Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
136/09.2GASPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: APROVEITAMENTO DE OBRA CONTRAFEITA OU USURPADA;
TRANSPORTE DE FONOGRAMAS E VIDEOGRAMAS;
TENTATIVA NÃO PUNÍVEL
Data do Acordão: 06/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SÃO PEDRO DO SUL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 199.º E 197.º, N.º 1, DO CÓDIGO DOS DIREITOS DE AUTOR E DIREITOS CONEXOS; ARTS. 22.º E 23.º, N.º 1, DO CP
Sumário:
I – O transporte de fonogramas e videogramas contrafeitos e usurpados destinados a posterior venda não preenche o tipo de crime do artigo 199.º do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos.
II – Tal acto consubstancia mera tentativa, não punível perante o disposto nos arts. 23.º, n.º 1, do CP, e 197, n.º 1, do CDADC.
Decisão Texto Integral:
I - RELATÓRIO
1- No juízo de competência genérica de São Pedro do Sul, comarca de Viseu, no processo nº Comum Singular nº 136/09.2GASPS, foi julgado o arguido A… (…), tendo sido a final proferida a decisão condenando-o como autor material de um crime de aproveitamento de obra usurpada, p e p. pelos artºs 197.º, n.º 1 e 199.º, n.º 1, ambos do CDADC, nas penas de 5 meses de prisão e 190 dias de multa, esta à taxa diária de 7,50 euros, num total de 1.425 euros, com 126 dias de prisão subsidiária. Ao abrigo do disposto no artº 50.º, n.ºs 1 e 5, do CP, foi suspensa a execução da referida pena de prisão pelo período de 12 meses, contados do trânsito da presente decisão.
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2 - Inconformado, recorreu o arguido da sentença condenatória, formulando as seguintes conclusões:
“1ª A questão fundamental que aqui suscitamos com o presente recurso consiste em saber se os factos provados preenchem os elementos objectivos do tipo de crime de aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada, previsto e punido nos termos do disposto nos artigos 199º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), pelo qual o arguido, ora recorrente, foi condenado.
2ª Da matéria considerada como provada da douta Sentença resulta que:
"No dia 24.04.2009, pelas 11:20 horas, na estrada (…), o arguido transportava, no interior de um veículo automóvel por si conduzido, de matrícula K…, os seguintes objectos:
a) 132 fonogramas em suporte físico de formato CD-R (Compact-disc Recordable);
b)196 videogramas em suporte físico de formato DVD-R (Digital Versatible Disc-Recordable)."
Resulta ainda que os referidos "CD-R e DVD-R, são de duplicação artesanal, sendo o respectivo suporte material idêntico aqueloutros que se vendem ao público em geral como virgens."
3ª O Meritíssimo Juiz a quo enquadra esta factualidade no âmbito do nº1, do artigo 199º, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), afirmando " Ora, ao transportar no veículo automóvel que conduzia, destinando-os à venda ao público em geral, os exemplares usurpados que lhe foram apreendidos, o arguido procedia à distribuição daqueles, integrando por isso a sua conduta a previsão do arteº 199º."
4ª Ora em nosso entendimento e salvo o devido respeito por melhor opinião, e conforme a abundante jurisprudência nesse sentido, aquele que compra um lote de obras usurpadas, ainda que, o destine a vender a outrem, sendo surpreendido quando ao volante de um veículo, faz o seu transporte, não comete o crime de aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada, do artigo 199º CDADC, pois que não vendeu – ainda; não colocou à venda – ainda (ou pelo menos, como resulta dos factos apurados); não exportou (nem consta que o pretendesse fazer); nem distribuiu ao público (obviamente, pois que o material estava a ser por si transportado).
Tal conduta não integra a consumação do crime deste, apenas e tão só, a tentativa, não sendo, passível de punição, pois que a moldura penal abstrata não atinge o patamar mínimo, a partir do qual o legislador concede dignidade à punição da tentativa, nos termos do disposto no nº1, do artigo 23º, do Código Penal. Assim, a actividade de quem adquire um conjunto de obras contrafeitas e as transporta num veículo, ainda que com o propósito de as vir a vender, não preenche totalmente o tipo de crime do art.º 199.º do CDADC e se deve concluir que neste caso o crime se ficou pela forma tentada (art.º 22.º Código Penal). Por fim, tendo em conta a moldura penal abstractamente aplicável para o crime consumado (prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias) a prática do mesmo ilícito típico na forma tentada não é punível – artigos 22º, 23º Código Penal e 197º n.º1 CDADC.
5ª A Douta Sentença Recorrida violou pois os artigos 199º, 197º do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos, e os artigos 22º e 23º do Código Penal, pelo que se dever concluir por falta de tipicidade da conduta e por não ser punível a tentativa, tem de se absolver o arguido, como será de JUSTIÇA.
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3 O Exmo. Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:
“1. Atenta a factualidade apurada não é possível imputar ao arguido que o mesmo haja vendido, posto à venda ou, por qualquer modo, distribuísse ao público os aludidos fonogramas e videogramas. Os videogramas e fonogramas em causa apenas se encontravam a ser transportados pelo arguido num veículo automóvel, sendo certo que era sua intenção colocá-los à venda, o que não veio a acontecer em virtude da intervenção policial da qual resultou a sua apreensão.
2. Não se mostram, por isso, preenchidos os elementos objectivos do tipo de ilícito de aproveitamento de obra usurpada - a acção de vender, por à venda, exportar ou, por qualquer modo, distribuir ao público - porquanto a conduta do arguido ficou-se pelo mero transporte.
3. A conduta em apreço não é reconduzível à acção de distribuir pois é hoje doutrinalmente pacífico que o conceito de distribuição que subjaz à previsão do referido preceito, deve ser entendido na sua vertente económica, porquanto o fim visado pela lei é abranger as actividades empresariais de comercialização de exemplares ilícitos, sejam elas cobertas ou não pela noção jurídica de distribuição. Isto significa que quando essas características não se verificam, as actividades não são incriminadas (neste sentido, Oliveira Ascensão in Direito Penal de Autor, pág. 49).
4. Assim, no caso em apreço, conclui-se que o arguido apenas praticou actos de execução do ilícito, e como tal, a sua conduta tem de ser valorada a título de tentativa da prática do crime.
5. Ora, tendo por base a disposição que determina para a previsão do artigo 199.º, n.º 1 do CDADC a punição com pena de prisão até 3 anos e multa de 150 a 250 dias, conforme estatui o artigo 197.º, n.º 1, cedo se conclui que, não estando a tentativa expressamente prevista e sendo a pena correspondente ao crime consumado não superior a 3 anos, a tentativa não é, nestes casos, punível.
6. Deste modo, a factualidade dada como provada não é susceptível de integrar a prática de qualquer ilícito criminal, nomeadamente do crime de aproveitamento de obra usurpada, previsto e punível pelos artigos 197.º, n.º 1 e 199.º do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos (CDADC).
7. Ao condenar o arguido pela prática de um crime de aproveitamento de obra usurpada, incorreu o Tribunal a quo, face ao que tinha dado como provado, e face às razões que supra se expenderam, nos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal.
8. Considerando a matéria de facto dada como provada, o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu condenando o arguido pela prática de um crime de aproveitamento de obra usurpada, violou as disposições dos artigos 199.º do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos (CDADC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março e 1° e 23° do Código Penal.
Nestes termos a decisão recorrida deve ser revogada, sendo substituída por outra que absolva o arguido da prática do crime de aproveitamento de obra usurpada que lhe é imputado na acusação, devendo ser julgado procedente o recurso interposto pelo Recorrente.
Mas vossas excelências farão, como sempre, o que melhor for de justiça!”
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4- Nesta Relação, a Exma PGA emitiu o seguinte parecer:
“(…)
Sufragamos o entendimento e as considerações expendidas pelo Magistrado do M. P. na 1ª Instância na resposta à motivação de recurso que apresentou.
Com efeito, a factualidade provada não preenche os elementos do tipo do crime de aproveitamento de obra usurpada pelo qual o arguido foi acusado e condenado, como bem demonstra o Magistrado do MP na 1ª Instância.
Na verdade, o transporte, ou a detenção para venda, ou para distribuição por outro meio, são acções que não constam dos elementos objectivos do tipo previsto no referido art. 199º e, ao contrário do que defende a decisão recorrida, não integram, só por si, a actividade de distribuição, como não integram a acção de vender ou de pôr à venda.
Como refere José Branco: o bem jurídico tutelado pela norma será "o direito de colocar em circulação comercial ... os exemplares"; um dos vectores do complexo de direitos que integram a unidade direito de autor e o tipo objectivo integra "as condutas entendidas como de comercialização de exemplares, o que corresponde a coisa diversa do conceito legal de utilização da obra, assentes no pressuposto de que tais exemplares tenham sido «usurpados» ou «contrafeitos»".
E mais à frente: "O transporte não é punido por este tipo legal de crime, embora se pudesse considerar que cabia no significado abrangente da expressão "... ou por qualquer modo distribuir ao público..." posto que estamos perante crime de resultado e o mero acto de transportar não consubstancia a colocação no mercado à disposição do público.
O transporte constituirá um mero acto de execução não punível e insuficiente para consumar a infracção ou, quando muito, configurar, conforme as circunstâncias que da prova resultarem, uma tentativa".
Que, como se referiu, não é punível face ao que dispõem os arts 23º, n° 1, do Código Penal e 197, n° 1, do CDADC.
De realçar que a enunciação das acções típicas têm de comum estarem dirigidas "à colocação no mercado e, neste âmbito, ao agente que comercializa", não estando por isso abrangido o consumidor final.
Em conformidade, emitimos parecer no sentido da procedência do recurso interposto.”
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5 - Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência.
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Cumpre conhecer e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. O âmbito do recurso encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo, no entanto, das questões que sejam de conhecimento oficioso, como se extrai do disposto no artº 412º nº 1 e no artº 410 nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal.
Neste contexto, a questão a apreciar traduz-se em saber se os factos provados não preenchem os elementos objectivos do tipo do crime pelo qual o recorrente foi condenado, ou se o transporte que efectuava apenas enquadra o crime na forma tentada, não punível.
2. Da decisão recorrida
Factos provados
“1 – No dia 24.4.09, pelas 11.20 horas, (…), o arguido transportava, no interior de um veículo automóvel por si conduzido, de matrícula K…, os seguintes objectos:
a) 132 fonogramas em suporte físico de formado CD-R (Compact-disc Recordable); e
b) 196 videogramas em suporte físico de formato DVD-R (Digital Versatible Disc Recordable).
2 – Tais fonogramas e videogramas continham a gravação de diversas obras fonográficas e cinematográficas, mais concretamente aquelas constantes e descritas a fls. 53 a 73 dos autos (cujo conteúdo, por economia, aqui se dá por integralmente reproduzido).
3 – Todos esses CD-R e DVD-R são de duplicação artesanal, sendo o respectivo suporte material idêntico aqueloutros que se vendem ao público em geral como ‘virgens’.
4 – No que concerne à fixação de sons e imagem, os referidos exemplares são de mediana ou má qualidade técnica.
5 – No que diz respeito aos ditos fonogramas, nenhum continha qualquer ‘booklet’ ou livreto donde constasse a descrição das obras fixadas, respectivas letras, bem como a referência aos respectivos autores e toda a ficha técnica de produção dos mesmos.
6 – Todos aqueles fonogramas continham capas ou ‘lay-cards’, porém sob a forma de fotocópia (a cores e de má qualidade) de capas originais correspondentes às obras editadas legalmente.
7 – As faces dos ditos CD-R, na parte oposta à da leitura, não continham impressões ou estampagens (‘label’s’), tal como geralmente existe nos originais, com trabalho gráfico, título genérico da obra, nomes dos intérpretes e do editor/etiqueta discográfica.
8 – A face de leitura dos ditos CD-R era de cor esverdeada, enquanto nos originais é de cor prateada.
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9 – No que tange aos sobreditos videogramas, nenhum continha qualquer ‘booklet’ ou livreto, contrariamente ao que em geral sucede nas obras originais, dos quais constam a descrição dos argumentos, bem como referências à ficha técnica de produção da obra, instruções de uso ou índice de capítulos.
10 - As faces dos ditos DVD-R, na parte oposta à da leitura, não continham impressões ou trabalhos gráficos (‘label’s’), tal como geralmente existem nos originais.
11 – Todos os referidos videogramas apresentavam ‘lay-card’s’, maioritariamente em versão inglesa, porém sob a forma de fotocópia de má qualidade.
12 – Tais ‘lay-card’s’ constituíam reproduções integrais dos originais, sendo compostos por fotogramas das obras originais e textos, ou ainda composições a reproduzirem parcialmente edições comerciais já distribuídas em mercados estrangeiros, sendo que em onze (11) dos DVD-R existia ainda uma fotocópia do selo/etiqueta oficial da Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC).
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13 – Todos os ditos CD-R e DVD-R não contêm, na face da leitura e na área central, o código IFPI (International Federatiom of the Phonografic Industry), código esse designado pela sigla SID (Source Identification Code), o qual ao ficar inscrito em caracteres microscópicos permite identificar a entidade responsável pela masterização e fabrico de cada um dos exemplares em causa.
14 – Todas as obras fonográficas e cinematográficas fixadas nos ditos CD-R e DVD-R estão protegidas por direitos de autor, estando os respectivos direitos e autores devidamente registados na Sociedade Portuguesa de Autores (SPA).
15 - Os fonogramas e videogramas fixados nos ditos CD-R e DVD-R são de origem fraudulenta, por reproduzirem obras fonográficas e cinematográficas sem a autorização dos respectivos autores, e por não terem sido editados pelos legítimos detentores dos respectivos direitos fonográficos e videográficos, nem tampouco por aqueles autorizados a serem comercializados ao público.
16 – Quer os autores das obras fonográficas e cinematográficas fixadas em tais fonogramas e videogramas, quer os seus legítimos representantes, não concederam qualquer espécie de autorização ao arguido para a utilização, prestação, exibição, venda ou distribuição ao público dos referidos fonogramas e videogramas.
17 – Os referidos CD-R e DVD-R eram pertença do arguido, e eram destinados à venda ao público em geral.
18 – O arguido bem sabia que esses CD-R e DVD-R eram de origem fraudulenta.
19 – Mais sabia que não possuía autorização daqueles autores, produtores e seus legítimos representantes, para proceder à venda dos ditos CD-R e DVD-R, e que ao assim actuar o fazia contra a vontade dos mesmos.
20 - Ao actuar da forma supra descrita o arguido agiu com o propósito de vender e auferir proventos a que sabia não ter direito, pois sabia que não podia comercializar os referidos CD-R e DVD-R.
21 – Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
22 - Possui antecedentes criminais, pois que, por sentença proferida em 25.1.08, e por factos praticados em 22.11.05, foi condenado, pela prática de um crime de contrafacção (direitos de autor), p. e p. pelo artº 196º da Lei 114/91, na pena de 220 dias de multa.
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Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para além ou em contradição com os anteriores.
Motivação
“Fundou-se a convicção do tribunal na conjugação do teor do depoimento da testemunha B… com as regras da normalidade e experiência corrente.
Assim, aquela testemunha, Comandante (…) da GNR, apontou o motivo para a abordagem ao arguido, e as circunstâncias em que a mesma ocorreu, designadamente o modo como procedeu à sua identificação, bem como os esclarecimentos que o arguido logo prestou quanto à detenção e destino dos objectos posteriormente apreendidos.
Mais foi relevante o auto de apreensão de fl. 9 (cuja relação discriminada consta a fls. 12 a 21), bem como o auto de exame de fls. 52 a 75.
Ainda o CRC de fls. 78 e s..”
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3. Decidindo:
Nos termos do disposto no art. 199º nº 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, «Quem vender, puser à venda, importar, exportar ou por qualquer meio distribuir ao público obra usurpada ou contrafeita ou cópia não autorizada de fonograma ou videograma, quer os respectivos exemplares tenham sido produzidos no país ou no estrangeiro, será punido com as penas previstas no art.º 197.º ».
O bem jurídico protegido é claramente o interesse patrimonial do autor ( e do titular do direito de autor se for pessoa ou entidade distinta do autor), o seu direito de colocar os exemplares no mercado.
No que se refere aos elementos do tipo:
a) - tipo objectivo
- conduta típica: comercialização de cópias ilícitas, contrafeitas ou usurpadas mediante a venda, colocação à venda, importação, exportação, distribuição ao público por qualquer modo;
- objecto da acção: a obra protegida;
- titular do bem jurídico - o sujeito passivo do crime;
b) - tipo subjectivo: dolo em qualquer das suas modalidades, bem como negligência também em qualquer das usas modalidades.
Repare-se que “ao contrário do que acontece em outros crimes (por exemplo de tráfico de droga, de crimes contra a economia e a saúde públicas), o âmbito de tipicidade deste crime do art. 199.º está consideravelmente diminuído uma vez que dele se excluem outras condutas que poderiam integrar a prática do mesmo, por exemplo, “transportar”, “armazenar”, “detiver em depósito”, “ ter a posse”, etc. – Ac. da Relação de Coimbra, de 5-05-2010, relator Des. Paulo Valério.
É actualmente pacífico na doutrina que o conceito de distribuição pressuposto na norma não resulta limitado pela noção jurídica de distribuição, antes deve ser entendido na sua vertente económica, já que a norma visa abranger as actividades empresariais de comercialização de exemplares ilícitos, independentemente de estarem ou não cobertas por aquela noção jurídica.
Contudo, e como adverte José Branco, in Comentário das Leis Penais Extravagantes - Universidade Católica Editora, vol.2, pag 265, anotação ao art. 199º, do CDADC.: "O transporte não é punido por este tipo legal de crime, embora se pudesse considerar que cabia no significado abrangente da expressão "... ou por qualquer modo distribuir ao público..." ( nº 1), posto que estamos perante crime de resultado e o mero acto de transportar não consubstancia a colocação no mercado à disposição do público. O transporte constituirá um mero acto de execução não punível e insuficiente para consumar a infracção ou, quando muito, configurar, conforme as circunstâncias que da prova resultarem, uma tentativa".
No mesmo sentido, Ac Rel. do Porto de 19-10-2005 ( www.dgsi), Ac RP, de 2-12-2009, proc. n.º 42/05.OFBPVZ.P1 ( www.dgsi.pt), Ac Rel. Guimarães, 11 de Janeiro de 2016, relator Des João Carlos Lee Ferreira.
Acresce que quanto ao bem jurídico o crime tipificado no referido art 199º é um crime de dano e não um crime de perigo (concreto ou abstracto) já que se exige uma lesão do bem jurídico e não apenas a sua colocação em perigo, como acontece no caso do mero transporte.
Revertendo aos autos, está provado que o arguido transportava na viatura automóvel 132 fonogramas em suporte físico de formado CD-R (Compact-disc Recordable) e 196 videogramas em suporte físico de formato DVD-R (Digital Versatible Disc Recordable), que não tinham sido editados pelos legítimos detentores dos respectivos direitos de autor e de que não possuía qualquer autorização para a comercialização.
Provado está também que os referidos CD-R e DVD-R eram pertença do arguido e eram destinados à venda ao público em geral - facto provado nº 17.
Assim sendo, à luz de elementares regras de experiência, seguir-se-ia o comércio daqueles registos, pelo que a conduta do arguido/recorrente integra a prática dos actos objectivamente necessários para a realização do crime. Só por intervenção das autoridades policiais, ou seja, por circunstâncias estranhas à vontade do agente, não veio a ocorrer o resultado e o dano decorrente da colocação à venda, ou da venda ou da distribuição ao público das obras contrafeitas.
Logo, a conduta do arguido não integra o crime consumado.
Há tentativa, nos termos do artigo 22°, n° l do Código Penal) quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer sem que este chegue a consumar-se".
São actos de execução, nos termos do n° 2 do mesmo artigo:
"a) Os que preenchem um elemento constitutivo de um tipo legal de crime;
b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou
c) Os que, segundo a experiência comum, e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores."
A tentativa, que representa uma extensão de incriminação (com referência ao crime consumado) de um determinado tipo legal de crime, só se verifica quando o agente inicia a prática dos actos objectivamente necessários para a realização do crime mas não se produz o resultado por circunstâncias estranhas à vontade do agente (portanto, em que não há desistência ou impedimento voluntário do resultado), subsistindo apenas o perigo de lesão do bem protegido na norma de incriminação ( correspondente ao crime consumado ) - cit Ac da Rel Coimbra de 5-05-2010.
Conforme o disposto no artigo 23.º, nº 1, do CP, “ salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão.”
Em suma, a conduta do arguido, - transportar objectos contrafeitos e usurpados e cuja venda é ilegal, para posterior venda -, não preenche totalmente aquela previsão típica do art. 199.º citado, ficando-se pela forma tentada (art.º 22.º Código Penal), não punível tendo em conta a moldura penal abstractamente aplicável para o crime consumado (prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias) - art 197, n° 1, do CDADC.
Impõe-se pois absolver o arguido por falta de tipicidade da conduta e por não ser punível a tentativa.
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III Dispositivo
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida, e em absolver o arguido do crime imputado.
Sem tributação.
Coimbra, 13 de Junho de 2018
(elaborado e revisto pela relatora antes de assinado)

Isabel Valongo (relatora)

Jorge França (adjunto)