Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1235/10.3TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: SIMULAÇÃO
DOAÇÃO
COMPRA E VENDA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
COMERCIANTE
PROVEITO COMUM DO CASAL
Data do Acordão: 10/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 241º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I. O art.º 241.º do Código Civil consagra o postulado de que a simulação, em si mesma, não prejudica o valor do negócio dissimulado, que tanto pode ser válido como eficaz, devendo o seu valor ser apurado segundo o seu próprio mérito, se tivesse sido celebrado sem simulação.

II. Não obstante as divergências doutrinárias, vem sendo jurisprudencialmente aceite que, no caso em que o negócio dissimulado é uma doação encoberta por uma compra e venda, aquele é válido, porquanto, foi formalizado por escritura pública, forma adoptada para a celebração do negócio simulado, assim resultando igualmente observada a forma legalmente exigida para o negócio dissimulado de doação (art.ºs 241.º, 875.º e 947.º, n.º 1, do Código Civil).

III. A impugnação pauliana é um meio conservatório de garantia patrimonial distinto da acção anulatória, e à sua instauração não obsta a nulidade do negócio, solução consagrada no art.º 615.º do Código Civil.

IV. O negócio impugnado por meio da acção pauliana, via de regra, não enferma de qualquer vício genético sendo, em si mesmo, válido e eficaz; não obstante, e verificados os pressupostos que enuncia, a lei permite o constrangimento do direito do adquirente em ordem a satisfazer o interesse do credor tutelado, mas apenas na medida do interesse deste.

V. Visto o teor do art.º 13.º do Código Comercial, a prática de actos de gerência pelo sócio de uma sociedade, ainda que se trate do único sócio, não lhe confere a qualidade de comerciante.

VI. Não detendo o cônjuge que contraiu a dívida a qualidade de comerciante, a comunicabilidade terá de resultar do preenchimento da previsão da al. c) do n.º 1 do art.º 1691.º do Código Civil.

VII. O proveito comum do casal em que assenta a responsabilidade de ambos os cônjuges deve, nos termos da predita alínea, resultar directamente do acto constitutivo da dívida, e não constituir um efeito indirecto ou mediato do mesmo; afere-se à luz da finalidade visada pelo cônjuge que a contrai, independentemente do resultado concreto que venha a produzir.

VIII. A prestação de aval pelo cônjuge em letra aceite pela sociedade de que é sócio e único gerente não permite, só por si, que se conclua pelo proveito comum, se não se demonstrou, mesmo atendendo à relação causal, que dela decorre um benefício directo para o casal.

Decisão Texto Integral:
I. Relatório

No Tribunal Judicial de Tomar,

A... Ld.ª, com sede na (...), Ílhavo, instaurou contra B... e mulher, C... , residentes na Rua (...) em Tomar, e D... , residente na mesma morada, acção declarativa, a seguir a forma ordinária do processo comum, pedindo a final fosse declarado nulo e ineficaz em relação à demandante o negócio de dação em cumprimento celebrado entre os RR, titulado por escritura pública celebrada a 18 de Dezembro de 2009 no Cartório Notarial de E..., na cidade de Tomar, e estes condenados a reconhecerem o direito da autora à restituição do imóvel ali identificado ao património dos RR B... e mulher, e ainda o de executarem o mesmo imóvel no património do 3.º Réu, na medida bastante e até satisfação integral do seu crédito de 85.911,45 € e juros moratórios à taxa legal de 8%, contados desde a data de vencimento de cada uma das letras de câmbio identificadas no art.º 1.º da petição inicial, e ainda a praticarem, se disso for caso, todos os actos de conservação desta garantia patrimonial autorizados por lei.

Em fundamento alegou, em síntese útil, ser a legítima portadora das sete letras de câmbio que identifica, titulando a quantia global de 85.911,45 € (oitenta e cinco mil, novecentos e onze euros e quarenta e cinco cêntimos). Tais letras foram sacadas pela demandante e aceites por “ G... – sociedade Unipessoal Lda.”, encontrando-se todas elas avalizadas pelo sócio gerente da sacada, o 1.º réu B.... Encontrando-se os títulos vencidos, nenhum dos identificados obrigados procedeu ao pagamento das quantias nelas inscritas, nem tão pouco à respectiva reforma, motivo pelo qual foram os aludidos montantes debitados pelo Banco à aqui autora e os títulos devolvidos.

A dívida subjacente à emissão das referidas letras de câmbio emerge de transacção comercial que se inscreve na actividade desenvolvida pelo 1.º réu marido e da qual resultam proventos que afecta à sua vida familiar, tratando-se por isso de dívida comunicável, por ela respondendo também a ré mulher.

Alegou ainda que, tendo por fundamento os identificados títulos de crédito, instaurou acções executivas contra a sociedade sacada e o 1.º réu (com pedido de citação da ré mulher a fim de estabelecer a comunicabilidade da dívida), tendo em vista a cobrança coerciva das quantias de que é credora, processos nos quais foi constatada a insuficiência de bens dos executados para responderem pela dívida.

Instaurado contra a sociedade G..., sociedade unipessoal, L.da processo de insolvência, nele foi a devedora declarada insolvente por sentença de 7/7/2010, devidamente transitada, sem que, também aqui, tenha sido possível apreender qualquer bem.

Acresce que, sabedores do crédito da autora e visando frustrar a sua cobrança, os 1.ºs RR declararam-se devedores ao 3.º réu, seu filho, da quantia de € 85 000,00, que dele disseram ter recebido a título de empréstimos particulares não titulados, dando em pagamento a fracção identificada na escritura celebrada a 18 de Dezembro de 2009, no Cartório Notarial de E..., na cidade de Tomar. Acontece que o declarado não corresponde à verdade, sendo seu único escopo subtrair ao património dos 1.º e 2.º RR o único bem de que eram proprietários, assim inviabilizando em absoluto, dada a inexistência de outros bens, a satisfação do crédito da demandante.

Mais alegou que os 1.º e 2.º RR não quiseram celebrar com o 3.º R qualquer contrato, ou operar por qualquer forma a transmissão do imóvel identificado na escritura, tratando-se de um negócio absolutamente simulado e, por isso, nulo, nos termos do art.º 240.º, disposição legal que expressamente convocou. Tal nulidade, todavia, não obsta à impugnação pauliana, cujos requisitos se verificam no caso em apreço, conferindo à autora o direito à restituição daquele bem na medida do seu interesse, conforme peticiona.

     *

Regularmente citados, os RR defenderam-se nos termos da peça que consta de fls. 158 a 170 dos autos, dizendo serem as letras de câmbio em causa “inexequíveis, inexigíveis e inexistentes”, porquanto, tendo tais títulos sido entregues em branco, apenas com a assinatura e o aval do 1.º réu, procedeu a autora ao respectivo preenchimento, o que fez sem autorização do subscritor, actuação que configura um verdadeiro abuso.

Em sede de impugnação alegaram que, quer a sociedade, quer o 1.º réu, detinham património suficiente para responder pela dívida, correspondendo ainda à verdade os factos declarados na escritura pública formalizadora do negócio de dação em pagamento entre todos celebrado, que como válido deve subsistir.

Com tais fundamentos concluíram pela sua absolvição dos pedidos.

A autora replicou, assegurando que as letras lhe foram entregues devidamente assinadas e completamente preenchidas, e tanto assim que nas execuções que com base nelas foram instauradas, os executados nenhuma oposição deduziram. Mais impugnou que os devedores tivessem património suficiente para solver a dívida o que, aliás, ficou cabalmente demonstrado, quer no âmbito dos processos executivos, quer no âmbito do processo de insolvência instaurado contra a sociedade sacadora.

   *

Dispensada a realização da audiência preliminar, prosseguiram os autos para julgamento, tendo a final sido proferida sentença que, na procedência da acção, declarou ineficaz em relação à autora a alienação efectuada pelos réus B... e mulher, C..., tendo por objecto a fracção identificada na escritura de dação em cumprimento outorgada a 18 de Dezembro de 2009, na medida do suficiente para pagamento do crédito da autora, podendo a autora executar estes bens no património do réu D....

Inconformados com o decidido, interpuseram os RR o presente recurso e, tendo apresentado as suas alegações, remataram-nas com as necessárias conclusões, das quais se extraem, com relevância, as seguintes:

i. foi erradamente dada como assente a matéria vertida nos artigos 1.º e 2.º da base instrutória, conjugada com a al. A) da matéria assentes (factos 1., 12. e 13. da sentença), uma vez que a letra de € 26 547,37 foi reformada pelo título no valor de €23 747,00, só esta quantia sendo devida e tendo a aqui autora dado indevidamente à execução, em diferentes processos, ambos os títulos. Tal resulta da análise da certidão de fls. 778 a 819 e do depoimento da testemunha H..., extraindo-se ainda do indicado documento que a quantia titulada pela letra de câmbio identificada em c) do ponto 1. foi coercivamente satisfeita no âmbito do processo de execução instaurado, não se encontrando portanto em dívida.

ii. ocorreu ainda erro de julgamento no que respeita às respostas positiva que mereceu o art.º 5.º e negativas dadas aos art.ºs 37.º, 38.º e 39.º da base instrutória, quando o seu sentido devia ter sido o inverso, atendendo aos testemunhos prestados por I..., J..., H..., L... e M.... Acresce que o argumento invocado pelo Mm.º juiz para justificar a sua decisão -inobservância da forma legal- não procede, uma vez que estão em causa diversos empréstimos, não podendo ser considerado o seu valor global;

iii. errou também o Tribunal quando deu como provado o art.º 9.º, impondo-se resposta de sentido oposto, o que decorre igualmente dos assinalados testemunhos.

iv. a autora pediu fosse declarada nulo o negócio de dação em cumprimento, sendo a ineficácia consequência dessa nulidade;

v. na sentença apelada não foi emitida pronúncia sobre o aludido pedido, formulado em via principal, padecendo assim da nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, sendo certo que não é indiferente ser decretada a nulidade do negócio -com a consequente restituição do bem ao património dos 1.º e 2.º RR- ou a mera ineficácia, obrigando a que o bem seja executado no património do 3.º adquirente, no qual se mantém;

vi. a sentença é ainda nula por contradição entre os fundamentos e a decisão porquanto, tendo sido dado como não provado o facto vertido no art.º 4.º, não se vê como poderia o Mm.º juiz ter concluído pela verificação do requisito da má fé;

vii. não resultaram provados factos dos quais resulte a comunicabilidade da dívida, não podendo assim a acção proceder em relação à ré mulher e à metade indivisa de que é titular no prédio em causa.

Dando como violadas as disposições contidas nos art.ºs 615.º, n.º 1, al.s c) e d) do CPC, 612.º e 1695.º, n.º 1, estes do Código Civil, requer a final que, na procedência do recurso, seja declarada a nulidade da sentença ou, assim não se entendendo, seja a mesma revogada e substituída por decisão que absolva os RR do pedido.

A apelada não contra alegou.

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Assente que pelo teor das conclusões se define e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões trazidas a este tribunal de recurso:

i. indagar se a sentença padece dos vícios da nulidade por omissão de pronúncia e contradição entre os fundamentos e a decisão;

ii. verificar se ocorreu erro de julgamento, devendo ser alteradas no sentido pretendido as respostas dadas aos art.ºs 1.º, 2.º (estes em reporte com a al. A) dos factos assentes), 5.º, 9.º, 37.º, 38.º e 39.º;

iii. determinar se o negócio celebrado entre os RR é nulo por simulado;

iv. averiguar da verificação dos pressupostos da impugnação pauliana e se a ré mulher detém a qualidade de devedora.

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I. da nulidade da sentença

Razões de precedência lógica impõem que se inicie o conhecimento das questões elencadas pela invocação da nulidade da decisão apelada.

Os apelantes imputam à decisão recorrida o vício extremo da nulidade, por violação do disposto nas als. c) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.

Nos termos da sobredita al. c), é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. Esta nulidade ocorre quando os fundamentos invocados devessem logicamente conduzir a uma decisão diferente daquela que a sentença expressa, ou seja, quando os fundamentos apontam num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente. Os “fundamentos” a que aqui se alude são os fundamentos de direito; a oposição entre fundamentos de facto e a decisão não constitui o vício ali previsto, antes constituindo erro de julgamento.

Argumentam os apelantes que, tendo o Tribunal dado como não provado o facto perguntado sob o n.º 4 da base instrutória, incorreu em contradição quando deu como verificada a má fé pressuposta no art.º 612.º do CPC.

Ora, conforme se referiu, a assinalada contradição, ainda a verificar-se, podendo configurar erro de julgamento, não afectava a validade da sentença. Mas a verdade é que -não resistimos a fazê-lo notar- não se verifica qualquer contradição entre a resposta dada e o dar-se como verificado que os RR estavam de má fé.

 Perguntava-se no dito art.º 4.º se, “na sequência do referido em I) e J) da matéria assente”, tal venda fora feita com a intenção, por banda dos RR, de evitar que a insolvente fosse proprietária de quaisquer bens que pudessem satisfazer os créditos dos credores. Reportavam-se tais alíneas à venda de um veículo automóvel que se encontrava na titularidade da G..., sociedade unipessoal, L.da., nada tendo portando a ver com o negócio que aqui se pretende impugnar. Deste modo, a resposta ao artigo em causa, negativa ou positiva, não era, salvo melhor opinião, susceptível de interferir com o destino desta acção, sendo o facto em causa perfeitamente irrelevante.

Atento o exposto, e em síntese, não padece a sentença do apontado vício, nem a resposta dada ao dito art.º 4.º conflitua com a decisão proferida.

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A nulidade prevista na al. d) sanciona o incumprimento do preceituado no n.º 2 do art.º 608.º, preceito nos termos do qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

No caso dos autos, é correcto ter a autora invocado a nulidade do negócio decorrente da simulação absoluta, tendo alegado para tanto que os RR não quiseram celebrar nenhum negócio, não sendo vontade dos 1.º e 2.º RR transmitirem o direito de propriedade sobre o prédio, nem vontade do 3.º Réu adquiri-lo por qualquer meio, visando antes ambos os contraentes colocá-lo a salvo dos credores dos pretensos alienantes (cf. art.ºs 41.º a 46.º da petição).

Em conformidade com o alegado, e salvaguardando embora que, nos termos do n.º 1 do art.º 615.º do CC, a nulidade do acto não obsta à impugnação pauliana, concluiu pedindo que seja declarado nulo e ineficaz em relação à autora o negócio impugnado, mais peticionando a restituição do prédio ao património dos 1.ºs RR e ainda o reconhecimento de que tem o direito de executar o sobredito imóvel no património do 3.º R.

Face aos termos da alegação e do pedido formulado, tendemos a considerar assistir razão aos RR quando pretendem ter a autora invocado duas causas de pedir -simulação do negócio geradora de nulidade; requisitos da pauliana, determinante da sua ineficácia em relação ao credor- concluindo logicamente por diferentes pedidos, a atender em regime de subsidiariedade, posto que são entre si incompatíveis[1]. E assim sendo, como nos parece que é, não se pronunciou efectivamente o Mm.º juiz “a quo” sobre a arguida simulação e consequente pedido de declaração de nulidade do negócio, omissão que afecta a validade da sentença, sem outra consequência, porém, que não a deste Tribunal de recurso se substituir ao Tribunal recorrido, consoante prevê o n.º 1 do art.º 665.º do CPC.

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ii. da modificação da matéria de facto

Pretendem os apelantes ter ocorrido erro de julgamento, impondo-se sejam modificadas as respostas dadas aos artigos 1.º e 2.º da base instrutória, conjugados com a al. A) da matéria assentes, 5.º, 9.º, 37.º, 38.º e 39.º.

Relembremos a matéria vertida nos artigos indicados e as respostas que pelo Tribunal lhes foram dadas:

1.º- Todas as letras supra citadas foram emitidas na sequência de uma transacção comercial entre “ G..., sociedade unipessoal, Lda.” e a autora, concretamente de venda de mercadorias por parte da autora àquela sociedade, e que esta última até à presente data não pagou?

Provado.

2.º- Por esse motivo, o banco debitou as referidas letras à autora, devolvendo-as a esta?

Provado que por não terem sido pagas pela aceitante, o Banco debitou as referidas letras à autora, devolvendo-as a esta.

5.º- Na sequência do referido em K)[2] o 3.º Réu nunca emprestou qualquer quantia aos 1.º e 2.º RR?

Provado que o 1.º réu nunca emprestou qualquer quantia aos 1.º e 2.º RR.

9.º- Os 1.º, 2.º e 3.º RR não quiseram celebrar nenhum negócio, nem tão pouco havia qualquer empréstimo por parte do 3.º R aos 1.º e 2.º RR, apenas pretenderam furtar um bem imóvel à satisfação do crédito do autor?

Provado que com a escritura pública referida em K) os RR pretenderam furtar um bem imóvel à satisfação do crédito da autora.

37.º- Dinheiro que foi enviando a sua mãe, a aqui 2.ª ré, e que ela guardou? [o quesito encontrava-se em estreita dependência com o anterior, no qual se indagava se durante o período de tempo em que trabalhou na dita empresa, o réu ganhara cerca de € 100 000,00]

38.º- O 1.º réu marido, ao aperceber-se da existência do dinheiro, começou a pedir-lhe dinheiro emprestado para desenvolver os negócios da empresa?

39.º- O 3.º R., seu filho, não teve a ousadia e a coragem de dizer que não, e foi emprestando ao pai diversas quantias?

Não Provados.

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Sendo os transcritos os artigos em causa e as respostas impugnadas, apreciemos a pretensão modificativa dos apelantes.

No que se reporta aos artigos 1.º e 2.º, os quais remetiam para as sete letras de câmbio discriminadas na al. A) dos factos assentes, invocam os apelantes a certidão extraída do processo executivo 184/10.0 TBTMR instaurado pela aqui autora, da qual resultaria que a letra de câmbio no valor de € 23 747,00 é reforma de uma outra, antes emitida, no valor de € 26 385,58, donde não ser devida esta última quantia, facto que dizem confirmado pela testemunha H..., na passagem que transcrevem. Outrossim, da aludida certidão se extrairia estar paga a quantia exequenda titulada pela letra no valor de € 1562,50, dada à execução no mesmo processo.

No que respeita aos artigos de que nos ocupamos assinale-se que da análise dos títulos juntos pela autora com a petição inicial, cujas cópias constam de fls. 22 e 24 (certificadas a fls. 676 e 786), resulta claro ser esta última letra, emitida em 10/7/2009, no valor de € 23 747,00 e com vencimento em 10/8/2009, a reforma do aceite no valor de € 26 385,59, com vencimento em 9/7/2010, como dela expressamente consta.

É certo que a testemunha F..., que trabalhou como administrativo na declarada insolvente G..., sociedade unipessoal, Lda. durante cerca de 20 anos e até Novembro de 2009, declarou que, normalmente, a autora devolvia as letras reformandas quando eram objecto de reforma e, admitindo embora que alguma possa ter escapado ao crivo, não deixou de manifestar estranheza pelo facto. Acresce que, sem ter precisado a quanto ascendia o crédito da apelada, não deixou de mencionar ser de cerca de 80 ou 90 000,00 euros (perguntado se os bens existentes, a valerem € 50 000,00/€60 000,00, bastariam para satisfazer a dívida à A..., declarou prontamente que não, porque esta seria superior em cerca de € 30 000,00), valor aproximado àquele que veio a ser reconhecido no processo de insolvência (cfr. fls. 746 a 748). Não obstante, certo é também que, perguntado a respeito, referiu que o crédito da autora estaria, todo ele, titulado por letras ou facturas.

Quanto à mencionada testemunha H..., genro e cunhado dos RR que, atenta a sua formação profissional na área da contabilidade, preparava a contabilidade da G... Unipessoal, Lda. desde 1991, tendo auxiliado no desempenho de tarefas administrativas nos últimos tempos de actividade da sociedade, não auxiliou na dilucidação desta questão, revelando não ter consistente conhecimento do facto.

Não obstante, e sem embargo do crédito da autora sobre a G..., unipessoal, Lda. poder ascender aos mais de € 90 000,00 reclamados, aqui em causa está a dívida do seu sócio gerente -e eventual comunicabilidade da mesma ao cônjuge- proveniente dos avales prestados. E se assim é, não há como contornar aquilo que consta dos títulos que a própria autora juntou e nos quais funda o seu direito de crédito. Assim sendo, e não obstante a natureza particular dos documentos em questão, determinada a sua autoria pela genuinidade das assinaturas nele apostas, não impugnadas, fazem prova plena quanto às declarações atribuídas aos seus autores e, se ficam plenamente provados os factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, sendo a declaração indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão (cfr. art.º 376.º, n.ºs 1 e 2 do CPC), deve ter-se igualmente por assente que a dita letra, emitida em 10/7/2009, no valor de € 23 747,00 e com vencimento em 10/8/2009, é reforma do aceite no valor de € 26 385,59, com vencimento em 9/7/2010, conforme nela se encontra consignado.

Já quanto ao facto da autora ter recebido quantias no âmbito do processo executivo que corre termos sob o n.º 184/10.0, resultando da certidão que dos mesmos foi extraída que, com referência a 10/5/2012, se encontravam efectuados descontos provenientes da ordenada penhora de 1/3 da pensão do executado no valor de € 3 888,06, desconhece-se todavia se a quantia em causa foi ou não entregue à exequente.

Deste modo, e conformando as respostas aos artigos em causa com a prova documental referenciada, adita-se o esclarecimento de que a letra de câmbio no montante de €23 747,00 referida em c) é reforma do título no montante de € 26 385,58 identificado em d).

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Requerem ainda os apelantes que se dêem por assentes os factos vertidos nos art.ºs 37.º, 38.º e 39.º, sendo a alteração da resposta dada ao art.º 5.º meramente consequencial.

Prendem-se todos estes artigos com o empréstimo no montante global de € 85 000,00 que o 3.º R teria feito a seu pai -quantia pelo primeiro amealhada durante o seu tempo de emigrante na Suíça- e que a transmissão do imóvel se destinaria a pagar, factos estes que pretendem ter ficado demonstrados por via dos testemunhos prestados por I..., J..., H..., L... e  M....

Foi dado como assente em resposta ao art.º 36.º, atendendo até à prova documental junta aos autos, que o réu D..., durante o período de tempo em que trabalhou na N..., sediada em Geneve (Agosto de 1995 a Julho de 2000), auferiu salários no montante de cerca de 95 500 francos suíços (a rondar os € 79 000,00, para uma taxa de câmbio de 1,2085). Tal resposta não foi impugnada, mantendo-se o facto como demonstrado.

Provado que o 3.º R angariou o aludido montante, foi no entanto tido como demonstrado que nunca emprestou qualquer quantia aos 1.º e 2.ª RR, seus progenitores. Em ordem a justificar tal resposta afirmativa, fez o Mm.º juiz “a quo” consignar que “um contrato de mútuo de valor superior a €25 000,00 deve ser celebrado por escritura pública ou documento particular autenticado; quando a lei exigir como forma da declaração negocial documento autêntico, autenticado ou particular, não pode ser substituído por outro meio de prova, ou por outro documento que não seja de valor probatório superior (art.º 364.º, n.º 1 do Código Civil); cabia ao 3.º réu provar que emprestou, de acordo com as regras que presidem ao modo de apreciar a prova, prova que ele não fez”.

Tal argumentação, ressalvado o respeito que sempre nos merece divergente opinião, não a podemos secundar.

Assim, e antes de mais, o argumento invocado melhor se adequaria a motivar as respostas negativas dadas aos artigos 37.º a 39.º, não justificando, a nosso ver, a resposta positiva ao dito art.º 5.º. Com efeito, se se faz apelo à necessidade de um qualificado meio de prova para a demonstração de determinado facto e se constata que o mesmo não foi oferecido, então parece que a consequência deveria ser considerar o facto em causa como não provado, ao invés de se ter por demonstrado o contrário.

Além do mais, o que se constata é que os 1.º e 2.º RR se confessaram devedores ao 3.º da assinalada quantia de € 85 000,00, o que fizeram consignar na escritura pública junta de fls. 147 a 150, aí tendo declarado provir de “empréstimos por contratos particulares não titulados, que nesta data perfazem aquela quantia”. O assim consignado harmoniza-se de resto com os termos da alegação feita em juízo, posto que, em parte alguma, foi afirmado tratar-se de um único empréstimo do assinalado montante, antes tendo aludido à existência de diversos empréstimos efectuados ao longo do tempo, perfazendo aquele montante (cf. art.ºs 48.º a 59.º da contestação).

Face a tal confissão e forma que revestiu, impõe-se antes equacionar a aplicação ao caso do n.º 2 do citado art.º 364.º. Nos termos deste dispositivo legal, se resultar da lei que o documento é exigido apenas para a prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório, hipótese em que o reconhecimento da dívida assume força probatória plena (cf. art.º 358.º, n.º 1). À luz do assim estipulado, a questão que verdadeiramente se suscita é antes indagar da admissibilidade da produção de prova visando contrariar esta confissão, interrogação que merece, em nosso entender, resposta positiva, por não ter sido feita (a confissão) perante a autora e porque não favorece a sua pretensão.

Com efeito, afigura-se que nesta concreta situação o reconhecimento inequívoco da dívida por banda dos RR confessados devedores, ainda constando de documento autêntico, não vinculava a demandante, impedindo-a de demonstrar que na base de tal confissão não se encontrava uma relação obrigacional válida; no caso, “o que a dita força probatória plena impede é que -sem invocação, nomeadamente, de um vício da declaração negocial que inquine irremediavelmente a própria declaração confessória- o confitente se possa exonerar perante o seu credor, a quem fez a confissão da dívida, do facto desfavorável nela contido, mas já não obviamente que terceiros, cujos direitos são abalados pelo reconhecimento confessório, possam pôr em causa, mediante a utilização de quaisquer meios probatórios, a validade e veracidade de declaração confessória a que são inteiramente estranhos - e cuja subsistência prejudica a consistência dos seus direitos.”[3]

Com efeito, o n.º 2 do art.º 358.º confere força probatória plena à confissão extrajudicial que, constando designadamente de documento autêntico, seja feita à parte contrária; sendo feita a terceiro é livremente apreciada pelo Tribunal, consoante prescreve o n.º 4.

Assim precisados, como nos parece que deveriam, os termos da questão, analisada a prova testemunhal produzida, a convicção a que se chega é que o 3.º R não emprestou seguramente € 85 000,00 ao seu pai, o aqui R. B..., subsistindo dúvida inultrapassável quanto a saber se alguma quantia sequer terá sido emprestada. É certo que as testemunhas agora referenciadas pelos apelantes, com diferentes graus de conhecimento e razões de ciência diversa, aludiram coincidentemente ao facto do réu D..., durante a sua ausência, ter, por diversas vezes, procedido ao envio de quantias em dinheiro, aproveitando o facto de conhecidos seus se deslocarem a Portugal, a todos tendo feito uma mesma recomendação -a de fazerem entrega de tais valores à mãe, a aqui ré C.... Todavia, a verdade é que ninguém detinha conhecimento directo e consistente sobre o destino de tais quantias. Vejamos:

As testemunhas L... e M..., ambas amigas da ré mulher, que em dada altura lhes prestou serviços domésticos, sabiam a respeito quanto por esta lhes havia sido narrado. Referiram o facto da mesma C... lhes ter relatado que o filho lhe enviava dinheiro para guardar e que o marido a dada altura soube da existência desse dinheiro e o pediu emprestado. Todavia, nenhuma conseguiu precisar quando é que tais factos teriam ocorrido, quais as quantias envolvidas -a testemunha M... aludiu sem convicção a €50 000,00/€60 000,00- ou sequer quando é que tomaram conhecimento dos alegados empréstimos, designadamente se tal lhes foi dito a posteriori, sensação aliás com que se ficou pela referência a este montante global. Dada a inconsistência do relatado, não confirmado por quaisquer elementos objectivos, não puderam tais testemunhos ser considerados para prova dos factos em questão.

I... e J..., ambos amigos do réu D..., declararam que em várias ocasiões o segundo, numa ocasião em que se deslocou à Suíça, o primeiro, trouxeram para Portugal a pedido do réu um envelope, que lhes foi dito conter dinheiro, com a recomendação de que o entregassem à mãe. Esclareceu esta última testemunha ter-lhe sido confidenciado pelo réu D... que o pai tinha alguns problemas económicos e que não pretendia envolver-se porque queria ter um dinheiro para investir quando chegasse a Portugal, tencionando trabalhar por conta própria.

Ora, reconhecendo não haver razões para duvidar de tais depoimentos, a verdade é que desconheciam obviamente as testemunhas de que quantias se tratava ou qual o destino que pelo 3.º réu lhes veio a ser dado, sendo o declarado claramente insuficiente para sustentar a alteração pretendida pelos apelantes.

E mais esclarecedor não foi o testemunho prestado por H..., genro dos RR C... e B... e cunhado do réu D....

Inquirido a este respeito, declarou que “o meu cunhado, pelo que eu sei, emprestou dinheiro aos meus sogros, ao meu sogro directamente, para pôr lá na empresa”. E este perturbador “pelo que eu sei” num familiar próximo e que era, para além do mais, desde 1991, o contabilista da sociedade G..., não resultou mais esclarecido pelo desenrolar do depoimento. Referiu ter-lhe sido dito pela esposa que o cunhado mandava dinheiro para a mãe guardar, que o dinheiro lhe chegava por intermédio de portadores e que o objectivo era ter o dinheiro guardado para quando chegasse. Acrescentou que o dinheiro ficava em poder da sogra, guardado em casa e não numa conta bancária, para evitar que o réu B... o utilizasse.

A propósito, não pode deixar de se fazer notar a estranheza da explicação dada, afigurando-se que não justifica o facto. Com efeito, dificilmente se compreende que o réu D... mantivesse o dinheiro na Suíça sem o aplicar, aguardando que um seu conhecido viesse a Portugal, acontecimento este incerto, para proceder ao seu envio para a mãe -não se sabe se em escudos, se ainda em francos suíços- e que esta mantivesse o dinheiro guardado em casa durante o período de cinco anos, quando, com toda a facilidade, o réu poderia abrir uma conta bancária, aqui ou na Suíça, procedendo ao depósito e rentabilização das quantias em causa. Depois, mal se compreende igualmente que, tendo o cuidado de confiar o dinheiro à guarda da mãe para evitar que o pai o utilizasse, viesse depois a emprestar-lhe quantia até superior àquela que ganhou, sendo certo que o montante aforrado seria necessariamente inferior. Acresce que, tendo o dinheiro sido emprestado, ao que resulta do depoimento da testemunha H... já depois do réu D... ter regressado, não é verosímil que o não tivesse pelo menos então depositado, impressionando a total ausência de documentos que ilustrassem o levantamento e a consequente entrada do dinheiro na sociedade, ainda que a título de suprimentos do seu único sócio.

Sendo a prova a este respeito produzida aquela que se deixou referenciada, logo se vê que não assumiu consistência que permitisse dar como provados os referidos empréstimos, e muito menos que atingissem o valor de € 85 000,00. Todavia, a verdade é que não resultou completamente arredado que alguma quantia tenha sido emprestada.

Ouvida a já citada testemunha F..., que na G..., Sociedade Unipessoal, Lda. tinha a seu cargo os aspectos administrativos, controlando as contas bancárias, declarou espontaneamente que o réu B... chegou a trazer algumas vezes dinheiro para acudir a dificuldades da sociedade, mencionando que numa ocasião se tratou de €2000,00-€3000,00, isto já depois de se ter instalado a crise na construção civil, ou seja, depois de 2002-2003. É certo que a testemunha declarou desconhecer a origem do dinheiro, mas sabendo-se, por ter sido espontaneamente referido pelo mencionado H..., que aquele réu poucos salários tirou da serralharia nos últimos tempos, vivendo o casal, nos últimos anos, da sua reforma e de algumas horas como “empregada a dias” que a ré Isabel angariava, não pode ser em absoluto excluída a possibilidade do réu D... ter acudido o pai numa situação de maior aperto, tanto mais que residia ainda com os progenitores.

Deste modo, e em conclusão, modifica-se a resposta ao art.º 5.º, dela fazendo constar como provado que o 3.º réu não emprestou aos 1.º e 2.º RR a quantia de € 85 000,00, que entendemos mais conforme à prova produzida, mantendo-se as respostas negativas que mereceram os artigos 37.º a 39.º.

No que respeita ao derradeiro facto impugnado, a dita resposta ao art.º 9.º, dando como assente que os RR pretenderam furtar o imóvel à satisfação do crédito da autora, terá a mesma de subsistir. Com efeito, não nos parece ter sido mera coincidência a data da celebração da escritura -Dezembro de 2009- escassos meses antes da entrada em juízo da acção de insolvência e instauração pela aqui autora das acções executivas. Note-se que, conforme a testemunha F... referiu, dado o volume que a dívida perante a autora atingira, passara esta a exigir o aval do sócio nas letras sacadas, sendo que nos últimos tempos os fornecimentos só eram efectuados a pronto pagamento, o que resultou do depoimento da testemunha H..., tudo apontando estar iminente, como aconteceu, uma reacção daquela credora.

Resulta ainda do mapa dos créditos reclamados no processo de insolvência que a sociedade já não tinha capacidade para pagar aos seus trabalhadores, existindo salários em atraso. E se é certo ter a testemunha asseverado que não presidiu à realização da escritura nenhuma intenção de subtrair o imóvel a eventual acção dos credores, tratando-se apenas de ressarcir o cunhado do dinheiro que emprestara, ficámos a saber pelo mesmo H... que houve até uma reunião de família, na qual terá sido comunicada a intenção dos sogros transmitirem para o cunhado o direito de propriedade sobre a fracção, idêntica, conforme espontaneamente confirmou, àquela outra havida anos atrás, por ocasião da doação que os RR B... e Isabel então fizeram à filha de um terreno, com valor aproximado ao da fracção. Ademais, não correspondendo à verdade, como inequivocamente não corresponde, que o réu D... tenha emprestado o montante referido na escritura, não deixa de ser reveladora a circunstância de ter havido o cuidado de celebrar um negócio oneroso, o que releva para a conclusão de que real e efectiva intenção foi subtrair o bem à acção dos credores, nomeadamente da autora.

Mantém-se assim a resposta dada ao artigo em causa.

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II. Fundamentação

De facto

Agora estabilizada, lógica e cronologicamente ordenada, é a seguinte a matéria de facto a considerar:

1. A Autora é dona e portadora de sete letras de câmbio, a saber:

a) A primeira no valor de 1.605,00€, com data de vencimento a 10/06/2009, junta aos autos a fls. 19, cujo conteúdo se considera reproduzido para os devidos efeitos legais;

b) A segunda no valor de 1.620,00€, com data de vencimento a 20/06/2009, junta aos autos a fls. 20, cujo conteúdo se considera reproduzido para os devidos efeitos legais;

c) A terceira no valor de 1.562,50 € (mil, quinhentos e sessenta e dois euros e cinquenta cêntimos), com data de vencimento a 10/7/2009, junta aos autos a fls. 21, cujo conteúdo se considera reproduzido para os devidos efeitos legais;

d) A quarta no valor de 26.385,58 € (vinte e seis mil, trezentos e oitenta e cinco euros e cinquenta e oito cêntimos) com data de vencimento a 10/07/2009, junta aos autos a fls. 22, cujo conteúdo se considera reproduzido para os devidos efeitos legais;

e) A quinta no valor de 4.444,00 € (quatro mil, quatrocentos e quarenta e quatro euros), com data de vencimento no dia 20/07/2009, junta aos autos a fls. 23, cujo conteúdo se considera reproduzido para os devidos efeitos legais;

f) A sexta no valor de 23.747,00 € com data de vencimento a 10/08/2009, junta aos autos a fls. 24, cujo conteúdo se considera reproduzido para os devidos efeitos legais;

g) A última no valor de 26.547,37 € (vinte e seis mil, quinhentos e quarenta e sete euros e trinta e sete cêntimos), com data de emissão no dia 1/2/2010 e vencimento no dia 30/04/2010, junta aos autos a fls. 25, cujo conteúdo se considera reproduzido para os devidos efeitos legais (al. A) dos factos assentes).

2. As letras identificadas em 1. perfazem o valor total de 85.911,45 € (oitenta e cinco mil, novecentos e onze euros e quarenta e cinco cêntimos (al. B) dos factos assentes.

3. As referidas letras foram sacadas pela Autora e aceites por “ G... – sociedade Unipessoal Lda.”, tendo o Sócio Gerente daquela, B... (1.º Réu), aposto a sua assinatura em todas as letras supra identificadas, no lugar destinado ao aceite (al. C) dos factos assentes).

4. As letras identificadas em 1. foram avalizadas por B..., 1.º Réu, tendo este aposto a sua assinatura no verso das mesmas e, por cima, escreveu "Dou o meu aval ao aceitante" (al. D dos factos assentes).

5- Todas as letras supra citadas foram emitidas na sequência de uma transacção comercial entre “ G... – sociedade Unipessoal Lda.”e a Autora, concretamente a venda de mercadoria por parte da Autora àquela sociedade, e que esta última, até à presente data, não pagou, sendo a letra de câmbio no montante de 23 747,00 referida em c) reforma do título no montante de € 26 385,58 identificado em d) (resposta ao art.º 1.º).

6. Por não terem sido pagas pelo aceitante, o Banco debitou as referidas letras à Autora, devolvendo-as a esta (resposta ao quesito 2.º).

7. A dívida em causa nos presentes autos foi contraída em resultado da actividade comercial do 1º Réu na G..., Sociedade Unipessoal Ldª.  (resposta ao art.º 3.º).

8. Na falta de pagamento do montante das letras, a A. instaurou dois processos, quer à sociedade, quer ao 1.º Réu:

a) Processo executivo nº 183/10.1 TBTMR, que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, no valor €28.188,71, e no qual foram apresentadas como títulos executivos as letras nos valores de €23.747,00, €1.605,00 e €1.620,00 (posteriormente foi requerida cumulação com outras letras), e

b) Processo executivo nº 184/10.0TBTMR, que correu termos no 3º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, no valor €29.404,83, e no qual foram apresentadas como títulos executivos as letras no valor de € 1.562,50 e de € 26.385,58 (alínea F) dos factos assentes).

9. Em tais execuções a Sra. AE procurou vários bens pertença dos executados, a fim de poderem ser penhorados, e devido ao facto de não os ter encontrado, veio requerer a insolvência da sociedade em 12/06/2010, no processo que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Tomar, sob o nº 716/10.3TBTMR (alínea G) dos factos assentes).

10. Tendo sido proferida sentença de insolvência da sociedade “ G..., Sociedade Unipessoal Lda.”, a 07/07/2010, publicada no Diário da República, 2ª Série, nº 152, a 06/08/2010 (alínea H) dos factos assentes).

11. Neste processo de insolvência verificou-se que aquela sociedade, pouco antes de ser declarada insolvente, vendeu um veículo automóvel que era da sua propriedade, matrícula (...)JB, marca Nissan, a uma sociedade “ O... Unipessoal Lda.” (alínea I) dos factos assentes).

12. Tal sociedade tem como único sócio e gerente o 3.º Réu, filho dos 1.º e 2.º Réus, e tem a sua sede comercial na residência dos 1.º, 2.º e 3.º Réus, a saber, Rua Gregório Lopes, n.º 1, 3.º Esquerdo, em Tomar (alínea J) dos factos assentes).

13. O 1.º e 2.º Réus, por escritura pública celebrada a 18 de Dezembro de 2009, no Cartório Notarial de E..., na cidade de Tomar, declararam que em cumprimento da dívida de € 85.000,00, constante de empréstimos particulares não titulados, davam ao 3.º Réu, filho daqueles, a fracção autónoma designada pela letra “S”, correspondente ao 3.º andar Direito Tardoz, do prédio Urbano afecto ao regime de propriedade horizontal, sito em (...), Concelho de Tomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 3241 e inscrito na respectiva Matriz sob o artigo 2369, tendo o 3.º réu declarado que aceitava a dação em cumprimento, ficando em consequência extinta a dívida, destinando-se a referida fracção a sua habitação própria permanente  (alínea K) dos factos assentes e documento de fls. 147 a 150).

14. O 3.º réu não emprestou aos 1.º e 2.º réus a aludida quantia de € 85 000,00 (resposta ao art.º 5.º).

15. O 3.º réu foi funcionário do “ P..., SA.”, em Tomar, pelo menos de Maio de 2001 a Abril de 2012, tendo auferido em 2001 o salário anual de 2 953,73 €; em 2002 o salário anual de 5 824,23 €; em 2003 o salário anual de 4 348,81 €; em 2004 o salário anual de 4 945,87 €; em 2005 o salário anual de 4 859,45 €; em 2004 o salário anual de 4 945,87 €; em 2005 o salário anual de 4 859,45 €; em 2006 o salário anual de 5 337,80 €; em 2007 o salário anual de 7 105,46 €; em 2008 o salário anual de 5 722,72 €; em 2009 o salário anual de 6 126,93 €; em 2010 o salário anual de 6 381,39 €; em 2011 o salário anual de 6 937,47€; em 2012 o salário anual de 2 573,11 € (resposta ao art.º 6.º).

16. Com a escritura pública referida em K) os réus pretenderam furtar um bem imóvel à satisfação do crédito da autora (resposta ao art.º 9.º).

17. O 3.º réu, no período que mediou entre 1 de Agosto de 1995 e 31 de Julho de 2000, trabalhou como vendedor na N... sediada em Geneve na Rue (...)(resposta aos art.ºs 31.º a 35.º).

18. Durante o período de tempo em que trabalhou na dita empresa, o terceiro réu ganhou cerca de 95 500 francos suíços (resposta ao art.º 36.º).

19. O 1.º Réu é casado com a 2.ª Ré sob o regime da comunhão de adquiridos, tendo contraído matrimónio sem convenção antenupcial em 5 de Abril de 1970 (al. E dos factos assentes e doc. de fls. 119).

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De Direito

iii. Da nulidade, por simulação, do negócio celebrado entre os RR

Invocou a autora, em primeira linha, a nulidade do negócio celebrado por efeito da simulação absoluta, ou seja, os RR não teriam querido a celebração de qualquer negócio, inexistindo correspondência entre a vontade real e a declarada.

A alegação da autora corresponde à invocação da simulação absoluta, situação em que as parte fingem celebrar um negócio jurídico mas na realidade não querem celebrar negócio nenhum.

O art.º 240.º do Código Civil[4] fulmina com a nulidade o negócio simulado, assim se havendo aquele em que, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, existe divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante (vide nºs 1 e 2 do preceito).

A simulação consiste sempre numa divergência bilateral entre a vontade e a declaração, que é pactuada entre as partes com a intenção de enganar terceiros.

São tradicionalmente apontados como elementos integradores do negócio simulado: a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; o acordo entre declarante e declaratário -acordo simulatório- e o intuito de enganar terceiros (que não necessariamente de prejudicar)[5].

Visto o elenco dos factos apurados em ordem a neles surpreender os referidos elementos, resulta evidente não ter a autora logrado fazer prova de que os RR B... e C... não tivessem vontade de transmitir a seu filho o direito de propriedade sobre a fracção identificada na escritura, nem que este a não quisesse adquirir (cfr. o teor da respostas restritiva que mereceu o art.º 9.º, a este propósito formulado). Daí que não possa afirmar-se que o negócio foi absolutamente simulado.

Dispõe todavia o art.º 241.º, no seu n.º 1, que “Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem simulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.” Trata-se da simulação relativa, ou seja, as partes, para iludir terceiros, fingem celebrar um certo negócio jurídico mas querem, na realidade, um negócio de tipo ou conteúdo diversos.[6]

Na simulação relativa o negócio simulado é igualmente sancionado com a nulidade, mas o negócio real ou dissimulado pode ser válido e eficaz (cf. n.º 1 do artº 241.º).

No caso em apreço, à luz da matéria de facto provada, considerando nomeadamente a inverdade do “confessado” empréstimo de € 85 000,00, elemento que assim terá de se ter por subtraído ao negócio celebrado, subsiste como vontade real das partes: por banda dos transmitentes, a vontade de doar sem qualquer contrapartida; da parte do transmissário a aceitação da doação, declarações típicas de um contrato de doação (cf. art.º 940.º).

Estamos assim na presença de um negócio simulado -simulação relativa objectiva, porque incidente sobre a natureza do negócio- havendo que indagar da validade do negócio dissimulado.

O art.º 241.º consagra, a propósito da questão enunciada, o postulado de que a simulação, em si mesma, não prejudica o valor do negócio dissimulado, que tanto pode ser válido como eficaz, devendo o seu valor ser apurado segundo o seu próprio mérito, se tivesse sido celebrado sem simulação.[7]

Dúvidas maiores vem suscitando a interpretação do n.º 2 do preceito, por cujos termos o negócio dissimulado formal só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei.

Não obstante as divergências doutrinárias[8], a jurisprudência, designadamente ao nível do nosso STJ, vem aceitando que, no caso em que o negócio dissimulado é uma doação encoberta por uma compra e venda, aquele é válido, porquanto, foi formalizado por escritura pública, forma adoptada para a celebração do negócio simulado, assim resultando igualmente observada a forma legalmente exigida para o negócio dissimulado (art.ºs 241.º, 875.º e 947.º, n.º 1, do CC)[9]. Tal entendimento, do qual não vemos razões para divergir, parece-nos ser aqui válido por maioria de razão, posto que, desaparecendo a pretensa dívida, evidenciado fica o carácter gratuito do acto de disposição. Aliás, ainda que se perfilhasse um entendimento mais restrito, apelando ao disposto no art.º 238.º ou no art.º 231.º, e sempre o negócio de doação aqui dissimulado haveria de ser tido como válido.

Destarte, a despeito da nulidade do negócio simulado, subsistindo como válido o negócio dissimulado de doação celebrado entre os RR, não pode decretar-se o efeito restitutório pretendido pela apelada, donde não proceder o pedido formulado em via principal.

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iv. Dos pressupostos da impugnação pauliana

Nos termos do artigo 610.º “Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial e não sejam de natureza pessoal, podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:

a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;

b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade.”.

A impugnação pauliana é um meio conservatório de garantia patrimonial distinto da acção anulatória, ainda que à impugnação pauliana não obste, como vimos, a nulidade do negócio, solução consagrada no art.º 615.º[10].

O negócio impugnado por meio da acção pauliana, via de regra, não enferma de qualquer vício genético sendo, em si mesmo, válido e eficaz. Não obstante, verificados os pressupostos que enuncia, a lei permite o constrangimento do direito do adquirente em ordem a satisfazer o interesse do credor tutelado, mas apenas na medida do interesse deste.

No que concerne ao ónus da prova, decorre do disposto no artigo 611.º que incumbe ao credor a prova do montante das dívidas e anterioridade do crédito, recaindo sobre o devedor ou terceiro interessado na manutenção do acto o ónus da prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor[11].

A verificação do segundo requisito legal -resultar do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade- não exige que se faça prova de que da prática do acto resultou a insolvência do devedor, bastando-se com uma mera impossibilidade prática.

Finalmente, prescreve o n.º 1 do artigo 612.º que o acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro tenham agido de boa fé. Nos termos do n.º 2 do normativo citado entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao devedor.

No que respeita ao requisito da má fé -cujo ónus de alegação e prova recai sobre o impugnante- é pacífico que a lei exige a má fé bilateral, ou seja, tem que estar presente no devedor e no terceiro, podendo revelar-se sob a forma dolosa em qualquer das suas modalidades, ou ainda sob a forma de negligência consciente, ou seja, não se exige a intenção de prejudicar, sendo suficiente a negligência consciente quanto à produção do resultado danoso, a saber, que do acto resulte a diminuição da garantia patrimonial do crédito do impugnante.[12]

Sendo o referido o quadro legal em que nos moveremos, cabe agora analisar o acervo factual apurado em ordem a indagar da verificação dos enunciados requisitos.

E vistos os factos assentes, constata-se ter sido pela autora feita a prova da existência de uma dívida que, subtraído o valor titulado pela letra reformada, ascende, ainda assim, a €59 525,87. Deste volume de dívida, €32 978,50 encontram-se titulados por letras vencidas em data anterior à da celebração da escritura termos em que, pelo menos relativamente a este valor, verificado está o requisito da anterioridade. E dizemos “pelo menos” porque, tendo a última letra, no valor de €26 547,37, sido emitida no dia 1/2/2010 para liquidação das facturas nela identificadas, é de admitir que a constituição da dívida seja anterior, tendo presente que a anterioridade se afere pela data da constituição e não do vencimento[13]. Todavia, porque nada foi alegado a este respeito, só aquele valor será aqui considerado.

A par da existência do crédito e da sua anterioridade, verifica-se não terem os RR logrado demonstrar a existência de património na esfera jurídica dos devedores capaz de responder pela dívida, sendo certo ainda que, face à constatação de que os devedores não dispõem de quaisquer bens (cf. o facto assente sob o nr. 9), provado está que da prática do acto impugnado resultou o agravamento, quiçá a impossibilidade, da credora apelada obter a satisfação do seu crédito.

Finalmente, e atentando no facto assente em 16., dele resulta inequívoca a má fé de ambos os contraentes, na sua modalidade mais evidente do dolo directo, sendo certo, porém, que atenta a apurada natureza gratuita do negócio efectivamente celebrado, sempre este requisito seria de dispensar.

Verificados os requisitos da impugnação pauliana é consequente a declaração de ineficácia do acto em relação à credora e aqui autora.

Todavia, uma derradeira questão vem colocada, dela cumprindo conhecer. Defende a apelante C..., conforme havia já defendido na contestação apresentada, que, não sendo devedora, nada a impedia de dispor da sua meação na fracção objecto do negócio translativo, pelo que o negócio, nesta parte, terá de ser havido como eficaz.

A este respeito cumpre referir que, tal como consta das certidões extraídas dos processos executivos instaurados contra a sociedade G..., Unipessoal, Lda. e o seu sócio gerente, o réu B..., neles alegou a então exequente, aqui apelada, factos tendentes a convencer da comunicabilidade da dívida, tendo, do mesmo passo, requerido a citação do cônjuge do executado, no caso a recorrente Isabel, nos termos e com a cominação previstos no n.º 2 do art.º 825.º do CPC. E se as mesmas certidões documentam que na execução que corre termos sob o n.º 183/10.1 TBTMR (ao invés do que se verificou na subsequente acção executiva 184/10) a citanda nenhuma oposição deduziu, o que tem como consequência que a dívida seja considerada comum, tal consideração é circunscrita aos termos da execução, não estando, a nosso ver, dotada de valor extraprocessual.[14]

Por assim ser, haverá agora que tomar posição sobre a natureza da dívida.

Não há dúvida que à data da constituição da dívida pelo réu marido, este se encontrava casado com a apelante Isabel, tratando-se pois de dívida contraída na constância do casamento por um dos cônjuges. E trata-se ainda, convém recordar, de aval prestado em letras de câmbio emitidas para pagamento de transacção comercial em que foi interveniente sociedade de que aquele réu era o único sócio e gerente (cfr. os factos assentes sob os nrs. 2., 3. e 5.).

Cabe no entanto referir que, contrariamente ao que o facto assente sob o n.º 7. parece sugerir (aí se afirma que a dívida em causa nos presentes autos foi contraída em resultado da actividade comercial do 1.º Réu na G..., Sociedade Unipessoal Ldª), este réu não adquiriu a qualidade de comerciante por via dos actos praticados no exercício da gerência. “Efectivamente, quando o art. 13.º, n.º 1, do C. Comercial exige, para a aquisição da qualidade de comerciante em nome individual, a prática de actos de comércio e que se faça deste profissão, isso significa, entre outras coisas, que não basta a prática de actos de comércio isolados ou ocasionais (sendo indispensável a prática regular, habitual, sistemática, de actos de comércio) e/ou que não basta a prática de quaisquer actos de comércio (ficando excluídos os actos subjectivos, os actos acessórios, os actos formalmente comerciais e os actos abstractos, exigindo-se, para a atribuição da qualidade de comerciante, a prática, sistemática e regular de actos de comércio objectivos, absolutos, substancialmente comerciais e causais), sendo igualmente indispensável que a profissão de comerciante seja exercida de modo pessoal, independente e autónomo, isto é, em nome próprio e sem subordinação a outrem.

Daí que, em relação aos membros dos órgãos de administração das sociedades comerciais (aos gerentes nas sociedade por quotas e aos administradores das sociedades anónimas) – que indiscutivelmente praticam actos de comércio – não haja a aquisição da qualidade de comerciante, porque os actos de comércio por eles praticados se reportam e inserem na esfera jurídica do representado (que será o comerciante) e não deles próprios, meros representantes.”[15]

Ora, tendo resultado provado, tal como resulta dos próprios títulos, que os mesmos foram emitidos no âmbito de transacção comercial em que foram intervenientes a sociedade autora e a G..., sociedade unipessoal, Lda, a afirmação de que a dívida foi contraída em resultado da actividade comercial do 1.º réu na sociedade terá de ser entendida como reportando-se à prática de actos como gerente, sem virtualidade portanto para o tornar comerciante.

Assim sendo, ao 1.º réu não pode ser reconhecida a qualidade de comerciante, pelo que a comunicabilidade da dívida terá de resultar do preenchimento da previsão da al. c) do n.º 1 do art.º 1691.º, sentido no qual, aliás, a autora dirigiu os seus esforços em sede de alegação.

Nos termos desta disposição legal são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração.

O proveito comum do casal em que assenta a responsabilidade de ambos os cônjuges deve, nos termos da predita alínea, resultar directamente do acto constitutivo da dívida, e não constituir um efeito indirecto ou mediato do mesmo. Afere-se ainda à luz do fim visado pelo cônjuge que contrai a dívida, independentemente do resultado concreto que venha a produzir.

Porque não tinha a seu favor qualquer presunção, sobre a autora recaía o ónus de provar que, não obstante o réu B... não deter a qualidade de comerciante, do aval prestado resultava directa e imediatamente (e não reflexa e remotamente) um benefício para o casal por ele constituído com a apelante, em linha com o objectivo visado com a sua prestação[16]. E a verdade é que, a despeito de se tratar de uma sociedade unipessoal -que, em todo o caso, é ente distinto do seu único sócio- tal prova não foi feita. Com efeito, tratando-se de avales, e sendo “a prestação do aval em regra um acto unilateral, que se efectiva sem contraprestação, da sua subscrição, em si mesma, nenhum benefício directo resulta para o casal do avalista; só assim não será quando a prática desse acto fornece a indicação segura de que o destino dado à contraprestação foi o benefício directo de ambos os cônjuges”[17].

Tal é o entendimento que se perfilha e tem por correcto. Deste modo, sabendo-se apenas que as letras foram emitidas a favor da autora no âmbito de transacção comercial mantida com a sociedade sacada, tendo o réu B... dado o seu aval à aceitante na sua qualidade de gerente da mesma, e apesar de ser também o seu único sócio, não permite tal factualidade concluir pelo proveito comum. E assim é por não ter ficado demonstrado, ainda atendendo à relação causal, que a mesma viesse a resultar em imediato benefício para o casal, ou seja, que dela resultasse a satisfação de um interesse comum ou de uma necessidade partilhada.[18]  Acresce que, em rigor, nem sequer se provou que a ré beneficiasse de quaisquer proventos gerados pela dita sociedade.

Em remate, não tendo a apelada feito a prova, que lhe competia, de que a dívida contraída pelo réu B... visou, e dela decorre directamente, pelo menos uma expectativa de benefício directo e imediato para o casal formado com a cônjuge mulher, não tem esta a qualidade de devedora, podendo dispor livremente dos seus bens e, designadamente, da meação de que é titular na fracção identificada na escritura. Daí que não possa subsistir a sentença impugnada quando declarou a ineficácia do acto em relação à autora, posto que tal efeito afecta apenas a disposição da meação que pelo réu B... foi efectuada.

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III. Decisão.

Em face a todo o exposto, acordam os juízes que constituem a 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, declaram a ineficácia em relação à autora da alienação efectuada pelo réu/apelado B..., através da escritura de dação em cumprimento outorgada a 18 de Dezembro de 2009, no Cartório Notarial de E..., na cidade de Tomar, tendo por objecto a fracção autónoma designada pela letra “S”, correspondente ao 3º andar Direito Tardoz, do prédio Urbano afecto ao regime de propriedade horizontal, sito em (...), Concelho de Tomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 3241 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 2369, na medida do suficiente para pagamento do crédito da autora, podendo a meação que ao apelado pertence neste bem ser executada no património do réu D....

Custas nesta e na 1.ª instância a cargo da apelante e dos apelados, na proporção de metade para cada.

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Maria Domingas Simões - Relatora

Nunes Ribeiro

Helder Almeida

[1] Cf., a propósito, o aresto desta mesma Relação de Coimbra de 14/12/2010, processo n.º 2604/08.4 TBAGD.C1, acessível em www.dgsi.pt.

João Cura Mariano, “Impugnação Pauliana”, 2.ª ed., pág. 221, defende que a opção permitida pelo art.º 615.º do CC abre a porta à “invocação da simulação com a utilização da impugnação pauliana”, ressalvando que, “nesta hipótese, o reconhecimento da existência desse vício não produz os efeitos típicos da simulação, dispensando apenas o credor impugnante de provar a má fé dos autores do acto impugnado.” O entendimento expendido, pressupondo que o pedido a final formulado seja o típico da pauliana, não conflitua, em nosso entender, com a solução encontrada no aresto.

[2] Alínea com o seguinte teor:

K) 1º e 2º Réus, por escritura pública celebrada a 18 de Dezembro de 2009, no Cartório Notarial de E..., na cidade de Tomar, declararam que, em cumprimentos da dívida de 85.000,00 €, constantes de empréstimos particulares não titulados, dão ao 3º Réu, filho daqueles, a fracção autónoma designada pela letra “S”, correspondente ao 3º andar Direito Tardoz, do prédio Urbano afecto ao regime de propriedade horizontal, sito em (...), Concelho de Tomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar, sob o nº 3241 e inscrito na respectiva Matriz sob o artigo 2369.

[3] Do acórdão do STJ de 12 de Janeiro de 2012, proferido no processo n.º 6933/04.8YYLSB-C.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

[4] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.

[5] idem, pág. 472.

[6] Sobre a distinção entre simulação absoluta e relativa, Prof. Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª edição, pág. 473.

[7] Carvalho Fernandes, “Estudos sobre a simulação”, Quis júris, págs. 30-31.

[8] Enquadrando historicamente a querela e dando conta das diversas posições, Carvalho Fernandes, ob. cit., págs. 30-35 e ainda o ac. da Relação de Lisboa de 23/6/2009, processo n.º 746/2008-7, acessível em www.dgsi.pt.

[9] Cf. acórdãos do STJ de 28/5/2012, processo n.º 866/05.8TCGMR.G1.S1, com recenseamento de diversas decisões, de 26/11/2009, processo n.º 336/1999.S1, no citado sítio

[10] Na impugnação pauliana, ao invés do que ocorre na sequência da declaração de nulidade, os bens não regressam ao património do devedor, referindo o n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil que a execução ocorre “no património do obrigado à restituição” e reconhecendo-se no art.º 818.º que os bens pertencem a um terceiro.

Os efeitos da acção pauliana limitam-se ao credor que a requereu e não a todos os credores como ocorre na acção anulatória procedente.

A finalidade da impugnação pauliana não é a restituição do bem indevidamente alienado mas a irrelevância da transmissão na medida em que se revelar incompatível com o direito de crédito.

[11] Constitui entendimento constante. V., por todos, acórdão STJ de 20/3/2012, processo nº 29/03.7TBVPA.P2.S1, em www.dgsi.pt

[12] V., por todos, o acórdão do STJ de 13/10/2011, processo n.º 116/09.8 T2, ainda em www.dgsi.pt.

[13] cfr., neste preciso sentido e a propósito da emissão de livranças, aresto da Rel. de Lisboa de 17/5/2007, processo nº 3421/2007-6,

[14] V., sobre a questão, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. II, pág. 54.

[15] Do acórdão desta Relação de 25/3/2010, processo 252/06.2 TBCVL.C1 e da Relação do Porto de 23/6/2005, 0533459, n.º convencional JTRP 00038218.

[16] De realçar que da base instrutória constavam diversos artigos, todos eles provenientes da alegação dos contestantes, tendentes a afastar o proveito comum (cf. artigos 19.º a 30.º, em especial 23.º a 29.º). Os factos neles vertidos foram, é certo, considerados como não provados mas dado que a prova do proveito comum onerava a autora e não o contrário, daquela não prova não resulta para os RR qualquer consequência.

[17] Do acórdão do STJ de 21/4/98, processo 98B989, solução retomada nos arestos citados na nota 15.

[18] Neste sentido decidiu igualmente a Relação de Évora, em aresto de 20/11/1979, BMJ 294, pág. 415, assim sumariado

“I- O proveito comum do casal capaz de justificar a responsabilidade de ambos os cônjuges deve resultar imediatamente do acro constitutivo da dívida e não ser efeito indirecto, mediato ou remoto desse acto.

II- Deste modo, sendo os avalistas sócios de uma sociedade que beneficiou dos avales, e mesmo vivendo os casais desses avalistas principal ou exclusivamente dos rendimentos e lucros dessa sociedade, não podem tais avales julgar-se prestados em proveito comum dos respectivos casais”.