Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
82/20.9GEACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
NORMAS PENAS EM BRANCO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
PRINCÍPIO DA TIPICIDADE
PENAS APLICÁVEIS ÀS PESSOAS COLECTIVAS
Data do Acordão: 02/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CINFÃES)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 90.º-B, N.º 5, E 152.º-B, DO CP
Sumário: I – Num sentido amplo, norma em branco é toda a norma penal que recorre a outras normas para parcialmente descrever os pressupostos da punição, incluindo o reenvio, para esse efeito, para outras normas penais.

II - Num sentido restrito, a norma penal em branco (norma primária e sancionadora) remete parte da sua concretização para outra norma (norma complementar ou integradora) com fonte normativa inferior.

III – A problemática das normas penais em branco nesta última acepção coloca a questão de saber se a remissão de normas penais para leis, regulamentos ou até actos administrativos autonomamente promulgados, colocam em causa o princípio da legalidade.

IV – Tal questão envolve fundamentalmente duas vertentes; a primeira, reportada à exigência de reserva de lei na definição dos crimes, seus pressupostos e respectivas penas (princípio da legalidade), e a segunda consistente em saber se há uma suficiente garantia de certeza e segurança quanto aos factos que constituem o tipo legal de crime (princípio da tipicidade).

V – Em relação à primeira vertente, desde que a norma remetente conste de lei formal (no caso dos autos, o artigo 152.º-B do CP), não existe qualquer violação do princípio da legalidade.

VI – Quanto à segunda, importa que a descrição da matéria proibida e todos os outros requisitos seja levada a um ponto em que sejam determináveis os comportamentos proibidos e sancionados.

VII – A operação tendente à fixação do montante diário da pena de multa aplicável a pessoas colectivas – cfr. artigo 90.º-B, n.º 5, do CP – reveste alguma dificuldade, atenta a falta de clareza dos critérios legais, causando ainda alguma perplexidade as injustificadas dissonâncias dentro do nosso ordenamento jurídico, que devem, de alguma forma, ser consideradas.  

Decisão Texto Integral:





Acórdão da 5ª Secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I -  Relatório
1.1 CJ e A., Lda., vieram interpor recurso da sentença proferida pelo Juízo de Competência Genérica de Cinfães do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu  que os condenou pela prática, em autoria material, de um crime de violação de regras de segurança agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelo artigo 152.º-B, n.º 1 e 4, alínea a) do Código Penal,  quanto ao primeiro, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e, quanto à segunda, na pena de 480 (quatrocentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 450,00€ (quatrocentos e cinquenta euros), que perfaz um total de 216.000,00€ (duzentos e dezasseis mil euros).

      

       1.2. Os recorrentes apresentaram as seguintes conclusões:

1. O presente recurso interposto do douto acórdão proferido no âmbito do processo à margem referenciado em 16 de novembro de 2020 que condenou os arguidos ora recorrentes, sindica quer matéria de direito, quer matéria de facto incluindo apreciação / reapreciação de prova gravada.

 2. O douto Acórdão recorrido infringe manifestamente os Princípios da Livre Apreciação da Prova comtemplado no artigo 127º do C.P.P. mas igualmente o Princípio do "in dúbio pro reo” previsto nos artigos 277º e 285° do C.P.P. e artº 32, nº 2 da C.R.P. e o princípio da culpa previsto no n.º 2 do artigo 40º do C.P.

3. Foi o arguido CJ, pela prática, em autoria material, de um crime de violação de regras de segurança agravado pelo resultado morte, p. e p. pelo art. 152.º-B, n.º 1 e 4, al. a) do Código Penal na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período. A sociedade arguida A. Lda., pela prática, em autoria material, de um crime de violação de regras de segurança agravado pelo resultado morte, p. e p. pelo art. 152.º-B, n.º 1 e 4, al. a) do Código Penal, na pena de 480 (quatrocentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 450,00€ (quatrocentos e cinquenta euros), que perfaz um total de 216.000,00€ (duzentos e dezasseis mil euros).

4. Entendem os Recorrentes que a prova produzida e apreciada pelo Tribunal a quo não foi corretamente valorada considerando factos como provados somente através das regras da experiência não valorando, no nosso entendimento, a prova produzida, nomeadamente, o depoimento das testemunhas.

5. Em concreto, entendeu o tribunal a quo que ficou demonstrado que o corpo de JA teria sido encontrado fora do habitáculo, alguns metros mais a cima do local onde o camião se imobilizou, estando este com a porta aberta, não se tendo conseguido verificar se a vítima saiu por sua vontade ou se foi projetado para fora da viatura, bem como não se comprovou se o arguido sofreu o traumatismo crânio-encefálico no interior da cabine ou no seu exterior, ignorando por completo os factos trazidos pelas testemunhas que em tudo mostram ser relevantes para afastar tal entendimento.

6. Quanto ao facto de a vítima ter saído por sua vontade, o Tribunal a quo não considerou os depoimentos prestados pelas testemunhas MP, HP e AD.

7. O tribunal a quo não valorou os depoimentos das testemunhas que reconheceram o facto de a cabine do Dumper não ter sofrido danos e que o trabalhador JA, com a aflição do momento, abandonou a cabine. Neste sentido, face ao estado da cabine, com a utilização do cinto de segurança a que estava obrigado, sempre se dirá que a lesão que conduziu à sua morte apenas ocorreu por força da sua atuação e não pelo acidente propriamente dito.

8. Quanto à prevenção do risco inerente aos trabalhos efetuados pelo Dumper, nomeadamente o depósito de inertes na escombreira, ficou demonstrado em audiência de discussão e julgamento que a sua deposição seria feita em duas fases, isto é, o Dumper, com a báscula, depositava os inertes, a cerca de 3 metros do limiar da ravina, vindo posteriormente a pá carregadora, já de frente, empurrar os detritos pela borda da escombreira. Ou seja, era dada a indicação do primeiro depósito, formando um talude, sendo os posteriores depósitos efetuados na sua lateral até preencher o linear da escombreira, sendo nessa altura, com o auxílio da pá carregadora, de frente, empurravam os detritos pela borda da escombreira.

9. Posto isto, apesar de reconhecer experiência do falecido JA na execução dos trabalhos propostos e da sua formação, ordenou que nos primeiros dois dias de trabalho fosse acompanhado pelos trabalhadores MP e AB, para que estes explicassem todo o processo de depósito dos inertes na escombreira.

10. Posto isto, dúvidas não podem existir que o falecido JA bem sabia das funções a exercer na pedreira e o método de depósito dos inertes na escombreira, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo.

11. O tribunal a quo, na sua motivação referente aos trabalhos supra expostos, refere o seguinte: “Ora, do que os autos permitem alcançar, ainda que se admita que pudesse, por vezes, acontecer a deposição bifásica, certo é que não existe prova bastante de que constituía uma regra a descrita prática (ou sequer para suscitar uma dúvida no julgador), o que aliás decorre da sua omissão no plano de segurança e saúde no trabalho, não tendo sequer sido a actividade de deposição de inertes na escombreira comunicada à testemunha TF.”

12. Uma vez mais, o tribunal a quo fez tábua rasa dos depoimentos prestados pelas testemunhas.

13. Todas as testemunhas que trabalham para a arguida A. Lda., referiram nos seus depoimentos que o depósito dos inertes é efetuado em duas fases, inicialmente o Dumper, com a báscula, depositava os inertes, a cerca de 3 metros do limiar da ravina, vindo posteriormente a pá carregadora, já de frente, empurrar os detritos pela borda da escombreira.

14. Como se não bastasse, a testemunha OP, como supra transcrito, confrontado com as fotos por ele tiradas no local do acidente a folhas 68 dos autos, reconheceu a existência de marcas de dois rodados diferentes.

15. Rodados estes que foram identificados pelos trabalhadores, sem margem de dúvida, pertencerem ao Dumper e à pá carregadora.

16. Nesta esteira, dúvidas não podem existir que para a realização do depósito dos inertes na escombreira, nos termos supra referenciados, são utilizados o dumper e a pá carregadora, inclusive no dia do acidente.

  17. O que não se compreende, uma vez mais, quais os fundamentos do tribunal a quo para chegar às seguintes conclusões:

“Ademais, é para o Tribunal difícil de compreender por que motivo, a fls 9. e 68, são mais visíveis, os rodados da pá carregadora no local onde, mais recentemente e com maior frequência, operara o dumper, que se mostra mais pesado, em virtude de transportar carga em pedra, tendo havido no dia do acidente, um dia de chuva (conforme consta do auto de notícia), apto a diminuir as marcas da pá carregadora, que não havia operado naquele local, pelo menos, nesse dia (como referiu a testemunha AB). (…) – não sendo de afastar a possibilidade de ter sido levada, em momento posterior ao acidente, a pá carregadora a tal local, com vista a simular a sua actuação como regra de segurança da empresa.” (sublinhado nosso).

18. Perante tais motivações, não se compreendo o fundamento do tribunal a quo para afastar o facto das marcas dos rodados da pá carregadora presentes no terreno resultarem do trabalho efetuado, mas sim “a possibilidade de ter sido levada, em momento posterior ao acidente, a pá carregadora a tal local, com vista a simular a sua actuação como regra de segurança da empresa.” quando a foto a folhas 9 do processo, faz parte integrante do auto elaborado – no dia do acidente – pela GNR. O que, no entender da defesa, afasta a possibilidade invocada.

19. Posto isto, dúvidas não podem existir que a pá carregadora efetuou o trabalho de arrastar as pilhas dos inertes pela escombreira a baixo.

20. No que concerne ao incumprimento da norma estipulada para a descarga dos inertes da escombreira pelo trabalhador JA, o tribunal a quo entendeu “(…) que se realmente existisse uma obrigação de dividir em duas fases a tarefa de deposição de inertes, esta testemunha não atribuiria o acidente a um descuido da vítima, mas sim a um desrespeito das indicações da entidade empregadora.”

 21. Nesta esteira, o tribunal a quo entendeu que o facto de as testemunhas não encontrarem explicação para o acidente, significa que não existia uma obrigação de dividir em duas fases, caso contrário diriam que não tinha respeitado as indicações da entidade empregadora.

22. O que, com o devido respeito, não se concorda.

23. As testemunhas MP, HP e AD, nos seus depoimentos referem que não encontram explicação para o acidente e que apenas pode ter sido um descuido do JA. E bem se compreende, se todos têm conhecimento que para efetuar a manobra são necessárias duas fases e em função das mesmas a probabilidade de acontecer um acidente é praticamente inexistente, se o acidente existiu é porque teve de ocorrer um descuido do JA. O facto de ser em duas fases não impede que o acidente possa acontecer, baste que o trabalhador não cumpra das indicações dadas pela entidade empregadora. Nesse sentido a testemunha MP ter referido que ao ver o pó na ribanceira, o JA tenha ido com o Dumper pela ribanceira a baixo, visto que não é suposto ver pó na ribanceira, uma vez que a descarga é feita na praça da escombreira e só quando esta estivesse cheia, arrastavam com a pá carregadora. Se o JA estava com o Dumper na escombreira e viu o pó na ribanceira – que não poderia ser da descarga uma vez que tem conhecimento que esta não é feita diretamente – deduziu que só poderia ter acontecido alguma coisa de errado com o Dumper.

24. Uma vez mais, contrariamente à motivação do tribunal a quo, as testemunhas referiram nos seus depoimentos que não encontram explicação para o acidente, uma vez que com o método que utilizam para a descarga dos inertes é impossível que o acidente tivesse acontecido.  

25. Quanto à utilização da pá carregadora, como referido pelas testemunhas, presta auxílio a vários trabalhos na pedreira. Assim que seja necessária a sua utilização, um manobrador está autorizado a utilizar a mesma. No caso do Dumper, quando necessita de arrastar os inertes pela escombreira abaixo, utiliza a pá carregadora, que por regra, encontra-se a 50m da escombreira.

26. No dia do acidente desconhece-se se o JA utilizou a pá carregadora para a tarefa de arrastar os inertes pela ribanceira abaixo. As testemunhas JM e AD referem que existe essa possibilidade, uma vez que a praça da escombreira não tinha inertes e nesse dia AD encontrava-se a efetuar um trabalho de soldadura no “barracão”. Ao que tudo indica que tenha sido o JA a proceder à limpeza.

27. O tribunal a quo, na sua motivação refere ainda que “Não se conseguiu, mesmo apesar de esforço nesse sentido, encontrar uma motivação que levasse JA a não observar a suposta prescrição de segurança da entidade empregadora e consequentemente a aumentar o perigo para a sua saúde além do que necessitava e do que lhe era recomendado pela entidade empregadora, não se divisando qualquer interesse que o levasse a incumprir as regras de segurança no local de trabalho.”

28. Aqui chegados, face à prova produzida, não se encontra qualquer fundamento que sustente o facto do JA ter incumprido as normas de segurança impostas pela entidade empregadora. No entanto o facto de a praça não ter as pilhas de inertes na escombreira e face às marcas visíveis dos rodados do dumper e da pá carregadora, tudo indica que o JA utilizou a pá carregadora e empurrou em demasia os inertes pela escombreira a baixo, não tendo respeitado o talude que as testemunhas referiram existir com os inertes na berma da ribanceira. No entanto não podemos descurar o facto de o JA estar a trabalhar há poucos dias na empresa e porventura, por sua   iniciativa, experimentar fazer a descarga direta e assim reduzir o seu trabalho e demonstrar mais eficiência.

29. Por último, o tribunal a quo nas suas motivações refere o seguinte “Não se pode deixar de associar tal estranheza à fotografia constante de fls. 67, na qual se verifica que o cinto de segurança se encontra colocado, o que se revela improvável, atento o juízo seguro de que JA saíra do habitáculo durante a queda e a clara dificuldade que o cinto de segurança constituiria para a sua saída ou para a sua projecção para o exterior do habitáculo, donde se percebe a impossibilidade de JA ter o cinto colocado no momento em que abandonou o habitáculo, não se entendendo dessarte por que razão estava o mesmo colocado na fotografia.”

30. A referida fotografia, parte integrante do relatório do ACT, foi remetida pelo Pedro (administrativo da arguida A. Lda.) ao inspetor do ACT, certamente, com o intuito de demonstrar que o Dumper estava equipado com o cinto de segurança e em perfeitas condições de uso. Da prova produzida e face ao facto do JA ter sido encontrado fora do Dumper, tudo indica que o mesmo não estaria a fazer uso do mesmo. Acresce ainda, a testemunha HP, ao ser confrontada com a referida fotografia, não reconhece, sem reservas, que o cinto de segurança está colocado, uma vez que não é visível o encaixe. Aliás, caso o JA estivesse a utilizar o cinto de segurança, impedindo-o de sair da cabine do Dumper, provavelmente, não teria ocorrido os danos que levaram à sua morte.

31. Assim, há uma insuficiência de prova para a matéria de facto dada como provada.

32. Pelo que atendendo aos princípios informadores do processo penal, em especial a presunção de inocência e do seu corolário in dubio pro reo, os referidos factos, que infra melhor se descreverão, carecem de ser dados como não provados. O que se requer.

 33. Não pode o Tribunal concluir com clareza que foi a falta de sinalização ou de cumprimento de outras regras de segurança que originou o acidente, e consequentemente o perigo concreto de que depende o tipo legal.

34. Como é sabido, o princípio da livre apreciação da prova, nomeadamente, da prova testemunhal, não significa uma apreciação imotivável e inverificável – e, portanto, arbitrária – da prova produzida.

35. A liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever, o dever de perseguir a verdade material, de tal modo que a apreciação há de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e, logo, suscetível de motivação e de controlo, pelo que a “livre” ou a “íntima” convicção do juiz nunca poderá ser uma convicção puramente subjetiva, emocional, ou seja, arbitrária e discricionária.

36. O princípio da presunção da inocência dispõe que todo o Arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado de sentença de condenação. Tal princípio rege a valoração da prova pela autoridade judiciária, isto é, o processo de formação da convicção sobre os meios de prova, mas também consequências importantes em outras decisões tomadas no processo e fora dele.

37. Ora, do princípio supra referido decorre ainda o princípio do in dubio pro reo, estabelecendo regras para a valoração da prova. Finda a valoração da prova, a dúvida insanável sobre os factos deve favorecer o Arguido. Este princípio determina uma regra de decisão na falta de convicção para além da dúvida razoável sobre os factos.

38. Mas o Tribunal a quo resolveu todas estas dúvidas, “contra reo” e não “pro reo”, como era a exigível.

39. Posto isto, devem os seguintes factos serem considerados como não provados:

 40. Como consequência direta e necessária de tal queda, JA embateu com a cabeça, em local não concretamente apurado, o que determinou um traumatismo crânio-encefálico e a sua morte.

41. O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., pelo menos no momento anterior ao da queda referida no ponto 5., não sinalizou a zona de circulação de veículos para transporte de inertes, designadamente não delimitou tal zona com um talude por forma a orientar os manobradores de máquinas de cargas e descargas a conduzirem por uma zona segura.

42. O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., pelo menos em momento anterior ao da queda referida no ponto 5., não identificou o risco de queda em altura dos trabalhadores que executavam manobras de carga e descarga de inertes para a escombreira no plano de segurança e saúde no trabalho, nem na avaliação de riscos de agosto de 2018;

43. O arguido CS, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., agiu livre, voluntaria e conscientemente, conformando-se com a falta de sinalização da zona de circulação de veículos de transporte de inertes, na referida pedreira, necessárias à segurança dos seus trabalhadores, apesar de saber que sem tal sinalização, os trabalhadores corriam risco de sofrer acidente que atingisse a sua saúde física e até a sua vida, como lesou.

44. O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., agiu livre, voluntaria e conscientemente, conformando-se com a não afetação um dos seus trabalhadores à função de auxílio e verificação das manobras efetuadas pelos manobradores de máquinas de cargas e descargas de inertes a realizar na pedreira que explorava, bem sabendo que não o fazendo podia causar lesões na saúde física até na vida dos seus trabalhadores, como lesou.

45. O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., sabia que impedia sobre si um dever especial de garante, legalmente plasmado, para com o seu trabalhador que agia na execução dos trabalhos sob a direção e no interesse da arguida A, LDA.

46. O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., bem sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei criminal, não se abstendo, porém de atuar conforme se descreveu.

RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO

Da Norma penal em branco e inconstitucionalidade:

47. Para que se verifique o tipo legal objetivo expresso no artigo 152.º-B é necessário que se tenha verificado uma violação das disposições legais ou regulamentares e essa desatenção originar um perigo para a vida ou para a integridade física do trabalhador.

48. A norma penal do artigo 152º-B do Código Penal constitui uma norma penal em branco, porquanto a sua previsão legal não determina quais as concretas ações ou omissões cujo incumprimento poderá determinar a cominação legal (os elementos objetivos):

“não observando disposições legais ou regulamentares.”

49. Ora, a mencionada norma não é clara, precisa e determinável, não permitindo, em consequência, a previsão e a segurança dos destinatários do seu comando.

50. Trata-se de uma norma que prevê crime de perigo concreto com mera referência à violação de outras regras ou normas não previstas no catálogo penal.

 51. Conforme informa Rui Patrício, in "Apontamentos sobre um crime de perigo comum e concreto complexo": "constituem normas penais em branco com a típico cisão entre a norma de comportamento( ...) "com origem, em regra, em outras leis e até em outros e até em outros ordenamentos que não o penal" ou "com o definição da área de protecção ("Shutzbereich") feita por norma diferente da norma que contém a ameaço penal, com determinação dos pressupostos de facto da aplicação do norma feita por outra instância normativo".

52. ln casu, trata-se de norma penal (na teoria restritiva) que "remete para disposição de nível inferior.”

53. E, de forma resumida, "contém uma descrição incompleta do facto típico".

54. Deveria o Tribunal a quo compatibilizar as normas penais em branco com o princípio da tipicidade, corolário do princípio da legalidade que exige que a lei penal seja certa, no sentido de clara, precisa e determinável, permitindo assim a previsão e a segurança dos destinatários do seu comando.

55. "Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarada passivei de pena por lei anterior ao momento da sua prática".

56. Neste sentido, veja-se Germano Marques da Silva, em Direito Penal Português – Parte Geral, Vol. I, págs. 23().231, que considera que: "quando a norma que completa a norma penal em branco não se limita a integrá-la, mas define ela mesma o comportamento típico, estamos perante a ofensa do princípio da legalidade".

57. Perguntamo-nos, poderá um Decreto-Regulamentar ser fonte de elemento objetivo de norma penal?

58. Poderá um relatório de uma entidade como a ACT ser fonte de elemento objetivo de norma penal?

59. "As normas penais em branco não levantam unicamente problemas na que respeita à questão da reserva da competência legislativa da Assembleia da República, pois ainda na campo da mesma garantia do principio da legalidade criminal dirigido ao legislador e ao intérprete, cumpre referir a dificuldade de, muitas vezes, ou sempre, compatibilizar os normas penais em branco com o princípio da tipicidade seu corolário (apar com os outros dois principais, da reserva de lei e da proibição da retroactividade daquele princípio da legalidade que exige que a lei penal seja certa, no sentido de clara, precisa e determinável, permitindo assim o previsão e a segurança das destinatárias da seu comando.” Germano Marques da Silva, em Direito Penal Português -Parte Geral, Vai.1, págs. 230-231, considera que, quando a norma que completa a norma penal em branco não se limita a integrá-la, define ela mesma o comportamento típico estamos perante a ofensa do princípio da legalidade. Também alertando para a perigo das normas em branco, nesta perspetiva, Eduardo Correia, "Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social", pág. 262.

60. Deve o Tribunal a quo respeitar o princípio da reserva de lei e da proibição de retroatividade, porquanto a definição de crimes e respetivos pressupostos é matéria da reserva relativa de competência da Assembleia da República, conforme artigo 165.º, número 1, alínea c) da Constituição da República Portuguesa.

61. Sobre esta matéria, reportamo-nos ao estudo do Exmo. Sr. Dr. Procurador Adjunto José Albuquerque "A infração às regras de segurança no Trabalho", disponível em www.pgdl.pt. quando afirma, na página 18: "Quanto às "regras técnicas que, no caso, segundo as normas geralmente respeitadas ou reconhecidas, devem ser observados não existe nenhum critério seguro para as definir e considerar que tais regras técnicas correspondem "as condições técnicas gerais a observar " e que tais condições respeitam "à solidez e perfeição da construção, à boa qualidade dos materiais, que devem ser

adequados à satisfação das condições exigidas pelos fins a que se destinam, obedecendo a sua aplicação a prévia fiscalização, na hipótese de não existirem especificações oficiais sobre as respetivas características tem tanto de genérico quanto de imprestável para o conteúdo normativo.”

62. Neste campo, por mais que se tente ser razoável não há solução para a vaguidade da expressão, nem justificação para o recurso à opinião dos peritos, nem muito menos a juízos de generalidade.” Nesta sede deve prevalecer, sob pena de se criminalizarem condutas sem o crivo legislativo da Assembleia da República, o princípio da tipicidade: “nullum crimen, nulla poeno sine legem-praevia, scripta et certa”

63. Os Arguidos Recorrentes alegam, para todos os devidos efeitos, que a norma – ora aplicada - do 152º- B, padece de manifesta inconstitucionalidade, por indeterminação e ou incompletude, violação do princípio da legalidade, reserva de lei e retroatividade e do principio da segurança jurídica, previsto nos artigos 1.º do Código Penal, artigo 21.º, 29.º e 165.R da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados no sentido de permitir a integração com disposição de nível inferior, nomeadamente com Decreto- lei, Decreto-Regulamentar, Portaria e com normas técnicas privadas, não oficiais, ou com recurso a conceitos indeterminados e princípios gerais, pelo que o Acórdão proferido padece de manifesta nulidade, por violação dos acima mencionados preceitos constitucionais e legais e deve ser revogado, o que desde já se alega e requer para todos os devidos efeitos.

Da inaplicabilidade e cumprimento das normas regulamentares e técnicas;

64. Segundo o douto acórdão a regras regulamentares violadas encontram-se previstas no art. 15.º do regime jurídico da segurança e saúde no trabalho, a observância do disposto  no art. 6.º, n.º 2 e 6, e 8.º, n.º 2 e 3, da Portaria n.º 198/96 de 4 de Junho, de sinalizar a área do limiar da escombreira, para que o trabalhador tivesse ao seu dispor indicação da distância que deveria manter da borda do precipício de cerca de trinta metros de altura, através de qualquer dos meios constantes da Portaria n.º 1456-A/95 de 11 de Dezembro, desde que em condições de igualdade de eficiência.

65. A indeterminabilidade decorrente do crime Imputado aos Arguido Recorrentes é de tal forma manifesta que a norma penal é integrada com recursos a múltiplos regimes conjugados entre si.

66. Ora, a norma penal em branco é integrada com recurso às seguintes normas infra penais: - artigo 15º da lei 102/2009, de 10 de setembro; art. 6.º, n.º 2 e 6, e 8.º, n.º 2 e 3, da Portaria n.º 198/96 de 4 de Junho; e a portaria (toda) 1456-A/95 de 11 de dezembro.

67. Todas esta normas, melhor diplomas, tratam do regime geral da promoção da saúde e segurança no trabalho, não prescrevem qualquer comando concreto, limitando-se a remeter para o dever de cumprimento de normas de segurança e saúde no trabalho.

68. Dificilmente se compreende de que forma estas normas, melhor diplomas, preenchem o elemento objetivo em falta na norma penal em branco.

69. O artigo 15º da referida lei 102/2009, de 10 de setembro, tem 15 números, o seu n.º2 do referido em doze alíneas. Qual destas normas se aplicou o Tribunal?

70. Não se sabe. Aliás o tribunal condena apenas pelo crime de violação de regras de segurança agravado pelo resultado morte, p. e p. pelo art. 152.º-B, n.º 1 e 4, al. a) do Código Penal.

  71. Sem referir, concretamente, quais as normas regulamentares que conformam o facto típico.

72. Pois não existem.

73. Não há nada que imponha a vedação, sinalização ou auxílio neste concreto tipo de trabalho.

74. Aliás, até pela prova produzida em julgamento, no âmbito dos trabalhadores, HP e AD, que exercem a mesma função, demonstra-se exatamente o contrário.

75. Manifestamente estamos no domínio de um princípio e não de um concreto comando, claro, preciso e certo.

76. Não vemos de que forma, tal regime jurídico, seja capaz de integrar o elemento objectivo da norma penal em branco.

Do conceito de acidente e de imprevisibilidade e da teoria da conformação

77. Resulta do acórdão, no que concerne ao nexo de adequação e ao dolo eventual, essencialmente o seguinte:

O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., agiu livre, voluntaria e conscientemente, conformando-se com a falta de sinalização da zona de circulação de veículos de transporte de inertes, na referida pedreira, necessárias à segurança dos seus trabalhadores, apesar de saber que sem tal sinalização, os trabalhadores corriam risco de sofrer acidente que atingisse a sua saúde física e até a sua vida, como lesou.

 O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., agiu livre, voluntaria e conscientemente, conformando-se com a não afetação um dos seus trabalhadores à função de auxílio e verificação das manobras efetuadas pelos manobradores de máquinas de cargas e descargas de inertes a realizar na pedreira que explorava, bem sabendo que não o fazendo podia causar lesões na saúde física até na vida dos seus trabalhadores, como lesou.

O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., bem sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei criminal, não se abstendo, porém, de atuar conforme se descreveu.

78. Importa desde já salientar que não se compreende esta última conclusão do Tribunal.

79. Pois se os arguidos estão acusados da omissão de um dever de garante não se consegue perceber como o agende não se abstendo, de atuar!

80. Por outro lado, a conformação, que determina a existência do dolo eventual, o Tribunal atesta-a, mas sem a fundamentar.

81. No caso “sub judice” o Tribunal é totalmente omisso quanto aos factos de onde conclui a atuação dolosa do recorrente, resultando antes da prova produzida, que jamais a recorrente teve intenção de produzir o resultado (morte do funcionário) ou sequer assumiu o risco de produzi-lo, pelo que a decisão recorrida é assim NULA por manifesta omissão de pronúncia quanto ao preenchimento do tipo subjetivo de ilícito no que respeita à recorrente ( cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.11 1/2015 in DR, 1 série de 27-01-2015).

82. Ou seja, a decisão judicial tem de descrever (os elementos do dolo (ou negligência), nomeadamente: conhecimento de todas as circunstâncias do facto, intenção de realizar o facto (dolo direto) ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo como consequência necessária (dolo necessário; e ainda, a conformação do agente com a realização do evento (no dolo eventual).

83. Pois bem, o acórdão em análise manifestamente não contém a descrição de elementos subjetivos do tipo.

84. O acórdão não imputa aos arguidos qualquer facto do qual permita concluir que estes tivessem intenção ou que representasse o facto como consequência possível ou como consequência eventual da sua alegada conduta.

85. Trata-se de juízos meramente conclusivos sem suporte factual.

86. Pelo que também nesta parte se verifica a Nulidade da sentença, o que se arguiu com as devidas e legais consequências.

87. Acresce ainda, por mera cautela de patrocínio, expor que por força do in dubio pro reo, não havendo factualidade que permita ao tribunal, com inequívoca certeza, determinar que existiu a conformação dos arguidos com a criação do perigo, deveria o Tribunal decidir a favor daqueles determinando como tipo subjetivo a negligência consciente.

88. Aliás o Tribunal refere: Neste sentido cumpre concluir que os arguidos sabiam a situação de perigo em que o seu trabalhador laborava e não se coibiram de permitir que tal situação se mantivesse, ainda que não exista prova que permita determinar que os arguidos agiram com o propósito de omitir as citadas prevenções, mas apenas que se conformaram com a sua omissão, sendo conhecedores do perigo que criavam.

89. E dizemos nós, nem foi produzida qualquer prova, de que os arguidos se tenham conformado.

 90. Quais são as provas que aduzem a conformação?

91. O Tribunal não refere.

92. Não existem!

93. Não há referência a um único meio de prova que permitisse ao tribunal chegar a esta conclusão.

94. Não se trata sequer do exercício da livre apreciação da prova pelo Tribunal, mas antes uma conclusão a que se chega sem referências ou critérios, e assim totalmente arbitrária e ilegal.

Importando a Nulidade da decisão condenatória.

95. Ou por cautela de patrocínio, pelo menos a reavaliação da determinação da medida concreta da pena, conforme melhor explanaremos de seguida.

Do excesso de pena

96. Decidiu o tribunal condenar os arguidos com as seguintes penas:

A. Condenar a arguida A, Lda., pela prática, em autoria material, de um crime de violação de regras de segurança agravado pelo resultado morte, p. e p. pelo art. 152.º-B, n.º 1 e 4, al. a) do Código Penal, na pena de 480 (quatrocentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 450,00€ (quatrocentos e cinquenta euros), que perfaz um total de 216.000,00€ (duzentos e dezasseis mil euros);

B. Condenar o arguido CJ pela prática, em autoria material, de um crime de violação de regras de segurança agravado pelo resultado morte, p. e p. pelo art. 152.º-B, n.º 1 e 4, al. a) do Código Penal na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período;

97. Como é comumente conhecido, e constitucionalmente determinado, a medida concreta da pena é limitada e tem como fundamento a culpa do agente. Tal como impõe o artigo 40º n.º 2 do Código Penal.

98. Se atentarmos ao douto acórdão de que ora se recorre, a única referência que é utilizada no que concerne à culpa do arguido pessoa singular a seguinte:

“Foi manifesta a indiferença dos arguidos pela responsabilidade inerente ao seu dever de garante, pelo que se lhe impunha que observasse regras de segurança relativamente a tal área da pedreira, em face da relevância dos bens jurídicos que poderia pôr em perigo, sendo certo que quanto mais intenso o cuidado exigido face à importância dos bens jurídicos, mais grave é o seu incumprimento. (cf. Américo Taipa de Carvalho,  DIREITO PENAL PARTE GERAL, p. 529). Acresce que a altura da escombreira é, relativamente a outros segmentos do processo produtivo, consabidamente mais

perigosa e apta a produzir o resultado que acabou por se materializar, pelo que os arguidos não poderiam ignorar que, ao sujeitarem o trabalhador à realização de trabalhos sem sinalização, ademais não tendo identificado tal risco no plano de segurança e saúde no trabalho, colocavam em perigo o corpo, a saúde e a vida de trabalhador ao seu serviço, devendo e podendo ter agido de modo diverso.”

99. Mais uma vez, o primeiro parágrafo de nada esclarece quanto à culpa dos arguidos, trata-se de um fundamento meramente teórico, inclusive com citação doutrinal.

100. E o segundo paragrafo, refere-se o Tribunal que a pedreira é um processo produtivo mais perigoso e apta á produção do resultado morte e que os arguidos não o podiam ignorar.

101. Mas onde está medido o grau de culpa?

102. Sem prejuízo do que já se aduziu no que concerne à inexistência de dolo eventual, mas antes negligência consciente, o juízo de culpa não foi devidamente determinado.

103. Não há uma única referência ao sentido positivo da inexistência dos antecedentes criminais no computo da pena.

104. Apenas a título de UM TÓPICO sem a sua atenção da determinação da medida concreta da pena.

105. Não há uma única referência ao conteúdo do relatório social do arguido pessoa singular, que denota a sua inserção social.

106. Do qual consta a sua total inserção social e o sentimento de pesar que o arguido tem face à morte de uma pessoa.

107. Onde se refere:

O presente processo, primeiro confronto com o sistema de administração de justiça penal, é valorizado por CJ, verbalizando desconforto face à sua constituição de arguido, bem como pesar pelo envolvimento na morte de funcionário.

No seu meio de inserção beneficia de uma imagem social positivamente referenciada, onde mantém interação social ajustada.

108. Elementos que o Tribunal descurou na determinação da medida concreta da pena.

109. Por outro lado,

110. Excessividade que se denota, crassamente, no montante global da multa a que foi a sociedade arguida condenada.

 111. De novo a título meramente de TÓPICO refere o tribunal que atendeu:

- às condições financeiras da sociedade arguida, bem como o valor que despende em salários de trabalhadores.

112. E como num passe de mágica, conclui, sem outra argumentação ou meio de prova com a condenação numa pena de 480 dias de multa, à taxa diária de 450,00€, que perfaz um total de 216.000,00€ (duzentos e dezasseis mil euros).

113. Não há qualquer outra referência á razão pela qual fixou 480 dias, nem a razão pela qual estabeleceu o montante diário de 450€.

114. Montante exageradíssimo do ponto de vista abstrato e sem suporte factual no caso concreto.

115. Pelo que também aqui é NULA a decisão condenatória que se argui para os devidos e legais efeitos.

116. Ora, a determinação da medida da pena tem como critérios a culpa do agente e as exigências de prevenção, sendo a função desempenhada por cada um desses critérios definida de acordo com a chamada teoria da moldura de prevenção ou da defesa do ordenamento jurídico.

117. Deste modo, a prevenção geral de integração está incumbida de fornecer o limite mínimo, que tem como fim superior a proteção dos bens jurídicos e o ponto inferior do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar.

118. Por seu turno, a culpa, entendida no sentido material e referida personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva.

 119. Assim, importa ter em conta, dentro dos limites abstratos definidos na lei, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra os arguidos, na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para exigências preventivas.

120. Como se dizia, ao aplicar a pena concreta supra, o Tribunal a quo não só ultrapassou a medida da culpa, como também é a mesma excessiva por se revelar desproporcional.

121. Até porque nem sequer a mensurou com fundamentação e suporte probatório.

122. Se a prevenção geral constitui o limite mínimo da pena determinada pelo critério da prevenção especial, se este limite mínimo da pena, imposto pelo fim ou necessidade da prevenção geral coincide com o limite mínimo da moldura penal estabelecida pelo legislador para o respetivo crime em geral, e se nunca o limite mínimo da pena pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados e a

correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima.

123. Data vénia e Mui respeitosamente, no entanto, entendemos que aplicação da moldura penal a aplicar aos arguidos sempre deverá ser objeto de redução, por força da adequada valoração de todas as circunstâncias supra e bem assim a que lhes é favorável.

1.3. O Ministério Público junto ao tribunal a quo respondeu ao recurso, concluindo nos seguintes termos:

 (…) 3. No que respeita à discordância quanto à forma como o Tribunal a quo apreciou a prova produzida, os Recorrentes entendem terem sido incorretamente julgados os factos descritos nos pontos 6., 8., 10., 11., 12., 13. e 14. da matéria dada como provada.

4. No entanto, o Mm.º Juiz a quo formou a sua convicção numa análise conjunta da prova produzida em audiência de julgamento, tendo ainda em conta as regras da experiência, expondo o seu raciocínio lógico, fundamentando-o e, por isso, respeitando o princípio fundamental da prova em processo penal, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, segundo o qual a prova, salvo diferente disposição da lei, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador. Senão vejamos.

5. Quanto ao facto dado como provado no ponto 6., alegam os aqui Recorrentes que, resulta dos depoimentos das testemunhas inquiridas que a cabine do dumper encontrava-se intacta e que a vítima mortal, JA, não utilizava cinto de segurança e, como tal, “sempre se dirá que a lesão que conduziu à sua morte apenas ocorreu por força da sua atuação e não pelo acidente propriamente dito”.

6. No entanto, face aos elementos probatórios produzidos em audiência de julgamento, bem como aos demais elementos juntos aos presentes autos, não se pode concordar com esta alegação dos aqui Recorrentes, uma vez que o Tribunal a quo teve em consideração a possibilidade de JA ter saltado da cabine, no momento em que ocorria a queda, no entanto, concluiu, e bem, que a reação da vítima, ocorrida naquelas circunstâncias e naquele preciso momento, em que caía de uma atura de cerca de trinta metros, é indiferente, neste conspecto, já que as consequências finais, nomeadamente, o traumatismo crânioencefálico, sempre ocorreriam de forma quase inelutável.

7. Quantos aos factos dados como provados nos pontos 8., 10., 11., 12., 13. e 14., os Recorrentes alegam, em primeiro lugar, que o Tribunal a quo desconsiderou o facto de a pá carregadora ter efectuado o trabalho de arrastar as pilhas dos inertes pela escombreira a baixo, procedimento que, segundo os Recorrentes, ficou dado como provado que era seguido na pedreira, por determinação da

entidade empregadora, a arguida A, Lda.

8. No entanto, há a dizer que não só o Tribunal a quo, não só não desconsiderou tal procedimento invocado pelas testemunhas, trabalhadores da empresa arguida, como o analisou e concluiu “Ora, do que os autos permitem alcançar, ainda que se admita que pudesse, por vezes, acontecer a deposição bifásica, certo é que não existe prova bastante de que constituía uma regra a descrita prática (ou sequer para suscitar uma dúvida no julgador), o que aliás decorre da sua omissão no plano de segurança e saúde no trabalho, não tendo sequer sido a actividade de deposição de inertes na escombreira comunicada à testemunha TF.

9. Depois, referem os Recorrentes que o Tribunal a quo usou como fundamento dos factos dados como provados, a conclusão de que se as testemunhas não encontraram explicação para o acidente, significa que não existia uma obrigação de dividir em duas fases, caso contrário diriam que não tinha respeitado as indicações da entidade empregadora.

10. Todavia, tal ilação também não pode ser retirada da fundamentação exposta na sentença em crise, a qual, a este respeito, estabelece coisa diferente, já que, após proceder, mais uma vez a uma análise lógica e fundamentada, concluiu que se as testemunhas, trabalhadores na pedreira, acreditassem que JA  estaria a cumprir o procedimento bifásico que afirmaram em momento anterior ser o único seguido naquela actividade, não poderia existir um descuido por parte do condutor do dumper, já que este nunca alcançaria tal proximidade da ribanceira, ao ponto de cair, como caiu.

11. Quanto à existência de marcas de dois pneus diferentes no local onde JA se encontrava a trabalhar naquele fatídico dia, as quais surgem documentadas nas fotografias juntas aos autos, segundo os Recorrentes, tais marcas são prova de que o supra referido procedimento bifásico se encontrava a ser praticado.

12. No entanto, mais uma vez, tal entendimento não pode prevalecer, pois, tal como se encontra bem descortinado na sentença a quo, a existência de marcas das duas máquinas (pá carregadora e dumper) no local onde ocorreu a vítima JA laborava não implica necessariamente que o procedimento bifásicos se encontrava a ser cumprido, muito pelo contrário, já que as marcas dos pneus da pá carregadora encontram-se numa posição onde, segundo os depoimentos das testemunhas, trabalhadores da pedreira, jamais chegaria, pois tal máquina quedava-se sempre em local anterior, de modo a depositara os inertes na escombreira em segurança. Por outro tais marcas surgem mais visíveis do que as marcas do dumper, o qual é mais pesado e teria sido o último a laboral naquele local.

13. Neste sentido, sendo os elementos fornecidos pela imediação e a oralidade os determinantes para a avaliação da prova, mostrando-se a decisão tomada pelo Mm.º Juiz a quo fundada na sua livre convicção e sendo uma das soluções possíveis face às regras da experiência comum, tal decisão não deve ser alterada pelo tribunal de recurso, devendo manter-se a decisão quanto à matéria de facto nos exactos termos em que foi proferida pelo Tribunal a quo.

14. Por outro lado, o Mm.º Juiz a quo não se socorreu do princípio in dubio pro reo, porque simplesmente não teve quaisquer dúvidas da valoração da prova e ficou segura do juízo de censura feito aos arguidos, ora recorrentes, CJ e A, Lda.., pelo que, não se verifica qualquer violação do princípio in dubio pro reo, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

15. Advogam também os aqui Recorrentes que: “a norma – ora aplicada - do 152º- B, padece de manifesta inconstitucionalidade, por indeterminação e ou incompletude, violação do princípio da legalidade, reserva de lei e retroatividade e do principio da segurança jurídica, previsto nos artigos 1.º do Código Penal, artigo 21.º, 29.º e 165.º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados no sentido de permitir a integração com disposição de nível inferior”.

16. A referida questão sobre a constitucionalidade da norma que tipifica o crime de violação de regras de segurança foi já alvo decisão, em dois acórdãos do Tribunal Constitucional - Acórdãos n.ºs 102/2008 e 119/2008 (ambos disponíveis para consulta em www.tribunalconstitucional.pt), sendo que, em síntese e contrariamente à tese defendida pelos aqui Recorrentes, tal Tribunal não julgou inconstitucional, por violação do princípio da legalidade criminal, a norma que tipifica o crime de violação de regras de segurança (à data prevista no artigo 277.º do Código Penal), na parte em que faz remissão para normas legais, regulamentares ou técnicas.

17. De facto, um dos elementos objetivos do tipo legal de crime de violação de regras de segurança é inobservância disposições legais ou regulamentares, sendo que tais disposições podem ter por fonte a lei, o regulamento ou o uso profissional.

18. E bem se compreende, pois a ratio deste tipo legal de crime é a de conferir protecção penal a normas de direito laboral.

 19. Pelo que, a norma em apreço, fazendo apelo à referida remissão, não padece de qualquer indeterminação ou incompletude, respeitando o princípio constitucional da legalidade penal.

20. Por outro lado, os aqui Recorrentes alegam ainda que “O tribunal condena apenas pelo crime de violação de regras de segurança agravado pelo resultado morte, p. e p. pelo art. 152.º-B, n.º 1 e 4, al. a) do Código Penal (…) Sem referir, concretamente, quais as normas regulamentares que conformam o facto típico”, acrescentando ainda que não o fez, porque não podia, já que “Não há nada que imponha a vedação, sinalização ou auxílio neste concreto tipo de trabalho”.

21. Ora, também neste ponto não assiste razão aos arguidos CJ e A, Lda., ora recorrentes, já que, sob a epígrafe “Fundamentação de direito/ a. Enquadramento jurídico-criminal dos factos”, na sentença ora em crise são analisadas, além do mais, todas as disposições legais e regulamentares cuja observância se impunha aos aqui Recorrentes, sendo levado a cabo um raciocínio dialético do caso para tais normas e das normas para o caso, nomeadamente ao longo das páginas 18 a 24, as quais nos dispensamos de transcrever e para as quais remetemos na íntegra.

22. Quanto à alegada falta de descrição do elemento subjectivo, alegam, primeiramente, os aqui Recorrentes, em síntese, que: “se os arguidos estão acusados da omissão de um dever de garante não se consegue perceber como o agende não se abstendo, de atuar”, questionando a formulação do ponto 14. dos factos dados como provados, a saber “O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., bem sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei criminal, não se abstendo, porém de actuar conforme se descreveu”.

23. No entanto, sem outras considerações linguísticas e etimológicas que se poderiam tecer a respeito, não se compreende a incompreensão surgida no espirito dos aqui Recorrentes, sendo que uma “actuação” tanto pode ser verificada por acção como por omissão.

 24. Em segundo lugar, invocam os aqui Recorrentes que: “No caso "sub judice" o Tribunal é totalmente omisso quanto aos factos de onde conclui a atuação dolosa do recorrente, resultando antes da prova produzida, que jamais a recorrente teve intenção de produzir o resultado (morte do funcionário) ou sequer assumiu o risco de produzi-lo, pelo que a decisão recorrida é assim NULA por manifesta omissão de pronúncia quanto ao preenchimento do tipo subjetivo de ilícito no que respeita à recorrente (cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.11 1/2015 in DR, 1série de 27-01-2015)”.

25. Ora, de tudo quanto se encontra exposto na sentença proferida pelo Tribunal a quo, resulta fundamentada o juízo de consubstanciação do elemento subjectivo do tipo legal de crime em causa, nomeadamente quanto à com formação por parte do arguido CJ, por si e enquanto legal representante da arguida A, Lda., na medida em que, tendo sido dado como provado que os mesmos não cumpriram com o dever de garante ao qual se encontravam adstritos, nomeadamente através da implantação de meios que garantissem que o seu trabalhador JA executasse a sua função profissional em segurança, logo se conformaram com a possibilidade de o mesmo poder sofrer uma queda de mais de trinta metros de altura, o que, conforme se retira do normal acontecer das coisas, resulta, na grande maioria das vezes na morte do sinistrado.

26. Alegam ainda os aqui Recorrentes que, na determinação da medida concreta da pena não foi devidamente determinado o juízo de culpa, nem foram tidos em linha de conta os seguintes parâmetros: inexistência de antecedentes criminais; inserção social do arguido CJ; sentimento de pesar que o arguido tem face à morte de uma pessoa, sendo que estes duas ultimas circunstâncias, segundo os Recorrentes, encontram-se plasmados no relatório social elaborado pela DGRSP e junto aos presentes autos.

27. Em primeiro lugar, dizer que, no referido relatório social, não se encontra plasmado qualquer sentimento de pesar experienciado pelo arguido CJ perante a morte de JA, mas sim que o mesmo verbalizou “desconforto face à sua constituição de arguido, bem como pesar pelo envolvimento na morte de funcionário”, ou seja, o que o arguido CJ deixou transparecer aos técnicos da DGRSP foi o seu desconforto perante o seu envolvimento no presente Processo Crime.

28. Em segundo lugar dizer que, o arguido CJ optou por não prestar declarações, em sede de audiência de julgamento, e, se é certo que o sue silêncio não podia desfavorecer, como não desfavoreceu, também é certo que esse silêncio não o podia beneficiar, isto é, não podia o Mm.º Juiz a quo retirar qualquer ilação sobre o sofrimento ou desconforto que tal arguido sentiu em relação à morte de um dos seus trabalhadores.

29. No entanto, apesar do que alegam os Recorrentes a inexistência de antecedentes criminais, bem como a inserção social, familiar e económica do arguido CJ foi tida em linha de conta na determinação da medida da pena concreta aplicada, tanto mais que tais circunstâncias se encontram dadas como provadas nos pontos 15. a 19..

30. Verifica-se que o juízo de culpa referente ao arguido CJ, por si e enquanto representante Legal da arguida A, Lda. Encontrasse não só formulado, como fundamentado, bem como que as invocadas circunstâncias foram tidas em linha de conta pelo Mm.º Juiz a quo e tanto assim é que, especificamente quanto ao arguido CJ, foi ponderada e decidida a suspensão da execução da pena de prisão que lhe fora aplicada.

31. Invocam ainda os Recorrentes que: “Excessividade que se denota, crassamente, no montante global da multa a que foi a sociedade arguida condenada, dizendo a este respeito que “De novo a título meramente de tópico refere o tribunal que atendeu:

às condições financeiras da sociedade arguida, bem como o valor que despende em salários de trabalhadores (…) E como num passe de mágica, conclui, sem outra argumentação ou meio de prova com a condenação numa pena de 480 dias de multa, à taxa diária de 450,00€, que perfaz um total de 216.000,00€ (duzentos e dezasseis mil euros) (…) Montante exageradíssimo do ponto de vista abstrato e sem suporte factual no caso e concreto”.

 32. A este respeito e, em primeiro lugar, dizer que não resulta clara qual a intenção dos Recorrentes, isto é, se pretendem recorrer quanto aos dias de multa aplicados à empresa arguida ou se pretendem recorrer quanto ao quantitativo diário determinado pelo Mm.º Juiz a quo.

33. No entanto e atendendo à referência ao excessivo, no entender dos Recorrentes, valor determinado, sempre se dirá que o Mm.º Juiz a quo, conforme resulta dos factos dados como provados nos pontos 20 a 23, analisou os resultados líquidos apresentados pela empresa arguida, nos anos de 2018 e 2019, os quais resultam informação empresarial simplificada de fls. 485 e seguintes e, munido de tal informação/fundamento, decidiu.

34. Por outro lado, concorda-se, na íntegra, com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, considerando-se necessárias, adequadas e proporcionais as penas aplicadas aos arguidos CJ e A, Lda..

 

          

       1.4. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público junto ao Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso dos recorrentes, aderindo à argumentação deduzida pelo Ministério Público junto ao tribunal a quo.

 

       II - Fundamentação de Facto

       Transcrição parcial da decisão sob recurso:

1. A arguida A, Lda. desenvolveu a atividade de fabricação de artigos de granito e rochas, construção de edifícios (residenciais e não residenciais), preparação de locais de construção e de extração de granito ornamental e rochas similares, desde 18 de Fevereiro de 2017 e pelo menos até ao dia 26 de Dezembro de 2018, com sede na Rua de (…), n.º (…), em (…), (…), na área desta Comarca de Viseu, tendo como sócio e gerente o arguido CJ.

2. A arguida A, LDA. desenvolveu a atividade de extração de granito ornamental e rochas similares na pedreira sita no lugar de (…), em (…), (…), na área desta Comarca de Viseu, desde data não concretamente apurada, mas sempre até ao dia 26 de Dezembro de 2018.

3. A 4 de Dezembro de 2018, a arguida A, Lda.. celebrou contrato de trabalho a termo incerto com JA, pelo qual este assumiu as funções de condutor/manobrador, desde essa data e pelo menos até ao dia 26 de Dezembro de 2018, sendo que tais funções foram desempenhadas na supra referida pedreira.

4. No dia 26 de Dezembro de 2018, pelas 13:30 horas, na pedreira identificada no ponto 2., JA executou serviços sob a direção e ordens emitidas pelo arguido CJ, em representação da arguida A, LDA., nomeadamente JA conduziu o veículo pesado da marca TEREX 23-66 (com dumper), com o número de identificação n.º (…), propriedade da dita empresa arguida, carregado com pedras, por forma a transportar tais pedras desde o local da sua extração até ao local do seu depósito (escombreira da pedreira).

5. Acontece que, no decurso da execução tal tarefa e de forma não concretamente apurada, o camião conduzido por JA caiu de uma altura de cerca de trinta metros, embatendo com a capota no solo e aí ficando imobilizado.

6. Como consequência directa e necessária de tal queda, JA embateu com a cabeça, em local não concretamente apurado, o que determinou um traumatismo crânio-encefálico e a sua morte;

7. JA registava, à hora da sua morte, a taxa de 0,52 gramas de álcool por litro de sangue, com uma margem de erro de 0,07 g/l;

8. O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., pelo menos no momento anterior ao da queda referida no ponto 5., não sinalizou a zona de circulação de veículos para transporte de inertes, designadamente não delimitou tal zona com um talude por forma a orientar os manobradores de máquinas de cargas e descargas a conduzirem por uma zona segura.

9. O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., pelo menos em momento anterior ao da queda referida no ponto 5., não afetou um dos seus trabalhadores à função de auxílio aos trabalhadores manobradores das máquinas de carga e descarga de inertes, nomeadamente à função de verificação da distância segura, previamente sinalizada, a manter da zona da borda do talude. 

10. O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., pelo menos em momento anterior ao da queda referida no ponto 5., não identificou o risco de queda em altura dos trabalhadores que executavam manobras de carga e descarga de inertes para a escombreira no plano de segurança e saúde no trabalho, nem na avaliação de riscos de Agosto de 2018;

11. O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., agiu livre, voluntaria e conscientemente, conformando-se com a falta de sinalização da zona de circulação de veículos de transporte de inertes, na referida pedreira, necessárias à segurança dos seus trabalhadores, apesar de saber que sem tal sinalização, os trabalhadores corriam risco de sofrer acidente que atingisse a sua saúde física e até a sua vida, como lesou.

12. O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., agiu livre, voluntaria e conscientemente, conformando-se com a não afectação um dos seus trabalhadores à função de auxílio e verificação das manobras efectuadas pelos manobradores de máquinas de cargas e descargas de inertes a realizar na pedreira que explorava, bem sabendo que não o fazendo podia causar lesões na saúde física até na vida dos seus trabalhadores, como lesou.

13. O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., sabia que impedia sobre si um dever especial de garante, legalmente plasmado, para com o seu trabalhador que agia na execução dos trabalhos sob a direcção e no interesse da arguida A, LDA.

14. O arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., bem sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei criminal, não se abstendo, porém de actuar conforme se descreveu.

15. Não se conhecem antecedentes criminais aos arguidos;

16. O arguido tem o 6.º ano de escolaridade;

17. O arguido aufere cerca de 1.800,00€ mensais;

18. O arguido tem uma filha de 15 anos de idade, entregando 250,00€ a título de pensão de alimentos;

19. O arguido reside numa habitação arrendada com a sua companheira, suportando cerca de 475,00€ mensais com as despesas mensais do agregado familiar;

20. No ano de 2018, a arguida declarou um resultado líquido de 608.452,45€, após gastos com pessoal no valor de 1.209.638,96€;

21. No ano de 2018, a arguida registou a importância de 1.043.633,27€ em activo corrente e não corrente, apresentando o saldo bancário de 532.351,38€, bem como o passivo total de 433.597,94€;

22. No ano de 2019, a arguida declarou um resultado líquido de 143.386,36€, após gastos com pessoal no valor de 1.155.683,83€;

23. No ano de 2019, a arguida registou a importância de 1.525.665,63€ em activo corrente e não corrente, apresentando o saldo bancário 968.353,27€, bem como o passivo total de 772.243,94€.


(…)

       III – Fundamentação de Direito

       Apreciando e decidindo

       a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995.

      

       b) As principais questões a apreciar nestes autos, atento o teor das conclusões prendem-se em saber:

       i) Se devem ser mantidos os factos considerados provados, discordando os recorrentes da forma como o tribunal a quo apreciou a prova;

       ii) Se ocorreu a violação do princípio in dubio pro reo;

       iii)  Se o crime em que foram condenados os recorrentes constitui uma norma penal em branco, suscitando-se ainda a inconstitucionalidade da mesma por existir referência às normas concretamente violadas;

       iv)  Se ocorre a falta de descrição do elemento subjectivo;

       v) Se a medida das penas concretamente aplicadas é excessiva.     

c) Começando pela primeira questão, relaciona-se com a impugnação da matéria de facto.

(…).

n) Já em sede de recurso da matéria de direito, nas conclusões 47º e ss., os recorrentes  vêm invocar que  que a norma  que permitiu a sua condenação pela prática do crime  - o art 152º- B, do Cód. Penal – é inconstitucional,  por ser norma indeterminada, incompleta,  violando o princípio da legalidade, da reserva de lei e retroatividade e do principio da segurança jurídica, previstos nos artigos 1.º do Código Penal, artigo 21.º, 29.º e 165 da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados no sentido de permitir a integração com disposição de nível inferior (v.g. Decreto-lei, ou Portaria), o que inquinaria a decisão condenatória em causa de nulidade.

Apreciando, recorde-se que, num sentido amplo, norma em branco é toda a norma penal que recorre a outras normas para parcialmente descrever os pressupostos da punição, incluindo o reenvio, para esse efeito, para outras normas penais. Num sentido mais restrito – que é o que agora nos interessa - a norma penal em branco (norma primária e sancionadora), remete parte da sua concretização para outra norma (norma complementar ou integradora) com fonte normativa inferior - cfr. Teresa Beleza e Frederico Costa Pinto, O regime legal do erro e as normas penais em branco, Coimbra, 1999, págs. 31 e 32.

A questão das normas penais em branco nesta última acepção, tem sido objecto de estudo da nossa doutrina e jurisprudência, colocando-se a questão de se saber se a remissão de normas penais para leis, regulamentos ou até actos administrativos autonomamente promulgados, colocam em causa o princípio da legalidade.

A questão coloca-se essencialmente em duas vertentes;  a primeira, refere-se à exigência de reserva de lei na definição dos crimes, seus pressupostos e respectivas penas (princípio da legalidade), e a segunda saber se há uma suficiente garantia de certeza e segurança quanto aos factos que constituem o tipo legal de crime (princípio da tipicidade).

p) Relativamente à primeira questão, desde que, evidentemente, a norma remetente conste de lei formal (no caso o art 152º -B do Cód. Penal), não existe qualquer violação do princípio da legalidade – cfr. Figueiredo Dias Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, p. 172. É essa mesma a conclusão que de forma unânime todos os arestos do Tribunal Constitucional que se debruçaram sobre o assunto concluíram – cfr., entre ainda outros,  Ac. n.º 102/2008, de 19-2-2008, n.º 115/2008, de 20-2-2008, 427/95 de 6-7-1995 e 534/98 de 7-8-1998, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.

Relativamente à segunda questão, importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos, seja levada a um ponto em que sejam determináveis os comportamentos proibidos e sancionados; Tudo residirá assim na clareza ou determinabilidade da norma para a qual reenvia a lei penal remetente, uma vez que a disposição legal ou regulamentar integra o tipo legal de crime em questão; se o agente que não observa a mencionada disposição legal ou regulamentar vem, com a sua conduta, a preencher o assinalado tipo legal de crime.

q) A decisão recorrida, procede a um levantamento exaustivo das normas de segurança aplicáveis e que deveriam ter sido observadas pelos arguidos: desde logo, enquanto aplicáveis a todas as entidades patronais, o art. 281.º, n.º 2, 3 e 7, e 284º do Código de Trabalho, os arts 10º, 11º, 15º n.º 2, 3 e 5  do regime jurídico da segurança e saúde no trabalho (Lei n.º 102/2009, de 10-IX), das quais resultam a necessidade de adoção de medidas  gerais de prevenção e segurança,  incluindo mais especificamente a obrigação de  identificar e evitar os riscos,  selecionar equipamentos com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos,  integração da avaliação dos riscos para a segurança e a saúde do trabalhador, combate aos riscos na origem, substituição do que é perigoso pelo que é isento de perigo ou menos perigoso,  organização dos serviços adequados de prevenção , implementação de equipamento de proteção etc., etc.

         r) Mais especificamente, e no que tange às indústrias extractivas por perfuração a céu aberto, as normas a considerar constam do Dec.-Lei n.º 324/95 de 29-XI, citando-se  o art. 4.º do citado diploma, com a epígrafe «Obrigações do empregador», nas quais se incluem a necessidade de adoção de medidas necessárias a preservar a segurança e a saúde dos trabalhadores,  realçando-se ainda o n.º 3 do mesmo artigo que determina a adoção pelo empregador das prescrições mínimas constantes das portarias referidas no artigo 10.º. A Portaria n.º 198/96 de 4 de Junho, destacando a decisão recorrida o seu art. 6.º, n.º 2,  que determina:  «2 - As vias de circulação que se destinem ao trânsito simultâneo de pessoas e veículos, ao trânsito de pessoas ou de veículos, incluindo escadas fixas e móveis, cais e rampas de carga, devem ser calculadas, implantadas, construídas e tornadas transitáveis, para permitir a circulação fácil e segura de acordo com os fins a que se destinam, e evitar riscos para os trabalhadores que se encontrem nas proximidades”, ou  o n.º 6  do mesmo  que determina que “Nos locais de trabalho acessíveis a veículos rodoviários ou a máquinas devem ser adoptadas regras de circulação através de sinalização de segurança.» ou ainda o art. 8.º da mesma Portaria, o qual sob a epígrafe «Zonas de perigo», que estatui que «1 - As vias de circulação que conduzam a zonas de perigo devem estar bem assinaladas e equipadas com dispositivos que impeçam a entrada de trabalhadores não autorizados”, no n.º 2 que “Devem ser tomadas medidas apropriadas para proteger os trabalhadores autorizados a entrar em zonas de perigo” e no n.º 3 “ As zonas de perigo devem estar adequadamente sinalizadas».

Adicionalmente, faz-se ainda referência ao art. 29.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 50/2005 de 25 de Fevereiro, relativo às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho, determina que os equipamentos de trabalho de elevação de cargas ou transporte de trabalhadores devem permitir evitar os riscos de queda do habitáculo, por meio de dispositivos adequados, e ao  art. 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 141/95, de 14 de Junho, relativo às prescrições mínimas para a sinalização de segurança e de saúde no trabalho, estatui que o empregador deve garantir a existência de sinalização de segurança  e o art. 2.º, n.º 1, da Portaria n.º 1456-A/95 de 11 de Dezembro, relativa às prescrições mínimas para a sinalização de segurança e de saúde no trabalho, que deixa ao empregador a opção, garantido que esteja o mesmo grau de eficiência, de utilizar: a) Sinais luminosos, acústicos e comunicação verbal; b)  Sinais gestuais e comunicação verbal; c) Cor de segurança e placa, quando se trate de assinalar riscos de tropeçamento ou quedas de altura, sendo a sinalização concreta definida no quadro I anexo a tal diploma.

s) Da conjugação entre este extenso conjunto de normas, considera a decisão sob recurso que a não adopção de nenhuma medida - como a falta de sinalização da zona de circulação de veículos para transporte de inertes, a não delimitação da zona com um talude, e a não afectação de um trabalhador à tarefa de auxílio aos trabalhadores manobradores das máquinas de carga e descarga de inertes - implica a violação das referidas normas de segurança, que se destinam precisamente a  evitar o perigo de acidentes como o que está em causa nestes autos; face a este quadro legal, e ao comportamento gritantemente omissivo na adopção de medidas de segurança, os recorrentes não explicam porque razão as normas complementares ou integradoras padecem de alguma falta de clareza ou indefinição colocando assim em causa o princípio da legalidade penal, até porque sendo  recomendadas várias medidas de segurança os recorrentes não previram nem adoptaram nenhuma!…; do conjunto normativo citado pela decisão recorrida,  relativo à segurança no trabalho, com especial incidência nas normas aplicáveis às indústrias extractivas por perfuração a céu aberto, resulta que a operação de despejo de inertes levada a cabo pela recorrente (operação que não pode deixar de ser avaliada como de alto risco), não era acompanhada das mais básicas medidas de segurança legalmente impostas, violando com esse comportamento absolutamente omissivo, os arguidos aquelas normas.

 

t) Nas conclusões 77 e ss., e sob a epígrafe “Do conceito de acidente e de imprevisibilidade e da teoria da conformação”, manifestam os recorrentes discordância relativamente à sentença proferida em 1ª instância, desde logo por não compreenderem a mesma decisão na parte em que se deu como provado que “o  arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida A, LDA., bem sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei criminal, não se abstendo, porém de atuar conforme se descreveu”,  uma vez que  se os arguidos foram acusados da prática do crime por omissão.

Neste campo, independentemente de os recorrentes aparentemente não retirarem qualquer efeito jurídico desta posição, parece-nos relativamente claro que  quando a sentença se refere à “actuação” do representante da arguida, se refere à globalidade dos factos descritos na mesma decisão, comportando um sentido geral; a palavra “actuação” neste contexto, refere-se ao comportamento do arguido no seu todo, quer esse comportamento tenha ocorrido por omissão (por exemplo, não implementando as medidas de segurança – facto provado n.º 8), quer por acção (por exemplo promovendo o desempenho da actividade de descarga dos inertes, nas condições descritas – facto provado n.º 4).   

              

u) De seguida (conclusões 80ª e ss.), os recorrentes consideram que o tribunal a quo determinou a existência do dolo eventual, mas sem o fundamentar, considerando que ocorre uma omissão quanto aos factos de onde conclui a atuação dolosa do recorrente, resultando antes da prova produzida, que jamais a recorrente teve intenção de produzir o resultado (morte do funcionário) ou sequer assumiu o risco de produzi-lo, pelo que a decisão recorrida é assim nula por manifesta omissão de pronúncia quanto ao preenchimento do tipo subjetivo de ilícito no que respeita à recorrente, citando em seu socorro o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.11 1/2015 in DR, 1 série de 27-01-2015). E um pouco mais à frente, que a decisão não descreveu o conhecimento de todas as circunstâncias do facto, intenção de realizar o facto (dolo direto) ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo como consequência necessária (dolo necessário; e ainda, a conformação do agente com a realização do evento (no dolo eventual).

Aparentemente, os recorrentes pretendem aqui atacar a decisão recorrida no que concerne aos elementos subjetivos do tipo, em 2 vertentes: a falta de descrição dos elementos subjetivos, e a falta de fundamentação da sentença relativamente às razões pelas quais considerou os factos relacionados com os mesmos elementos subjectivos como provados.

v) Quanto à descrição do dolo, a mesma consta dos factos provados 11. a 14,   onde se escreveu que o arguido pessoa singular arguido CJ, por si e enquanto sócio gerente da arguida pessoa colectiva,  agiu livre, voluntaria e conscientemente, conformando-se com as omissões descritas nos factos n.º 8 a 10 (procedimentos de segurança), apesar de saber que sem o desenvolvimentos dessas acções os trabalhadores corriam risco de sofrer acidente que atingisse a sua saúde física e até a sua vida, como lesou, tendo ainda conhecimento que impedia sobre si um dever especial de garante, para com o seu trabalhador sinistrado, e ainda sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei criminal, não se abstendo, porém de actuar (no sentido amplo acima assinalado) conforme se descreveu.

Nos termos do art 14º n.º 3 do Cód. Penal, quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da sua conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.

No caso, resulta daqueles factos que o arguido previu a possibilidade (elemento cognitivo ou intelectual) de a não adopção dos procedimentos de segurança que se impunham, atento o desenvolvimento de uma actividade que sabia como sendo de alto risco, poder provocar o resultado típico ( a colocação do trabalhador em perigo), mas ainda assim, de forma livre e consciente (logo, em resultado de uma capacidade de auto-determinação), não levou a cabo aquelas acções, assim se conformando com a referida possibilidade de se verificar o resultado (elemento volitivo), resultado esse – repete-se – que era a criação de uma situação de um perigo para a saúde e mesmo para a vida do seu trabalhador, (como efectivamente veio a suceder), tendo ainda consciência do seu dever de garante relativamente à segurança do seu subordinado, e da punibilidade da sua conduta.

Concluímos assim que a decisão recorrida fez constar dos factos provados todos os elementos integradores do dolo, na modalidade de dolo eventual.

x) No que concerne à invocada a falta de prova da intenção de produzir o resultado morte, e à falta de fundamentação da sentença relativamente às razões pelas quais considerou os factos relacionados com os mesmos elementos subjectivos como não provados, vejamos o que se escreveu na sentença:

            (…) “decorre do relatório social que o arguido CJ tem uma forte experiência na área em questão, exercendo a dita actividade há cerca de 30 anos, 10 dos quais a gerir sociedades na área da construção e de exploração de pedreiras.

No que tange ao conhecimento da situação de perigo decorrente da descarga de inertes na escombreira, em particular, desde logo do cotejo entre os planos de segurança e saúde no trabalho, pode efectivamente verificar-se que a queda em altura, e em particular do dumper, é um dos riscos mais prementes na pedreira, ainda que não estivesse contemplado no plano de segurança e saúde em vigor ou na avaliação de riscos à data dos factos (cf. fls. 134, 233, 250 e 251), sendo efectivamente classificado, no plano de segurança e saúde no trabalho de Setembro de 2019, como trabalho com riscos especiais (fls. 315) (…) Destarte, sempre saberia o arguido que, ao não estabelecer qualquer sinalização, montar um talude na borda ou colocar qualquer pessoa ao auxílio do dumper, este poderia  aproximar-se perigosamente do limiar e assim sofrer uma queda em altura, o que aconteceu, por não existir uma zona limite para o avanço do dumper na deposição de inertes, sendo apenas aquilo que se vislumbra é um horizonte alargado para o efeito, tornando-se ostensiva a falta de segurança que tal local apresenta, pelo que à luz das regras de experiência comum, o arguido teria de saber que estava em causa uma actividade de risco.

O arguido teve, como qualquer indivíduo no seu lugar teria, a noção de que a deposição de inertes na borda da escombreira, ademais sendo feito pela retaguarda do dumper, constitui uma situação de risco que obriga quem dirige tal actividade a garantir que o trabalhador não se aproxima excessivamente do limiar, sob pena de poder provocar danos graves para a integridade física de outrem ou até para a vida, o que mostrava previsível.

Em concreto, é basilar a compreensão de que é necessário conservar uma distância adequada do limiar e que uma queda em altura, qualquer que ele seja, pode redundar em consequências graves para a integridade física ou vida do trabalhador, pela altura da escombreira.

Neste sentido cumpre concluir que os arguidos sabiam a situação de perigo em que o seu trabalhador laborava e não se coibiram de permitir que tal situação se mantivesse, ainda que não exista prova que permita determinar que os arguidos agiram com o propósito de omitir as citadas prevenções, mas apenas que se conformaram com a sua omissão, sendo conhecedores do perigo que criavam”.

y) Facilmente se constata que não é de todo justa a crítica quanto à falta de fundamentação da sentença sob recurso no que se refere à prova dos elementos do tipo subjetivo. Como é manifesto, o dolo pertence à vida interna de cada um, sendo insusceptível de directa apreensão, eventualmente com a exceção de o arguido confessar os factos, admitindo que se decidiu por determinada acção ou omissão;  na falta de confissão (no caso, o arguido não prestou sequer declarações em julgamento), a decisão recorrida teve que recorrer aos factos que objectivamente se apuraram, considerando as regras de experiência comum: Como afirmou o Tribunal da Rel. do Porto no Ac. de 23.02.93, in BMJ, 324/620: “(…) dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência.” Como escreve Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal, vol. II, Ed Almedina, p. 292), “existem elementos do crime que (…) só são susceptíveis de prova indirecta, como são todos os elementos de estrutura psicológica (…) não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas.”  A decisão recorrida, considerando todo o circunstancialismo fáctico verificado, concluiu com recurso às regras de experiência, que qualquer pessoa colocada no lugar do arguido, não poderia deixar de avaliar a situação de extremo risco que constituía a realização do depósito de inertes nas condições em que ocorria, sem a adopção de quaisquer procedimentos de segurança; e essa convicção saí reforçada, quando se tomam em consideração as concretas qualidades do indivíduo em causa (o arguido tem experiência de dezenas de anos na área de exploração de pedreiras). Este raciocínio não merece qualquer censura; e quanto à prova do elemento subjetivo não resultaram dúvidas do conhecimento do perigo que a realização daquelas operações revestia sem adopção de quaisquer medidas de segurança; apenas ficou por apurar se houve o propósito deliberado no sentido de omitir as citadas prevenções, ou apenas uma aceitação dessa omissão, o que conduziu à verificação apenas do dolo eventual.

z) Por último, a afirmação dos recorrentes (conclusão 80ª) de que “jamais a recorrente teve intenção de produzir o resultado (morte do funcionário)”, carece de sentido; se ocorresse essa intenção, estaríamos perante um crime de homicídio doloso; mais uma vez se repete; o resultado típico é a colocação em perigo do trabalhador, e o que se provou foi que o arguido representou a possibilidade de esse perigo poder causar lesões para a saúde física, incluindo o resultado morte.  Como se escreve na decisão recorrida (…) a emergência de um resultado adicional, imputável ao comportamento típico, mas nele não incluído, pode conduzir a uma agravação da pena aplicável, quando dela resultar morte ou ofensa à integridade física grave do trabalhador, nos termos do art. 152.º-B, n.º 3 e 4, do Código Penal.  A previsão legal de uma agravação radica no especial risco associado à conduta típica, a qual comporta uma «aptidão confirmada» para produzir o resultado extra-típico, pelo perigo gerado pelo crime fundamental, enquanto probabilidade de lesão de bens jurídicos.

aa) São ainda de refutar as afirmações dos recorrentes arguidos (conclusões 87 e ss), onde defendem que por força do in dubio pro reo, o tribunal não poderia, com inequívoca certeza, determinar que existiu a conformação dos arguidos com a criação do perigo.

Se os arguidos estavam inconformados com a criação do perigo, em que facto ou circunstância se manifestou?  A partir do momento em que previram (como qualquer pessoa previria) que a descarga nas circunstâncias apuradas colocaria o operador da máquina em perigo, seria necessário que levassem a cabo alguma acção para ao menos minorar esse perigo, mas tal não sucedeu; repete-se mais uma vez, os arguidos não adoptaram nenhum procedimento de segurança, o que obviamente não equivale a uma manifestação de algum inconformismo, mas sim a uma aceitação da verificação do perigo.

bb) No último conjunto de conclusões (95.  e ss.) os recorrentes pedem uma reavaliação da determinação da medida concreta da pena, que consideram excessiva.

A decisão recorrida justificou da seguinte forma as penas concretamente fixadas:

(…) Para a operação de determinação da medida concreta da pena, a considerar conjuntamente para ambos os arguidos, será de ponderar em específico:

 - O grau de ilicitude, que é acentuado; - o dolo eventual dos arguidos; - a leviandade dos arguidos, ao não identificarem o risco em causa no plano de segurança e saúde no trabalho ou na avaliação de riscos; - a falta de antecedentes criminais; -  as condições financeiras da sociedade arguida, bem como o valor que despende em salários de trabalhadores.

No que tange à prevenção geral, impõe-se uma vigorosa reacção do ordenamento jurídico ao comportamento dos arguidos, tendo falecido cerca de 161 pessoas em 2018 e de 115 em 2019 em contexto de acidente de trabalho, a esmagadora maioria dos quais nas instalações da entidade empregadora (segundo dados da ACT).

Trata-se, com efeito, de um sector delitual que, pela frequência e perigosidade que lhe estão associadas, convoca especiais exigências de reforço da confiança da comunidade na vinculatividade e eficácia das normas, bem como de intimidação dos potenciais infractores que sujeitem trabalhadores a situações de perigo.  Finalmente, importa considerar a culpa do arguido – enquanto censura ético-jurídica dirigida ao agente por não ter agido de modo diverso –, que representa o pressuposto (nulla poena sine culpa) e o limite da pena (art. 40.º, n.º 2 do Código Penal), sendo a medida exacta e final definida em função da finalidade de prevenção especial de socialização e da necessidade de tutela de bens jurídicos (MARIA JOÃO ANTUNES, Penas e Medidas de Segurança, pp. 44-45). Neste sentido, a «culpabilidade assenta na autodeterminação do delinquente, livre no sentido de ter podido agir em conformidade com a norma, livre porque podia não ter tomado a seu cargo a falta» (A. LOURENÇO MARTINS, Medida da Pena - Finalidades e Escolha, p. 134), assim como na contrariedade perante o dever-ser jurídico-criminal, revelada no facto praticado.  Foi manifesta a indiferença dos arguidos pela responsabilidade inerente ao seu dever de garante, pelo que se lhe impunha que observasse regras de segurança relativamente a tal área da pedreira, em face da relevância dos bens jurídicos que poderia pôr em perigo, sendo certo que quanto mais intenso o cuidado exigido face à importância dos bens jurídicos, mais grave é o seu incumprimento. (cf. Américo Taipa de Carvalho, DIREITO PENAL PARTE GERAL, p. 529)

Acresce que a altura da escombreira é, relativamente a outros segmentos do processo produtivo, consabidamente mais perigosa e apta a produzir o resultado que acabou por se materializar, pelo que os arguidos não poderiam ignorar que, ao sujeitarem o trabalhador à realização de trabalhos sem sinalização, ademais não tendo identificado tal risco no plano de segurança e saúde no trabalho, colocavam em perigo o corpo, a saúde e a vida de trabalhador ao seu serviço, devendo e podendo ter agido de modo diverso.

Em suma, e ponderadas as exigências de prevenção geral que o ilícito em questão suscita, bem como o grau de culpa nos factos praticados, e atentas as graves consequências deles emergentes, bem como as condições financeiras da arguida, julga-se adequado e suficiente fixar as seguintes penas:

- Arguido CJ: 4 anos de prisão; - A, Lda.: 480 dias de multa, à taxa diária de 450,00€, que perfaz um total de 216.000,00€ (duzentos e dezasseis mil euros).

cc) Lida a fundamentação da sentença em causa, mais uma vez se constata que as críticas à sua falta de fundamentação por parte dos recorrentes surgem como despropositadas, uma vez que a mesma considera de forma adequada todos as circunstâncias que depõe a favor e contra os agentes, atento o art 71º do Cód. Penal.

Aliás, e no que se refere ao arguido - pessoa singular -, a crítica dos recorrentes surge de forma ainda mais desadequada. Se recordarmos que a moldura penal aplicável é de 3 a 10 anos (art 152º nº 1 e n.º 4 al. a) do Cód. Penal), fixar a pena de prisão em 4 anos (ou seja, muito perto do limite mínimo), não pode ser considerado – sob qualquer critério -  como excessiva, assim resultando que, não obstante as altíssimas razões de prevenção geral detectadas, as razões de prevenção especial são diminutas (precisamente levando em conta a ausência de antecedências criminais e a inserção social do arguido que no recurso diz não terem sido consideradas), reflectindo ainda a circunstância de apenas se ter apurado que o arguido agiu com dolo eventual.

             

dd) Relativamente à pena concreta aplicada à pessoa colectiva, o tribunal a quo optando pela pena de multa (excluindo a pena de dissolução, por não se verificar o circunstancialismo previsto no art 90-F do Cód. Penal), considerou a moldura penal abstracta de 360 a 1200 dias de multa (cfr. art. 90.º-B, n.º 1 e 2), concluindo pela fixação de uma pena de 480 dias de multa. Também aqui não merece censura a decisão recorrida; Se atentarmos na moldura abstracta acima referida, constatamos que existe um intervalo de 840 dias entre o limite mínimo (360) e o máximo (1200). Assim, fixar a pena de 480 dias (ou seja, 120 dias acima do limite mínimo, no intervalo assinalado de 860), é mais uma vez fixar uma pena perto do limite mínimo, aliás com correspondência na pena aplicada ao arguido pessoa singular, uma vez que em ambos os caos se fixou a pena sensivelmente no primeiro 1/7 da moldura em causa.      Já quanto ao montante diário, o n.º 5 do art 90º-B do Cód. Penal estatui que o mesmo varia entre € 100 e € 10 000, sendo fixado em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos com os trabalhadores.

ee) Os recorrentes, nas suas conclusões consideram esse montante “exageradíssimo do ponto de vista abstrato e sem suporte factual no caso concreto”.

Vejamos:

A Lei n.º 59/29007 de 4/9 introduziu no Cód. Penal o art 90º-B n.º 5, o qual estabelece o montante diário da pena de multa a aplicar das pessoas colectivas, corresponde a uma quantia entre os 100,00 euros e os 10.0000 euros, que será fixada em função da situação económica e financeira e dos encargos com os trabalhadores.

A interpretação desta norma oferece algumas dificuldades, mormente porque se é considerada a situação económica e financeira da pessoa colectiva, então parece surgir como algo redundante a referência aos encargos dos trabalhadores, uma vez que estes encargos necessariamente já estão reflectidos naquela situação económica e financeira; neste campo, a referência aos encargos com os trabalhadores parece ter sido decalcada da referência aos “encargos pessoais”, previstos para as pessoas singulares (art 47º n.º 2 Cód. Penal), mas ficando sem se perceber porque razão só os encargos com os trabalhadores são especialmente elegíveis para este efeito, e não quaisquer outros encargos. Terá o legislador pretendido em onerar de forma menos grave as pessoas colectivas que cumpram função social mais relevante (ao empregar um maior número de trabalhadores, ou ao despender montantes mais significativos com salários), em detrimento de outras que não o façam de forma tão impressiva?  É uma hipótese que a exposição de motivos da Proposta de Lei 98/X, que antecedeu a referida Lei n.º 59/29007 de 4/9 não esclarece; o certo é que a lei especificamente considera esse encargo específico como relevante para a determinação da taxa diária, o que terá que ser considerado.

Por outro lado, se não há dúvidas de que deverão ser considerados todos os rendimentos da pessoa colectiva, fica-se sem se saber ao certo se o património em si mesmo da empresa deve ser considerado; o mesmo é dizer que não resulta com clareza da lei se a situação o património da empresa (na terminologia contabilística, os “capitais próprios”), deve ter ou não reflexo no montante diário da pena de multa, podendo dar-se o caso de uma sociedade ter um vasto património mas apresentar prejuízos ao longo dos anos  (quanto às pessoas individuais, cfr. Maria João Antunes, penas e Medidas de Segurança, Almedina, p. 49).

É ainda pouco compreensível que no direito penal extravagante, como  por exemplo no  regime das  infracções antieconómicas e contra a saúde pública (art 7º n.º 4 do Dec.-Lei n.º 28/84), e no regime geral das infracções tributárias (art 15º da Lei n.º 15/2001), a taxa diária da multa não possa superar os 5.000 euros, ou seja metade do limite máximo previsto no citado n.º 5 do art 90-B do Cód. Penal, como que, inexplicavelmente, sugerindo que as pessoas colectivas que cometem crimes, por exemplo contra a saúde pública ou fiscais, têm menos capacidade económica do que as que cometem crime previstos no Cód. Penal. Mais, nas mesmas normas dos 2 regimes penais extravagantes acima citado, o montante diário mínimo é de 5,00 euros, em chocante contradição com o montante mínimo de 100,00 euros previsto no Cód. Penal, o que redunda em que facilmente se encontrem decisões jurisprudenciais que aplicam taxas diárias de 7,00 ou 8,00 euros a pessoas colectivas (cfr., a título de exemplo, o Ac. da Rel. de Lisboa de 28-1-2020, processo n.º 39/16.4 T9FNC.L1-5  (crime punido pelo Dec.-Lei n.º 28/84),  e Ac. da Rel. de Évora, de 24-2-2015, processo n.º 6/11.4IDFAR.E1 (crime fiscal).

Tudo isto para concluir que a operação tendente à fixação do montante diário da multa aplicável a pessoas colectivas é uma operação que reveste alguma dificuldade, atenta a falta de clareza dos critérios legais acima exposta, causando ainda alguma perplexidade as assinaladas injustificadas dissonâncias dentro do nosso ordenamento jurídico, que nos parece que devem ser consideradas de alguma forma.

ff) No caso, considerando o ano de 2019, constata-se que a arguida apresentou um resultado líquido de 143.386,36€, despendendo em encargos com o pessoal o montante de 1.155.683,83€, montante que assume muito relevo na actividade da empresa, atenta a sua dimensão; note-se neste campo, que consultado o IRC, a empresa “vale” 753,421,00 €, (capitais próprios).

A doutrina tem advertido que a taxa diária não dever ser “sufocante”, mas sim proporcional ao lucro líquido da empresa, sob pena de a pena de multa se converter numa pena dissimulada de confisco (Cavaleiro Ferreira e Nuno Brandão, citados por Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Cód. Penal, 3ª ed, Unv. Católica, nota 3 ao art 90º - B).

Assim sendo, tudo ponderado, considerando que estamos perante uma empresa média, com uma situação razoável, parece-nos que deve ser fixada uma taxa diária de 300,00 €, que nos parece reflectir de forma mais aproximada a situação económica e financeira da empresa (com realce para o resultado líquido acima assinalado, e os seus encargos com o pessoal).

Multiplicada a taxa diária de multa pelos 480 dias, conclui-se que a arguida pessoa colectiva será condenada numa pena de multa de 144.000,00 €.

O recurso é assim procedente nesta parte.

             
 
IV – Dispositivo
Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar parcialmente procedente o recurso interposto, e em consequência condenar a arguida A, Lda.,  pela prática de um crime de violação de regras de segurança agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelo artigo 152.º-B, n.º 1 e 4, alínea a) do Código Penal, na pena de 480 (quatrocentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 300,00€ (trezentos euros), que perfaz um total de 144.000,00€ (cento e quarenta e quatro mil euros).     

       Sem custas, atenta a procedência parcial do recurso.

Coimbra, 2 de Fevereiro de 2022

João Novais (relator)

     

Elisa Sales (adjunta)