Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
390/08.7TBSRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: ARRESTO
REQUISITOS LEGAIS EXIGIVEIS
Data do Acordão: 02/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 406º, Nº 1, DO CPC.
Sumário: I – Resulta do disposto no artº 406º, nº 1, do CPC, que o procedimento cautelar (nominado) de arresto depende, essencialmente, da verificação cumulativa de dois requisitos: 1) da probabilidade da existência do crédito; 2) e da existência de justo receio de perda da garantia patrimonial.

II – Para a comprovação do justo receio da perda da garantia patrimonial não basta o receio subjectivo do credor, baseado em meras conjecturas, já que para ser justificado há-de assentar em factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação.

III – Este receio é o que no arresto preenche o periculum in mora que serve de fundamento à generalidade das providências cautelares.

IV – Em súmula, poder-se-á dizer que a fim de indagar sobre o preenchimento, ou não, do requisito geral do “justificado receio de perda de garantia patrimonial”, haverá que atender, designadamente, à forma da actividade do devedor, à sua situação económica e financeira, à sua maior ou menor solvabilidade, à natureza do seu património, à dissipação ou extravio que faça dos seus bens, à ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de não cumprir a obrigação, ao montante do crédito que está em causa e, por fim, à própria relação negocial estabelecida entre as partes.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. A..., instaurou (em 29/8/2008) contra B..., a presente providência cautelar nominada de arresto.
Para o efeito alegou, em síntese, o seguinte:
Ter um crédito sobre a requerida, que a mesma não paga.
Porém, devido a atitudes que a mesma vem adoptando ultimamente, tem fundadas razões para crer pela perda da garantia patrimonial que tem sobre o referido crédito.
Pelo que no final, afim de assegurar a garantia patrimonial do referido crédito, pediu, além do mais, que fosse decretado o arresto dos seguintes bens:
“a) “Todos os bens móveis não perecíveis que se encontrem na sede social da Requerida, sita na Zona Industrial Carrascal, lote 1, 6110-231 Vila de Rei, designadamente mobiliário, cadeiras, mesas, equipamento informático, aparelhos de telefone e fax, fotocopiadoras, entre outros, recorrendo se necessário ao arrombamento das portas”;
b) “Do(s) veículo(s) automóvel (is) de que a Requerida seja proprietária, designadamente os veículos automóvel Iveco, matrícula 93-73-RA e o veículo automóvel marca Ford, matrícula 79-01-IP”;
c) “Dos saldos bancários, presentes e futuros, das contas de que a Requerida seja titular ou co-titular em qualquer banco a operar em Portugal”;
d) “Do direito de propriedade e/ou do direito de arrendamento do imóvel onde a sociedade Requerida tem instalada a sua sede, sita na Zona Industrial Carrascal, lote 1, 6110-231 em Vila de Rei.”

2. Procedeu-se depois, e sem audiência da requerida, à inquirição da prova testemunhal arrolada pela requerente.

3. Após o que foi preferida decisão que (por se entender não estarem verificados todos os respectivos pressupostos legais exigidos para o efeito, vg. do justo receio de perda de garantia patrimonial) indeferiu aquela providência cautelar requerida.

4. Não se tendo conformando com tal decisão, dela apelou a requerente.

5. Nas correspondentes alegações de recurso que apresentou, a requerente/apelante concluiu as mesmas nos seguintes termos:
[…]
6. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
***
II- Fundamentação
A) De facto.
Pelo tribunal da 1ª instância foram dados (indiciariamente) como provados os seguintes factos (cuja ordem de descrição se respeita):
[…]
***
B) De direito.
1. Do objecto do recurso.
Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações do recurso que se fixa e delimita o seu objecto.
Ora, compulsando as conclusões das alegações do presente recurso, verifica-se que são duas as questões que importa aqui apreciar:
a) Saber se a decisão recorrida é nula (por violação do disposto no artº 668, nº 1 al. c), do CPC).
b) Saber se se mostram preenchidos todos os respectivos requisitos legais para que a providência cautelar de arresto requerida pela apelante possa ser decretada.
***
2. Quanto à 1ª questão.
Começou a apelante por invocar a nulidade da decisão recorrida, por alegada violação do disposto na al. c) do nº 1 do artº 668 do CPC.
Dispõe tal normativo legal que “é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
Como é sabido, só ocorrerá esta causa de nulidade quando a construção da sentença é viciosa, isto é, quando «os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto” (cfr. o prof. Alb. dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 141”). Ou melhor, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma oposta àquela que logicamente deveria ter extraído (vidé ainda, entre outros, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.”).

Tal nulidade refere-se, pois, a um vício estrutural da sentença (também conhecida por erro de construção ou de actividade), por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso daquele que seguiu.
Não se pode confundir a motivação da decisão (artº 659 do CPC) com a fundamentação a que se reporta o artº 653, nº 2, do mesmo diploma legal.
Aquela – a que ora interessa – desdobra-se em fundamentação de facto e fundamentação de direito, consubstanciada esta na interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes aos factos dados como assentes.
Assim, tal nulidade não abrange o erro de julgamento, seja de facto, seja de direito, e designadamente a não conformidade da decisão com o direito substantivo (cfr., por ex,. Ac. do STJ de 21/5/98, in “CJ, Acs do STJ, Ano VI, T2 – 95”).
Ora, calcorreando a decisão em apreço afigura-se-nos que todas as premissas e dados factuais e jurídicos, bem como o discurso lógico-discursivo e decisório correspondente, se encontram clara e inequivocamente enunciados e externos.
Não existe nem contradição nem ilogicidade alguma. A decisão, depois de analisar, indagar e juridicamente balizar o “thema decidendum”, extraiu em conformidade o seu juízo jurídico-subsuntivo. Ou seja, a srª juiz a quo, depois de enunciar e analisar (diga-se, de forma proficiente e clara) os pressupostos da providência cautelar requerida pela requerente, veio a concluir que (na sua óptica) e perante os factos dados indiciariamente como assentes, não se mostrava preenchido um desses pressupostos ou requisitos legais, e mais concretamente o do justo ou fundado receio da perda de garantia patrimonial da requerente.
E na elaboração do correspondente silogismo judiciário não se detecta qualquer oposição ou contradição.
Se a conclusão a que a final extraiu se mostra ou não correcta - à luz dos factos apurados e do direito aplicável aos mesmos -, isso são “contas de outro rosário”, e que poderá ter a ver com o erro de julgamento (de direito), mas que nada tem a ver com o vício intrínseco/estrutural da decisão que supra enunciámos.
Torna-se, pois, patente que a apelante não concorda com o sentido decisório no final extraído, mas o que não pode é apontar qualquer vício ou erro de raciocínio no desenvolvimento daquele silogismo.
Ou seja, o tribunal a quo disse o que na realidade queria dizer e o que disse expressou-o de forma clara e em termos perfeitamente coerentes e inequívocos, pelo que se terá de concluir que, a esse propósito, não ocorre qualquer construção viciosa da decisão recorrida, não enfermando também, assim, a mesma da referida nulidade que lhe é apontada.

***
3. Quanto à 2ª questão.
Preceitua o artº 406, nº 1, do CPC, que “o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”.
Resulta, assim, de tal normativo legal que o procedimento cautelar (nominado) de arresto depende, essencialmente, da verificação cumulativa de dois requisitos: 1) da probabilidade da existência do crédito; 2) e da existência de justo receio de perda da garantia patrimonial.
Como resulta do acima exarado (do confronto da decisão recorrida com as alegações e conclusões do recurso dela interposto), a única questão aqui controvertida, e que se impõe resolver, tem somente a ver com aquele segundo requisito, ou seja, saber se o mesmo, face aos factos apurados, se mostra, ou não, preenchido, já que no que concerne ao preenchimento do primeiro não se suscitam dúvidas.
Vejamos então.
Como se tem defendido, quer no plano jurisprudencial, quer no plano doutrinal, para a comprovação do justo receio da perda da garantia patrimonial não basta o receio subjectivo do credor, baseado em meras conjecturas, já que para ser justificado há-de assentar em factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação (cfr., a propósito, entre muitos outros, Ac. do STJ de 3/3/98, in “CJ, T1 – 116” e Acs. desta Relação e secção de 18/1/2005 e 17/1/2006, respectivamente, in “Agravo nº 3153/04” e “Agravo nº 3721/05”).
No mesmo sentido discorre António Geraldes (in “Temas da Reforma de Processo Civil, vol. 4º, 2ª ed., págs. 186/187”) ao afirmar que “o justo receio da perda de garantia patrimonial, está previsto no artº 406, nº 1, do CPC, e no artº 619 do Código Civil. Pressupõe a alegação e a prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo factual que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito.
Este receio é o que no arresto preenche o periculum in mora que serve de fundamento à generalidade das providências cautelares. Se a probabilidade quanto à existência do direito é comum a todas as providências, o justo receio referente à perda de garantia patrimonial é o factor distintivo do arresto relativamente a outras formas de tutela cautelar de direito (...).
“Como é natural, o critério de avaliação deste requisito não deve assentar em juízos puramente subjectivos do juiz ou do credor (isto é, em simples conjecturas, como refere Alberto dos Reis), antes deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata como factor potenciador da eficácia da acção declarativa ou executiva”.
E num esforço de melhor explicitar e concretizar tal conceito, através do recurso a alguns exemplos práticos, o mesmo autor adianta o seguinte (in “ob. cit., págs. 188/189”):
“A actual ou iminente superioridade do passivo relativamente ao activo constituirá certamente um dos elementos através dos quais se pode reconhecer uma situação de perigo justificativa do arresto, embora afastado o funcionamento automático desse factor. Correspondentemente, a situação inversa, em que o activo se mantém superior ao passivo, revelará, em princípio, a solvência do devedor, embora tais indícios possam ser anulados mediante a prova de que o mesmo mantém o propósito de ocultar ou de delapidar o património.
Assim, a situação de insolvência ou de perigo de insolvência deverá derivar, não exclusivamente da confrontação entre o activo e o passivo, mas fundamentalmente da análise de outros factores de que resulte objectivamente uma situação de incapacidade actual ou iminente para suportar os compromissos assumidos, factores esses semelhantes aos que, nos termos do artº 8 do CPEREF (numa altura, acrescentamos nós, em que o mesmo ainda não havia sido revogado pelo actual Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa, originariamente aprovado pelo DL nº 53/2004 de 18/3, e cuja redacção do seu artº 3, de algum modo correspondente àquele, não lhe é inteiramente coincidente), são reveladores da situação de insolvência, ou seja:
a) A falta de cumprimento de obrigações que, pelo seu montante ou circunstâncias de incumprimento, releve a impossibilidade de satisfazer o pontualmente a generalidade das obrigações;
b) O abandono da empresa ou do estabelecimento;
c) A dissipação ou o extravio de bens, a constituição fictícia de créditos ou a ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de incumprir.
Atenta a função meramente preventiva do arresto - isto agora escrito em nota de rodapé, nº 334, pág. 189 -, parece insuficiente basear a medida cautelar em simples recusa de cumprimento da obrigação desligada de outros factores relacionados com a perda da garantia patrimonial, já que aquela falta de modo algum pode equivaler ao pressuposto legal em causa”.
Por fim, e sempre numa tentativa de concretizar melhor a ideia daquilo em que deve traduzir-se o conceito de “justificado receio de perda da garantia patrimonial”, não resistimos ainda de citar aqui o prof. Lebre de Freitas (in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, págs. 119/120”) quando escreve “(...) esse receio pode...tratar-se do receio de insolvência do devedor (a provar através do apuramento geral dos seus bens e das suas dívidas), ou do da ocultação, por parte deste, dos seus bens (se, por exemplo, ele tiver começado a diligenciar nesse sentido, ou usar fazê-lo para escapar ao pagamento das suas dívidas), mas pode igualmente tratar-se do receio de que o devedor venda os seus bens (como quando se prove que está a tentar fazê-lo...) ou os transfira para o estrangeiro (está, por exemplo, ameaçando fazê-lo, ou já transferiu alguns...) ou de qualquer outra actuação do devedor que levasse uma pessoa de são critério, colocada na posição do credor, a temer a perda da garantia patrimonial do seu crédito”.
Deste modo, e em súmula, poder-se-á dizer que a fim de indagar sobre o preenchimento, ou não, do requisito geral do “justificado receio de perda de garantia patrimonial”, haverá que atender, designadamente, à forma da actividade do devedor, à sua situação económica e financeira, à sua maior ou menor solvabilidade, à natureza do seu património, à dissipação ou extravio que faça dos seus bens (quer se tenha já iniciado, quer existam sérios indícios de que o pretende fazer em breve), à ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de não cumprir a obrigação, ao montante do crédito que está em causa, e, por fim, à própria relação negocial estabelecida entre as partes.
Subsumamos, agora, tais considerações ao caso em apreço e à luz factos indiciariamente dados como provados.
É inequívoca a existência de um crédito da requerente sobre a requerida, cujo montante é já de considerar bastante significativo (cfr. nº 15 dos factos assentes, e aos quais se referem os nºs a seguir indicados).
Para além dessa dívida, a requerida encontra-se ainda débito com outros credores, tendo pelo menos três deles já recorrido também aos tribunais para obter tutela judicial dos seus créditos (nos montantes de € 37.481,76, € 225.257,00 e € 588,481,34), sendo que o último se encontra já na fase de execução (cfr. nºs 19, 20 e 21). E em relação a tais débitos não se pode deixar de considerar que os dois últimos são de montante já consideravelmente expressivo, e sobretudo o último deles.
Por outro lado, do confronto dos factos descritos sob os nºs 17 e 18 parece resultar claro (não nos esqueçamos que neste tipo de providências apenas se exige uma aparência do direito assente em concretos factos indiciários), que requerida estará em vias de dissipar o seu património mais significativo, tendo já, inclusive, dado passos para proceder à venda do imóvel onde se encontra sediada. De realçar que essa informação terá sido fornecida pelo próprio sócio-gerente da requerida, que não é uma qualquer pessoa anónima, o mesmo sucedendo, aliás, em relação àqueles últimos factos, numa informação que foi reforçada pelos próprios funcionários da sociedade-requerida.
Por fim, sendo o crédito da requerente já bastante significativo, não pode também deixar de se considerar que se trata de uma empresa de reduzida dimensão (cfr. nº 24).
Ora, da conjugação de todos esses factos (perante os quais, realce-se, este tribunal ad quem se vê confrontado, por terem sido dados indiciariamente como assentes pelo tribunal a quo), não poderemos concluir, como o fez a srª juiz a quo, estarmos somente perante meras conjecturas. Estes são factos (indiciariamente) reais, e que justificam que, compreensivelmente, a requerente-credora possa temer perda da garantia patrimonial do seu crédito.
E daí que a nossa conclusão vá no sentido contrário àquele a que chegou a srª juiz a quo, ou seja, de que no caso se mostra também preenchido o requisito do justo ou fundado receio de perda da garantia patrimonial do crédito que a requerente/apelante tem sobre a requerida.
Pelo que, mostrando-se preenchidos os respectivos requisitos ou pressupostos legais, haverá que decretar a providência cautelar requerida pela apelante, assim revogando a decisão da 1ª instância.
Providência essa que deverá ser concretizada na 1ª instância, e com o respeito da observância do estatuído, a esse propósito, no nº 2 do artº 408 do CPC (que este tribunal não poderá aqui assegurar por ausência do fornecimento de elementos indispensáveis para o efeito).
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se, no provimento do recurso, em revogar a decisão da 1ª instância, a qual deverá ser substituída por outra que decrete a providência cautelar de arresto que foi requerida nestes autos, com o respeito do estatuído no nº 2 do artº 408 do CPC.
Sem custas quanto ao recurso, sendo que as devidas na 1ª instância deverão ficar a cargo da requerente, nos termos e condições estatuídas no artº 454, nº 1, do CPC.
Coimbra, 2009/02/10