Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
180/05.9JACBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: DESPACHO DE PRONÚNCIA
RECORRIBILIDADE
DIREITO AO RECURSO
APLICAÇÃO DA LEI NOVA
Data do Acordão: 01/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA – TRIBUNAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA/REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 289.º; 310.º, N.º1 E 5.º, N.º 2 DO C.P.P..
Sumário: I. - Não fere a Constituição da República, designadamente, a garantia do recurso consagrada no respectivo artigo 32.º, a nova redacção do artigo 310.º, n.º1, do C.P.P., que exclui a recorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, «mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais».
II. - A recorribilidade ou não de uma decisão afere-se pela lei vigente à data da sua prolação (em 1.ª instância), pelo que, tendo uma decisão sido proferida já na plena vigência das alterações introduzidas no disposto no artigo 310.º, n.º1, do C.P.P., pela Lei n.º 48/2007, tal decisão é irrecorrível mesmo na parte em que apreciou as nulidades arguidas pelo ora recorrente
II. - Mesmo em processos iniciados antes da entrada em vigor da lei nova, não é admissível recurso de decisões proferidas no seu domínio que, a partir de 15-9-2007 deixaram de ser recorríveis, mesmo que o fossem à luz da lei anterior.
Decisão Texto Integral: 9

I – RELATÓRIO
1. A M.ma Juíza do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra, no processo n.º 180/05.9JACBR, proferiu despacho, em 26 de Setembro de 2007, em que considerou não se verificarem as nulidades invocadas no requerimento de abertura de instrução pelo arguido …, melhor identificado nos autos: nulidades da acusação, da decisão de separação de processos e do despacho judicial de concordância com a suspensão provisória do processo relativamente a alguns dos arguidos.
2. Inconformado com tal despacho, recorreu o arguido …, sintetizando a sua motivação através da formulação das seguintes conclusões (transcrição):
RECURSO A) – fls. 2
«B1: O art. 9° da Lei n.º 36/94, face à redacção em vigor do artigo 281° do Código de Processo Penal, é uma norma caduca, pelo que o seu apelo, em abono de qualquer opção judicial, é inadmissível (conf. supra A1.2.1.)
B2: não só ao nível processual, como também, mas agora por outra ordem de razões, ao substantivo, uma vez que, bem interpretado o referido normativo, ele só encontra autonomia própria nos casos que a "corrupção activa" não seja "acompanhada" de corrupção passiva
B3: pelo que, ao desconsiderar-se a ordem de razões acima referida, o assinalado artigo 9° resulta violado. Por outro lado,
B4: não é exacta ou não tem nada de necessário, em si mesma, a afirmação segundo a qual, findo o inquérito, quando o M.P. se decida pela suspensão provisória do processo, tenha de haver lugar a uma separação de processos. Ora,
B5: na espécie dos autos, a separação a que atrabiliariamente procedeu o Ministério Público, mais não materializou do que uma lastimável "habilidade" processual, destinada a contornar o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 133° do Código de Processo Penal
B6: materializando, pois, uma usurpação de poderes, pelo que a determinação da separação de processos deve considerar-se inquinada do vício da inexistência. Com efeito,
B7: do que vem de assinalar-se resulta que os arguidos do processo assim ilegalmente separado, materialmente, continuam a sê-lo naquele dos autos. Acresce que
B8: a "pretensão punitiva do Estado" só é legítima em função de uma verdade obtida de forma intraprocessualmente válida, ou seja com respeito pelos comandos que estabeleçam regras de proibição de produção ou de valoração de provas
B9: pelo que o apelo ao disposto do n.º 2 do artigo 133° do Código de Processo Penal viola o princípio da lide leal, cunhado no n.º 1 do artigo 32° da Constituição e, nessa medida, torna a referida norma do direito legislado materialmente inconstitucional. Com efeito,
B10: a separação de processos operada nos autos é ilegal e, na verdade, por uma dupla ordem de razões:
B11: ilegal porque não determinada, nos termos do art. 30°, por um "tribunal", mas resultante do alvedrio da mesma instituição; ilegal ainda, porque desleal, isto é, violadora do princípio do fair trial ou do processo leal (art. 32°, n.º 1, da CRP), comando este directamente aplicável (art. 18°, n.º 1, CRP) e que, por conseguinte, também ele resultou violado, à semelhança do que sucedeu com aquele do artigo 30° do Código de Processo Penal. Como assim,
B12: é, salvo o devido respeito, juridicamente estropiado o apelo feito à norma do n.º 5 do artigo 264° do Código de Processo Penal, comando ao qual não pode atribuir-se o conteúdo de sentido que lhe conferiu o despacho recorrido
B13: uma vez que o mesmo em nada interfere com a redacção dos artigos 24° a 30° do mesmo diploma e, em especial, não permite a conclusão segundo a qual a separação de processos, na fase do inquérito, seria da competência do Ministério Público e que, ao ser interpretado e aplicado nos antípodas do acabado de referir, resultou violado
B14: como, de resto, o demonstra o disposto no artigo 16° da Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto. Por conseguinte,
B15: deve ser dada sem efeito a separação de processos que teve indevida e ilegalmente lugar nestes autos, em flagrante violação do disposto no n.º 1 do artigo 30° do Código de Processo Penal. E ainda:
B16: o "despacho" da M.ma Juíza, proferido nos autos, com a pretensão de manifestar a concordância da mesma à promoção do Ministério Público de aplicação a certos arguidos da figura da suspensão provisória do processo, constitui um "nada" jurídico.
B17: Um tal "despacho", com efeito, não pode deixar de considerar-se gravemente viciado, por violador do n.º 1 do art. 205° da CRP (sem esquecer o art. 97°, n.º 5, do CPP) uma vez que completamente destituído de fundamentação
B18: normas que também foram violadas.
B 19: Termos em que, na procedência do presente recurso, deve ser revogado o despacho recorrido, com as legais consequências.»
3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, concluindo no sentido da total improcedência do recurso (cfr. fls. 168 e seguintes).
4. O mesmo arguido interpôs, igualmente, recurso do despacho proferido pela M.ma Juíza de Instrução Criminal, em 26 de Março de 2007, centrado na interpretação sufragada nesse despacho quanto ao disposto no n.º2 do artigo 289.º do Código de Processo Penal.
Na respectiva motivação, o recorrente apresentou as seguintes conclusões (transcrição):
RECURSO B) – fls. 180 e segs.
«B1: O presente recurso deve ser admitido a subir imediatamente em separado, como resulta do disposto no n.º 2 do art. 407.º do CPP interpretado à luz do disposto nos n.º 4 e 5 do art. 20.º da CRP. Com efeito,
B2: o não reconhecimento do que vem de assinalar-se coenvolveria a violação, para além dos assinalados normativos, dos art. 14°, n.º 3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 6°, n.º 1 da CEDH, da segunda parte do art. 47° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e da al c) do n.º 1 do art. 67° do Estatuto (de Roma) do Tribunal Penal Internacional. Por outro lado,
B3: a interpretação sufragada pela M.ma Juíza do disposto no n.º 2 do art. 289° do CPP, ostraciza o comando do n.º 7 do art. 32° do diploma fundamental, o que a referida Ex.ma Julgadora, pura e simplesmente não considerou. E ainda:
B4: a interpretação acolhida viola o disposto no n.º 5 e no n.º 1, ambos do art. 32° do mesmo compêndio de direito supra-legislado
B5: prejudicando, a uma leitura integrada, o próprio "funcionamento" do disposto no art. 356°, n.º 3, do CPP. Com efeito,
B6: a lei não poderia ter determinado, como não determinou, se considerada esta intra-sistematicamente e não obliterada a principologia constitucional, a proibição, como regra, da participação do M.P., do defensor, ou ainda do advogado do assistente na "sub-fase" dos actos instrutórios, pois, se o tivesse feito, teria comandado de forma inconstitucional e, na verdade, violadora do disposto nos n. os 1, 3, 4, 5 e 7, todos do artigo 32°, do diploma fundamental:.
B7: A terminar: a boa interpretação, conforme à Constituição, do n.º 2 do art. 289° do CPP, coenvolve necessariamente as seguintes consequências:
B8: Havendo lugar, durante a instrução, à inquirição de testemunhas, são notificadas para o acto o M.P., o defensor e o advogado do assistente;
B9: Durante o interrogatório estes sujeitos e participante processuais, sem prejuízo do direito de arguir nulidades, não podem interferir, salvo se o Juiz permitir que suscitem pedidos de esclarecimento das respostas dadas; e
B10: findo o mesmo, podem requerer ao Juiz que formule as perguntas que entenderem relevantes para o esclarecimento da verdade. Como assim,
B11: deve ser revogado o douto despacho recorrido, com anulação de todas as diligências instrutórias que tiveram lugar à revelia do defensor do requerente da instrução.»
5. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, pronunciando-se nos termos constantes de fls. 198 e seguintes dos presentes autos.
6. O recurso acima assinalado como A) foi admitido por despacho de 11 de Dezembro de 2007 (cfr. fls. 253 dos presentes autos) para subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo.
Com esse recurso foi mandado subir o supra assinalado como B), o qual tinha sido admitido por despacho de 16 de Abril de 2007 (cfr. fls. 252 dos presentes autos, correspondendo a fls. 4833 do processo principal), sendo-lhe fixada, nesse despacho de admissão, a subida diferida.
Por sua vez, por despacho de 22 de Janeiro de 2008 (cfr. fls. 266 e segs. dos presentes autos), após audição dos sujeitos processuais, foi corrigido o efeito atribuído ao recurso supra assinalado como A) que passou a ter efeito meramente devolutivo.
7. Deste despacho que alterou o efeito de suspensivo para devolutivo foi, por sua vez, interposto recurso, que não foi admitido, tendo sido deduzida reclamação decidida favoravelmente pelo Ex.mo Sr. Presidente da Relação de Coimbra (cfr. fls. 271 e segs.).
8. Finalmente, nos presentes autos, em sede de exame preliminar, foi fixado ao recurso interposto da decisão de 26 de Setembro de 2007 o efeito meramente devolutivo (cfr. fls. 323 e segs.).
9. Neste Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de que o recurso interposto da decisão de 26 de Setembro de 2007 não merece provimento. Quanto ao recurso de fls. 180 e segs., pronunciou-se a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no sentido da sua procedência parcial, quanto à questão do respectivo efeito.
10. Respondeu o recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 417.º, n.º2, do Código de Processo Penal, nos termos de fls. 310 e seguintes, pugnando pela procedência do recurso (reportando-se ao que foi interposto do despacho de 26 de Setembro de 2007).
11. Foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma (que passaremos a designar como C.P.P.).
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Segundo jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.99, CJ/STJ, Ano VI, Tomo II, p. 196).
Atento o teor das conclusões dos recursos, identificam-se como questões que o recorrente pretende sejam apreciadas, em breve síntese:
- saber se a separação de processos operada nos autos é ilegal;
- saber se o despacho de concordância com a suspensão provisória do processo, relativamente a alguns dos arguidos, proferido pela M.ma Juíza, enferma de vício por falta de fundamentação;
- saber se a interpretação sufragada pela M.ma Juíza quanto ao disposto no artigo 289.º, n.º2, do C.P.P. é ilegal e mesmo inconstitucional, devendo ser anuladas todas as diligências instrutórias que tiveram lugar à revelia do defensor do requerente da instrução.
Como questão prévia, há que questionar a recorribilidade da decisão da M.ma Juíza de Instrução, proferida em 26 de Setembro de 2007.
2. Apreciando
2.1. A primeira nota a reter é que a menção constante do parecer da Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta ao provimento parcial do recurso de fls. 180 e seguintes reporta-se, apenas, à questão do efeito desse recurso e não há sua substância.
Certo é que tal recurso foi interposto do despacho de fls. 4783 e segs. e foi admitido por despacho de 16 de Abril de 2007, para subir diferidamente e com efeito devolutivo.
E, salvo melhor opinião, não se coloca, a seu respeito, a questão quanto ao efeito que foi suscitada a propósito do recurso do despacho de 26 de Setembro de 2007.
2.2. Como se disse supra, o recorrente interpôs recurso do despacho que a M.ma Juíza de Instrução Criminal proferiu, em 26 de Setembro de 2007, que indeferiu a invocada nulidade da acusação, a invocada invalidade da separação de processos e a arguida nulidade do despacho de concordância da M.ma Juíza com a decisão de suspensão provisória do processo relativamente a alguns dos arguidos.
Importa realçar que o despacho de 26 de Setembro de 2007 traduziu-se na decisão instrutória que pronunciou o arguido por todos os factos e crimes descritos na acusação, tendo conhecido, previamente, das nulidades que haviam sido arguidas.
É sabido que o recurso constitui um meio de impugnação de decisão judicial e que, no âmbito do processo penal, está consagrado o princípio da recorribilidade, nos termos do artigo 399.º do C.P.Penal.
A consagração, em termos gerais, desse princípio não significa que todas as decisões sejam recorríveis.
Assim, a garantia decorrente do acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e bem assim o acesso ao recurso como garantia do processo criminal, consagrado no artigo 32.º, n.º1, também da Constituição, na sequência da Lei Constitucional n.º1/97, de 20 de Setembro, não implicam a generalização sem limites do duplo grau de jurisdição, dispondo o legislador ordinário de uma margem de liberdade de conformação no estabelecimento de requisitos de admissibilidade dos recursos.
É o que ocorre, por exemplo, relativamente aos casos indicados no artigo 400.º, n.º 1, do C.P.P., em que a faculdade de recurso está excluída por lei, existindo outras disposições dispersas pelo ordenamento processual penal que prevêem outros casos em que o recurso não é admissível.
Um desses casos é, precisamente, o da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, que é irrecorrível, conforme prescrevia o artigo 310.º, n.º 1, do C.P.P., na redacção anterior à reforma operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
A mesma irrecorribilidade está consagrada na nova redacção do mesmo artigo 310.º, n.º1, introduzida em 2007, com o seguinte teor:
«1. A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º4 do artigo 285.º, é irrecorrível (…).»
Saliente-se que o Tribunal Constitucional, por diversas vezes, no domínio da redacção anterior do preceito, afirmou a conformidade com a Constituição da República do referido regime de irrecorribilidade da decisão instrutória de pronúncia do arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, considerando estar perfeitamente sedimentado na sua jurisprudência que a norma constante do artigo 310.º, n.º1, do C.P.P., não padece de qualquer inconstitucionalidade, designadamente por ofensa do artigo 32.º, n.º1, da Lei Fundamental (neste sentido, entre muitos: Ac. do T.C. 156/98, D.R., II Série, de 7 de Maio de 1998; Ac. do T.C. 30/2001, publicado do D.R., II Série, de 23 de Março de 2001; Ac. do T.C. 79/2005, D.R., II Série, de 6 de Abril de 2005 – que enumera diversos acórdãos do T.C. com o mesmo entendimento).
Discutiu-se, porém, se tal regime de irrecorribilidade abrangia ou não a parte do despacho que indeferisse a arguição de nulidades, questões prévias ou incidentais apreciadas pelo juiz de instrução criminal, matéria que gerou decisões jurisprudenciais contraditórias.
O Supremo Tribunal de Justiça veio, então, uniformizar a jurisprudência, nos seguintes termos:
«A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais.» (Acórdão publicado como Assento n.º 6/2000, de 19 de Janeiro de 2000, D.R. I-A, de 7 de Março de 2000).
Por sua vez, o mesmo S.T.J. uniformizou jurisprudência no sentido da subida imediata do recurso da parte da decisão instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais (cfr. Acórdão uniformizador n.º 7/2004, de 21 de Outubro de 2004, D.R., I-A, de 2 de Dezembro de 2004).
Com a revisão do C.P.P. operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o artigo 310.º, n.º1, foi alterado no sentido de consagrar que a irrecorribilidade da decisão instrutória abrange «a parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento».
No domínio da redacção anterior e antes da mencionada uniformização de jurisprudência, já o Tribunal Constitucional se pronunciara quanto à não inconstitucionalidade da irrecorribilidade da decisão instrutória relativamente às decisões que incidissem sobre questões prévias ou incidentais (neste sentido, o Ac. do T.C. 216/99, D.R., II Série, de 6 de Agosto de 1999, e o Ac. do T.C. 387/99, de 23 de Junho de 1999, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Disse o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 216/99:
«A lei assegura, como lhe compete para dar cumprimento aos objectivos constitucionais, que o arguido tenha possibilidade de recorrer de uma decisão condenatória. Multiplicar as possibilidades de recurso ao longo do processo seria comprometer outro imperativo constitucional: o da celeridade na resolução dos processos-crime (artigo 32º, nº 2, in fine, da Constituição da República Portuguesa). Ou seja, entre assegurar sempre o duplo grau de jurisdição, arrastando interminavelmente o processo, e permitir apenas o recurso das decisões condenatórias, permitindo uma melhor fluência do processo, o legislador optou decididamente pela segunda via.
Esta opção foi aliás confirmada pela revisão constitucional de 1997, que aditou ao n.º 1 do artigo 32.º o segmento "incluindo o recurso". Como se escreveu no acórdão nº 101/98 (inédito) deste Tribunal, a intenção do legislador constituinte não foi "significar que haveria de ser consagrada, sob pena de inconstitucionalidade, a recorribilidade de todas as decisões jurisdicionais proferidas em processo criminal, mas sim que do elenco das garantias de defesa que tal processo há-de assegurar se contará a possibilidade de impugnação das decisões judiciais de conteúdo condenatório, na esteira do que já era entendido pela jurisprudência deste órgão de fiscalização" (veja-se também, no mesmo sentido, o acórdão nº 299/98, inédito). O arguido pode sempre, pois, recorrer da decisão condenatória que lhe seja dirigida, e aí contestar todos os vícios que derivem de uma má apreciação de qualquer questão interlocutória.»
E mais adiante:
«Quanto à compatibilidade entre a solução do artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, com o princípio da plenitude das garantias de defesa, mais uma vez em equação se colocam os princípios da celeridade e da protecção dos direitos do arguido. Afirmou-se, a este propósito, no acórdão n.º 610/96 do Tribunal Constitucional (in Diário da República, II, de 6 de Julho de 1996, p. 9117 s):[...] o que se questiona no presente recurso é se o desígnio de celeridade, que é consagrado constitucionalmente, legitima a irrecorribilidade de certas decisões instrutórias: justamente os despachos de pronúncia que não alteram os factos constantes da acusação do Ministério Público. E a resposta a esta questão indica que a celeridade não só é compatível com as garantias de defesa, podendo coincidir com os fins de presunção de inocência, como é instrumental dos valores últimos do processo penal – a descoberta da verdade e a justa decisão da causa –, próprios de um Estado democrático de direito. […]»
Conclui-se, pois, sufragando a argumentação que já antes o T.C. sustentava, que a nova redacção do artigo 310.º, n.º1, do C.P.P., que exclui a recorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, «mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais» não fere a Constituição da República, designadamente, a garantia do recurso consagrada no respectivo artigo 32.º.
2.3. Aqui chegados, importa reflectir sobre as consequências nos presentes autos da entrada em vigor da nova redacção do artigo 310.º, n.º1, ocorrida no dia 15 de Setembro de 2007.
O artigo 5.º do C.P.P. dispõe que a lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior (n.º 1). Porém, (n.º 2) a lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:
a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou
b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.
Esta disposição aplica-se, sem margem para dúvidas, aos recursos nos processos penais.
Resta saber, todavia, se há que fazer distinção entre os recursos de decisões penais já proferidas antes da entrada em vigor da nova lei e os de decisões proferidas posteriormente.
Como salienta o S.T.J. em Acórdão de 29 de Maio de 2008 (processo 08P1313, www.dgsi.pt), «embora o direito ao recurso, considerado em abstracto, faça parte do rol dos direitos constitucionais de defesa no âmbito do direito criminal (art.º 32.º, n.º 1, da CRP), o direito a recorrer de certa e determinada decisão só existe depois da mesma estar proferida, pois só então se pode aferir se a pessoa em causa tem legitimidade e interesse relevante em recorrer. Na verdade, há que fazer uma distinção entre os direitos de defesa que têm eficácia em todo o decurso do processo (os previstos no art.º 61.º, n.º 1, do CPP) – por exemplo, o direito genérico a recorrer – e os que apenas se encontram consignados para a fase processual em curso – o direito a recorrer de certa e determinada decisão.»
Por isso, tem-se entendido que a lei aplicável para se aferir da recorribilidade de certa decisão é a vigente na altura em que a mesma for proferida, o que, aliás, é uma decorrência do princípio da aplicação imediata da lei processual penal.
E tem sido sustentado que a “decisão” que importa considerar é a proferida em 1.ª instância – que cria legítimas expectativas quanto ao direito ao recurso, presente e futuro, pois a partir desse momento passa a existir na esfera jurídica do arguido o leque de graus de recurso contemplados na lei processual.
Do que se conclui que deverá ser aplicável a nova lei processual à recorribilidade de decisão que na 1ª instância tenha sido proferida depois da entrada em vigor dessa lei, independentemente do momento em que se iniciou o respectivo processo.
2.4. Ocorre que a decisão instrutória foi proferida em 26 de Setembro de 2007, ou seja, já após a entrada em vigor da reforma introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que consagrou a irrecorribilidade da decisão instrutória nos termos supra descritos, mesmo na parte relativa a nulidades e outras questões prévias ou incidentais.
Tal como se entendeu, em sede de reclamação, na Relação de Lisboa: «A actual redacção do CPP veda o direito ao recurso mesmo que a decisão instrutória tenha apreciado nulidades (art.º 310º CPP) enquanto a anterior versão o permitia, determinando a irrecorribilidade da decisão instrutória, mesmo nesses casos, em que a decisão instrutória pronunciasse o arguido pelos factos da acusação do MºPº.
É, porém, de concluir, fazendo a devida adaptação desta posição que, mesmo em processos iniciados antes da entrada em vigor da lei nova, não é admissível recurso de decisões proferidas no seu domínio que, a partir de 15-9-2007 deixaram de ser recorríveis, mesmo que o fossem à luz da lei anterior.
Há quem entenda que tal momento se define, não pelo da decisão, mas pelo da interposição do recurso o que, no caso em apreço, não altera esta decisão já que, quer a decisão instrutória, quer o requerimento de recurso, são posteriores a 15-09-2007.» (processo n.º 7083/2008-5, despacho de 25 de Setembro de 2008, da Ex.ma Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa).
No mesmo sentido, a decisão da Reclamação Penal 2376/08-4, de 7 de Abril de 2008, da Ex.ma Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto, sustentando que a alteração legal quanto ao direito ao recurso da decisão instrutória, na parte em que aprecia nulidades e outras questões prévias ou incidentais, «não se repercute sobre as garantias de defesa do arguido, pelo que não está em causa um regime que traduza um agravamento sensível da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa», pois, «o que do aludido preceito (art. 310º, 1) decorre, para a posição processual do arguido, é apenas a possibilidade de o mesmo ser sujeito a julgamento, antes de reapreciada a decisão que julgou a arguida nulidade. Daí que não seja rigoroso dizer-se que há, no caso, uma limitação do direito ao recurso, mas sim a sujeição do arguido a julgamento, antes de ser reapreciada a decisão sobre a nulidade.»
No caso em apreço, até ao momento em que foi proferida a decisão instrutória, o arguido ora recorrente ainda não tinha o direito de recorrer, pois que tal direito só se concretizaria quando fosse proferida a decisão recorrida e se esta lhe fosse desfavorável. E tal recurso rege-se pelas normas vigentes nessa ocasião, pelo que não pode dizer-se que, agora, se esteja a retirar-lhe esse direito, sendo certo que a expectativa que o arguido tinha de, eventualmente, poder vir a recorrer no futuro, não goza de protecção jurídica.
Em suma: a recorribilidade ou não da decisão afere-se pela lei vigente à data da sua prolação (em 1.ª instância), pelo que, tendo a decisão recorrida sido proferida já na plena vigência das alterações introduzidas no disposto no artigo 310.º, n.º1, do C.P.P., pela Lei n.º 48/2007, tal decisão é irrecorrível mesmo na parte em que apreciou as nulidades arguidas pelo ora recorrente.
Assim, visto que o despacho de 26 de Setembro de 2007 que está em causa é irrecorrível e a decisão que admite o recurso não vincula o tribunal superior (artigo 414.º, n.º 3, C.P.P.), há que rejeitá-lo de harmonia com o disposto no artigo 420.º, n.º 1, alínea b), do C.P.P.
2.5. Quanto ao recurso interposto do despacho de 26 de Março de 2007
Este recurso foi admitido por despacho de 16 de Abril de 2007, tendo sido fixado, nesse despacho de admissão, o regime de subida diferida: subida com o primeiro que depois dele haja de subir (cfr. fls. 252 dos presentes autos, correspondentes a fls. 4833 do processo principal).
O despacho de admissão do recurso do despacho de 26 de Setembro de 2007 determinou a subida conjunta do recurso que havia sido interposto do despacho de 26 de Março de 2007.
Tal ocorreu sem que se vislumbre que o recorrente tivesse especificado, nas conclusões, a manutenção do seu interesse no conhecimento do recurso retido.
Porém, certo é que o recurso agora em questão, como se disse, foi admitido para subir diferidamente, o que significa, nos termos do artigo 407.º, n.º3, do C.P.P., subir, ser instruído e julgado «conjuntamente com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa».
Ora, entendendo-se, como se entende, que o recurso com subida imediata – e que fez subir o recurso retido, por via de despacho da M.ma Juíza – não é de conhecer, por respeitar a decisão irrecorrível, razão pela qual deverá ser rejeitado, entendemos que prejudicado fica, inelutavelmente, o conhecimento do recurso retido, o qual deverá ser conhecido, sendo caso disso, com o recurso da decisão final e não agora.
3. Concluindo
1. O recurso do despacho de 26 de Setembro de 2007 deverá ser rejeitado por respeitar a decisão irrecorrível:
2. O recurso do despacho de 26 de Março de 2007 não deverá ser conhecido nestes autos.
III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em:
A)Rejeitar o recurso interposto da decisão de 26 de Setembro de 2007, relativa às nulidades invocadas pelo recorrente quanto à acusação, à separação de processos e ao despacho de concordância da M.ma Juíza em relação à suspensão provisória do processo, por se tratar de decisão irrecorrível;
B) Considerar prejudicado o conhecimento nestes autos do recurso retido, relativo ao despacho de 26 de Março de 2007, o qual deverá ser conhecido, sendo caso disso, com o recurso da decisão final e não agora.