Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2021/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. OLIVEIRA MENDES
Descritores: LIGÍTIMA DEFESA
Data do Acordão: 09/17/2003
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART.º S 31 ° E 32°, DO CÓDIGO PENAL.
Sumário:
I - O juízo sobre a adequação do meio de defesa deve ter em consideração as circunstâncias do caso concreto.
II - A lei actual apenas exige como requisito da legítima defesa a consciência da agressão e a necessidade de defesa, pelo que se mostra desprovido de sentido falar-se em animus defendendi.
III - No direito de legítima defesa devem ser incluídos a vida, a integridade física, a saúde, a liberdade, o domicílio e o património e, excepcionalmente, perante agressões repetidas e de extrema gravidade, todas os demais interesses juridicamente tutelados do agredido ou defendente.
IV - Contra agressões insignificantes deve-se recusar a legítima defesa.
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 2021/03

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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.
No processo comum singular n.º 281/98, do 3º Juízo da comarca da Figueira da Foz, após a realização do contraditório foi proferia sentença que condenou o arguido José C..., com os sinais dos autos, como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo art.143º, n.º1, do Código penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 11,00 e, subsidiariamente, na pena de 80 dias de prisão.
Na parcial procedência do pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente Nuno Manuel S..., devidamente identificado, foi o arguido condenado a pagar-lhe a importância € 1.500,00 – a título de indemnização por danos morais já sofridos –, acrescida de juros desde a data da sentença, bem como 2/3 do custo das intervenções cirúrgicas necessárias para a remoção da cicatriz de que o assistente é portador, incluindo despesas médicas, medicamentosas e de internamento e, bem assim, 2/3 dos danos de natureza moral que daí advenham, tudo a liquidar em execução de sentença, com juros contados desde a citação para a liquidação.
Interpôs recurso o arguido, sendo do seguinte teor a parte conclusiva da respectiva motivação:
1. De acordo com a fundamentação da matéria de facto contida na sentença recorrida, da audiência de julgamento resultaram versões contraditórias.
2. Por um lado, a versão do assistente, corroborada por duas testemunhas, Elsa e Olga, negando a prática de qualquer atitude provocatória, negando a agressão repetida e persistente, consistindo no puxar das barbas do arguido, e apenas referindo a agressão, sem razão aparente, do arguido na pessoa do assistente atingindo-o com um copo na testa.
3. Por outro a versão do arguido, apoiado pelas testemunhas Miguel C..., Miguel N..., Pedro B..., Luís C... e Tiago S..., que referem a agressão, repetida e reiterada do assistente na pessoa do arguido, a intenção deste abandonar a discoteca para evitar qualquer confronto com o assistente e o aparecimento repentino do assistente que, uma vez mais, lançou a mão à cara do arguido e que este tinha um copo na mão, fez um gesto brusco para se defender desconhecendo as consequências de tal gesto. Ora,
4. Entendeu o Tribunal proceder à conjugação desta duas versões, o que fez em desrespeito com a lei penal, atenta a manifesta insuficiência de prova, sendo que o princípio da livre apreciação da prova não confere ao julgador a possibilidade criar factos, mas sim de apreciar, de forma objectiva a prova, de acordo com as regras da experiência e a sua livre convicção. Com efeito,
5. Da fundamentação de facto constante da sentença recorrida, resulta manifesto que o Tribunal não conseguiu apurar com a certeza que se impõe no processo penal os factos que deu como provados, nomeadamente aqueles que imputou ao arguido quanto à forma e momento da agressão, os quais, em obediência estrita ao imposto na al.a), do n.º 3, do art.412º, se impugnam por considerados incorrectamente julgados:
«Neste momento, o assistente Nuno Manuel fez menção de voltar a puxar as barbas do arguido e ele, que no momento segurava numa das mãos um copo e vidro, com ele desferiu uma pancada na cara daquele».
6. E ainda aqueles de que resultaram a imputação ao arguido da respectiva conduta a título de dolo, os quais, outrossim, se consideram incorrectamente julgados, atenta a insuficiência de prova:
«O arguido agiu consciente e livremente com o propósito conseguido de molestar fisicamente o assistente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei».
7. Sendo certo que em processo penal se não pode falar de ónus da prova, o certo é que o Tribunal deve procurar obter a certeza dos factos, procurando a verdade material, pelo que persistindo a dúvida no espírito do Tribunal, tal relevará em benefício do arguido em obediência ao princípio do in dubio pro reo que o arguido expressamente invoca, pelo que deveria o arguido ser absolvido da prática do crime pelo qual foi pronunciado e bem assim, do pedido de indemnização civil.
8. Ao não ter entendido assim, violou o Tribunal a quo o disposto nos arts.127º, do C. P. Penal, 13º, 14º e 143º, do C. Penal.
9. De acordo com os factos dados como provados, resultará, necessariamente, que o arguido agiu a coberto de uma causa de justificação – legítima defesa – pelo que a sua conduta não podia ter sido considerada ilícita.
10. A conduta do assistente, consistente no puxar repetido e reiterado das barbas do arguido e a menção de o voltar a fazer, consubstancia agressão da integridade física do arguido.
11. Agressão essa que deverá ser considerada actual, uma vez que a actualidade da agressão perdurará até que o bem jurídico susceptível de defesa seja efectivamente lesado ou até que o agressor desista da concreta agressão/lesão.
12. A conduta do assistente, na qual persistiu após ter sido instado a não repetir deve ser qualificada como dolosa, uma vez que feito o aviso e, apesar dele, a pessoa persistir na sua atitude, esta transformar-se-á de negligente em dolosa, sendo susceptível de constituir agressão contra a qual caberá legítima defesa.
13. A conduta dolosa legitima ética e juridicamente a negação da exigência da proporcionalidade de bens, uma vez que sobre o agredido já não impende qualquer dever de solidariedade.
14. A situação de legítima defesa implica que a acção de defesa se apresente como necessária para repelir a agressão, exigindo-se que o defendente só utilize o meio considerado necessário, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente, adequado e eficaz para suster a agressão.
15. Esta apreciação deverá ser feita pelo julgador de acordo com critérios rigorosos, atendendo nomeadamente à capacidade físico-atlética do agressor, do agredido (capacidade de defesa), ao momento da agressão, à globalidade das circunstâncias concretas em que o agredido se encontra, bem como as capacidades e os meios de defesa de que o agredido se pode socorrer no preciso momento da agressão.
16. Da sentença recorrida resulta, pois, que estes critérios foram obliterados pelo Tribunal a quo, ao não dar relevância:
a) Às diferenças de idade e de compleição física do assistente e do arguido (o assistente é bastante mais novo e mais alto que o arguido);
b) À intenção do arguido – após ter sido agredido pelo assistente – em abandonar a discoteca procurando evitar qualquer confronto com o assistente;
c) Ao facto de o assistente, apesar de avisado para não repetir os actos, entendeu prosseguir com os seus propósitos;
d) Ao facto de a discoteca se encontrar lotada – o que não permitia ao arguido movimentar-se livremente à procura de seguranças ou de fugir ao assistente.
17. Resulta pois que a conduta do arguido se apresenta como necessária para repelir a agressão, uma vez que utilizou o meio considerado necessário, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente, adequado e eficaz para suster a agressão.
18. Pelo que preenchidos os pressupostos da legítima defesa, a conduta do arguido não deveria ter sido considerada ilícita, uma vez que se encontra coberta com o manto protector de uma causa de justificação – legitima defesa.
19. Em consequência deveria o arguido ter sido absolvido da prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no art.143º, do C. Penal, e do pedido de indemnização civil.
20. Ao não ter entendido assim, violou o Tribunal a quo o disposto nos arts.31º, 32º, 33º, 128º e 143º, do C. Penal, e ainda o disposto nos arts.70º, n.º1, 337º, n.º1, 483º e 562º, todos do Código Civil.
O recurso foi admitido.
Responderam Ministério Público e assistente, pugnando pela improcedência do recurso, com integral confirmação da sentença impugnada.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual também se pronuncia no sentido da improcedência do recurso, com o fundamento de que a decisão proferida sobre a matéria de facto é imodificável por o recorrente não haver dado cumprimento ao ónus previsto no art.412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, bem como por entender não se verificarem os requisitos da legítima defesa, face à utilização por parte do arguido de um meio desnecessário e à circunstância de aquele poder ter afastado a agressão por formas menos gravosas, nomeadamente através do recurso aos seguranças do estabelecimento onde aquela ocorreu ou dos amigos que o acompanhavam.
Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre agora decidir.
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Começando por delimitar o objecto e o âmbito do recurso, os quais nos são dados pelas conclusões extraídas pelo recorrente na respectiva motivação ( - Cf. entre muitos outros o ac. do S.T.J., de 92.10.07, proferido no processo n.º 40528, o qual reflecte a orientação pacífica e constante dos nossos tribunais superiores, segundo a qual o objecto e o âmbito do recurso se definem e delimitam através das conclusões formuladas pelo recorrente na motivação de recurso, pelo que o tribunal de recurso conhece apenas, em principio, as questões apresentadas nas conclusões.
Em princípio, obviamente, posto que sobre o tribunal impende o dever de ser pronunciar sobre todas as questões de conhecimento oficioso, quer as mesmas sejam ou não alegadas pelo recorrente.), verifica-se serem submetidas à nossa apreciação e julgamento as seguintes questões:
a) Incorrecta valoração e apreciação da prova;
b) Incorrecta subsunção dos factos provados ao direito aplicável.
Antes de entrarmos no conhecimento do recurso há, porém, que apreciar questão prévia, atinente ao reexame da matéria de facto, questão que, aliás, foi suscitada pelo Ministério Público ao defender que a decisão proferida sobre a matéria de facto é imodificável, uma vez que o recorrente impugnou-a sem que tenha dado cumprimento ao ónus previsto no art.412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.
Decidindo esta questão prévia, dir-se-á.
A Constituição da República Portuguesa em matéria de «direitos e deveres fundamentais», sob a epígrafe de «garantias de processo criminal», consagra princípios básicos e elementares de qualquer Estado de direito democrático, tendo em vista a defesa dos direitos e interesses legítimos, liberdades e garantias dos cidadãos (art.32º).
De entre os princípios consagrados destaca-se o previsto no n.º 1, segundo o qual o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
Tais princípios têm o sentido de a lei ordinária dever possibilitar ao arguido em, processo criminal o exercício efectivo do direito de defesa, com inclusão do direito ao recurso, o qual tratando-se de um direito fundamental não pode ser restringido a não ser nos apertados limites previstos no art.18º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República ( - Tenha-se presente, contudo, que de acordo com os ensinamentos de Vieira de Andrade, a falta de preceitos constitucionais que autorizem a restrição pela lei pode, todavia, ser colmatada pelo recurso à Declaração Universal dos Direitos do Homem, nos termos do n.º 2, do art.16º, sendo que a Declaração no seu art.29º, permite que o legislador estabeleça limites aos direitos fundamentais para assegurar o reconhecimento ou o respeito dos valores ali enunciados: «direitos e liberdades de outrem», «justas exigências da moral, da ordem pública e do bem estar geral numa sociedade democrática» - Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (1987), 232.), podendo e devendo, no entanto, não só ser regulamentado ( - Cf. Vieira de Andrade, ibidem, 228 (nota 28).), como clarificado, disciplinado e adaptado à vida real, para que não conflitue com direitos da mesma matriz, funcione de forma eficaz e se desenvolva e concretize sem abusos ( - Cf. Vieira de Andrade, ibidem, 227.), pelo que à lei ordinária cabe, inequivocamente, fixar os pressupostos ou condições de exercício dos recursos.
Daí que o legislador ordinário na sua actividade de regulamentação, conquanto não possa, em princípio, actuar de forma a afectar ou a modificar o conteúdo essencial daquele direito fundamental, qual seja o direito ao recurso, não só por tal redundar em verdadeira restrição, como por constituir uma inversão da ordem constitucional, pode no entanto concretizá-lo e discipliná-lo, designadamente através da imposição de condições ao seu exercício, desde que não atinja com elas o seu conteúdo essencial, sito é, desde que não estabeleça limitações ou condicionalismos que impeçam o seu regular exercício.
Ora, o que a lei processual penal impõe em matéria de recursos, no que ao caso interessa – impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto – é que o recorrente especifique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas, sendo que, no caso de as provas haverem sido gravadas, estabelece, ainda, que as especificações atinentes às provas que impõem decisão diversa da recorrida e às provas que devem ser renovadas sejam feitas por referência aos suportes técnicos (art.412º, n.ºs 2 e 3).
Tais imposições ou condicionamentos, como nos parece evidente, não constituem restrição ao direito ao recurso, mas sim mera regulamentação do mesmo, isto é, disciplinação e adaptação à realidade processual, consabido que não impedem, minimamente, o seu regular e eficaz exercício, sendo que, ao invés, têm em vista uma precisa e expedita actividade decisória do tribunal superior, mediante a indicação clara e concreta por parte do recorrente dos pontos de facto que entende incorrectamente julgados e das razões da respectiva discordância, isto é, das provas que entende terem sido incorrectamente valoradas e/ou apreciadas, bem como através da referência aos suportes técnicos, caso as provas hajam sido objecto de gravação, para além de visarem, também, o dever de colaboração do recorrente e a sua responsabilização, de modo a que as impugnações judiciais não constituam mais uma forma de entorpecimento e de protelamento da justiça.
Certo é que o incumprimento daquelas imposições ou condicionamentos, como temos vindo a decidir, acarreta a impossibilidade de o tribunal de recurso modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto ex vi art.431º, al.b) ( - Cf. entre outros o ac. desta Relação de 00.05.31, publicado na CJ, XXV, III, 43.), sem convite à correcção ou aperfeiçoamento da motivação ( - No sentido da constitucionalidade deste entendimento ou interpretação dos textos legais, veja-se o ac. do Tribunal Constitucional n.º 259/2002, publicado no DR-II, de 13 de Dezembro de 2002.).
Com efeito, aquela sanção – impossibilidade de modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto – surge como uma consequência lógica e natural, resultante do ilegal exercício do respectivo direito, isto é, do exercício do direito ao recurso com postergação das exigências ou condicionalismos legais.
A não ser assim, dizem-nos as regras da experiência, passariam os recorrentes, em grande parte, a não cumprir as exigências legais, de forma deliberada, a fim de ganharem mais algum tempo, decorrente do convite ao aperfeiçoamento da motivação e da apresentação de motivação complementar, a qual implicaria a notificação do recorrido para responder e decurso do prazo para apresentação da resposta e, ainda, nova vista ao Ministério Público nos termos do n.º 2 daquele artigo ( - Tenha-se em conta que o atraso provocado seria de vários meses.).
A verdade é que toda e qualquer norma jurídica para que se imponha e seja cumprida terá de conter mecanismo coactivo ou sancionatório, sob pena da sua validade não passar de letra morta.
Do exame da motivação apresentada (corpo e conclusões) verifica-se que o recorrente não observou integralmente as imposições a que vimos de aludir, pois que, tendo sido gravadas as declarações prestadas oralmente na audiência, em parte alguma da motivação especificou, por referência aos suportes técnicos, as provas que impõem decisão diversa da impugnada, isto é, não indicou a localização (início e termo) da gravação das declarações através das quais fundamenta a sua discordância relativamente os pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
Nesta conformidade, sendo imodificável a decisão de facto proferida, improcede o recurso na parte em que se pretende o reexame daquela com o fundamento de que a prova foi incorrectamente valorada e apreciada.
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Cumpre, pois, passar ao conhecimento da questão de direito submetida à nossa apreciação, qual seja a de saber se o comportamento assumido pelo arguido/recorrente e o facto daí decorrente se devem ter por não puníveis, por exclusão da ilicitude. Trata-se de saber, mais concretamente, se a antijuridicidade se deve ter por afastada, nos termos dos arts.31º, n.ºs 1 e 2, al.a) e 32º, do Código Penal.
Vem provado por assim se haver consignado na decisão proferida sobre a matéria de facto:
«Da pronúncia
No dia 24 de Fevereiro de 1998, cerca das 04.00h, o assistente Nuno Manuel S... encontrava-se na discoteca “Amnistia”, onde também se encontrava o arguido.
A dado momento, o assistente Nuno Manuel aproximou-se do arguido e, por duas vezes, puxou-lhe as barbas, o que indispôs o arguido, levando-o a preparar-se para abandonar a dita discoteca.
Nesse momento, o assistente Nuno Manuel fez menção de voltar a puxar as barbas ao arguido e ele, que no momento segurava numa das mãos um copo de vidro, com ele desferiu uma pancada na cara daquele.
O assistente tentou aparar o golpe com a sua mão direita mas não logrou evitar ser atingido na testa, no olho direito e naquela mão.
Em consequência o assistente Nuno Miguel sofreu as lesões examinadas e descritas no auto de exame directo de fls.11, cujo teor aqui se reproduz, designadamente ferida inciso-contusa na região da cara e da mão direita, que lhe determinaram, directa e necessariamente, um período de trinta dias de doença, todos com incapacidade para as actividades escolares fixável em 20%.
O arguido agiu consciente e livremente com o propósito conseguido de molestar fisicamente o assistente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Do pedido de indemnização civil
Em consequência da conduta do arguido o assistente, no dia 18 de Setembro de 1998, apresentava na testa uma cicatriz linear irregular em “V”, com o vértice situado na linha média da região frontal e o braço superior do “V” com 2,5 cm de comprimento e o inferior com 5 cm de comprimento, estendendo-se ambos para a direita da linha média e, na mão direita, ao nível da face dorsal, apresentava uma cicatriz irregular, medindo 2 x 1 cm sobre a articulação do 4º dedo.
A conduta do arguido provocou no demandante dores, tendo ficado o seu rosto com sangue aquando da agressão.
Do local da agressão o demandante foi transportado por ambulância para o Hospital Distrital da Figueira da Foz, onde foi suturado com 15 pontos na testa e 4 na mão direita.
A mão direita foi imobilizada para não afectar os tendões.
Nas horas seguintes o demandante apresentava um inchaço na testa.
Aquele inchaço desceu da testa para o nível dos olhos, dificultando a abertura das pálpebras, diminuindo o campo de visão.
O demandante esteve praticamente sem ver durante um dia.
Com a diminuição do inchaço o demandante foi recuperando a sua acuidade visual.
O demandante teve dificuldades me ver, já que relativamente ao olho esquerdo sofre de uma ambliopia por ansiometropia, com uma acuidade visual corrigida de 3/10.
O demandante era estudante universitário no Porto e as limitações na visão e imobilização da mão prejudicaram-lhe o aproveitamento escolar.
A cicatriz na testa continua visível.
Antes da agressão o demandante não tinha qualquer cicatriz no rosto.
Com aquela cicatriz o demandante sente desgosto já que a sua situação, forma e comprimento é visível e detectável publicamente com o olhar.
A cicatriz que tem na testa lembra o demandante do sucedido.
Para remoção daquela cicatriz o demandante consultou o cirurgião Dr. Jorge Vieira Lima, sendo que a partir de um ano após o sucedido poder-se-á efectuar uma correcção da cicatriz, com duas intervenções cirúrgicas, a primeira para efectuar a revisão da cicatriz e respectiva cobertura com retalho de tecidos adjacentes e a segunda consistiria na dermoabração parcial da face, ambas com anestesia geral e internamento.
Nos dias seguintes à agressão o demandante continuou a sentir dores que se foram esbatendo com o decorrer do tempo.
Da contestação da pronúncia
Após o assistente ter puxado, por duas vezes, as barbas ao arguido, sem qualquer acontecimento prévio que o justificasse, uma pessoa ali presente exprobrou-lhe tal comportamento, dizendo ao assistente para ele não recalcitrar.
O arguido referiu aos seus amigos que iria abandonar a discoteca para evitar problemas com o assistente.
A discoteca encontrava-se lotada.
No caminho para o bar e sem que disso se tivesse apercebido, o arguido cruzou-se com o assistente.
O arguido ( - Consta do texto da sentença “O assistente…” e não o arguido, porém, tal deve-se a erro manifesto que por isso se corrige nos termos do art.380º, n.ºs 1, al.b) e 2, do Código de Processo Penal.) tem o grau de bacharel em engenharia técnica agrária.
Dedicando-se desde a sua obtenção ao ensino público, em várias disciplinas ligadas ao ensino agrícola e da biologia.
Ministrando-as em estabelecimentos do ensino secundário, como a Escola Secundária D. Duarte, em Coimbra, já tendo exercido cargos directivos e de orientação de estágios.
Veio a obter a licenciatura em Direito na Universidade Internacional da Figueira da Foz.
O arguido é estimado pelos seus colegas e alunos.
Na sua vida privada o arguido é credor do apreço da generalidade das pessoas que o conhecem.
Sendo casado e pai de 2 filho, ambos estudantes universitários.
Mais se provou
As dores sofridas pelo assistente durante o período de incapacidade são na terminologia médico-legal quantificáveis de ligeiras, dentro do escalonamento “1. Muito Ligeiro”, “2. Ligeiro”, “3. Moderado”, “4. Médio”, “5. Considerável”, “6. Importante” e “7. Muito Importante”.
O dano estético provocado pela cicatriz na testa é quantificável, na mesma escala de “Moderado”.
O assistente não é portador de sequelas anátomo-funcionais que traduzam qualquer incapacidade permanente quer geral, quer para as actividades escolares.
Aquando dos factos o arguido estava a estudar Direito na Universidade Internacional da Figueira da Foz, tendo ido à discoteca com alguns colegas mais novos.
O assistente apresenta actualmente, na região frontal, cicatriz irregular em “V” com o vértice situado na linha média, medindo o braço superior 2,5 cm de comprimento e o inferior 5 cm, estendendo-se ambos para a direita da linha média, de cor nacarada e na face dorsal da mão direita na região metacarpofalângica, cicatriz irregular com vestígios de pontos, medindo 2 cm de comprimento por 1 cm de largura, de cor nacarada.
O assistente ainda não completou os estudos universitários.
O arguido, enquanto professor do ensino secundário, aufere quantia não inferior a € 1.500,00 líquidos, tendo já requerido a aposentação.
Paralelamente dedica-se à advocacia, auferindo rendimentos não concretamente apurados.
Os dois filhos do arguido estão a seu cargo, estando a estudar fora de casa.
A esposa do arguido também é professora, auferindo mensalmente quantia equivalente à do arguido.
Vivem em casa própria.
Não tem antecedentes criminais».
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O direito de legítima defesa está escrito em grandes caracteres nas dozes tábuas e no Digesto, ou seja, na certidão de nascimento e na de óbito do espírito animador do direito romano. Lex duodecim tabularum furem noctu deprehensum perimittit occidere; interdin antem deprehensum, si telo se defedat (1. 4, § I. D. ad leg. Aquil.).
Trata-se de direito que, segundo a doutrina dos jurisconsultos romanos, se consubstancia numa acção praticada contra a proibição de quem tem o direito de se lhe opor. – Vi facit tam is, qui quominus prohibeatur consecutus est, periculum puta adversário denuntiando, aut janua puta praeclusa. Prohibitus autem intelligitur quolibet actu, id est vel dicentis se prohibere, vel manum oponentis, lapillumve jactantis prohibendi gratia.
Definida assim a condição principal do exercício da legítima defesa, a injustiça da agressão, a 1. 2. Cod. ad leg. Corn. acrescenta a outra da iminência do perigo: o agredido deve ficar colocado na dubio vitae discrimine. E mesmo assim a dificuldade (não a impossibilidade) de evitar o perigo de outro modo a não ser com a morte ou o ferimento do agressor, é imposta como outra condição pela 1. 9. ff. ad leg.Corn.: Furem nocturnum si quis occiderit ita demun impune feret, si parewce ei sine periculo suo non potuit.
São estas as condições de facto atribuíveis ao agressor no direito romano; quanto ao agredido, duas regras determinam a natureza da sua reacção. Uma é a de uma certa proporção desta com a agressão sofrida. A outra diz respeito à subitaneidade da reacção defensiva.
Quanto ao fundamento filosófico da doutrina romana, Cícero e as constituições imperiais reconhecem que a legítima defesa não é senão uma forma especial de repressão do delito, uma espécie de «substitutivo penal» ( - Vide Júlio Fioretti, Sobre a Legítima Defesa (3ª edição – 1918), 28/30, que até aqui seguimos de perto.). Fundamento que se encontra de algum modo em Hegel ao sustentar que aquele que exerce a legítima defesa afirma o direito, porque anula a negação de direito que o outro tentava realizar com a agressão ( - Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 127.), e que actualmente, a par da ideia de proporcionalidade e de razoabilidade, domina, ainda, o instituto da legítima defesa ( - Ao instituto da legítima defesa, tal como a todos os outros que constituem causa excludente da ilicitude e/ou da culpa, institutos aos quais servem de referência e justificação situações de conflito, encontra-encontra-se, subjacente o princípio da ponderação de interesses, princípio que, ao fim e ao cabo, constitui o fundamento último da justificação do facto, o qual se traduz, em sede legal, na indicação do valor ou do interesse prevalente, isto é, na eleição do valor ou do interesse cuja tutela o legislador quer ver salvaguardada, valor que, obviamente, é – objectivamente – o mais valioso – Cf. Giuseppe Bettiol, Instituições de Direito e Processo Penal (tradução de Costa Andrade – 1974), 137/141 e M. von Buri, «Stato di necessitá e legitima difesa», na Revista Penale, vol. XIII, 433/464.).
Com efeito, a legítima defesa tem por requisitos, como claramente decorre do texto legal (art.32º, do Código Penal), a ocorrência de uma agressão ( - Genericamente, agressão é toda a lesão ou perigo de lesão de um interesse próprio ou de outra pessoa protegido pelo ordenamento jurídico – H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal Parte General (4ª edição – 1993), 303.), devendo esta ser actual, isto é, estar a realizar-se, em desenvolvimento ou iminente ( - A iminência da agressão afere-se, habitualmente, pela ocorrência de situação perigosa, a qual se caracteriza pela prática de actos que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes siga o acto agressivo, isto é, a agressão.), ilícita, ou seja, não ter o agressor direito a infligir ou a praticar a agressão, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou se tratar de um inimputável ( - Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado (8ª edição – 1995), 277, Eduardo Correia, Direito Criminal (1971) II, 46 e H. Jescheck, ibidem, 306.), só evitável ou neutralizável através de uma acção ou acto de defesa, acto que, atenta a sua função, qual seja a de impedir ou repelir a agressão, deve limitar-se à utilização do meio ou meios, suficientes para evitá-la ou neutralizá-la, consabido que em consequência desse acto ir-se-ão atingir bens ou interesses do agressor, para além de que a legítima defesa não é nem pode redundar numa acção punitiva, a ela se encontrando subjacente o princípio do maior respeito pelo agressor ( - Cf. Jescheck, ibidem, 308.).
Assim, meios adequados para impedir ou repelir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes, eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor, serão considerados desnecessários e, como tal, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido ( - Também devem ser considerados inadequados os meios que, apesar de pouco danosos para o agressor, não dispõem de quaisquer possibilidades de impedir a agressão ou de dissuadir o agressor.
), a significar que o defendente deve utilizar o meio adequado menos gravoso para o agressor ( - Cf. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa (1995), 317.).
Certo é que por meio utilizado deve entender-se, não só o instrumento ou arma, mas também o tipo de defesa ( - Santiago Mir Puig, Derecho Penal Parte General 4ª edição – 1996), 435.).
Deste modo, o juízo sobre a adequação do meio de defesa não pode deixar de ter em consideração as circunstâncias concretas de cada caso: o bem ou interesse agredidos, o tipo e a intensidade da agressão, a perigosidade do agressor e o seu modo de actuar, a capacidade físico-atlética do agressor e do agredido, bem como os meios de defesa disponíveis e as demais circunstâncias relevantes ocorrentes ( - Cf. Taipa de Carvalho, ibidem, 318 e H. Jescheck, ibidem, 308.).
Trata-se, pois, de um juízo objectivo e ex ante, pelo que o julgador se terá de colocar na posição que assumiria uma pessoa prudente perante as circunstâncias concretas ocorrentes ( - Cf. Jescheck, ibidem, ibidem.), sem esquecer que a exigência de utilização do meio menos gravoso para o agressor não pode levar a fazer recair sobre o agredido riscos para a sua vida ou integridade física, a significar que o defendente não está obrigado a recorrer a meios ou medidas cuja eficácia para a sua defesa é duvidosa ou incerta ( - Cf. Fuchs, Notwer (1986), 125-6 e Jakobs, Strafrecht (1991), 393, citados por Taipa de Carvalho, ibidem, 319 - nota 554.)
Quanto ao elemento subjectivo, conquanto parte significativa da nossa jurisprudência e certo sector da doutrina continuem a exigir a ocorrência de animus defendendi, isto é, a vontade de defesa, muito embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, tais como indignação, vingança e ódio ( - Cf. Eduardo Correia, ibidem, ibidem, Figueiredo Dias, Direito Penal (1975), 188, Leal Henriques/Simas Santos, Código Penal Anotado (1995), 1º, 337, H. Jescheck, ibidem, ibidem e os acs. do S.T.J., de 91.07.03, 92.06.25 e 93.01.21, proferidos nos processos n.ºs 41982, 42682 e 42837 e desta Relação de 84.10.10, sumariado no BMJ, 340, 448.), a verdade é que entendemos, na esteira da doutrina mais recente ( - Taipa de Carvalho, ibidem, 375/387, Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal (1992), 189/191, Fernanda Palma, A Justificação por Legítima Defesa como Problema de Delimitação de Direitos (1990), 611-58 e 693 e Santiago Mir Puig, ibidem, 436.), que o elemento subjectivo da acção de legítima defesa se restringe à consciência da «situação de legítima defesa», isto é, ao conhecimento e querer dos pressupostos objectivos daquela concreta situação, o que se justifica e fundamenta no facto de a legítima defesa ser a afirmação de um direito e na circunstância do sentido e a função das causas de justificação residirem na afirmação do interesse jurídico (em conflito) considerado objectivamente como o mais valioso, a significar que em face de uma agressão actual e ilícita se deve ter por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os actos que, objectivamente, se mostrem necessários para a sua defesa.
A exigência do animus defendendi revela-se, aliás, desprovida de sentido, uma vez que se ocorrem os requisitos da «situação de legítima defesa» – agressão actual e ilícita, verificando-se que o defendente não teve outro remédio que defender-se (necessidade de defesa) – pouco importa, obviamente, que tenha sido motivado por indignação, vingança ou ódio ( - Neste preciso sentido Quintero Olivares, Derecho Penal Parte General (1992), 461.).
Por isso, o texto do art.32º, do Código Penal, ao aludir «… ao facto praticado, como meio necessário, para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro», ao contrário do expressamente defendido por Leal Henriques/Simas Santos que ali detectam a exigência do animus defendendi ( - Ibidem, ibidem.), não significa outra coisa que a consciência da agressão e a necessidade de defesa.
Relativamente aos bens ou interesses jurídicos que se devem considerar incluídos no direito de legítima defesa, como seria de esperar, a doutrina mostra-se dividida ( - Vide a este propósito Taipa de Carvalho, ibidem, 475/488.).
Sem pretender entrar na análise das diversas posições assumidas pelos mais representativos penalistas, dir-se-á que, relativamente aos bens ou interesses jurídicos estritamente individuais, entendemos que se devem ter por incluídos no direito de legítima defesa a vida, a integridade física, a saúde, a liberdade, o domicílio e o património ( - Neste preciso sentido pronuncia-se Taipa de Carvalho, ibidem, 488.) e, excepcionalmente, perante agressões repetidas e de extrema gravidade, todos os demais interesses juridicamente tutelados do agredido ou defendente ( - No sentido de que se devem considerar bens defensáveis todos os interesses juridicamente protegidos – a pessoa e todos os seus direitos – vejam-se Jescheck, ibidem, 304 e Santiago Mir Puig, ibidem, 433.).
Por outro lado, entendemos dever-se recusar a legítima defesa contra as «agressões insignificantes» ( - Cf. Taipa de Carvalho, ibidem, 488 e H. Jescheck, ibidem, 312.).
Feitas estas considerações centremos agora a nossa atenção no concreto dos autos.
Vem provado que, a dado momento, o assistente aproximou-se do arguido e, por duas vezes, puxou-lhe as barbas, o que indispôs o arguido, levando-o a preparar-se para abandonar a discoteca, propósito que deu a conhecer aos amigos que o acompanhavam. Umas das pessoas presentes exprobrou o assistente por tal comportamento, tendo-lhe dito para não recalcitrar.
Quando ao arguido se preparava para sair, caminhando na direcção do bar, o assistente cruzou-se com o mesmo sem que este disso se apercebesse, sendo que nesse momento o assistente fez menção de voltar a puxar as barbas ao arguido. Este, que segurava numa das mãos um copo de vidro, com ele desferiu uma pancada na cara do assistente, o qual tentou aparar o golpe com a mão direita, mas não conseguiu evitar ser atingido na testa, no olho direito e naquela mão, em consequência do que sofreu as lesões examinadas e descritas no auto de exame directo de fls.11, que lhe determinaram trinta dias de doença.
O arguido agiu consciente e livremente com o propósito conseguido de molestar fisicamente o assistente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Entendeu o Mm.º Juiz a quo que o comportamento do arguido integra o crime de ofensa à integridade física simples, posto que não se mostram preenchidos os pressupostos da legítima defesa, pois que aquele poderia socorrer-se dos seguranças do estabelecimento, retirar-se como pretendeu fazer ou pedir auxílio a terceiro, já que estava na companhia de um grupo de amigos, para além de que, tratando-se de uma festa de Carnaval, o puxar das barbas não pode ser entendido como uma agressão que impusesse, de forma imediata, a reacção do arguido, reacção que, em qualquer caso, sempre seria ilícita, por serem excessivos os meios empregues.
Começando por determinar se o bem ou interesse do arguido que foi ameaçado e atingido pela conduta do assistente deve ser incluído no direito de legítima defesa, dir-se-á que o acto de puxar as barbas a uma pessoa é susceptível de ser considerado acto que ofende a integridade física e/ou a honra, tudo dependendo do contexto em que o puxão se processa, da intensidade do mesmo e das relações existentes entre quem executa o puxão e quem deste é vítima, para além, obviamente, da intenção do agressor.
Tratando-se de pessoas amigas o acto de puxar as barbas será, em princípio, de se considerar uma brincadeira. Tratando-se de pessoas estranhas, em regra, é de considerar o puxar de barbas uma ofensa à honra, a menos que se trate de um puxão executado com intensidade ou violência, caso em que se deverá qualificar como ofensa à integridade física.
No caso vertente, não existindo entre arguido e assistente relação de amizade e referindo-se a sentença a puxões na barba tout court, é de considerar o respectivo acto como uma ofensa à honra e, por isso, não incluído no direito de legítima defesa, tanto mais não se tratar de agressão repetida e de extrema gravidade, a significar a não ocorrência de causa de exclusão da ilicitude.
Em todo o caso, sempre se dirá que a considerar-se o acto cometido pelo assistente como uma ofensa ao bem integridade física, a solução acabaria por ser a mesma.
Vejamos.
Como atrás consignámos, ao instituto da legítima defesa subjaz o princípio da ponderação de interesses. Por outro lado, a legítima defesa não é nem pode redundar numa acção punitiva, a ela se encontrando subjacente o princípio do maior respeito pelo agressor, devendo processar-se com proporcionalidade e razoabilidade.
Por isso, o defendente deve limitar-se ao uso do meio ou meios adequados menos gravosos para o agressor e abster-se de qualquer acto defensivo perante agressões insignificantes ou irrelevantes.
Vem provado que o assistente quando com o arguido se cruzou, caminhando este na direcção do bar, fez menção de puxar a barba ao arguido, e não de o atingir, designadamente na face, com a mão ou o punho.
Deste modo, parece-nos claro que o simples uso das mãos ou dos punhos era suficiente para evitar o “puxão”, pelo que o tipo de defesa que o arguido utilizou – pancada na cara do assistente (testa e olho) com um copo de vidro que detinha na mão – deve ser considerada desnecessária, a significar que sempre se deveria ter por excluída a justificação do facto, bem como a eventual não punição nos termos do n.º 2 do art.33º, do Código Penal, visto que de acordo com o quadro fáctico apurado, não se poderá dizer que o arguido agiu sob perturbação, medo ou susto.
Aliás, enquanto ofensa à integridade física, temos muitas e fundadas dúvidas sobre se a agressão em apreço não deve ser qualificada como insignificante.
Como refere Jescheck ( - Ibidem, 312.), perante bagatelas como zombarias ou gracejos de estudantes, brincadeiras de Carnaval, grosserias nas festas populares e impertinências nos bailes, os interesses ameaçados são tão insignificantes que a defesa deve limitar-se a uma resposta meramente verbal; o ilustre penalista dá como exemplo o visitante de um bar a quem outro cliente coloca a mão no ombro, com força, no decurso de uma troca de palavras, referindo que perante tal situação não se pode responder com um soco na cara.
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Termos em que se acorda negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente – 4 UCs. de taxa de justiça.