Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1670/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: DANOS NÃO PATRIMONIAIS
GRAVIDADE
Data do Acordão: 05/11/2004
Votação: PROFERIDA PELO RELATOR (ART.º 705.º C.P.C.
Tribunal Recurso: SÃO PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ART. 496°, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:

Não revestem uma gravidade que mereça a tutela do direito, ao abrigo do disposto no art. 496°, n.º 1 do Código Civil, os danos sofridos pelos autores, resultantes do facto de águas residuais urbanas produzidas na residência dos réus, escorrerem para o prédio dos autores (que é um prédio rústico, composto de terra de cultura), que se encontra numa posição inferior ao referido prédio dos réus, existindo no local, devido às escorrências, mau cheiro, que é mais intenso no verão, uma vez que tais danos deverão enquadrar-se nos pequenos incómodos ou contrariedades.
Decisão Texto Integral:
BB e mulher, CC, intentaram, em 07/09/2001, pelo Tribunal da comarca de S. Pedro do Sul, acção com processo sumário, contra DD e mulher, EE, alegando serem proprietários de um prédio rústico que identificam, e que os réus, no seu prédio confinante com o deles, edificaram um barracão no qual passaram a habitar, e cujos esgotos, na ausência de rede de saneamento público, ou de fossa séptica, passaram a escorrer para o seu prédio, situado a uma cota inferior, vieram requerer a condenação dos réus na abstenção de inundarem o seu (dos autores) prédio com as ditas águas residuais, e bem assim a procederem à limpeza do seu prédio afectado com as referidas águas, e a pagarem uma indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, alegadamente sofridos pelos autores por via de tal situação.
Mais alegaram que os réus procederam à construção, sobre o referido barracão, de um 2º piso (1º andar), em cuja parede sul abriram 3 janelas, sem que qualquer elas tenha sido rasgada a, pelo menos, 1.50 metros do prédio dos autores, peticionando, como tal, a condenação dos réus a fecharem tais janelas.
Os réus apresentaram contestação, pela qual impugnam a veracidade dos factos vertidos na petição inicial, ou alegam o desconhecimento da sua realidade.
Concluem pela improcedência da acção.
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Foi proferido despacho saneador, com selecção da matéria assente e da controvertida, sem qualquer de reclamação.

Teve, depois, lugar o julgamento e, decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações, foi proferida a sentença que julgou a acção



parcialmente procedente, condenando os réus a absterem-se de, por qualquer forma, fazerem escorrer, ou permitir que escorram, para o prédio dos autores quaisquer águas residuais urbanas produzidas ou provenientes do seu prédio e a pagarem aos autores, a título de compensação por danos não patrimoniais, a importância de 400 euros, acrescida de juros moratórios contados desde 22/09/91, à taxa legal, sem prejuízo da aplicação do disposto no artº 829º-A, nº 4, do C.C.
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Para assim decidir, baseou-se o Tribunal nos seguintes factos:
1 – Os Réus são donos de um edifício em tijolo, de r/c e 1º andar, o qual se encontra implantado no prédio rústico, composto de terreno de cultura, sito nos limites do lugar de Ribeira de Amarante, freguesia de Vila Maior, concelho de S. Pedro do Sul, a confrontar do norte com Aurélio Pinto, do nascente com FF, do sul com o prédio descrito em 3, e do poente com Ilda Pinto Moita, com a área de 280 mts2, inscrito na matriz sob o artigo 1687, e omisso no registo predial – al. A) dos Factos Assentes.
2 – O edifício referido em A) não tinha, como ainda não tem, qualquer ligação ao sistema de saneamento público de águas residuais urbanas – al. B).
3 – Por escritura pública outorgada em 29.8.72, no cartório notarial de S. Pedro do Sul, o autor marido declarou comprar a FF e esposa, e estes declararam vender àquele, o prédio rústico denominado ‘Arreto Comprido do Tanque’, composto de terreno de cultura, sito nos limites do lugar de Ribeira de Amarante, freguesia de Vila Maior, concelho de S. Pedro do Sul, descrito na CRP de S. Pedro do Sul com o nº 2326 – al. C).
4 – Os Réus instalaram a residência do seu agregado familiar no edifício referido em A) – al. D).
5 – Desde há mais de 30 ou 40 anos que os AA., por si e antepossuidores, vêm podando as videiras e colhendo as uvas das mesmas no prédio referido em 3, e ainda, até há alguns anos, limpando, lavrando, semeando e colhendo milho, feijão e batata no mesmo prédio – resp. ao quesito 1º.
6 – Isto fazendo à vista de toda a gente – q. 2º.
7 – Sem oposição ou interrupção de ninguém – q. 3º.


8 – Como se de um direito próprio se tratasse, e na convicção de não ofenderem direitos de terceiros – q. 4º.
9 – Os prédios descritos em C) e A) confrontam entre si, respectivamente do norte e do sul – q. 5º.
10 – O prédio referido em A) situa-se em posição superior ao descrito em C) – q. 6º.
11 – O edifício referido em A) não tem fossa séptica – q. 7º.
12 - Desde data não apurada, águas residuais urbanas produzidas na residência dos réus referida em D) escorrem para o prédio descrito em C), o qual se encontra em posição inferior ao prédio dos réus – q. 8º.
13 - Por efeito das escorrências referidas na resposta ao quesito 8º, no local onde as mesmas ocorrem existe mau cheiro, o qual é mais intenso no período do Verão – q. 9º.
14 – Os autores sentiram-se arreliados e desagradados com a circunstância de o prédio referido em C) ser destino das escorrências provindas da residência dos réus, e de o local ser por isso um foco de mau cheiro – q. 12º.
15 – Em data situada entre Agosto de 2000 e Agosto de 2001, os réus procederam ao aumento em altura do edifício referido em A), acrescentando-lhe mais um piso – q. 13º.
16 - Na parede sul da parte acrescentada os réus procederam à abertura de 3 janelas, cada uma com forma sensivelmente quadrangular, as quais já se encontravam tapadas em Agosto de 2001 – q. 14º.
17 – As janelas referidas encontram-se a menos de 1.50 mts do prédio referido em C) – q. 15º.
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Inconformados com a sentença na parte em que os condenou a pagar aos autores uma indemnização por danos não patrimoniais, apelaram os réus, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. Na resposta ao ponto 12 da base instrutória o Tribunal não deu como provado, conforme alegado na p.i., que os apelados tivessem enorme desgosto, tristeza e constrangimento pelo facto de se verem quase impossibilitados de se deslocarem ao prédio atenta a quantidade de insectos e de cheiros nauseabundos.


2. Na resposta aquele ponto da base instrutória o tribunal limitou-se a dar como provado que os apelados ficaram arreliados e desagradados com a circunstância do seu prédio ser destino das escorrências provindas da residência dos apelantes e de o local ser por isso um foco de mau cheiro.
3. Daí que aquela arrelia e desagrado sejam meros incómodos, porque não impedem que os apelados se desloquem ao seu prédio, que não justificam a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais.
4. O Tribunal ao decidir de forma diferente fez incorrecta aplicação da norma do artigo 496º nº 1 do C.C.
5. E, a admitir-se terem aquelas arrelias e desagrados relevância em sede de atribuição de indemnização por danos não patrimoniais, o montante fixado pelo Tribunal é exagerado, sendo suficiente para a sua reparação e segundo critérios de equidade, o quantitativo não superior a 150,00 €.
6. O Tribunal ao fixar valor superior fez incorrecta aplicação do nº 3 do artº 496º do C.C.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Cumpre decidir, nos termos do artº 705º do Código de Processo Civil, atenta a simplicidade da questão proposta.
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Além do mais, que não importa aqui considerar, alegaram os autores na petição inicial que o seu prédio (rústico) vem sendo inundado, desde há cerca de dois anos, pelas águas residuais urbanas (esgotos) provenientes da casa dos réus, situação que lhes provocou enorme desgosto, tristeza e constrangimento pelo facto de se verem quase impossibilitados de se deslocarem ao seu prédio, atenta a quantidade de insectos e de cheiros nauseabundos provocada pelos referidos esgotos, pedindo, a título de danos não patrimoniais, quantia não inferior a 100.000$00.
Os réus, não pondo em causa a ilicitude da sua conduta, entendem, no entanto, que os danos não merecem a tutela do direito, visto que a arrelia e desagrado sofridos pelos autores são meros incómodos que não os impedem de se deslocarem ao seu prédio, ou, quando assim se não entenda, não deverá ser fixada indemnização


superior a 150 euros.
Na sentença considerou-se que resulta, no mínimo, desagradável que uma propriedade rústica seja objecto de emissões de materiais fétidos, com os evidentes prejuízos que daí decorrem, seja pelo mau cheiro ocasionado nas proximidades do local, seja pela imagem depreciativa que uma tal situação traduz, afigurando-se, por isso, tutelável pelo direito a situação vivenciada pelos autores e fixando-se a compensação em 400 euros.

O artº 496º do Código Civil dispõe, no seu nº 1, que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Extrai-se deste normativo que a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada).
Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado (cfr. Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 9ª ed., pág. 628).

No presente caso deu-se como provado que, desde data não apurada, águas residuais urbanas produzidas na residência dos réus escorrem para o prédio dos autores (que é um prédio rústico, composto de terra de cultura), que se encontra em posição inferior ao prédio dos réus; que, por efeito das escorrências referidas, no local onde as mesmas ocorrem existe mau cheiro, o qual é mais intenso no período do verão; e que os autores se sentiram arreliados e desagradados com a circunstância de o seu prédio ser destino das escorrências provindas da residência dos réus, e de o local ser, por isso, um foco de mau cheiro.
Não se provou que, especialmente nas alturas do verão, seja praticamente impossível entrar no prédio dos autores, face à quantidade de insectos e de cheiros nauseabundos provocados pelos esgotos que para ali escorrem, e que esta situação provocou nos autores enorme desgosto, tristeza e constrangimento, pelo facto


de se verem quase impossibilitados de se deslocarem ao prédio, atenta a quantidade de insectos e de cheiros nauseabundos (respostas restritivas aos quesito 9º e 12º).
Ora, de tal factualidade não pode concluir-se que os danos sofridos pelos autores revestem uma gravidade que mereça a tutela do direito, devendo, antes enquadrar-se nos pequenos incómodos ou contrariedades, que são irrelevantes para tal efeito (cfr. Prof. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., pág. 522 e Ac. R.P. de 08/07/2002, CJ, T4-168, e de 05/06/2003, CJ, T3-188).
Já assim não seria se se tivesse dado como provado o factualismo constante dos quesitos 9º e 12º, na sua totalidade, ou se o prédio dos autores, em vez de rústico, fosse urbano, servindo de sua habitação, e fosse atingido o direito dos mesmos autores à integridade física, a um ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado, à sua saúde e bem-estar.
Como nada disso se verifica, e os danos se traduzem apenas em arrelia e desagrado, ou seja, aborrecimento e insatisfação, por parte dos autores em relação à situação descrita, entende-se que aqueles não se revestem de uma gravidade de tal ordem que mereça a tutela do direito.
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Termos em que dou provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida na parte em que condenou os réus a pagarem aos autores a compensação de 400 euros a título de danos não patrimoniais e respectivos juros de mora, no mais confirmando tal sentença.

Custas a cargo dos autores, ora recorridos.