Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
308/09.0TASCD-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
DESCONTO
Data do Acordão: 03/06/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE SANTA COMBA DÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 80.º DO CÓDIGO PENAL.
Sumário: I - Apenas podem ser descontadas, ao abrigo do disposto no artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, a detenção, a prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação aplicadas em processo diferente quando o facto por que o arguido for condenado tenha sido praticado em data anterior à da decisão final do processo no âmbito do qual aquele esteve sujeito a uma ou mais dessas medidas.

II - Assim, se os factos praticados no domínio de um processo - pelos quais o arguido foi condenado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de oito anos de prisão - ocorreram no período compreendido entre o ano de 2007 e 31 de janeiro de 2011 -, sucedendo também que a decisão relativa a outro processo foi proferida e transitou em julgado em 2009, não existe fundamento para o desconto naquela pena do tempo de prisão preventiva e de obrigação de permanência na habitação (mediante vigilância electrónica) cumprido à ordem do último dos referidos processos, porquanto o crime de tráfico apenas se consumou em janeiro de 2011, ou seja, depois da prolação da decisão final no processo onde aquelas medidas de coacção foram impostas e cumpridas.

Decisão Texto Integral: Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO:

1. No âmbito do Processo Comum (Colectivo) nº 308/09.0TASCD, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, inconformado com o despacho que - no âmbito da liquidação da pena de 8 anos de prisão por que tinha ali sido condenado - julgou ali não ter lugar desconto do tempo de prisão preventiva e de permanência na habitação que havia sofrido à ordem do Processo Comum Colectivo nº 47/08.9GCSCD, do 2º Juízo daquele mesmo tribunal, o arguido A..., interpôs recurso de tal despacho finalizando a respectiva motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:

“CONCLUSÕES:

1.- O arguido, ora recorrente, foi condenado nestes autos, por decisão já transitada em julgado, na pena única de 8 (oito) anos de prisão (v. acórdão de fls. 4921 ss e de fls. 5324 ss). O arguido foi detido nestes autos no dia 31-01-2011 e submetido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido no dia 02-02-2011, tendo-lhe sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, encontrando-se desde essa data preso à ordem dos presentes autos, agora já em cumprimento da pena de prisão efectiva.

2.- Além disso, esteve também o arguido preso preventivamente e no cumprimento de medida de coação de permanência na habitação mediante vigilância eletrónica à ordem do PCC 47/08.9GCSCD do 2° juízo, do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, desde 10-03-2008 até 15-04-2008 (prisão preventiva) e desde tal data até 02-07-2008 (permanência na habitação).

3.- Entendeu a Meritíssima Juiz a Quo que o período de tempo sofrido em prisão preventiva e permanência na habitação à ordem do PCC 47/08.9GCSCD do 2° juízo, do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, não seria de descontar no cumprimento da pena que lhe foi aplicada nestes autos, dado não se encontrarem reunidos os pressupostos previstos no artigo 80°, nº 1 do C.P.. “ Concluindo que, não é pois de descontar nos presentes autos as privações de liberdade atinentes ao processo n.° 47/08.9GCSCD.”

4.- Ora é com este entendimento que não podíamos estar mais em desacordo.

5.- Como se pode constatar, no processo n.° 47/08.9GCSCD foi proferida decisão final no dia 07.09.2009, transitada em julgado no dia 26.11.2009, já os factos ilícitos típicos pelos quais o arguido foi condenado (designadamente crime de tráfico de estupefacientes e detenção de arma proibida) nestes autos prolongaram-se desde o ano 2007 até 31 de Janeiro de 2011.

6.- Ora no caso em apreço, a prática do facto que justificou a imposição da prisão iniciou-se antes do trânsito em julgado da decisão final proferida no processo em que foram impostas a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação.

7.- Pelo que, no entendimento do arguido, ora recorrente, estão preenchidos os pressupostos do artigo 80º do C.P., devendo, por isso, proceder-se também ao desconto nestes autos as privações de liberdade atinentes ao processo n.° 47/08.9GCSCD.

8.- Reclama a lei que entre o processo em que o arguido sofreu uma das indicadas medidas e aquele em que venha a ser condenado se estabeleça uma conexão que passa por o facto por que for condenado ter sido praticado antes da decisão final do processo no âmbito do qual sofreu tais medidas.

9.- Ora, no caso em apreço, verifica-se claramente essa conexão temporal entre a prática dos factos por que veio a ser condenado e a decisão final do processo no âmbito do qual esteve sujeito a essas medidas, pelo que deve entender-se que estão preenchidos os pressupostos do art. 80° do C.P..

10.- A limitação prevista no art. 80° do C.P., tem todo o sentido, no entanto, entende o recorrente, que não é aplicável no seu caso específico, porquanto ele deu início ao seu comportamento ilícito nestes autos em 2007, bem antes da decisão final do processo 47/08.9GCSDC, pelo que nesta situação, o desconto nos presentes autos das privações de liberdade atinentes ao processo 47/08.9GCSDC não repugnam os fins preventivos das penas, e só se efectuando esse desconto se fará JUSTIÇA.

11.- Assim sendo, o tempo de prisão preventiva e de permanência na habitação sofrida naquele processo tem que ser descontada na pena imposta nos presentes autos.

12.- Em função do exposto, ao não se proceder ao desconto nos presentes autos das privações de liberdade atinentes ao processo 47/08.9GCSDC violou-se o artigo 80° do C.P.

Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se parcialmente o decidido e substituído por um outro que ordene ao tribunal recorrido que retifique a liquidação da pena imposta, entrando em linha de conta com a prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação sofrida no âmbito do processo n.° 47/08.9GCSCD.

De todo o modo, sempre farão Vossas Excelência a acostumada JUSTIÇA.”

                                                   *

2. O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, pugnado pela manutenção da decisão recorrida, com formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“Conclusões:

1. O recorrente foi condenado nestes autos, por decisão já transitada em julgado, na pena única de 8 (oito) anos de prisão.

2. O arguido foi detido nestes autos no dia 31-01-2011 e submetido a  primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no dia 02-02- 2011, tendo-lhe sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, encontrando-se desde essa data preso à ordem dos presentes autos, agora já em cumprimento de pena de prisão efectiva.

3. Não obstante o arguido ter estado preso preventivamente e no cumprimento de medida de coacção de permanência na habitação mediante vigilância electrónica à ordem do PCC 47/08.9GCSCD do 1° Juízo desde TJ, desde 10-3-2008 até 15-04-2008 (prisão preventiva) e desde tal data até 02-07-2008 (permanência na habitação), entende-se que tal período de tempo não será de descontar no cumprimento da pena que lhe foi aplicada nestes autos, dado não se encontrarem reunidos os pressupostos previstos no art. 80°, n° 1 do CP.

4. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 9/2011 fixou jurisprudência no sentido de “verificada a condição do segmento final do artigo 80.°, n.° 1, do Código Penal — de o facto por que o arguido for condenado em pena de prisão num processo ser anterior à decisão final de outro processo, no âmbito do qual o arguido foi sujeito a detenção, a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação —, o desconto dessas medidas no cumprimento da pena deve ser ordenado sem aguardar que, no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas, seja proferida decisão final ou esta se torne definitiva.»

5. Resulta do texto do AUJ que o desconto pode (deve) ser efectuado em processo diferente daquele em que as medidas processuais privativas de liberdade (detenção, prisão preventiva, obrigação de permanência na habitação) foram aplicadas ao arguido desde que verificado o pressuposto de o facto objecto de condenação ser anterior à prolação da decisão final no processo em que as medidas foram aplicadas.

6. Nos termos da lei, a condição única para o desconto de medidas processuais privativas de liberdade em processo diferente daquele em que essas medidas foram aplicadas é a anterioridade do facto por que o arguido for condenado relativamente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.

7. Só não se efectuará o desconto da detenção, da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação em processo diferente daquele em que o arguido a elas foi sujeito quando o facto por que o arguido for condenado for posterior à decisão final do processo em que essas medidas foram aplicadas.

8. A ratio do artigo 80.°, n.° 1 do CP é que se desconte o tempo de privação de liberdade sofrido noutras causas por factos anteriores à decisão final do processo no âmbito do qual o arguido sofreu as medidas processuais privativas da liberdade, no sentido de evitar o desconto do tempo de privação de liberdade anteriormente sofrido em processos por factos posteriores de forma a não gerar, em quem tivesse a seu favor um tempo de privação de liberdade sobrante, um crédito ou saldo positivo de tempo de privação de liberdade por conta de um futuro crime o que poderia equivaler a uma compensação em pena futura como se de um convite a delinquir se tratasse.

9. O arguido foi condenados nos presentes autos pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e de um crime de detenção de arma proibida.

10. O crime de tráfico de estupefacientes é um crime de trato sucessivo, sendo certo que o último acto de execução nos presentes autos data de 31-01-2011, ou seja, muito tempo depois da decisão final proferida no referido processo n° 47/08.9GCSCD.

11. Os factos pelos quais o arguido foi condenado nos presentes autos que integram a prática do crime de tráfico de estupefacientes são anteriores e posteriores à referida decisão final.

12. Os factos integradores do crime de detenção de arma proibida pelos quais o arguido foi condenado datam de 31-01-2011, não restando qualquer dúvida quanto à sua posterioridade em relação à decisão final proferida no referido processo n° 47/08.9GCSCD.

13. Em face do expendido fica afastada a possibilidade de aplicação do artigo 80º, n°1 do Código Penal.

Termos em que, e nos melhores de Direito, não dando provimento ao recurso e, concomitantemente, mantendo a douta decisão em crise,

Farão Vossas Excelências, ora como sempre, JUSTIÇA”

3. A Mma Juiz do tribunal a quo limitou-se a admitir o recurso, a mandar instruí-lo e a ordenar a sua remessa a este tribunal, desacompanhado de qualquer sustentação (cfr. despacho que nestes autos consta a fls. 315).

4. Nesta instância, o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e confirmação do despacho recorrido.

5. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, o recorrente nada disse.

6. Entretanto, foi junta aos autos certidão de um despacho proferido no processo n° 47/08.9GCSCD a revogar a suspensão da pena de 10 meses de prisão que ali tinha sido aplicada ao arguido e a determinar o cumprimento de tal pena.

7. Em face disso, foi determinada a notificação do recorrente para esclarecer se ainda mantinha interesse no recurso, tendo o mesmo, a fls. 363, vindo dizer que mantém interesse no recurso.

8. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, pelo que cabe apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

Assim, atento o teor das conclusões, a única questão a decidir – que não reveste grande dificuldade - consiste em saber se o tempo de prisão preventiva e de permanência na habitação que o aqui recorrente sofreu no âmbito do Processo Comum Colectivo nº 47/08.9GCSCD, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão deve ser descontado na pena de prisão imposta no âmbito dos presentes autos e, em consequência se se impõe a rectificação da liquidação da pena.

Antes de vermos o teor do despacho recorrido, importa deste já fazer uma breve resenha do que os elementos destes autos (certidão) nos dão conta para uma melhor compreensão do processado e da decisão a proferir.

Assim:

1. No âmbito destes autos, e por factos ocorridos entre 2007 e 31/01/2012 (com excepção do período de tempo que decorreu entre 08.03.2008 e 02.07.2008 em que esteve preso preventivamente e em prisão domiciliária à ordem do PCC 47/08.9GCSCD do 2º Juízo do TJ de Santa Comba Dão), o aqui recorrente foi condenado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e de detenção de arma proibida, na pena única de 8 anos de prisão, pena esta que actualmente se encontra a cumprir. Chama-se a atenção que no que ao crime de detenção de arma proibida respeita o mesmo foi praticado no dia 31/01/2011 e o crime de tráfico de estupefacientes teve o último acto de execução também neste dia 31/01/2011.

2. No âmbito do Processo Comum Colectivo nº 47/08.9GCSCD do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, por factos ocorridos em 08.03.2008 o aqui recorrente foi condenado, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano. Tal decisão condenatória foi proferida em 07/10/2009 e transitou em julgado em 26/11/2009. Em tal processo esteve preso preventivamente e no cumprimento de medida de coacção de permanência na habitação mediante vigilância electrónica desde 10.3.2008 até 15.04.2008 (prisão preventiva) e desde tal data até 02.07.2008 (permanência na habitação).

3. No âmbito dos presentes autos, em 10/10/2012 o Ministério Público procedeu à liquidação da pena única de 8 anos de prisão, manifestando a sua posição no sentido de que o tempo de prisão preventiva e de permanência na habitação sofridos pelo ora recorrente naquele processo nº 47/08.9GCSCD não deveria ser alvo de desconto na pena dos nossos autos por não se verificarem os requisitos do artigo 80º nº 1 do Código Penal.

4. Nessa sequência, em 12/10/2012, vem então a ser proferido o despacho recorrido que, na parte que aqui interessa, tem o seguinte teor (transcrição):

“O arguido A... foi condenado nestes autos, por decisão já transitada em julgado, na pena única de 8 (oito) anos de prisão (v. acórdão de fls. 4921 ss e de fls 5324 ss).

Importa dizer, desde logo, que se concorda com a posição assumida pelo Ministério Público na promoção que antecede no que concerne à não consideração nos presentes autos, para efeitos de liquidação, do período em que o arguido esteve privado de liberdade à ordem do processo nº 47/08.9GCSCD do 2° Juízo deste Tribunal.

Vejamos.

O arguido esteve preso preventivamente e no cumprimento de medida de coacção de permanência na habitação mediante vigilância electrónica à ordem dos autos supra identificados desde 10.3.2008 até 15.04.2008 (prisão preventiva) e desde tal data até 02.07.2008 (permanência na habitação).

Sendo pressuposto da aplicação do disposto no nº1 do artigo 80.º do Código Penal que os factos pelos quais o arguido seja condenado tenham sido praticados anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas privativas de liberdade foram aplicadas, se bem analisarmos o objecto do processo n.° 47/08.9GCSCD, confrontando-o com os presentes autos, constatamos que em tais autos foi proferida decisão final no dia 07.09.2009, transitada em julgado  em julgado no dia 26.11.2009, sendo certo que os factos ilícitos típicos pelos quais o arguido foi condenado (designadamente crime de tráfico de estupefacientes e detenção de arma proibida) nestes autos se prolongaram desde o ano de 2007 até 31 de Janeiro de 2011; não sendo pois de descontar nos presentes autos as privações de liberdade atinentes ao processo n.º 47/08.9GCSCD.

Em face do exposto e com os fundamentos supra, concordando inteiramente com a liquidação da pena que antecede, aplicada ao arguido A..., homologo a mesma nos seus precisos termos.

(…)”

Como tínhamos assinalado, a questão suscitada no presente recurso consiste em saber se o tempo de prisão preventiva e de permanência na habitação que o aqui recorrente sofreu no âmbito do Processo Comum Colectivo nº 47/08.9GCSCD, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão deve ou não ser descontado na pena de prisão imposta no âmbito dos presentes autos e, sendo que em caso de resposta positiva, se se imporá a rectificação da liquidação da pena.

O instituto do desconto prevê a possibilidade de que o arguido possa ver descontado, no cumprimento da pena de prisão em que venha a ser condenado, o tempo sofrido em medidas de privação de liberdade – como a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação – que lhe tenham sido aplicadas (cfr. o art. 80º do Código Penal), e em pena anterior que venha a ser substituída por outra (cfr. o art. 81º do mesmo Código), ainda que as medidas processuais ou a pena anterior, pelo mesmo ou pelos mesmo factos, tenham sido sofridas pelo agente no estrangeiro (cfr. o art. 82º do mesmo Código Penal).

O caso agora em análise insere-se na previsão do art. 80º do Código Penal.

Estipula o nº 1 do art. 80º que “a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas”.

Apoiado na última parte deste normativo, a Mma. Juiz a quo não acolheu a pretensão do recorrente de que lhe fosse descontado o período de privação de liberdade (prisão preventiva e permanência na habitação) sofrido no âmbito do Processo Comum Colectivo nº 47/08.9GCSCD pelo facto da decisão de tal processo ser anterior aos crimes dos presentes autos.

É contra tal interpretação, literal, que se insurge o recorrente, que entende que “só (…) se fará justiça”, se for considerado como passível de desconto, no tempo de prisão destes autos, o período de detenção que suportou naquele processo uma vez que os factos relacionados com o tráfico de estupefacientes começaram a ser praticados antes da condenação naquele Processo Comum Colectivo nº 47/08.9GCSCD.

Desde já aqui adiantamos que, salvo o muito devido respeito por opinião contrária, não assiste razão ao recorrente.

Antes de mais, importa referir que ao instituto do desconto subjaz uma ideia de justiça material.

Com efeito, como refere Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 297), tal instituto assenta na ideia básica segundo a qual as privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha já sofrido lhe devem aproveitar, sendo imputadas ou descontadas na pena em que o agente, em virtude de uma condenação já transitada em julgado, deva cumprir.

No que respeita ao instituto do desconto, estatuía o nº 1 do art. 80º do Código Penal, aprovado pelo D.L. nº 400/82, de 23 de Setembro, que “a prisão preventiva sofrida pelo arguido no processo em que vier a ser condenado é descontada no cumprimento da pena que lhe for aplicada”.

Na versão introduzida pelo D.L. nº 48/95, de 15 de Março, o nº 1 do art. 80º passou a determinar que “a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação, sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado, são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão que lhe for aplicada”.

A actual redacção do nº 1 do art. 80º foi introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, estipula, como supra se disse, que “a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas”.

Como se vê, no regime anterior eram descontadas na pena as medidas de privação de liberdade de carácter processual sofridas pelo arguido no processo em que viesse a ser condenado.

Com a redacção dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, foi eliminado o anterior pressuposto da unidade processual, admitindo-se a extensão do desconto a um processo diferente daquele em que tinha tido lugar a aplicação daquelas medidas de privação de liberdade.

Na Proposta de Lei nº 98/X, que teve por fonte os trabalhos da Unidade de Missão para a Reforma Penal, criada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 113/2005, de 29 de Julho, com, além de outros, o objectivo de elaborar uma proposta de diploma de reforma do Código Penal, o nº 1 do artigo 80º tinha a seguinte redacção: “a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado”.

A propósito desta redacção, pode ler-se na exposição de motivos da mesma proposta de lei que “estatui-se que todas as medidas privativas da liberdade sofridas antes da condenação são descontadas na pena de prisão. Incluem-se neste cômputo a simples detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação. A inovação consiste em prescindir, para efeito de desconto, da exigência de as medidas terem sido aplicadas no mesmo processo, admitindo-se de modo expresso que digam respeito a processo diferente”.

Mas, na sequência da aprovação na generalidade e baixa à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias daquela Proposta de Lei n.º 98/X, o art. 80º veio a incluir a proposta oral do PS de aditamento de um final ao nº 1, com o seguinte teor “quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas”, redacção que veio a ser aprovada, na reunião da Comissão de 11 de Julho de 2007, e que se mantém actualmente.

Ou seja, o legislador abandonou a unidade do processo como requisito do desconto, mas não acolheu um sistema ilimitado de desconto. Com efeito, como refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, em anotação ao art. 80º, p. 292), um sistema ilimitado de desconto poderia constituir um incentivo objectivo à prática de crimes.

Neste sentido, esclarece Jorge Baptista Gonçalves (in A revisão do Código Penal: Alterações ao sistema sancionatório relativo às pessoas singulares, Revista do CEJ, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, 1º Semestre 2008, Nº 8 (Especial), pags 15 a 40), no anteprojecto e na Proposta de Lei nº 98/X previa-se um sistema “que podemos chamar de conta-corrente de liberdade, em que se lançariam a crédito os tempos de privação da liberdade (por detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação) aplicados em qualquer processo, lançando-se a débito as condenações transitadas em julgado. Como não se estabelecia qualquer limite temporal, a norma permitia, numa interpretação literal, que se guardasse ‘em carteira’ um período de privação da liberdade (sofrido, por exemplo, num processo que findara com uma absolvição) para descontar em penas sofridas por factos praticados em momento posterior, o que colocaria em crise as finalidades preventivas gerais associadas à previsão dos crimes e cominação das penas”.

Em suma, como se escreve no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 9/2011, de 20/10/2011 (publicado no Diário da República I Série, de 23/11/2011) e que versa sobre o instituto do desconto, embora não directamente sobre a questão agora em análise, “No sistema actual – eliminado o requisito da unidade processual –, o desconto pode (deve) ser efectuado em processo diferente daquele em que as medidas processuais privativas de liberdade (detenção, prisão preventiva, obrigação de permanência na habitação) foram aplicadas ao arguido desde que verificado o pressuposto de o facto objecto de condenação ser anterior à prolação da decisão final no processo em que as medidas foram aplicadas.

Nos termos da lei, a condição única para o desconto de medidas processuais privativas de liberdade em processo diferente daquele em que essas medidas foram aplicadas é a anterioridade do facto por que o arguido for condenado relativamente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.

Ou, dito de outro modo, só não se efectuará o desconto da detenção, da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação em processo diferente daquele em que o arguido a elas foi sujeito quando o facto por que o arguido for condenado for posterior à decisão final do processo em que essas medidas foram aplicadas.

Neste requisito da anterioridade do facto objecto de condenação num processo, em relação à decisão final de outro processo, no âmbito do qual as medidas foram aplicadas, esgota-se o inciso final do n.º 1 do artigo 80.º que traduz o objectivo de estabelecer um limite temporal inultrapassável para o desconto na pena de prisão em que o arguido venha a ser condenado num processo, das medidas processuais privativas de liberdade, por ele sofridas, em um outro distinto processo. Tal limite temporal é a data da decisão final proferida no processo no âmbito do qual essas medidas foram aplicadas.

Deste modo, obsta-se a que o arguido que foi sujeito a medidas processuais privativas de liberdade num processo, no âmbito do qual não pôde proceder-se ao desconto das medidas processuais sofridas ou não pôde proceder-se ao desconto, por inteiro, das medidas processuais sofridas, mantenha, a seu favor (em seu benefício), um tempo de privação de liberdade, que lhe possa vir a aproveitar, por via do desconto, na eventual condenação por crime futuro, quer dizer, por crime praticado posteriormente à decisão final do processo em que sofreu tais medidas

(…)

A limitação prevista na parte final do nº 1 do artigo 80º, de que só se desconte o tempo de privação de liberdade sofrido noutras causas por factos anteriores à decisão final do processo no âmbito do qual o arguido sofreu as medidas processuais privativas da liberdade tem o sentido de evitar o desconto do tempo de privação de liberdade anteriormente sofrido em processos por factos posteriores de forma a não gerar, em quem tivesse a seu favor um tempo de privação de liberdade sobrante, um crédito ou saldo positivo de tempo de privação de liberdade por conta de um futuro crime o que poderia equivaler a uma compensação em pena futura como se de um convite a delinquir se tratasse.

Desta forma, do que se trata é de evitar situações que repugnariam aos fins preventivos das penas”.

Acresce que, como lembra Maia Gonçalves (Código Penal Português, Anotado e Comentado, 18ª edição, Almedina, em anotação ao art. 80º, pags. 317 e 318), “a versão da Proposta governamental para o nº 1 deste artigo prestava-se a severas críticas, designadamente porque podia fornecer aos arguidos um somatório de antigas medidas processuais de coacção a descontar em futuras condenações que obstariam ao cumprimento de penas que podiam até ser necessárias para a sua integração”.

Tecidas estas considerações, recordemos mais uma vez o que estabelece o artigo 80º nº 1 do Código Penal (na redacção actual, ou seja, na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 04/09): “A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas”.

Daqui decorre que, tal como já supra foi dito e foi referido a dado passo no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/03/2010 (publicado na CJ, Ano XXXIV, tomo II, pags 291 a 293), “havendo que proceder à contagem da pena, o que ocorre após o trânsito em julgado da condenação, há que descontar na pena de prisão os períodos de detenção, prisão preventiva, e de permanência na habitação, ainda que aplicadas em processo diferente daquele em que foi proferida a condenação. Tal só acontece, porém, se o facto pelo qual o arguido foi condenado tiver sido praticado em momento anterior à decisão final do processo em que aquelas medidas foram aplicadas.” E mais além refere a propósito do «“desconto” previsto no nº 1 do artigo 80º do C. Penal (…) a filosofia que preside ao instituto é, no essencial, similar ao regime preconizado para o concurso de crimes».

E no sumário de tal acórdão é dito, de forma bem explícita: “Apenas podem ser descontadas, nos termos do nº 1 do art. 80º do Código Penal, na redacção da Lei nº 59/2007, de 4/9, a detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação aplicadas em processo diferente quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram previstas”.

E já no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/07/2008 (acessível pela internet através do site www.dgsi.pt/jtrp), a propósito desta questão do desconto, era dito: “Reclama a lei que entre o processo em que o arguido sofreu uma das indicadas medidas e aquele em que venha a ser condenado se estabeleça uma conexão que passa por o facto por que for condenado ter sido praticado antes da decisão final do processo no âmbito do qual sofreu tais medidas. Não se verificando essa conexão temporal entre a prática dos factos por que venha a ser condenado e a decisão final do processo no âmbito do qual esteve sujeito a uma dessas medidas, o tempo em que o arguido as sofreu não lhe aproveita. Não é descontado no cumprimento da pena.

Concede-se, assim, ao arguido, que sofreu uma limitação da sua liberdade, em consequência da sujeição a uma das indicadas medidas, o benefício de ver descontado no cumprimento da pena aplicada em processo diferente daquele em que esteve sujeito a uma dessas medidas, o tempo em que sofreu a restrição da sua liberdade, sempre que, obviamente, o facto por que venha a ser condenado tenha sido praticado antes da decisão final do processo no âmbito do qual esteve sujeito a tais medidas.”

Considerando o exposto nestes acórdãos e o que também consta do supra mencionado acórdão de uniformização de jurisprudência, com os quais manifestamos a nossa total adesão, e regressando finalmente à apreciação da questão sub júdice, pela análise do que os autos nos dão conta (entre os quais se inclui a certidão do acórdão proferido no já mencionado Processo Comum Colectivo nº 47/09.9GCSCD – a qual consta a fls. 261 a 280 destes autos de recurso), verifica-se o seguinte:

1. - os factos praticados no âmbito dos presentes autos pelos quais o arguido foi condenado (e se encontra a cumprir a pena de 8 anos de prisão), ocorreram entre o ano de 2007 até 31/01/2011;

2. - a decisão final preferida no âmbito do mencionado Processo Comum Colectivo nº 47/08.9GCSCD teve lugar no dia 07/10/2009 e transitou em julgado em 26/11/2009 (cfr. fls. 261 a 282).

Por isso, e tal como refere o Ministério Público, considerando que os factos pelos quais o arguido foi condenado nos presentes autos (desde logo sem quaisquer dúvidas em relação ao crime de detenção de arma proibida) foram praticados em data posterior ao trânsito em julgado da decisão final do Processo Comum Colectivo nº 47/08.9GCSCD (a que acresce que também o ultimo acto de execução do crime de tráfico de estupefacientes foi posterior à decisão final do atrás mencionado processo), não há lugar ao desconto a que alude o art. 80º nº 1 do Código Penal por não se verificarem reunidos todos os requisitos exigidos por tal normativo para que pudesse ter lugar qualquer desconto no âmbito dos nossos autos.

E até por isso mesmo - ou seja pelo facto dos crimes dos nossos autos terem sido cometidos posteriormente ao trânsito em julgado do Processo Comum Colectivo nº 47/08.9GCSCD – é que neste mesmo Processo Comum Colectivo nº 47/08.9GCSCD foi determinada a revogação da suspensão da execução da execução da pena (cfr. certidão de fls. 335 a 359 destes autos de recurso), a que ainda acresce que tal processo também já havia solicitado a colocação do aqui recorrente à ordem do mesmo processo a fim de ali cumprir pena (cfr. ofício – cópia- que consta a fls. 338 destes autos de recurso). E ali sim: naquela pena de 10 meses de prisão aplicada naquele Processo Comum Colectivo nº 47/08.9GCSCD (cuja suspensão foi entretanto revogada devido ao cometimento dos crimes dos nossos autos) deverá ser descontado o tempo de prisão preventiva e de permanência na habitação que o aqui recorrente ali sofreu, ao abrigo do disposto no artigo 80º nº 1 do Código Penal.

Assim, e em síntese conclusiva, improcederá a pretensão do recorrente em ver descontado nestes autos o tempo de prisão preventiva e de permanência na habitação sofrido à ordem do Processo Comum Colectivo nº 47/08.9GCSCD.

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III. – DISPOSITIVO
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso interposto e, consequente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC’s.

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Luís Coimbra (Relator)
Cacilda Sena