coisa, conservando o concedente o direito de cessação ad nutum, aproximando-se, por isso, do comodato sem estipulação de prazo para a restituição, nos termos do art.1137 nº2 do CC.
2) - Encontrando-se a Ré a ocupar o espaço do prédio numa situação precária, é perfeitamente legítimo o direito de cessação ad nutum, que implica a obrigação de entrega da coisa, como expressão máxima do direito de propriedade, pelo que a Autora ao pedir a condenação da Ré a abster-se de permanecer nessas instalações e de nelas exercer comércio, designadamente a venda de bolos, não agem com abuso de direito ( art.334 do CC ).
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

1.1. - A Autora – A..., com sede em Coimbra, - instaurou acção declarativa, com forma de processo sumário, contra a Ré – B....
Alegou, em resumo:
A Autora é dona do edifício destinado a gare rodoviária, sito na Avenida Fernão de Magalhães, em Coimbra.
A Ré, contra a vontade da Autora, ocupa parcialmente a referida gare, com uma instalação provisória destinada à venda de bolos, apesar da intervenção policial.
Pediu a condenação da Ré a abster-se de permanecer nas instalações da Autora e de nelas exercer comércio, designadamente a venda de bolos, e a pagar, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia diária de 10.000$00 por cada dia em que viole tal proibição, após o trânsito em julgado da sentença.
Contestou a Ré, defendendo-se, em síntese:
Desde há mais de 20 anos, com consentimento e autorização de todos os directores que antecederam a actual direcção da Autora, está instalada na gare rodoviária, onde procede à venda de bolos.
Até há cerca de um ano (em Janeiro de 1997) os anteriores directores prometiam à Ré a uma lojita para venda de bolos, mediante o pagamento de uma renda, logo que viessem a ser efectuadas obras de remodelação.
Trata-se de um comodato que subsistirá enquanto não se concretizar o negócio prometido, constituindo a pretensão da Autora abuso de direito.
Respondeu a Autora contraditando a defesa por excepção.
Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu:
Condenar a Ré a abster-se de permanecer nas instalações da autora, sitas na Av. Fernão de Magalhães, edifício da Rodoviária, em Coimbra, e de nelas exercer qualquer comércio, nomeadamente a venda de bolos, e a pagar-lhe, a título de sanção pecuniária compulsória, desde o trânsito em julgado desta decisão, a quantia de quinze euros por cada dia de atraso no cumprimento desta obrigação, no mais a absolvendo do pedido.
1.2. - Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1º) - A factualidade dada como provada traduz-se numa promessa de contrato de arrendamento que vincula a Autora ao seu cumprimento;
2º) - A Autora exteriorizou aquela promessa não só com o pedido de tomada de medidas da banca provisória da Ré para substituir e localizar outro espaço ou loja, como lhe garantiu este, caso houvesse obras de remodelação, com uma contrapartida monetária;
3º) - Tais actos traduzem objectivamente o reconhecimento do direito da Ré continuar a permanecer nas instalações da Autora;
4º) - A Autora ao propor a presente acção cerca de um ano após aquele seu comportamento, pedindo a condenação da Ré a abster-se de permanecer nas suas instalações, contraria aquele seu comportamento anteriormente assumido, sendo contrário à boa fé e susceptível de enquadrar abuso de direito, na figura do venire contra factum proprium;
5º) - A sentença recorrida fez um errado enquadramento jurídico da factualidade dada como provada, com violação do disposto nos arts.334 e 762 nº2 do Código Civil.
Contra-alegou a Autora preconizando a improcedência do recurso.
II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto do recurso:
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC ) a questão essencial que importa decidir é a de saber se a pretensão da Autora consubstancia ou não abuso de direito ( art.334 do CC ).

2.2. – Os factos provados:
1) - Na Conservatória do Registo Predial de Coimbra, sob o n.º 0077/311091, encontra-se descrito o seguinte prédio: prédio urbano, sito na Av. Fernão de Magalhães, destinado a garagem rodoviária, comércio, habitação e serviços públicos, de cave, rés-do-chão, 1º, 2º e 3º andares, área coberta de 4.096 metros quadrados e logradouro de 3.346,84 metros quadrados, a confrontar do norte com a “Ideal, L.da”, do sul com “Fábrica de Malhas de Coimbra, L.da”, do nascente com a Avenida Fernão de Magalhães e do poente com a projectada Avenida Marginal, inscrito na matriz sob o artigo 1895º (a).
2) - Através da inscrição G-1 encontra-se inscrita a favor da autora a aquisição do referido prédio (b).
3) - No referido prédio a autora explora um estabelecimento de gare rodoviária, terminal de passageiros de transporte público ( c).
4) - A ré vem ocupando parcialmente a referida gare com instalação provisória para proceder à venda de bolos (d).
5) - A ré, apesar da intervenção policial, insiste diariamente em montar a sua banca no interior das instalações da autora e em proceder à venda de bolos (e).
6) - Há mais de 20 anos que a ré se instalou nas instalações da autora (1º).
7) - O aludido em 6. aconteceu com conhecimento de todos os directores que antecederam a actual direcção da autora, sem nunca haver da parte deles qualquer oposição expressa a tal situação (2º).
8) - Mais ou menos há cerca de um ano (tendo em conta a data da propositura da acção) o actual director da autora, Eng. Neves, deu ordens a um funcionário da empresa, de nome Amândio, para tirar as medidas junto da banca da ré, com vista à implantação de uma estrutura em substituição daquela, junto ao canto da pista 1, e disse à ré que, caso houvesse obras de remodelação no prédio, ser-lhe-ia facultada, com contrapartida monetária, uma loja ou espaço próprio (6º e 7º).
9) - O subscritor da declaração de fls. 22 dos autos não tinha nem tem poderes para obrigar a autora.

2.3. – De Direito:
A sentença recorrida ao qualificar juridicamente a situação de facto, afastou qualquer relação contratual entre as partes que legitime a ocupação pela Ré de um espaço do prédio da Autora, onde, durante vinte anos, instalou o seu estabelecimento comercial, tendo concluído pela existência de um mero acto unilateral de tolerância, pelo que julgou a acção parcialmente procedente, visto não se comprovar o abuso de direito.
Considera a apelante existir abuso de direito, na modalidade de condutas contraditórias, sendo este o verdadeiro enfoque da pretensão recursiva.
A resposta a esta questão pressupõe a correcta qualificação da situação ocupacional da Ré, bem assim da relevância jurídica do facto provado descrito em 8).
Comprovando-se que a Ré, há mais de vinte anos, se instalou no prédio da Autora, com conhecimento de todos os directores que antecederam a actual Direcção, sem nunca haver da parte deles qualquer oposição expressa a tal situação, estamos perante a figura do “ precário “, também designada de “ comodato precário “, traduzida na concessão do gozo de uma coisa, conservando o concedente o direito de cessação ad nutum, aproximando-se, por isso, do comodato sem estipulação de prazo para a restituição, nos termos do art.1137 nº2 do CC.
Com efeito, não houve entrega da coisa por parte da Autora, com a constituição de um direito a utilizá-la, elemento essencial do contrato de comodato verdadeiro ou próprio ( art.1129 do CC ), mas antes a prática pelo comodante de actos de mera tolerância não contratual, ou seja, de adopção e manutenção de uma atitude passiva sem exercício do direito de impedir ou proibir, mas sem concessão de qualquer autorização nem constituição ou reconhecimento de qualquer direito a favor do precarista, que não dispõe de tutela judiciária para o gozo do bem detido, sendo obrigado a entregá-lo quando para tal for interpelado ( cf., por ex., Ac do STJ de 29/9/93, C.J. ano I, tomo III, pág.44 ).
Sucede, porém, que há cerca de um ano ( à data da propositura da acção ) a Autora, através do seu Director, deu ordens a um funcionário da empresa, de nome Amândio, para tirar as medidas junto da banca da ré, com vista à implantação de uma estrutura em substituição daquela, junto ao canto da pista 1, e disse à ré que, caso houvesse obras de remodelação no prédio, ser-lhe-ia facultada, com contrapartida monetária, uma loja ou espaço próprio.
Impõe-se, assim, aferir da relevância jurídica deste facto para a justa resolução do litígio, colocando-se, desde logo, a questão de saber se estamos perante um mero acordo preparatório ou um contrato promessa de arrendamento ( bilateral/unilateral).
O problema contende, em primeiro lugar, com a declaração de vontade das partes ou de uma delas, que segundo a moderna doutrina se apresenta com uma dupla vertente: como acto de comunicação, sujeita à “ ordem envolvente da interacção negocial “ e enquanto acto determinativo ou normativo, produtor de efeitos perceptivos.
Daí a indispensável distinção entre os efeitos decorrentes da ordem de condutas envolventes e o conteúdo perceptivo do negócio, os efeitos jurídico-negociais ( cf. BAPTISTA MACHADO, Obra Dispersa, vol. 1º, 1991, pág.521 e segs., KARL LARENZ, Derecho Civil, Parte General, pág.448 e segs.).
Na fenomenologia dos contratos, o processo formativo passa por dois momentos distintos – o primeiro em que se estabelece o conteúdo do futuro contrato, ficando a sua conclusão dependente ainda do arbítrio de uma ou de ambas as partes; o segundo em que se verifica a adesão ao anterior contrato, assim se concluindo o contrato através do consenso.
O momento da conclusão do contrato, ou seja, em que surge a vinculação contratual, é o da eficácia da declaração de aceitação da proposta. Trata-se da tese tradicional da conclusão do contrato pela aceitação em que o consenso se forma segundo o esquema proposta/aceitação ( arts.224 a 235 do CC ).
O contrato promessa tem por objecto uma obrigação de contratar, ou seja, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido ( contrato de arrendamento comercial ), pelo que se reconduz a uma obrigação de prestação de facto positivo.
O contrato promessa pressupõe o acordo das partes ( bilateral ) ou apenas uma delas ( unilateral ), pelo qual se obrigam a celebrar determinado contrato ( principal ou prometido ).
Porém, mesmo no contrato promessa unilateral, admitido expressamente no art.411 do CC, muito embora apenas uma das partes se obrigue, terá de haver da outra parte uma manifestação de vontade em aceitar a obrigação.
Como qualquer outro contrato não sinalagmático, reveste simultaneamente as características da unilateralidade ( obrigações só para uma das partes ) e da bilateralidade quanto à estrutura ou processo formativo ( manifestação de vontade de ambas, sem a qual o contrato não será válido ( cf. ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 3ª edição, pág.286 ).
Foi precisamente aqui que sentença recorrida, com impecável retórica argumentativa, situou o problema para afastar liminarmente a configuração do contrato promessa devido à ausência de declaração negocial nesse sentido, mesmo seguindo a “ teoria da aparência jurídica “, ou seja, a falta de vinculação contratual, no plano bilateral da formação da vontade, referindo, aliás, com toda a pertinência, que a defesa da demandada sentiu essa dificuldade de forma tão premente que não chegou sequer a afirmar que houve um qualquer acordo da Autora com a Ré.
A lógica discursiva da sentença leva, pois, à conclusão de que as partes ou uma delas ( a Autora ) não chegaram a ultrapassar o limiar da vinculação contratual, ficando-se por um mero acordo preparatório ou proposta de contrato.
Mesmo que se ultrapasse este obstáculo, situado, desde logo, a montante, no âmbito do processo formativo do contrato, o certo é que o facto descrito em 8) também não seria suficiente para integrar um contrato promessa de arrendamento, o que sai reforçado com as respostas negativas aos quesitos 4º e 5º e respostas restritivas aos quesitos 6º e 7º
Por força do princípio da equiparação ( art.410 nº1 do CC ), ao contrato promessa são aplicáveis as normas relativas ao contrato prometido, com excepção das relativas à forma e as que, por razão de ser, não se devam considerar extensíveis.
O princípio da equiparação postula, assim, a exigência, enquanto requisito de validade, de que o contrato promessa contenha a determinação do objecto do contrato prometido ou, ao menos, as regras que permitam tal determinação, ou seja, a determinabilidade na promessa dos elementos essenciais do contrato prometido, a definição do seu conteúdo, de maneira a dispensarem-se ulteriores negociações para a sua celebração ( cf. ANA PRATA, O Contrato Promessa e o seu regime Civil, pág.453 e segs., ALMEIDA COSTA, RLJ ano 116, pág.381 e 117, pág.26 ).
Nesta perspectiva, os elementos factuais disponíveis não permitem determinar o conteúdo do contrato prometido, tornando nulo o contrato promessa por falta de objecto ( art.280 nº1 do CC ), para além da nulidade formal, visto não ter sido reduzido a escrito ( arts.410 nº1 e 220 do CC ).
Ora, não existindo qualquer contrato promessa de arrendamento comercial, bilateral ou unilateral, que a verificar-se sempre seria nulo - enquanto pressuposto da conduta contraditória ou do investimento da confiança -, sucumbe, à partida, o pretenso abuso de direito por parte da Autora.
O art.334 do CC diz que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Aceitando o legislador a concepção objectiva, não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social e económico do direito exercido.
O instituto do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico e a jurisprudência tem exigido que o exercício do direito se apresente em termos clamorosamente ofensivos da justiça.
Há que afrontar o problema em sede da tutela da confiança e do venire contra factum proprium, como uma das manifestações do abuso de direito.
Esta variante do abuso de direito equivale a dar o dito por não dito e radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, ao pressupor duas atitudes antagónicas, sendo a primeira ( factum proprium ) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé.
O Prof. BAPTISTA MACHADO ( Obra Dispersa, vol.1º, pág.415 a 419 ), depois de afirmar que a ideia imanente na proibição do venire contra factum proprium é a do “ dolus praesens “, pelo que é sobre a conduta presente que incide a valoração negativa, sendo a conduta anterior apenas o ponto de referência para se ajuizar da legitimidade da conduta actual, enuncia três pressupostos que caracterizam o instituto:
a) – uma situação objectiva de confiança – uma conduta de alguém entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura.
“ O ponto de partida é, pois, uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira. Pode tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico – negocial, que por qualquer razão seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico “.
b) - Investimento na confiança – o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a confiança legítima vier a ser frustrada.
c) - A boa fé da contraparte que confiou – a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa fé tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico.
No mesmo sentido, também PAULO MOTA PINTO, “Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório”, BFDUC, Volume Comemorativo, 2003, pág.269 e segs., com referências doutrinárias e jurisprudenciais mais actualizadas.
Pois bem, encontrando-se a Ré a ocupar o espaço do prédio da Autora numa situação precária, é perfeitamente legítimo o direito de cessação ad nutum, que implica a obrigação de entrega da coisa, como expressão máxima do direito de propriedade.
A circunstância da Autora, através do seu Director, ter dito que facultaria à Ré uma loja ou espaço próprio, mandando um funcionário tirar as medidas para a substituição da bancada, não é suficiente para caracterizar uma situação objectiva de confiança, no sentido de que jamais reagiria contra a ocupação, até porque tal declaração foi acompanhada com a ressalva de que isso dependeria das obras de remodelação no prédio, e a Ré nem sequer alegou que elas ocorressem.
Muito embora a Ré ocupasse o espaço durante vinte anos, não poderia razoavelmente ter expectativas de que tal situação se mantivesse, dada a qualidade de precarista, logo sem título que legitimasse a sua perpetuação, sendo certo que durante esse período de tempo nada fez para alterar esse estado, através, por exemplo, de uma vinculação contratual com a Autora, que lhe desse uma efectiva segurança jurídica.
Sendo assim, não se evidencia qualquer conduta contraditória da Autora que viole, de forma iníqua e ostensiva, os princípios da confiança e da boa fé, como se justificou amplamente na sentença recorrida, improcedendo consequentemente a apelação.
III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente a apelação e confirmar a douta sentença recorrida.
2)
Condenar a apelante nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário.
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COIMBRA, 16 de Novembro de 2004.