Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
110/14.7TBSPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU, VISEU, JUÍZO DE COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: NA 2.ª PARTE DO N.º 3, DO ARTIGO 239.º, DO CIRE
Sumário: 1. A exoneração do passivo restante é recusada se, sem motivo razoável, o devedor incumprir as obrigações a que estava adstrito, como decorre do disposto na 2.ª parte do n.º 3, do artigo 239.º, do CIRE.
2. In casu, o devedor não foi notificado, para se pronunciar acerca da recusa antecipada da exoneração do passivo restante e exercer o direito ao contraditório por não cumprir a obrigação de informar da mudança de domicílio, sem, para isso, apresentar qualquer justificação.

3. O facto do devedor, sem qualquer justificação, não informar a mudança de domicílio e não fornecer informações comprovativas do cumprimento das suas obrigações e dos rendimentos auferidos, determina a recusa antecipada da exoneração do passivo restante, nos termos do n.º 3 do artigo 243.º.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A... , já identificado nos autos, requereu a sua declaração de insolvência que foi declarada por sentença de 6 de maio de 2014, já transitada em julgado, pedindo ainda a exoneração do passivo restante.

Em 3 de julho de 2014 foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, tendo sido excluído do rendimento a ceder a quantia mensal líquida de €420,00 (cf. decisão de fls. 138 a 141).

Em 21 de abril de 2015 foi encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente (fls. 151 a 152).

No relatório apresentado a fls.176 a 181, o Sr. Fiduciário informou que a notificação que remeteu ao devedor, com vista ao esclarecimento dos rendimentos por ele auferidos e respectiva situação profissional, não foi recebida, o que já havia sucedido em Maio de 2016. Acrescenta que, pelo facto de não ter sido comunicada qualquer mudança de morada, tanto ao fiduciário como a estes autos, e tendo o ilustre mandatário do devedor reiterado não ter já contacto com o mesmo, considera que o devedor incumpriu os deveres de colaboração e informação a que alude o artigo 239.º, n.º 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Requereu ainda a cessação antecipada da exoneração do passivo restante.

O Sr. Fiduciário remeteu ao devedor, para a morada fixada na sentença de declaração de insolvência, a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 178, a solicitar o envio dos recibos de vencimento respeitantes ao período compreendido entre Maio de 2016 (inclusive) até à data da carta, que foi devolvida com a indicação de “mudou-se”.

O devedor foi notificado, na pessoa do seu Ilustre Patrono, para exercer o contraditório sobre a requerida cessação antecipada do procedimento de exoneração e se pronunciar sobre a, eventual, violação do dever de informação nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas do artigo 83.º, n.º 1, alínea a), 3, 238.º, n.º 1, alínea g) e 243.º, n.º 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e nada disse.

O devedor, na sequência do despacho de fl.s 182 – 1.ª parte, datado de 26 de Junho de 2017, que ordenou a notificação do devedor para exercer o contraditório sobre a requerida cessação antecipada do procedimento de exoneração e se pronunciar sobre a, eventual violação do dever de informação nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas do artigo 83.º, n.º 1, al. a), 3, 238.º, n.º 1, al. g) e 243.º, n.º 3 do CIRE, foi ainda notificado na pessoa dos seus Ilustres Patronos para apresentar informação sobre a sua situação profissional e rendimentos auferidos, juntando para o efeito o último recibo emitido pela sua entidade patronal, com a advertência de que, por força do disposto na segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a exoneração é recusada nos casos em que o(a) devedor(a), sem motivo razoável, não fornece no prazo fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, e nada disse.

Mais uma vez o devedor não se pronunciou sobre a violação do dever de informação nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 83.º, n.º 1, alínea a), 3, 238.º, n.º 1, alínea g) e 243.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, tendo sido devolvida a carta que lhe foi, para tal, enviada, com a menção “mudou-se”, cf. fl.s 184.

Conclusos os autos ao M.mo Juiz a quo, para apreciação da requerida cessação antecipada da exoneração do passivo restante, foi proferida a decisão de fl.s 192 v.º a 193 v.º (aqui recorrida), que se passa a transcrever:

“(…)

Cumpre apreciar e decidir se estão verificados os requisitos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração, tendo em consideração os factos atrás expostos e ainda a falta de comunicação de mudança de domicílio.

O procedimento de exoneração do passivo restante cessa antecipadamente nas hipóteses previstas no artigo 243.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (diploma a que pertencem as demais normas sem indicação de origem).

As causas de cessação antecipada do procedimento por recusa de exoneração enunciadas nas alíneas do n.º 1, do artigo 243.º têm de comum o configurar-se como uma sanção imposta ao devedor por comportamentos indevidos por ele adotados antes ou na pendência do procedimento de exoneração, cessação essa que tem de ser pedida mediante requerimento apresentado por quem para tanto tem legitimidade, ou seja, qualquer credor, o administrador da insolvência, se estiver ainda em funções e o fiduciário, quando a assembleia de credores lhe tiver atribuído competência para fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor durante o período da cessão (Luís A. Carvalho Fernandes, Coletânea de Estudos sobre a Insolvência, pág. 288 a 289).

Resulta, no entanto, da segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º que a exoneração “é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe for fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações”. Nesta situação, também o juiz pode decretar oficiosamente a cessação antecipada do procedimento de exoneração (Cláudia Oliveira Martins, Revista de Direito da Insolvência, N.º 0, 2016. pág. 228 a 229).

Durante o período da cessão o devedor fica obrigado a, entre outras, informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e prazo que lhe for requisitado e informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego (alíneas a) e d), do n.º 4 do art.º 239.º).

Conforme resulta dos factos provados, o devedor, sem qualquer justificação, não remeteu ao fiduciário comprovativo da sua situação profissional e rendimentos auferidos, sendo que a carta enviada pelo Sr. Administrador da Insolvência, para o domicílio fixado nos autos, foi devolvida com a indicação de “mudou-se”, o mesmo sucedendo em relação à carta remetida pelo Tribunal, devolvida a fls. 184.

O que tudo leva a concluir que, sem qualquer justificação, não informou a mudança de domicílio e não forneceu informações comprovativas do cumprimento das suas obrigações e dos rendimentos auferidos, o que, nos termos do n.º 3 do artigo 243.º, determina a recusa antecipada da exoneração do passivo restante.

3.

Termos em que recuso antecipadamente a exoneração do passivo restante e, em consequência, declaro encerrado o respetivo incidente.

Notifique, publicite e registe nos termos previstos para o encerramento do processo de insolvência (art.º 247.º).

Não é devida tributação, atendendo ao facto de o processo de insolvência abranger o incidente da exoneração do passivo restante.

Custas a cargo do devedor nos termos do artigo 248.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”.

Já depois de proferida esta decisão, veio o requerente informar da sua nova morada, cf. fl.s 203 v.º, referindo ser em Leirados do Sul, São Pedro do Sul, 3660-618 Sul.

Inconformado com a mesma, interpôs recurso o insolvente A ... ,ecurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 222), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1 – O Tribunal “a quo” fez uma interpretação incorrecta do n.º 3 do artigo 243.º do CIRE.

2 – O apelante não foi devidamente notificado.

3 – O apelante não exerceu o direito ao contraditório.

4 – O apelante não prestou as informações requeridas por não ter sido notificado e, também, porque os seus patronos não conseguiram contactar o mesmo.

5 – A decisão do Tribunal “a quo” é demasiado gravosa para o apelante.

Termos em que, peticiona a procedência do recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida.

Contra-alegando, o MP, em 1.ª instância, pugna pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em que o recorrente incumpriu a sua obrigação de prestar as solicitadas informações e mudou de residência, sem disso informar o Tribunal, assim, incumprindo o disposto no artigo 239.º, n.º 4, al.s a) e d), do CIRE.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.         

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do NCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de apurar se o recorrente não foi devidamente notificado, para se pronunciar acerca da recusa antecipada da exoneração do passivo restante, em consequência do que não pode exercer o direito ao contraditório e, por isso, não se pode concluir que o mesmo não forneceu as informações que lhe foram solicitadas, sem motivo razoável.

A matéria de facto relevante é a que consta do relatório que antecede.

Se o recorrente não foi devidamente notificado, para se pronunciar acerca da recusa antecipada da exoneração do passivo restante, em consequência do que não pode exercer o direito ao contraditório e, por isso, não se pode concluir que o mesmo não forneceu as informações que lhe foram solicitadas, sem motivo razoável.

No que a esta questão concerne, em resumo, defende o recorrente que nunca foi devidamente notificado, porque a correspondência que lhe foi dirigida foi devolvida e nem os seus sucessivos patronos o conseguiram contactar, razão pela qual não pode exercer o direito ao contraditório ou, pelo menos, prestar as informações que lhe foram pedidas, o que acarreta, ainda, na sua perspectiva, a prolação de uma decisão “demasiado gravosa” para si.

Com todo o respeito, não tem o recorrente razão no que alega.

Conforme resulta de fl.s 55 v.º, na sentença que declarou a sua insolvência, foi-lhe fixada a residência que o mesmo indicou no requerimento inicial de insolvência, tal como o determina o artigo 36.º, n.º 1, al. c), do CIRE.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 2.ª Edição, Quid Juris, a pág. 265, com tal estatuição visa-se “estabelecer a localização do insolvente e administradores, retirando-lhe a possibilidade legal de mudar livremente de residência, de modo a assegurar que estejam sempre contactáveis para o cumprimento das obrigações para eles decorrentes da declaração de insolvência, nomeadamente no que respeita aos deveres de apresentação e colaboração.”.

Entre tais deveres contam-se os descritos no artigo 83, n.º 1, do CIRE, entre os quais se contam os de fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador de insolvência e prestar-lhe toda a colaboração que por este lhe seja requerida – cf. alíneas a) e c).

Especificamente sobre a questão da cessão do rendimento disponível, preceitua o artigo 239.º, n.º 4, al. a), do CIRE, que durante o período da cessão, o devedor fica obrigado a não ocultar ou dissimular os rendimentos que aufira, bem como a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património.

De igual forma, como resulta da sua alínea d), está obrigado a informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou condições de emprego, no prazo de 10 dias.

Como referem os autores, ob. cit., a pág. 906, a imposição destas obrigações acessórias tem como objectivo “a preocupação de assegurar a efectiva prossecução dos fins a que é dirigida”.

Por último, de ter em linha de conta o disposto no artigo 243.º, n.os 1 e 4, do CIRE que rege quanto à cessação antecipada do procedimento de exoneração, de acordo com os quais, a mesma é de aplicar quando o devedor, dolosamente ou com grave negligência, violar alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

Acrescentando-se no seu n.º 3 que:

“Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações”.

Seguindo, mais uma vez, os autores e ob. acima citados, pág. 915 “a segunda parte do n.º 3 determina que a exoneração será sempre recusada se o devedor, tendo-lhe sido determinado que preste informações sobre o cumprimento das suas obrigações, ou convocado para as prestar em audiência, não as fornecer no prazo que lhe for estabelecido, ou faltar a essa audiência, sem invocar, em qualquer dos casos, motivo razoável.

A recusa da exoneração constitui, quando se verifiquem estas situações, uma sanção para o comportamento indevido do devedor”.

A mesma conclusão, que, aliás, resulta, sem margem para dúvidas, do texto legal, é defendida por Alexandre de Soveral Martins, in Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, a pág. 557.

Ora, o que sucedeu in casu foi que o devedor – aqui recorrente – incumpriu a obrigação de informar da mudança de domicílio, sem, para isso, apresentar qualquer justificação, só o vindo a fazer já depois de proferida a decisão aqui em análise, o que motivou que todas as cartas que lhe foram enviadas, solicitando que prestasse as pertinentes e legais informações tivessem, todas, sido devolvidas, com esse fundamento – mudança de residência.

Por isso, subscrevemos a decisão recorrida, designadamente, quando na mesma se refere que:

“Conforme resulta dos factos provados, o devedor, sem qualquer justificação, não remeteu ao fiduciário comprovativo da sua situação profissional e rendimentos auferidos, sendo que a carta enviada pelo Sr. Administrador da Insolvência, para o domicílio fixado nos autos, foi devolvida com a indicação de “mudou-se”, o mesmo sucedendo em relação à carta remetida pelo Tribunal, devolvida a fls. 184.

O que tudo leva a concluir que, sem qualquer justificação, não informou a mudança de domicílio e não forneceu informações comprovativas do cumprimento das suas obrigações e dos rendimentos auferidos, o que, nos termos do n.º 3 do artigo 243.º, determina a recusa antecipada da exoneração do passivo restante.”.

Acrescentando nós, como resulta do relatório que antecede, que o devedor nem aos seus sucessivos Patronos deu a informação de que tinha mudado de residência, de tal forma que, nem estes, o conseguiram contactar.

Assim, impõe-se concluir que, sem motivo razoável, foi o devedor que incumpriu as obrigações a que estava adstrito, o que motiva que a exoneração seja recusada, como decorre do disposto na 2.ª parte do n.º 3, do artigo 239.º, do CIRE, sendo, por isso, de manter a decisão recorrida.

Consequentemente, improcede o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelo apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi atribuído.

Coimbra, 8 de Maio de 2018.