Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
151/12.9GCAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: AMEAÇA
MAL FUTURO
Data do Acordão: 05/06/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA (AVEIRO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 153.º DO CP
Sumário: I - Para o preenchimento do conceito de ameaça, perante uma expressão verbal anunciadora de um mal, não acompanhada de qualquer acto de execução, é futuro o tempo que o agente permanece inactivo, não obstante lhe ser possível a concretização do referido mal.
II - Assim, é “mal futuro”, constitutivo de ameaça penalmente relevante, as expressões dirigidas pelo agente a outrem: ”é hoje que te vou matar”; “vou buscar uma arma e mando-te dois tiros”, não seguidas de qualquer acção configuradora de execução imediata ou iminente do mal comunicado.
Decisão Texto Integral:

 Acordam, em conferência, na 5ª secção, criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

 

I – Relatório

No processo supra referido o arguido, A... , melhor identificado nos autos, foi condenado pela prática de um crime de ameaça agravada, p.p. pelos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de dez meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, subordinada tal suspensão (ao abrigo do disposto nos artigos 50º, 51º, nº 1, al. c), 53º nºs 1 e 2, e 52º nº 2, al. d) do mesmo Código):

a) A regime de prova, assente em plano de reinserção social a definir e executar pelos Serviços de Reinserção Social;

b) Ao dever de entregar à APAV (Associação de Apoio à Vítima) a quantia de mil euros, no prazo de seis meses a contar da data do trânsito em julgado desta sentença, e

c) À proibição de contactar, por qualquer modo, B....

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Desagradado com o assim decidido, veio o arguido interpor recurso, despedindo a respectiva motivação com as seguintes

Conclusões

1. Entende o arguido que não se encontram preenchidos todos os elementos do tipo de crime de ameaça para que pudesse ser o mesmo condenado por tal crime.

2. Com efeito, mesmo que tivesse o arguido proferido a expressão que lhe é imputada, a mesma não seria adequada a preencher o tipo legal de crime em questão, por não conter em si a ameaça de um mal futuro, o que constitui um elemento essencial do mesmo.

3. De facto, para que se preencha o tipo legal de crime de ameaça, a ameaça, não pode ser iminente, pois que neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo ato violento, isto é, do respectivo mal.

4. Sendo que, no caso em apreço, a expressão imputada ao arguido terá sido proferida no âmbito de um confronto entre o mesmo e o ofendido, tratando-se de, a ter sido efectivamente proferida, um mal imediato e iminente.

5. Não constituindo assim a ameaça de um mal futuro, limitador da liberdade individual do visado, mas sim o anúncio de um mal actual, iminente, contra a integridade física do ofendido, que começaria e acabaria ali, integrando caso se concretizasse o crime respectivo, sem que, em qualquer dos casos, o mal anunciado se projectasse na liberdade de decisão e de acção futura da vítima.

6. É também este o entendimento da doutrina e da jurisprudência em geral, o que se pode aferir, por exemplo dos seguintes acórdãos – Acórdão da Relação de Coimbra de 12/12/2001, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/05/2008, de 28/11/2007, de 25/01/2006.

7. Entende-se em geral que expressões, como por exemplo “ eu mato-te” (vide Ac. TRP de 25/01/2006), “ eu dou-lhe na cara, ponho-o lá fora à bofetada” (vide Ac. TRP de 22/11/2006), “ anda cá para baixo, que te quero matar” (vide Ac. TRP de 20/12/2006), “ vou atira-los ao rio” (vide Ac, TRP de 28.01.2007) não constituem crime de ameaça pelo facto de não constituírem uma ameaça de mal futuro.

8. Deste modo e por não se verificar o preenchimento de todos os elementos do tipo de ilícito, falta um dos pressupostos legais para que efectivamente se possa afirmar que foi praticado um crime de ameaça, devendo em consequência ser o arguido absolvido da prática do crime em causa.

9. Tendo assim sido violados os artigos 153º nº1 e 155º nº1 alínea a).

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O recurso foi recebido.

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O ofendido respondeu ao recurso, e, socorrendo-se de doutrina e jurisprudência atinente ao elemento do tipo “mal futuro”, defende que ele se verifica “in casu” e que a sentença deve ser mantida.

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O Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido apresentou, também, a sua resposta, e apoiando-se essencialmente no Ac. TRG de 07/01/2008, no proc. 1798/07-2 in www.dgsi.pt cujo sumário transcreveu, defende que o elemento em causa se verifica no caso dos autos.

Já nesta Relação para onde os autos de recurso foram entretanto enviados, o Exmo Procurador Geral Adjunto, emitiu parecer em idêntico sentido.

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Questões a decidir:

É consensual quer na doutrina quer na jurisprudência que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam os poderes de cognição do tribunal de recurso, sem prejuízo do conhecimento oficioso das nulidades e vícios a que se reporta o artº 410º do CPP.

Pois bem, não tendo sido alegados quaisquer vícios da matéria de facto nem se nos afigurando que os mesmos existam, a única questão a decidir consiste em saber se os factos assentes permitem integrar o elemento do tipo do crime de ameaça que consiste ”em mal futuro”.

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Decisão do recurso

A sentença recorrida julgou os seguintes

Factos provados:
1. O arguido A...e B... são irmãos, vivem na mesma rua, em casas separadas apenas pela casa onde vive a mãe de ambos e estão desavindos, tendo ocorrido graves conflitos entre ambos, que motivaram até a condenação de ambos pela prática de crimes, no âmbito do processo nº 137/11.0GCAVR, deste Juízo, por sentença transitada em julgado em 14.09.2012, a ambos sendo então aplicadas penas de prisão, suspensas na sua execução por um ano com condições, designadamente a de não contactarem um com o outro.
2. No dia 01 de Junho de 2012, cerca das 21.45 horas, na rua onde ambos residem, ocorreram confrontos físicos entre o arguido A...e B....
3. No decurso de tais confrontos, o arguido A... dirigiu-se a casa e voltou à rua trazendo um pau de dimensões não concretamente apuradas.
4. Quando cessaram os contactos físicos e o arguido A... se afastava já de B..., disse, em voz alta ”é hoje que te vou matar” acrescentando que ia buscar uma arma e lhe mandava dois tiros.
5. Ao proferir tais expressões, o arguido A...agiu com o propósito de assustar B..., deixando-o receoso pela segurança da sua vida, o que conseguiu.
6. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a descrita conduta era proibida e punida por lei.
7.

7.1 O arguido provém de família de agricultores, concluiu o quinto ano de escolaridade após o que passou a dedicar-se à agricultura, como continua a fazer, dedicando-se ainda à criação de gado e ocasionalmente à construção civil.

7.2  Separou-se da mãe da sua filha há cerca de cinco anos, em situação de conflito, ficando à sua guarda a filha, agora com cerca de quinze anos de idade.

7.3  A casa em que o arguido vive com a filha pertence-lhe, acompanhando a filha e a mãe já idosa e residente em casa contígua, nas suas actividades escolares, de saúde e outras.

7.4 O Trabalho que desenvolve, bem como rendas de armazéns de que é proprietário, propiciam ao arguido rendimentos que lhe permitem viver sem constrangimentos económicos.
8. O arguido já sofreu condenações:

8.1 por decisão de 18.04.2005, transitada em julgado em 03.05.2005, pela prática em 08.04.2004 de um crime de furto simples na pena de 105 dias de multa à razão diária de €7,00, pena essa em 05.07.2005 declarada extinta;

8.2 por decisão de 18.02.2009, transitada em julgado em 16.03.2009, pela prática em 01.02.2006 de um crime de violação, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período mediante condição de pagamento de indemnização, pena essa em 2012 declarada extinta;

8.3 por decisão de 03.07.2009, transitada em julgado em 23.07.2009, pela prática em 05.07.2007 de um crime de violência doméstica, na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período;

8.4 por decisão de 13.07.2010, transitada em julgado em 23.08.2010, pela prática em 06.01.2010 de um crime de injúria agravada, na pena de 90 dias de prisão, suspensa na sua execução por um ano mediante condição de pagamento de indemnização, pena essa extinta em 2011;

8.5 por decisão de 28.04.2011, transitada em julgado em 19.05.2011, pela prática em 26.05.2010 de um ofensa à integridade física simples, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano mediante condição de pagamento de indemnização;

8.6 por decisão de 20.05.2011, transitada em julgado em 20.06.2011, pela prática em 26.03.2010 de um crime de ameaça agravada e de um crime de ofensa ^`a integridade física simples, na pena unitária de 180 dias de multa à razão diária de € 8,00, pena esta extinta por pagamento em 2012;

8.7 por decisão de 14.02.2013, transitada em julgado em 20.09.2013, pela prática em 12.02.2013 de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 90 dias de multa à razão  diária de € 6,00 e na pena acessória de 6 meses de proibição de conduzir;

8.8 por decisão de 23.02.2012, transitada em julgado em 26.03.2012, pela prática em 18.04.2006 de um crime de detenção legal de arma, na pena de 200 dias de multa à razão diária de €5,00, e

8.9 por decisão de 09.07.2012, transitada em julgado em 14.09.2012, pela prática em 06.04.2011 de um crime de detenção de arma proibida e de um crime de ameaça simples, na pena única de 12 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano mediante condição de sujeição a plano de reinserção social e de não contactar de qualquer forma com o seu irmão B....

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O tribunal recorrido motivou a sua convicção probatória, nos seguintes termos:

Motivação

A prova dos factos enunciados resultou da ponderação crítica e conjugada, à luz de critérios de normalidade e experiência comum, das declarações prestadas em audiência por arguido e testemunhas, bem como do teor dos documentos infra referenciados.

O arguido negou ter dirigido ao seu irmão as expressões acima referidas, não obstante reconhecer que se exaltou e se agrediram fisicamente na data em causa.

Porem, tal negação pelo arguido não foi convincente, não só atenta a pelo próprio assumida exaltação, que motivou as agressões físicas (o que torna muito plausível que também tenha motivado agressões verbais), mas atento o teor dos depoimentos e modo como tais depoimentos foram prestados pelas testemunhas B... (irmão do arguido referido na factualidade enunciada) e C... (amigo da  primeira e que se encontrava no local), os quais, não obstante a assumida animosidade em relação ao arguido, depuseram de modo que não suscitou dúvida quanto à veracidade do que descreveram (anotando-se que ambos foram capazes de por de lado tal animosidade para desistir das queixas que haviam apresentado contra o arguido no âmbito do presente processo, sendo certo que o segundo nada teria as perder com o seu eventual prosseguimento).

Acerca das condições de vida do arguido, para alem das declarações do próprio e algumas alusões a tal respeito feitas pelas já indicadas testemunhas, relevou o relatório social junto a fls. 337 e seg.

As condenações já sofridas pelo arguido constam do certificado de registo criminal junto a fls. 316 e seg., sendo que a respeito do enunciado em 1. Revelou também fls. 201 (do certificado de B...).

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Conhecimento do recurso:

O artigo 153.º do Código Penal, sob a epígrafe “ameaça”, sanciona quem ameaçar outra pessoa com a prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

O crime é agravado, nomeadamente, quando há uma especial gravidade da ameaça, o que ocorre quanto tal facto for realizado por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos – artigo 155.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma legal. (Conf. Acórdão UJ  n.º 7/2013 DR 56 SÉRIE I de 2013-03-20, que tem o seguinte teor: «A ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 do artigo 153º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155º do mesmo diploma legal».

«São três as características essenciais do conceito ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente. O mal tanto pode ser de natureza pessoal (p. ex., lesão da saúde ou da reputação social) como patrimonial (…). O mal tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coação, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex., haverá ameaça, quando alguém afirma: “hei-de-te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirma: "vou-te matar já”. Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante . Necessário é só (…) que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos da tentativa (…). Indispensável é, em terceiro lugar, que a ocorrência do “mal futuro” dependa (ou apareça como dependente…) da vontade do agente. Esta característica estabelece a distinção entre a ameaça e o simples aviso ou advertência» – Américo Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, Coimbra Editora, 1999, página 343

Como se refere no Ac. desta Relação de 09.09.2009 (proc. 363/08.OOGAACB.1 in wwwdgsi.pt), a propósito do elemento do tipo mal futuro: “ Quanto ao preenchimento do tipo na base da expressão ameaçadora usada pelo arguido, temos para nós que muitos equívocos se têm gerado face ao referido por Américo Taipa de Carvalho no Comentário Conimbricense ao Código Penal [§7, pp.343].

O preceito que consagra o tipo refere que pratica o crime «Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida (...), de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar na sua liberdade de determinação».

Comenta Américo Taipa de Carvalho [ob. e local cit.] que “o mal ameaçado tem de ser futuro”, mas logo acrescenta que “isto significa apenas que o mal objecto da ameaça não pode ser eminente, pois neste caso estar-se-á diante duma tentativa de execução do respectivo mal”.

Assim, estamos perante uma ameaça de mal futuro sempre que se não esteja perante execução eminente. Por outras palavras, o mal anunciado terá a característica de “mal futuro” desde que não se trate já duma tentativa criminosa, nos termos em que o art.º 22º do Código Penal a caracteriza. Ora, perante a factualidade provada, é óbvia a ausência duma tentativa de homicídio. E a ser assim, a ameaça de morte é uma ameaça de mal futuro”.

Para negar a prática do crime defende o arguido que a expressão que a sentença recorrida entendeu integrar o crime de ameaça, não preenche o requisito “mal futuro”.

Ora a expressão “é hoje que te vou matar” acrescentando que ia buscar uma arma e lhe mandava dois tiros (supra ponto 5. dos factos provados) usada pelo arguido é objectivamente configuradora dum mal futuro já que não seguida de qualquer acção configuradora de execução imediata ou iminente do mal ameaçado. O arguido não praticou qualquer acto de execução no momento do crime anunciado.

O facto de ter dito “é hoje”, não confere à ameaça de morte a natureza de eminente no sentido referido, ou seja de inicio da execução do crime de homicídio, e muito menos o facto de ter anunciado com que meio tencionava causar o mal no futuro “usar uma arma de fogo”.

Como se referiu em Acórdão da Relação de Guimarães de 7/1/2008 (www.dgsi.pt)], citado pelo Ministério Público junto da 1ª instância, “tudo o que não seja execução em curso é anúncio de mal futuro, sendo indiferente que a expressão usada seja «agora» «hoje», «amanhã» ou «para o ano». Futuro é todo o tempo compreendido naquele em que é proferida a expressão que anuncia o mal não acompanhada de actos correspondentes à sua concretização.

Ou seja, sempre que alguém dirija a outrem uma expressão verbal de anúncio de causação de um mal não acompanhando o anúncio de actos de execução correspondentes – permanecendo inactivo em relação à execução do mal anunciado –, todo o tempo que durar essa inacção e se mantiver a possibilidade do mal anunciado se concretizar é o futuro em termos de interpretação da expressão em causa.

Tendo o elemento do tipo “mal futuro” o sentido referido, não podem colher as objecções que o recorrente lançou, acerca da expressão dirigida pelo arguido ao ofendido ”é hoje que te vou matar”, como integradora do conceito, ameaça de mal futuro reforçada quando acrescentou que ia buscar uma arma e lhe mandava dois tiros, sem que tenha concretizado qualquer acto de execução no sentido de concretizar a ameaça, porque se assim fosse entraríamos já no domínio dos actos de execução do crime de homicídio.

Não podendo ser postos em causa os demais elementos do tipo de crime pelo qual o recorrente foi condenado, o recurso está votado ao insucesso.

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Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

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Custas pelo recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 4 UC

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Coimbra, 6 de Maio de 2015

(Texto elaborado e revisto pela relatora, artº 94º nº 2 do CPP, que escreve com a grafia anterior ao novo acordo ortográfico)

(Cacilda Sena - relatora)

(Elisa Sales - adjunta)