Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2116/10.6TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRESUNÇÃO DE CULPA
CONDUTOR POR CONTA DE OUTREM
TRADUÇÃO DE DOCUMENTOS
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 01/29/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 503º, Nº 3 DO C. CIVIL; 140º, Nº 1 DO CPC.
Sumário: 1. Os condutores por conta de outrem são, na maioria dos casos, motoristas profissionais, que conhecem ou têm obrigação de conhecer, as regras da condução, os segredos da viatura e o perfil das estradas. Se eles, apesar da sua experiência e sabedoria, não convencem o tribunal da falta da sua culpabilidade, nada repugna aceitar, em princípio, a conclusão da sua culpa.

2. Ao mesmo tempo, a presunção de culpa do condutor por conta de outrem é, em certa medida, uma forma de estimular o cumprimento do dever de vigilância, sobre o veículo e de combater os perigos decorrentes da fadiga, da embriaguez, da distracção ou do espírito de competição na condução do veículo.

3. A tradução de documentos escritos em língua estrangeira não constitui uma exigência de que dependa a sua admissibilidade no processo. Introduziu-se uma simplificação no regime legal da tradução de documentos escritos em língua estrangeira juntos ao processo, cabendo ao juiz, por sua iniciativa ou a pedido de alguma das partes, determinar a sua tradução se necessária.

4. Quanto à tradução, decorre do disposto no artigo 140º, nº 1 do Código de Processo Civil que o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena ao apresentante de documentos escritos em língua estrangeira que a junte quando careçam de tradução – o sublinhado é nosso.

5. A tradução de documentos escritos em língua estrangeira não constitui, assim, uma exigência de que dependa a sua admissibilidade no processo. Só aqueles que dela careçam devem ser traduzidos pela parte que os oferece.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

Não se conformando com a decisão proferida pelo Tribunal de Coimbra, o réu V… interpôs a presente apelação.

O resumo da acção:

O Fundo de Garantia Automóvel instaurou a presente acção contra V… alegando que satisfez a indemnização devida ao Fonds de Garantie Automobile por danos decorrentes de um acidente de viação ocorrido em 14 de Julho de 2006 cuja eclosão imputa a actuação culposa do Réu, proprietário e condutor do veículo automóvel de matrícula …SX, pelo facto deste veículo não dispor de seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, e visando o reembolso da correspondente importância, assim como o pagamento das despesas de gestão efectuadas, e daquelas que se apurarem a final, invoca o direito de sub-rogação nos direitos do lesado que lhe confere o artigo 25º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.

Com tais fundamentos conclui pedindo a condenação do Réu no pagamento da quantia de 6.854,20 €, correspondente à indemnização satisfeita e às despesas de gestão já efectuadas, acrescida dos respectivos juros de mora desde a data de interpelação do Réu em 31.Dezembro.2007 até integral e efectivo pagamento e das demais despesas de gestão, a liquidar em execução de sentença.

Citado de forma válida e regular contestou o Réu impugnando a factualidade alegada atinente à dinâmica do sinistro rodoviário e arguindo a excepção da sua ilegitimidade por não ser ele o responsável civil uma vez que conduzia o veículo de matrícula …SX, alegadamente causador do acidente de viação, sob autoridade e direcção da respectiva proprietária e sua entidade patronal, “S…, Ldª”, e que esta, por contrato de seguro válido e eficaz á data do acidente, transferira para a “Companhia de Seguros B…, S.A.” a responsabilidade civil emergente de acidente de viação por danos causados a terceiro pela circulação daquele veículo, concluindo pela sua absolvição da instância.

Admitida a intervenção principal provocada das alegada proprietária e seguradora, como associadas do Réu contra quem o Autor deduziu o mesmo pedido que na petição inicial formulou contra aquele, contestou a chamada “Companhia de Seguros B…, S.A.” impugnando a factualidade alegada na petição inicial, invocando desconhecimento e aduzindo que na data em que ocorreu o acidente de viação de que curam os presentes autos não existia qualquer contrato de seguro, válido e eficaz, consigo celebrado e relativo ao veículo automóvel de matrícula …SX.

Posteriormente, o Autor desistiu da instância em relação à chamada “S…, Ldª”, desistência que foi homologada por decisão já transitada em julgado.

O Tribunal da 1.ª instância – pela pena da Sr.ª Juiz do 3.º Juízo Cível de Coimbra – proferiu a seguinte decisão:

Pelo exposto, na parcial procedência da acção, decide-se: a) absolver do pedido a chamada “Companhia de Seguros B…, S.A.”;

b) condenar o Réu V… a pagar ao Autor Fundo de Garantia Automóvel a quantia de 6.854,20 € (seis mil, oitocentos e cinquenta e quatro euros e vinte cêntimos), acrescida de juros de mora computados à taxa legal desde a data de citação do Réu até integral e efectivo pagamento e, ainda, a quantia que se liquidar em execução de sentença correspondentes à despesas com a liquidação e cobrança daquele quantitativo

Fixo o valor da causa em 6.854,20 € (seis mil, oitocentos e cinquenta e quatro euros e vinte cêntimos) nos termos previstos no n.º 2 do artigo 315º do Código de Processo Civil.

2. A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

3.O Objecto da instância de recurso

ALEGAÇÕES DE RECURSO QUE APRESENTA V…

O FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, Apelado nos autos à margem identificados, apresentou as suas CONTRA-ALEGAÇÕES.

….

4. O Direito

Questões a decidir nesta instância:

I. Os Pontos 6º, 15º e 16º da base instrutória deveriam ter sido dados como provados e os Pontos 10º, 11º, 12º e 13º como não provados?

II. Assim se afastando a culpa do réu na produção do acidente e a existência de danos?

III. O art.º 503º, n.º 3 do Código Civil deve aplicar-se apenas nas relações entre o comitente e o comissário e não, já, entre o comissário e terceiros?

Como é evidente, o sentido da decisão – da acção e do recurso – depende dos factos fornecidos pelo processo, com observância do princípio da aquisição processual e da ponderação do cumprimento do ónus da prova - artºs 515.º e 516.º do Código do Processo Civil e 346, 2ª parte, do Código Civil.

Estamos no domínio da responsabilidade aquiliana.

Aqui, e diversamente do que ocorre na responsabilidade contratual - n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil -, não se presume a culpa a menos que a lei, expressamente, o declare.

Por isso, é ao lesado que, como regra, incumbe a prova da culpa do autor da lesão - artigo 342.º, n.º1 e n.º1 do artigo 487.º do Código Civil.

Terá de demonstrar que o lesante praticou voluntariamente os factos integradores da simples negligência, ou negligência presumida, que consiste na violação de preceitos destinados a proteger interesses alheios.

Em tempos idos, o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 1979 – retirado do BMJ 291.º pág. 285 – interpretou o n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil como não sendo aplicável aos acidentes de circulação terrestre, por a condução automóvel não dever considerar-se perigosa, em termos de fazer presumir a culpa de quem a exerce.

Contudo, o Prof. Vaz Serra - no BMJ 68-87 - esclarecia, na esteira de Enneccerus-Lehman que “a jurisprudência tem facilitado a prova da culpa: basta para provar a culpa que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, tornem muito verosímil a culpa.

 Mas o autor do prejuízo pode afastar a prova “prima facie”, demonstrando, por seu lado, outros factos que tornem verosímil ter-se produzido o dano sem culpa sua. Com isto destrói a aparência a ele contrária e força o prejudicado a demonstrar completamente a culpa, já que ao admitir-se a prova “prima facie”, só se dá uma facilidade para produção do encargo da prova.”

São as chamadas presunções simples, judiciais ou de experiência – sobre estas, ver Profs. P. de Lima e A. Varela no Código Civil Anotado,vol. I, 3.ª ed., pág. 310; Prof. A. Varela – “Manual de Processo Civil”, 1984, 486 e Prof. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, pág.191.

Aí, e na repartição do ónus da prova, nos termos do artigo 342.º do Código Civil, há que apelar para o critério da normalidade - “Aquele que invoca um direito tem de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos” in Profs. Pires de Lima e A. Varela, ob. cit., I, 304; cf. ainda, Conselheiro Mário de Brito – “Código Civil Anotado”, I, 453 e Prof. Vaz Serra – “Provas” – BMJ 112-29.

Como é sabido, para além destas presunções judiciais perfilam-se as presunções legais.

Em matéria de acidentes de viação, releva o n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil, na interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Abril de 1983.Trata-se de presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele, como lesante, e o titular do direito a indemnização.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Junho de 1997 – publicado no BMJ 428.º pág. 540 assim justificou a opção do legislador:

“ O mero condutor, será, na grande generalidade dos casos, um motorista profissional, cuja condução se reveste de especiais características e a tornam particularmente perigosa. Por não ser executada sobre coisa própria é, em regra, mais descuidada; pela habitualidade com que é exercida é muito mais atreita a atitudes de facilidade e à rotina de correr maiores riscos; porque feita por quem deve ter obrigação de especial perícia é susceptível de legitimar que se lhes exija (aos condutores por conta de outrem), em termos mais onerosos, a obrigação de identificar e provar a causa de qualquer eventual acidente, caso ela lhes não seja imputável. Os condutores por conta de outrem, (…) são, na maioria dos casos, motoristas profissionais, que conhecem ou têm obrigação de conhecer, as regras da condução, os segredos da viatura e o perfil das estradas. Se eles, apesar da sua experiência e sabedoria, não convencem o tribunal da falta da sua culpabilidade, nada repugna aceitar, em princípio, a conclusão da sua culpa. Ao mesmo tempo, (…) a presunção de culpa do condutor por conta de outrem é, em certa medida, uma forma de estimular o cumprimento do dever de vigilância, sobre o veículo e de combater os perigos decorrentes da fadiga, da embriaguez, da distração ou do espírito de competição na condução do veículo.”

Estabelecida a culpa presumida os lesados não têm que demonstrar os factos que a ela conduzem – artigo 350.º n.º 1 do Código Civil – cumprindo ao lesante ilidi--los.

O comitente responde, então, solidariamente com o comissário por todos os danos causados no acidente, e não nos termos do n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil, por não estarem em causa apenas danos do risco próprio do veículo mas sim danos causados por culpa - fundada, embora, em presunção - do condutor.

Assim o entendeu, correctamente, a 1.ª instância, ao elaborar a sua decisão.

Aí se escreve: “No caso em apreço, como se extrai da resposta negativa aos quesitos 15º e 16º da Base Instrutória, não logrou o Réu demonstrar que o acidente de viação de que curam os presentes autos tenha ficado a dever-se a actuação culposa do condutor do veículo de matrícula …75 e, assim, que o mesmo não ficou a dever-se a culpa sua, pelo que, detendo ele, enquanto condutor do veículo de matrícula …SX, a qualidade de comissário não pode senão concluir-se pela sua responsabilidade pelo pagamento da indemnização devida ao lesado”…”Tanto basta para se concluir pela verificação dos requisitos de que o n.º 1 do artigo 522/85, de 31.Dezembro, faz depender o exercício da sub-rogação por parte do Fundo de Garantia Automóvel contra o condutor do veículo de matrícula …SX, o que determina a integral procedência da presente acção em relação ao Réu V… – pois que ao direito de crédito do lesado adquirido pelo Fundo de Garantia Automóvel através do instituto da sub-rogação legal, nos termos acima explicitados, acrescem dois créditos adquiridos autonomamente: o direito ao juro de mora legal e o direito ao reembolso das despesas resultantes da liquidação e cobrança, a que alude o ponto 8. da matéria de facto dada como assente”.

E não se diga que o autor não colocou correctamente os factos no seu articulado. De facto, na petição inicial invoca a culpa do réu, como condutor do veículo pesado de mercadorias de matrícula …SX na produção do sinistro.

Mais, na sequência da contestação apresentada pelo réu V… e na sequência da confissão desses factos - Pontos 2 a 4 -, invoca a relação laboral existente entre este e a empresa proprietária do veículo …SX – ver a norma do artigo 273.º n.º 1 do Código do Processo Civil, acerca da alteração da causa de pedir.

Assim, salvo o devido respeito, entendemos que o Tribunal da 1.ª instância não extravasou dos seus poderes de cognição pois, ao contrário do alegado, não tratou de encontrar o nexo causal entre o embate e os danos, sem que tal matéria tenha sido alegada pela parte a quem cabia tal alegação, no caso o A, em violação do princípio do pedido.

Diz, ainda, o recorrente nas suas alegações:

” … da petição inicial não consta qualquer descrição dos danos ressarcidos tendo-se a A. limitado a apresentar documentos - em língua francesa sem qualquer tradução – que aparentam ter sido remetidos via fax ( logo não são documentos originais) e algumas facturas em língua espanhola (igualmente não traduzidos) e ainda uma certidão comprovativa que o A. liquidou o montante referido nos autos, que em opinião do ora Recorrente são manifestamente insuficientes em termos probatórios.

Assim, ficam por apurar quais os danos efectivamente sofridos pelo veículo e ainda se esses mesmos danos resultaram, ou não, do embate descrito nos autos.

Nestas circunstâncias não poderia o Tribunal a quo ter sido dado como provada a matéria ínsita nos quesitos 10º a 13º da base instrutória, pois como se disse, os documentos apresentados revelam-se insuficientes para provar quer os danos do veiculo quer o nexo de causalidade entre o sinistro e a produção de tais danos...” – fim de citação.

Quanto à tradução, decorre do disposto no artigo 140º, nº 1 do Código de Processo Civil que o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena ao apresentante de documentos escritos em língua estrangeira que a junte quando careçam de tradução – o sublinhado é nosso.

A tradução de documentos escritos em língua estrangeira não constitui, assim, uma exigência de que dependa a sua admissibilidade no processo. Só aqueles que dela careçam devem ser traduzidos pela parte que os oferece.

 Introduziu-se uma simplificação no regime legal da tradução de documentos escritos em língua estrangeira juntos ao processo, cabendo ao juiz, por sua iniciativa ou a pedido de alguma das partes, determinar a sua tradução se necessária.

No caso em apreço, não se determinou que a autora juntasse a tradução dos documentos escritos que ofereceu, e bem, uma vez que tais documentos se apresentam de fácil compreensão face aos idiomas em que se acham redigidos e à sua pequena extensão.

 Pelo que, a circunstância de não ter sido junta a sua tradução não põe em crise a sua admissibilidade nos autos nem lhes retira força probatória.

Resta dizer, que o ora recorrente não impugnou especificamente tais documentos, sendo que a Sr.ª juiz da 1.ª instância os valorou ao abrigo do disposto no artigo 655.º do Código do Processo Civil.

Nestes termos, na improcedência da apelação, mantemos a decisão proferida pelo Tribunal de Coimbra.

Passemos ao sumário:

1. Os condutores por conta de outrem, (…) são, na maioria dos casos, motoristas profissionais, que conhecem ou têm obrigação de conhecer, as regras da condução, os segredos da viatura e o perfil das estradas. Se eles, apesar da sua experiência e sabedoria, não convencem o tribunal da falta da sua culpabilidade, nada repugna aceitar, em princípio, a conclusão da sua culpa. Ao mesmo tempo, (…) a presunção de culpa do condutor por conta de outrem é, em certa medida, uma forma de estimular o cumprimento do dever de vigilância, sobre o veículo e de combater os perigos decorrentes da fadiga, da embriaguez, da distração ou do espírito de competição na condução do veículo.

2. A tradução de documentos escritos em língua estrangeira não constitui uma exigência de que dependa a sua admissibilidade no processo. Introduziu-se uma simplificação no regime legal da tradução de documentos escritos em língua estrangeira juntos ao processo, cabendo ao juiz, por sua iniciativa ou a pedido de alguma das partes, determinar a sua tradução se necessária.

5. A Decisão

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

José Avelino (Relator)

Regina Rosa

Artur Dias