Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
10/17.9GCALD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: PERTURBAÇÃO DO FUNCIONAMENTO DE ÓRGÃO CONSTITUCIONAL;
TRIBUNAL
Data do Acordão: 06/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA, J-1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 334.º, AL. A), DO CP
Sumário:
I – O tribunal, enquanto órgão de administração da justiça, é uma instituição abstracta independente das pessoas que, a cada momento, o integram.
II – No sentido axiológico do tipo legal do artigo 334.º, al. a), do CP, perturbar é o acto de impedir que o órgão ou os membros visados exerçam as suas funções nas condições de dignidade e tranquilidade que o seu estatuto lhes confere.
III – Preencheu aquele tipo de crime a conduta do arguido que, ao balcão da secretaria de um tribunal, através de tumultos, desordem e vozearias, perturbou o trabalho normal dos funcionários que ali se encontravam e bem assim o desempenho funcional de uma Procuradora-Adjunta.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


No Juízo Central Cível e Criminal da Guarda, J-1, da Comarca da Guarda, nos autos de processo comum (colectivo) que aí correram termos sob o nº 10/17.9GCALD, foi o arguido A… submetido a julgamento, acusado pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de perturbação de funcionamento de órgão constitucional, p. e p. pelo artigo 334º, 1ª parte, da alínea a), do Código Penal.

Levado a efeito o julgamento, viria a ser proferido acórdão, decidindo nos seguintes termos:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem o Tribunal Colectivo em julgar a acusação deduzida pelo Ministério Público improcedente, e em consequência:

Absolver o arguido A… da prática do crime de perturbação de órgão constitucional p. e p. no artigo 334º nº1 a) do Código Penal que lhe vinha imputado.

Sem custas

Proceda ao depósito do Acórdão (cfr. artigo 372º do CPP).


Inconformado, o Digno Magistrado do MP interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1 – O presente recurso vem interposto do douto acórdão que julgou improcedente a acusação pública e, em consequência, absolveu o arguido A… da prática do crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional, p. e p. no art.º 334º, al. a), do Código Penal.

2 – No entanto, o Tribunal a quo deu como provado, além do mais, a seguinte factualidade:

“1.No dia 3 de Março de 2017, pelas 13h30, o arguido A… dirigiu-se para a Secretaria do Juízo de B… – Comarca da Guarda, sita na área de C…, aparentando já se encontrar embriagado.

2. Aí chegado, o arguido abeirou-se do balcão de atendimento da Secção Central e foi atendido pelo funcionário D…, que o questionou se precisava de algo e logo de seguida, em voz alta e tom alterado e por várias vezes proferiu as seguintes expressões: “como é que eu me chamo?”, “ eu chamo-me E…?”, “ eu não sou mentiroso,”, nunca matei ninguém”, “ nunca roubei ninguém" e “andam a brincar comigo”.

3. Nesse momento o funcionário F…, que exerce as funções de Escrivão de Direito, abeirou-se do arguido de molde a indagar o porquê dessa expressão, mantendo o arguido a mesma postura.

4. Apurou-se, entretanto, que a causa de tais afirmações tinha como origem um lapso de escrita no nome do arguido que constava num despacho de acusação.

5. Entretanto, o arguido continuava a proferir em voz alta e tom exaltado as referidas expressões.

6. A ilustre Procuradora Adjunta aí a exercer funções e que se encontrava no seu gabinete a trabalhar ouviu voz alterada e em tom alto, vindo da Secretaria do Tribunal, o que se manteve durante alguns minutos, o que a desconcentrou do seu trabalho.

7. A certa altura, como a situação não cessava, a ilustre magistrada dirigiu- se à Secretaria e pediu ao arguido para se acalmar e parar de falar alto porque estava num tribunal e devia respeito ao local onde se encontravam funcionários que estavam a trabalhar, dizendo-lhe que estava a perturbar o normal funcionamento dos serviços.

8. O arguido manteve a mesma postura de falar alto e proferiu diversas expressões sem sentido e muitas delas impercetíveis e pediu para falar com a referida magistrada, que lhe disse que já lhe tinham sido dadas todas as informações pretendidas, nada mais havendo a esclarecer e que estava a perturbar os serviços e deveria abandonar o Tribunal, sob pena de ser chamada a G.N.R. para o retirar do edifício.

9. Entretanto o funcionário F… convidou o arguido a abandonar as instalações e disse-lhe que havia sido solicitada a presença da patrulha da G.N.R.

10. Passado alguns minutos o arguido deixou em cima do balcão uma nota do BCE de 50€ (cinquenta euros) e repentinamente saiu da Secretaria apressado.

11. Nesse momento o funcionário F… foi no encalço do arguido ordenando que regressasse à Secretaria a fim de recolher a nota de 50€, o que este veio a fazer depois de muitas insistências.

12. Entretanto chegou ao local uma patrulha da G.N.R. de C…, composta pelos Guardas G… e H…, que de imediato disseram ao arguido para abandonar voluntariamente as instalações, o que este recusou, pelo que houve a necessidade de ser usada a força estritamente necessária para retirar o arguido do local.”

3 - Por sua vez, a douta decisão recorrida, deu como não provados os seguintes factos:

“1. Nas circunstâncias referidas em 6. dos factos provados trabalho da Exma. Procuradora Adjunta foi perturbado pelo arguido.

2. Nas circunstâncias referidas em 9. dos factos provados, o arguido disse que não saía, e que a G.N.R vinha para lhe bater como era habitual.

3. Nas circunstâncias referidas em 10. dos factos provados o arguido bateu com a palma de uma das mãos com força no balcão,

4. Com as condutas descritas causou o arguido tumultos, desordens e vozearias na secretaria do Tribunal de C…, perturbando o normal funcionamento do Tribunal enquanto órgão de soberania.

5. Bem sabia o arguido que com a sua conduta perturbava o normal trabalho dos funcionários que aí se encontravam a laborar e bem assim o trabalho da ilustre Procuradora-Adjunta aí a exercer funções, perturbava indevida e ilegitimamente o normal funcionamento do Tribunal, enquanto órgão de soberania.

4 – O douto acórdão recorrido considerou que a conduta do arguido não perturbou o funcionamento do Tribunal de C…, mas que “apenas” desconcentrou a Senhora Procuradora Adjunta do seu trabalho.

5 – No ponto 6 dos factos provados, o Tribunal recorrido deu como provado que “A ilustre Procuradora Adjunta aí a exercer funções e que se encontrava no seu gabinete a trabalhar ouviu voz alterada e em tom alto, vinda da Secretaria do Tribunal, o que se manteve durante alguns minutos, o que a desconcentrou do seu trabalho” – sublinhado nosso.

6 – No entanto, no ponto 7, dos factos provados, o Tribunal a quo julgou provado que a “a certa altura e como a situação não cessava, a ilustre magistrada dirigiu-se à Secretaria e pediu ao arguido para se acalmar e parar de falar alto porque estava num tribunal e devia respeito ao local onde se encontravam funcionários que estavam a trabalhar e que estava a perturbar o normal funcionamento dos serviços.”

7 – É para nós manifesto que, se devido à circunstância de o arguido se encontrar na secretaria do tribunal a falar em tom de voz elevado e alterado [aos berros, como aquela referiu nas suas declarações], a Senhora Procuradora Adjunta interrompeu o seu trabalho, deslocou-se à secretaria a fim de se inteirar da situação e procurar pôr termo àquela desordem, o seu trabalho foi perturbado pela atuação do arguido.

8 – Em nosso entender, dos factos julgados provados pelo Tribunal recorrido nos pontos 2, 4, 5, 6, 7, 8 e 12, dos factos provados, impõe-se que o Tribunal dê também como provado que a atuação do arguido perturbou o trabalho da Senhora Procuradora Adjunta bem como a atividade dos Senhores Funcionários Judiciais que se encontravam na secretaria a cumprir os despachos proferidos em diversos processos - como resulta também evidenciado nos depoimentos do Senhor Escrivão de Direito, F…, bem como da Senhora Procuradora Adjunta, I…, nas passagens que se indicam e transcrevem parcialmente, na parte da motivação do presente recurso, e que aqui se dão por reproduzidos.

9 - Da parte da fundamentação da convicção do Tribunal, designadamente das referências aos depoimentos das testemunhas (…), melhor discriminadas na parte da motivação do presente recurso, decorre igualmente que a conduta do arguido em causa nestes autos perturbou o trabalho da Sr.ª Procuradora Adjunta que se encontrava a trabalhar no seu gabinete - a ultimar um despacho de acusação - pois que, a fez interromper o seu labor, deslocar-se à secretaria e entrar em diálogo com o arguido com vista a fazer cessar aquela situação de desordem na Secretaria do Tribunal, o que só foi conseguido com a presença da Guarda Nacional Republicana, que retirou o arguido do Tribunal.

10 – Temos para nós que, na presente situação, a conclusão extraída pelo Tribunal recorrido no sentido que a Sra. Procuradora Adjunta poderia ter continuado a fazer o seu trabalho, e que, a atuação do arguido apenas a desconcentrou, está em manifesta oposição com os factos julgados como provados nos pontos 2, 4, 5, 6, 7, 8 e 12 (dos factos provados), bem como com toda a prova direta produzida e apreciada em audiência de julgamento, sendo certo que, esta ilação também não encontra qualquer apoio nas regras da experiência comum.

11 - Em nosso entender, existe uma patente contradição entre os factos julgados provados, nos pontos 5, 6, 7 e 8 (factos provados) e entre os factos não provados descritos nos pontos 1, 4, 5 e 6 (factos não provados) e bem assim entre estes e a parte da fundamentação da convicção do Tribunal.

12 – A harmonização dos factos provados deverá, na nossa perspetiva, conduzir a que no ponto 6, dos factos provados, passe a constar que o arguido perturbou o trabalho da Senhora Procuradora Adjunta e que sejam julgados como provados também os factos inscritos nos pontos 4, 5 e 6 dos factos não provados, eliminando-se, em conformidade, o ponto 1 dos factos não provados.

13 – Temos para nós que, em face da fundamentação da convicção do Tribunal e mesmo da prova produzida e apreciada, indicada na parte da motivação, o douto acórdão recorrido julgou incorretamente o facto descrito no ponto 6, dos factos provado, e nos pontos 1 e 4, dos factos não provados, na parte em que refere a intensidade de afetação do trabalho da Senhora Procuradora Adjunta e da perturbação do funcionamento do Tribunal de C…, provocado pelo arguido.

14 - A factualidade que consta do ponto 4, dos factos não provados, deve ser julgada provada, na medida em que resulta dos factos provados nos pontos 2, 4, 5, 6, 7, 8 e 12, que com a descrita conduta o arguido provocou tumultos, desordens e vozearias na secretaria do Tribunal de C..., perturbando o normal funcionamento do tribunal enquanto órgão de soberania.

15 - Temos para nós que, a douta decisão recorrida enferma também de manifesto erro na apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, na parte em que o Tribunal considerou como não provados os elementos subjetivos do tipo de crime em apreço.

16 - Na douta decisão recorrida, o Tribunal a quo deu como não provados os elementos subjetivos do tipo de crime em apreço – cfr. pontos 5 e 6, dos factos não provados.

17 - Porém, a mesma decisão deu como provado que a ilustre Magistrada do Ministério Público a exercer funções do Juízo Local de C... dirigiu-se à Secretaria e pediu ao arguido para se acalmar e parar de falar alto porque estava num tribunal e devia respeito ao local onde se encontravam funcionários que estavam a trabalhar, dizendo-lhe que estava a perturbar o normal funcionamento dos serviços – como decorre do ponto 7 dos factos provados.

18 – O Tribunal recorrido deu ainda como provado que o arguido manteve a mesma postura de falar alto na Secretaria do Tribunal e que pela Sra. Procuradora Adjunta foi-lhe novamente pedido para parar de o fazer e comunicado expressamente que ele estava a perturbar o normal funcionamento do tribunal - como resulta do ponto 8 dos factos provados.

19 - Mais resulta, ainda, da douta decisão recorrida, da parte da fundamentação da convicção do Tribunal, que a testemunha I…, Procuradora Adjunta a exercer funções no Tribunal de C..., dirigiu-se ao arguido “dizendo-lhe que não podia continuar assim porque estava a perturbar o trabalho dela e dos funcionários” – cfr. fls. 207.

20 – Se, por hipótese, no momento inicial, o arguido não tivesse o conhecimento esclarecido e a vontade de praticar os factos em causa nos autos, certamente que após a Magistrada o Ministério Público ter informado o arguido que estava a perturbar o funcionamento do Tribunal, explicando que estava a perturbar o trabalho dela e dos funcionários, e tendo o arguido continuado a falar em tom de voz alto - como consta do ponto 8 dos factos provados – não pode existir qualquer dúvida que o mesmo arguido agiu com perfeito conhecimento e consciência de que se encontrava a perturbar o funcionamento do tribunal.

20 - Ora, perante estes factos que provados ficaram e os elementos que os suportam, temos para nós que o Tribunal incorreu em erro manifesto na apreciação da prova ao julgar não provado que o arguido bem sabia que com a sua conduta perturbava o normal trabalho dos funcionários que aí se encontravam a laborar e bem assim o trabalho da ilustre Procuradora Adjunta aí a exercer funções, perturbava indevida e ilegitimamente o normal funcionamento do tribunal, enquanto órgão de soberania e que agiu de forma de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei como crime.

21 - Da valoração dos factos que o Tribunal a quo considerou provados e estes conjugados com as regras da experiência comum, impõe-se que o Tribunal julgue provados os elementos subjetivos do tipo de crime em apreço e, consequentemente, que sejam aditados, à matéria de facto dada como provada, os pontos 5 e 6 dos factos julgados não provados, no douto acórdão recorrido.

22 - Como ensinam os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira "… os tribunais são órgãos complexos englobando as funções não apenas dos juízes mas também de outros agentes com estatutos muito distintos, como o Ministério Público (artigo 221), os advogados (que não são agentes públicos), os oficiais de justiça, etc. Consequentemente o tribunal não se identifica com o juiz, embora haja decisões e atos que só este possa praticar (reserva do juiz) - cfr. Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra Editora, página 791.

23 - Daqui resulta que a Constituição da República Portuguesa confere a soberania ao Tribunal e que esta é corporizada ou representada pelo juiz, mas isso não significa que este órgão constitucional se reduza a quem o representa - o juiz.

24 - Na interpretação e aplicação do disposto no art.º 334º, do Código Penal, a douta decisão recorrida acolheu a interpretação mais restritiva do “tribunal” que não tem sido a perfilhada pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores.

25 - Em nosso entender, na esteira das decisões dos nossos Tribunais Superiores, o tribunal, como órgão de soberania, para efeito do seu enquadramento na previsão do artigo 334º, do Código Penal, terá que ser entendido na aceção mais abrangente tal como é definida pelos constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira.

26 - Como se pode ler no douto acórdão do STJ de 27-11-1997 (BMJ 471-177), «[o] órgão de soberania “Tribunais” é uma entidade abstrata que, como tal, embora teoricamente corporizada no respetivo juiz ou juízes, que o representa, funciona como o organismo que constitucionalmente se destina à administração da justiça em nome do povo, nos termos do artigo 205.º da Lei Fundamental, e tem natureza complexa, constituída pelos respetivos juízes, funcionários e Ministério Público (…). É, pois, o funcionamento desse órgão, considerado no seu conjunto, que as disposições legais (artigos 369º, do CP de 82 e 334º, do CP de 95) visam proteger, independentemente de o tumulto, vozearia ou desordem se verificarem na presença ou fora da presença do respetivo juiz».

27 - De forma idêntica, na formulação do douto Acórdão do STJ de 14.10.1999, como n.º convencional JSTJ 00038312, “o juiz para administrar a justiça, em nome do povo, não age sozinho, dependendo o seu labor da laboração dos oficiais de justiça, incluindo os que desempenham funções no departamento do Ministério Público e, obviamente, do respetivo Magistrado do Ministério Público, aquém compete representar o Estado, exercer a ação penal e defender a legalidade democrática, bem como os interesses determinados por lei”.

“Todos eles compõem o "órgão complexo" designado por "Tribunal", pelo que a perturbação do seu funcionamento caí no âmbito da previsão do citado artigo 334º do Código Penal.”

28 - No mesmo sentido se entendeu no douto acórdão do TRE de 16.10.2012, processo n.º 862/10.3TALGS.E1, onde se refere que “para efeitos de enquadramento dos elementos típicos do crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional, não se visa apenas a proteção da função essencialmente jurisdicional.”

“Com tal incriminação, visa-se salvaguardar o órgão de soberania “Tribunais”, em toda a sua extensão, abrangendo todos aqueles cuja função de administrar a “justiça em nome do povo”, possa ser afetada e perturbada no seu normal decurso, compreendendo, pois, um elenco de agentes (juízes, magistrados do Ministério Público, funcionários judiciais) e atos desenvolvidos e encadeados que culminam no ato nobre de julgar, esse sim, acometido apenas à figura do juiz ou juízes, que representa o Tribunal.”

29 - A argumentação expendida na douta decisão recorrida, no sentido que uma perturbação no balcão da Secretaria do Tribunal, sem que estivesse a decorrer qualquer diligência presidida pelo Juiz, não integra a prática do crime, não pode ser aceite, por ser demasiado redutora do âmbito da tutela penal da norma jurídica.

30 - Em nosso entender, a melhor interpretação do disposto no art.º 334º, do Código Penal, é a que inclui no âmbito de proteção da norma a perturbação do tribunal, este considerado em sentido mais lato, abrangendo as funções do Juiz, do Magistrado do Ministério Público bem como dos Funcionários Judiciais ou do Ministério Público que aí prestem funções.

31 - No sentido axiológico do tipo legal em apreço, perturbar é o ato de impedir que o órgão ou os membros visados exerçam as suas funções nas condições de dignidade e tranquilidade que o seu estatuto lhe confere. A perturbação pode ser mais ou menos grave. Para o preenchimento do tipo de crime em apreço não é necessário que se verifique um verdadeiro impedimento do funcionamento do órgão ou o exercício de função.

32 - Condutas mais graves, que se traduzem no emprego de violência ou ameaça de violência e que visam impedir ou constranger o livre exercício das funções do órgão de soberania, estão tipificadas como crime de coação contra órgãos constitucionais, no art.º 333º, do Código Penal.

33 - A perturbação, no caso em apreço, é ilegítima pois que não existe qualquer causa de justificação.

34 - Em face do que se deixou dito, entendemos que da prova produzida em audiência de julgamento, resultou provado que o arguido perturbou, como desordens e vozearias, de forma ilegítima, o funcionamento do Juízo de Competência Genérica de C..., com perfeita consciência da ilicitude da conduta e vontade de praticar os factos.

35 - Em nosso entender, a conduta do arguido que ficou provada em audiência de julgamento, determinou uma afetação relevante do bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime previsto no art.º 334º, do Código Penal, tem dignidade penal e, assim, merece a censura penal adequada.

36 – A douta decisão recorrida violou ou interpretou de forma incorreta o disposto nos artigos 110º, n.º 1, e 202º, da CRP, 334º, al. a), do Código Penal, e 127º, do Código de Processo Penal.

37 - Em face do supra exposto, deverá o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que proceda à alteração da matéria de facto, nos termos acima indicados, e condene o arguido A… pela prática do crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional, p. e p. no art.º 334º, do Código Penal, numa pena de três meses prisão, substituída pela correspondente pena multa, nos termos do n.º 1, do art.º 43º, do Código Penal.

Nesta conformidade, entendemos que o douto acórdão recorrido deverá ser revogado, nos termos supra expostos, julgando-se a acusação procedente e condenando o arguido pela prática do crime de que vinha acusado.

Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente, nos termos acima expostos.

Assim se fazendo JUSTIÇA.

Respondeu o arguido/recorrido, retirando dessa sua peça as seguintes conclusões:

1ª - Deve manter-se na íntegra o douto Acórdão recorrido por o mesmo ter aplicado o disposto na lei e não ter violado qualquer normativo legal.

2ª - Não foi violado qualquer critério de apreciação da prova pelo Tribunal Recorrido.

3ª - Inexistem razões para alteração da matéria de facto dada corno provada e não provada.

4ª - Deve manter-se a absolvição do arguido nos exactos termos decididos pelo Tribunal "a quo ".

NESTES TERMOS, nos melhores de Direito e sempre com o douto suprimento de V.as Ex.s, deve negar-se provimento ao Recurso interposto e manter-se o douto Acórdão recorrido.


Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer, no sentido do provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


FACTOS PROVADOS:

(…)

Quanto à situação sócio-económica dos arguidos provou-se que:
13. O arguido tem problemas de alcoolismo desde os 18 anos de idade, tendo realizado vários tratamentos, mas não reconhece problemas com o consumo de álcool e mostra resistência ao reinício de tratamento ao alcoolismo, uma vez que desde que iniciou cumprimento de pena de prisão não voltou a ingerir bebidas alcoólicas, desvalorizando assim a sua problemática.
14. Recebe visitas regulares dos filhos ((…) com (…) anos de idade respectivamente e a estudarem no Agrupamento de Escolas de C...) que se encontram aos cuidados da avó paterna (ofendida no processo de que resultou a sua prisão) cuja relação com os mesmos é descrita pelo arguido como gratificante.
15. A mãe (…), doméstica) e a irmã (…), ainda não o visitaram, não obstante prestam-lhe algum apoio económico.
16. Antes de ser detido embriagava-se frequentemente, o que o deixava agressivo e descontrolado, envolvendo-se em problemas com a família de origem e com terceiros (à excepção dos filhos).
17. A situação económica assentava nos rendimentos da mãe do arguido, no valor de 280 euros referentes à pensão de viuvez e 120 euros de abono de família dos netos, praticando também agricultura de subsistência por forma a ajudar a colmatar as necessidades do dia-a-dia.
18. O arguido não contribuía com qualquer quantia monetária para as despesas do agregado familiar nem para a educação dos filhos.
19. À data dos factos aqui em causa o arguido residia sozinho numa casa propriedade da mãe, com adequadas condições de habitabilidade (T2), a mãe residia próximo, mantinha o apoio alimentício ao arguido, sendo os filhos que lhe levavam as refeições que ela confeccionava.
20. A… iniciou os consumos de álcool com cerca de 18 anos, problemática que nunca valorizou, fez três tratamentos ao alcoolismo, tendo sido acompanhado pela Dr.ª. J… na Unidade de Alcoologia do Centro em Coimbra, mas sem sucesso, sendo o último tratamento de 26/09/2016 a 15/10/2016, tendo faltado à primeira consulta após o internamento, e a última consulta ocorreu a 17/03/2017, tendo sido proposto novo internamento devido a novas recaídas, mas que o arguido recusou.
21. Não tem autocrítica relativamente aos consumos.
22. Iniciou actividade laboral no sector agrícola e construção civil consoante as oportunidades de trabalho que tinha, auferindo em média €30/dia mas com o abuso do consumo de bebidas alcoólicas, dificilmente conseguia um dia de trabalho.
23. Este percurso conduziu a alguns confrontos com o sistema de Justiça desde Fevereiro de 2016, tendo sido condenado a pena de multa substituída por trabalho a favor da comunidade por injúria agravada, que cumpriu e foi ainda condenado em suspensão de execução de pena de prisão com regime de prova por crime violência doméstica sendo a vítima a sua mãe
24. Perante o actual processo manifesta ausência de sentimentos de culpabilidade e falta de consciência crítica e de desvalor da sua conduta, assume uma postura de vitimização e apresenta uma quase ausente capacidade de autocritica.
25. Não revela um projecto estruturado, quer a nível pessoal, quer a nível profissional, referindo apenas que quando sair em liberdade regressará para casa que assume como sua, mas que lhe foi cedida pela mãe e que poderá trabalhar no sector agrícola ou na construção civil.
26. No meio é referenciado como sendo uma pessoa que se embriaga com frequência, adoptando comportamentos conflituosos e agressivos para com a mãe e residentes do meio, sendo, por vezes, conflituoso com as autoridades policiais.
27. Desde jovem passou a consumir bebidas alcoólicas em excesso, o que lhe tem causado instabilidade pessoal que tem vindo a condicionar a sua vivência e não obstante algum apoio familiar de que dispõe, não conseguiu aproveitar para efectuar uma viragem no modo de vida irregular, a nível familiar, laboral e social.
28. Em contexto prisional tem adoptado um comportamento adequado, encontrando-se a frequentar o EFA B1 (Educação e Formação de Adultos) que lhe dará equivalência ao 4º ano de escolaridade, apesar de ter concluído com o ensino primário cerca de 14 anos, apresenta dificuldade de leitura e escrita.

Quanto aos antecedentes criminais provou-se que:
29. O arguido sofreu as seguintes condenações:
» Foi condenado por sentença 02/12/2015, no âmbito do processo C/S 62/15.6GCALD do Juízo de Competência Genérica de C..., na pena 80 dias de multa, substituídos por trabalho a favor da comunidade, pela prática do crime de injúria agravada, por factos de 18/11/2015.
» Foi condenado por sentença 13/04/2016, no âmbito do processo C/S 65/15.0T9ALD do Juízo de Competência Genérica de C... na pena 2 nos e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova, pela prática do crime de violência doméstica, por factos de 16/07/2015.
» Foi condenado por sentença 27/04/2017, no âmbito do processo C/S 4/17.4GAFCR do Juízo de Competência Genérica de K… na pena 6 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano, e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 6 meses, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
***
Nada mais se provou para além ou em contradição com o supra referido.
Assim, da matéria constante da acusação não se provou que:
Factos Não Provados
(…)
*
O demais referido na acusação que não consta dos factos provados ou não provados, contém matéria repetida conclusiva ou de direito.

DECIDINDO:

Analisadas as conclusões que a digna recorrente retira da motivação do seu recurso, logo se constata que são essencialmente as seguintes as questões que, através da respectiva formulação, coloca à nossa apreciação:

- em primeiro lugar invoca a ocorrência de vício de contradição entre os factos provados em 5, 6, 7 e 8 e os não provados em 1, 4, 5 e 6 e bem assim entre estes e a correspondente parte da fundamentação da convicção do tribunal;

- Na sequência invoca também vício de erro notório na apreciação da prova, na parte em que considerou como não provados os elementos subjectivos do tipo (factos não provados 5 e 6);

- de seguida passa à análise da previsão do tipo do artº 334º do CP, concluindo que o tribunal acolheu uma sua interpretação restritiva que não encontra apoio na doutrina e na jurisprudência dominantes;

- conclui assim pelo respectivo preenchimento e pede a condenação do arguido.

Muito embora o recorrente não os nomine de forma expressa, o certo é que, em parte os confundindo com a impugnação da matéria de facto não provada, invoca a ocorrência de vícios do acórdão, a saber, os de contradição insanável da fundamentação (artº 410º, 2, b), CPP) e de erro notório na apreciação da prova (al. c).

Com efeito, afirma que considerados os factos provados em 5, 6, 7 e 8, não poderia o tribunal a quo dar como não provados os que enumera em 1, 4, 5 e 6; invoca também a ocorrência de contradição entre estes factos não provados e a correspondente parte da demonstração da formação da sua convicção.

Invoca também o vício de erro notório na apreciação da prova, na parte em que considerou como não provados os elementos subjectivos do tipo (factos não provados 5 e 6).

A operação de fixação da factualidade, resultante da prova produzida em julgamento, tem natureza complexa e nela se cruzam uma série de considerações que se prendem, por um lado, com o confronto crítico das provas, umas concordantes, outras discordantes entre si, e por outro, na sua conjugação com as regras da experiência, da normalidade do acontecer, tudo coado pelo bom senso, que é o senso comum, que deve presidir à análise lógica traduzida no raciocínio efectuado. E tudo deve ser transparente, por todos perceptível.

Dispõe o artº 127º do CPP que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente

Consagrando esta norma o princípio da livre apreciação da prova, devemos todavia acrescentar que o poder/dever que daí resulta não é arbitrário mas, antes, vinculado a um fim que é o do processo penal, ou seja, a descoberta da verdade. Por isso, mostrando-se devidamente fundamentado, o exercício desse princípio torna-se inalterável, desde que se mostre apoiado na prova produzida e não demonstre raciocínios inadmissíveis, ilógicos ou contraditórios, face às regras da experiência comum, da normalidade e do bom senso, que é o senso comum. Por outro lado, é sabido que o processo de formação da convicção do tribunal é complexo e dinâmico, já que nele intervêm simultaneamente a consideração da globalidade das provas produzidas e validadas em audiência, num ambiente de imediação e de oralidade, as regras da experiência e do senso comum, da normalidade do acontecer… de modo a procurar retratar e plasmar um ‘retalho da realidade’.

O juízo crítico final – que a sentença descreverá em termos de fundamentação – há-de resultar do confronto entre os diversos meios de prova produzidos e bem assim da valoração intrínseca que, de acordo com as regras processuais aplicáveis e com aquele poder de livre apreciação, o tribunal entenda ser o que decorre de um processo racional e lógico de formação da convicção, no qual terão interferência cambiantes de normalidade, razoabilidade e de senso comum.

Muito embora sem delimitar precisamente o seu dissídio, mas ligando-o à questão probatória material, invoca o recorrente a ocorrência dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação.

Todos os vícios referidos no nº 2 do artº 410º, para serem atendíveis, devem resultar «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum». Ou seja, o vício há-de ressaltar do próprio contexto da sentença, não sendo lícito, neste pormenor, o recurso a elementos externos – que não aquelas regras da experiência - de onde esse vício se possa evidenciar.
O vício de erro notório na apreciação da prova traduz-se numa falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, se chamado a apreciar a prova produzida e a convicção com base nela formada; esse erro deve ressaltar de modo claro e evidente do texto da própria decisão. O seu contexto logo evidencia que, face às regras da interpretação lógica, do bom senso e da experiência do homem normal, a conclusão deveria ser outra, face às premissas referidas.

Já o vício de contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão, verifica-se quando há uma incompatibilidade, que do texto da própria decisão recorrida se revela, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, seja de concluir que a correcta interpretação daquela conduza a uma decisão contrária à adoptada ou quando, nos mesmos termos, seja de concluir que a decisão não é clara, por se excluírem mutuamente os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido na fundamentação de direito e decidido no dispositivo; e há contradição entre os factos quando os provados e/ou os não provados se contradizem entre si ou estão descritos de forma a constituírem negação uns dos outros

Considerado o desenvolvimento do processo formativo da convicção do tribunal, e a sua explanação formal no acórdão, com vista a torná-lo perceptível para os seus destinatários, verificamos que ocorrem os apontados vícios, que naturalmente decorrem da sua descrição fundamentadora probatória.

A esse propósito, o tribunal recorrido teceu as seguintes considerações:

Nos presentes autos, e atendendo à factualidade em causa, inexistem quaisquer elementos objectivos carreados para os autos, a cujo conteúdo importe atender, pelo que haverá apenas que ponderar o teor da prova produzida em audiência de julgamento.
No que a este respeita, começaremos por referir que o arguido prestou declarações, confirmando, no essencial, a factualidade que resultou provada, pese embora referindo um ou outro aspecto não totalmente concordante.
Assim, começou por referir que se exaltou e acabou por falar mais alto porque o funcionário Sr. D… o chamou de mentiroso, e por isso, lhe disse que não estava a mentir, que não era mentiroso.
Esclareceu que se dirigiu ao Tribunal porque o seu nome havia sido trocado e queria esclarecer essa situação.
Admitiu, no entanto, que começou a falar alto, mas não tratou mal ninguém, sendo certo que na própria acusação também não consta qualquer expressão injuriosa ou ameaçadora proferida pelo arguido.
Disse que, de facto, pôs uma nota de € 50 sobre o balcão, não tendo sabido explicar o motivo pelo qual o fez, referindo que, quando já se estava a ir embora, o funcionário Sr. F… o obrigou a ir tirar a nota, tendo-o agarrado pelo braço e tendo-lhe torcido o braço para o obrigar a ir buscar a nota, acrescentando que a funcionária D. L… até lhe disse para não fazer isso.
Referiu também que a Sra- Procuradora lá foi à secretaria, e ele até se acalmou um pouco, mas chamaram a GNR e acabaram por o levar algemado, admitindo que tivesse continuado a falar um pouco alto, mas nada mais fez do que isso.
Afirmou que este comportamento menos próprio poderá ter-se ficado a dever ao facto de estar embriagado, dado que eram cerca das 13h 30m da tarde e tinha já bebido demais.
Justificou também este seu comportamento com os problemas da vida, referindo que (…), o levam, por vezes, a fazer coisas que não deve e a beber demais.
Disse que esteve lá no Tribunal pouco tempo, cerca de 15 minutos, e que podia estar um bocado alterado porque nunca lhe explicaram o porquê da troca do nome.
Referiu também que se perturbou o funcionamento do Tribunal, foi sem maldade porque não teve intenção de o fazer e não tinha verdadeira consciência dos seus actos.
Inquirida a testemunha D…, funcionário do juízo de competência genérica de C..., referiu apenas conhecer o arguido devido à sua profissão porque ele tinha processos em Tribunal.
Referiu que, naquele dia, estava de serviço, na Central e apareceu o arguido, bastante alterado.
Sabe que lhe perguntaram o que se passava e aperceberam-se que existia um lapso no nome dele, num despacho de acusação.
O arguido continuava exaltado e o Sr. Escrivão disse-lhe para moderar o tom de voz e para confirmarem o que se passava, tendo-se confirmado a existência de um lapso de escrita.
Acrescentou que, apesar de lhe terem dito isso, o arguido continuou algo alterado, a falar alto. Nesse momento a Sra. Procuradora Adjunta foi à secção e mandou-o baixar o tom de voz, mas ele continuou a falar alto, num tom alterado, e acabaram por chamar a GNR.
Esclareceu que o arguido se manteve sempre do lado de fora do balcão da secretaria e a data altura pegou numa nota de € 50 e colocou-a em cima do balcão e ia-se embora, mas o Sr. Escrivão foi atrás dele, obrigou-o a voltar atrás para levar a nota, tendo, entretanto, chegado a GNR.
Tendo-lhe sido perguntado, referiu que o arguido não foi propriamente agressivo, injurioso ou ameaçador, mas o tom que usava era alto e, de alguma forma, acabava por causar alguma instabilidade no serviço.
Disse também que a situação terá durado cerca de 15 minutos e referiu também, com especial relevância, que enquanto o arguido ali esteve não havia nenhum público para atender nas instalações do Tribunal.
Mais referiu que não estavam a decorrer quaisquer julgamentos ou diligências, pelo que nenhum acto estava a decorrer no Tribunal que tivesse sido perturbado ou impedido de se realizar pelo comportamento do arguido, sendo que, como referiu, nem estavam lá quaisquer utentes para serem atendidos.
Acrescentou que o arguido aparentava estar embriagado, até devido ao tipo de linguagem que utilizava, imperceptível, o que já teria acontecido noutras vezes que se deslocou ao Tribunal.
Disse também esta testemunha, de um modo totalmente isento e objectivo, que antes de ter começado a ter problemas familiares, era uma excelente pessoa, tendo-se alterado completamente depois destes problemas.
Reiterou que ele não foi propriamente agressivo, nem lhes dirigiu palavras agressivas, embora tenha tido uma atitude algo imprópria, nomeadamente por falar alto.
Tendo-lhe sido perguntado, disse que na secção estava ele, o Sr. F…, a D. L… e a D. M…, e que estas duas, ao que pensa, continuaram a fazer o seu trabalho.
A testemunha F…, também oficial de justiça a exercer funções no juízo local de C..., prestou depoimento no essencial coincidente com o prestado pela anterior testemunha.
Reportou-se ao modo como o arguido chegou à secretaria e ás perguntas que fez, designadamente “como é que eu me chamo”, estando a falar num tom de voz mais elevado.
Por esse motivo interveio, porque ele estava a falar em voz bastante alto e apercebeu-se de que aquela questão que ele levantava teria que ver com um lapso no despacho da Sra. Procuradora.
Disse que lhe explicou esta situação, mas ele não aceitou, continuando a falar alto e, como estava a incomodar, ordenou-lhe que saísse, o que ele não fez logo.
Referiu também que a dada altura a sua colega, a D. L…, lhe chamou a atenção para o facto do arguido se estar a ir embora, mas deixando uma nota de € 50 sobre o balcão, circunstância de que não se tinha apercebido.
Por isso, segundo disse, foi atrás dele, tendo conseguido que voltasse atrás para recolher a nota e depois acabou por chegar a patrulha que, entretanto, tinha sido chamada ao local.
Afirmou também que a dada altura, a Sra. Procuradora Adjunta ainda se deslocou à secretaria porque estava a ser incomodada no seu gabinete.
Tendo-lhe sido perguntado, em concreto qual o comportamento do arguido, referiu que falava alto.
Disse, ainda, que o arguido ali esteve 15-20 minutos e que durante o tempo que ali esteve não havia quaisquer diligência marcadas, estavam apenas a trabalhar os funcionários nos processos.
No que respeita, quer à Sra. Procuradora-Adjunta, quer á Sra. Juíza, estavam nos seus gabinetes, apenas aquela se tendo apercebido porque o gabinete é mais próximo da secção.
Relativamente aos funcionários, esclareceu que todos se aperceberam, porque ele falava alto, embora a D. M… não tenha tido qualquer intervenção e a D. L… só inicialmente, pelo que terão continuado a fazer o seu serviço, mas com alguma perturbação porque o arguido falava alto.
Finalmente, inquirida I…, referiu ser Procuradora-Adjunta e ter exercido funções em C..., tendo sido aquela a primeira vez que viu o arguido, embora conhecesse o seu nome dos processos.
Relativamente ao que aconteceu naquele dia, afirmou que eram cerca das 13h 30m, não tinha ido almoçar, pelo que estava no seu gabinete a trabalhar e ouviu “berros”, embora não conseguindo perceber quem era nem o que diziam.
No entanto, acrescentou, foi ver o que se passava, tendo visto que era o arguido a dizer, em voz alta, umas coisas que eram imperceptíveis, falando com a voz arrastada e parecia estar embriagado, repetindo “como me chamo, chamo-me E…”.
Dirigiu-se-lhe, dizendo-lhe que não podia continuar assim porque estava a perturbar o trabalho dela e dos funcionários, tendo-lhe sido, nesse momento, explicado pelo Sr. funcionário que aquela conduta se deveria a um lapso dela na identificação do arguido, num determinado despacho de acusação por si proferido.
Precisou que, por momentos, ele pareceu acalmar, mas depois voltou a falar alto e dizia que queria falar com ela, ao que lhe disse que não tinha nada que falar com ele, e foi novamente para o seu gabinete.
Referiu que passados uns momentos, deixou de ouvir a voz do arguido, tendo-se apercebido que ele estaria a ir embora, tendo-o visto já descer as escadas, mas o Sr. Escrivão ir atrás dele a dizer-lhe que tinha de voltar atrás porque tinha deixado uma nota de € 50 na secção.
Apercebeu-se que, momentos mais tarde, chegou a GNR e acabou por levar o Sr. A… algemado.
Tendo-lhe sido directamente perguntado qual a perturbação que o arguido causou ou, em concreto, o seu comportamento, referiu que foi ter falado num tom elevado, nada mais tendo concretizado no que tange à conduta do arguido.
Acrescentou que durante aquele período de tempo, ainda que curto, não se concentrou bem a trabalhar, o mesmo acontecendo, certamente, com os funcionários, dado que estavam concentrados no que o arguido estava a fazer (?) e a dizer.
Esclareceu também que entre o momento em que ele chega e até se ir embora, teriam mediado cerca de 15-20 minutos.
Foi, pois, com base na prova assim produzida e que vimos de analisar que o Tribunal deu como provados e não provados os factos, nos termos que ficaram supra enunciados.
No essencial, diremos, e como decorre da exposição e análise que fizemos, que os depoimentos foram objectivos e credíveis, sendo relevantes para se dar como provados, nos termos supra enunciados os factos constantes da acusação (ainda que não na sua totalidade).
Assim, no que respeita à conduta objectiva do arguido, não subsistem dúvidas de que a mesma, no essencial (à excepção de um ou outro facto), resultou provada tal como descrito na acusação.
Tal como resultou claramente dos depoimentos das testemunhas, e como, aliás, já resultava da acusação, o arguido, no interior da secretaria do Tribunal de C..., falou alto, referindo palavras imperceptíveis e colocou uma nota de € 50 no balcão da secretaria, sendo que, num primeiro momento não se foi embora apesar de ter sido instado a fazê-lo, continuando a falar alto.
Entendemos, no entanto, que não se provou (ainda que tal factualidade acabe por não assumir também particular relevância em face do enquadramento jurídico adiante explanado), que nas circunstâncias referidas em 6. dos factos provados o trabalho da Sra. Procuradora foi perturbado (na acepção da palavra que releva para este ilícito) pelo arguido; que nas circunstâncias referidas em 9. dos factos provados, o arguido disse que não saía, e que a G.N.R vinha para lhe bater como era habitual; e que nas circunstâncias referidas em 10. dos factos provados o arguido bateu com a palma de uma das mãos com força no balcão.
No que a esta factualidade respeita, e como referimos, entendemos que a prova produzida não foi de molde a confirmá-la, pelo menos de um modo preciso e rigoroso.
Quanto ao primeiro dos mencionados factos, entendemos que não resultou que o trabalho da Sra. Procuradora adjunta tenha sido propriamente perturbado (como já referimos, com a densificação que se exige deste conceito), até porque não concretizou a mesma, de forma objectiva e relevante, em que se traduziu tal perturbação, mas antes, e como é normal, que acabou por perder alguma concentração.
Já relativamente ao segundo dos mencionados factos, resulta mesmo o contrário, ou seja, que o arguido quis sair e saiu, deixando a nota de € 50 em cima do balcão e foi o Sr. Escrivão, como ele próprio confirmou, que foi atrás dele, obrigando-o a voltar atrás para recolher a nota.
Por outro lado, dos depoimentos das testemunhas não resultou também que o arguido tenha batido com força em cima do balcão, mas apenas que ali deixou a nota.
Aliás, do próprio depoimento do Sr. Escrivão, F…, resultou que ele nem se apercebeu disso, tendo sido uma colega, a D. L…, que lhe chamou a atenção para esse facto.
Logo, parece-nos evidente que, se o arguido tivesse batido com força no balcão, ele seguramente ter-se-ia apercebido.
Quando á demais factualidade, como decorre da enunciação supra efectuada, não se provou que:
(…)
Em nosso entender, das circunstâncias objectivas que resultaram provadas, não poderão ser retiradas as conclusões nos termos em que o foram na acusação deduzida pelo Ministério Público, designadamente no que respeita ao elemento subjectivo.
Com efeito, e como melhor analisaremos também no enquadramento jurídico dos factos, dado que tal matéria está directamente relacionada com o mesmo, entendemos que, por um lado, não se pode concluir que, pelo simples facto do arguido falar em tom de voz alta, mais exaltado (dado que outos factos não se provaram, nem, aliás, constavam enunciados objectivamente na acusação) tenha provocado tumultos, desordens ou vozearia (aliás, conceitos jurídicos e conclusivos), perturbando o normal funcionamento do Tribunal enquanto órgão de soberania.
Consequentemente, não se provou também que fosse esta a intenção do arguido (ou seja, perturbar o funcionamento do Tribunal enquanto órgão constitucional, de soberania), com conhecimento esclarecido e vontade de praticar tais factos e sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal.
Aliás, sempre ficariam dúvidas acerca dessa intenção esclarecida por parte do arguido, atendendo, para além do mais, à circunstância de, como foi confirmado por todas as testemunhas, estar notoriamente embriagado (pese embora, é certo, não se possa concluir que esse estado lhe tenha retirado a liberdade ou a consciência relativamente á prática daqueles que, em termos objectivos, praticou).
Já situação distinta, e que, de facto não se provou, desde logo, porque os actos objectivos praticados pelo arguido não foram, sequer, idóneas a tanto, é o conhecimento e consciência por parte do arguido de perturbar o funcionamento do Tribunal, enquanto órgão constitucional e o conhecimento de que tal conduta seja proibida por lei como crime (que, de facto, em nosso entender, não é)

Começaremos por dizer que tão completa fundamentação é pontuada por desnecessárias narrações descritivas dos depoimentos, desnecessárias porque a prova produzida em audiência foi gravada e a sua impugnação sempre deveria ser feita por referência ao respectivo suporte informático, nos termos prescritos no artº 412º, 3 e 4 do CPP.

Pretende o recorrente que ocorre contradição entre o que se provou em 5, 6, 7 e 8 e os factos não provados em 1, 4, 5 e 6 e bem assim entre estes e a correspondente parte da fundamentação da convicção do tribunal.

Com efeito, por um lado deu-se como provado que o arguido, dentro do balcão de atendimento da Secção Central do Juízo de C..., proferiu as expressões em causa, por várias vezes, em «voz alta e tom alterado (…) exaltado», o que levou a que a ilustre Procuradora, que ali exerce funções e que se encontrava no seu gabinete a trabalhar, as tenha ouvido, o que a desconcentrou, e que face à manutenção dessa situação, ela se dirigiu ao local onde se encontrava o arguido, pedindo-lhe para se acalmar e parar de falar alto, fazendo-lhe notar o local onde se encontrava e dizendo-lhe que estava a perturbar o normal funcionamento dos serviços; apesar disso, o arguido manteve a sua referida postura.

Por outro, deu-se como não assente que o trabalho daquela referida digna magistrada haja sido perturbado pelo arguido e que com as suas condutas descritas o arguido haja causado «tumultos, desordens e vozearias na secretaria do Tribunal de C..., perturbando o normal funcionamento do Tribunal enquanto órgão de soberania».

Do confronto entre os referidos factos provados e não provados resulta evidenciada uma dificuldade, aliás já denunciada pelo tribunal recorrido em sede de fundamentação de facto, de distinção entre matéria de facto e matéria de direito.

Com efeito, muito embora admitindo que os factos se passaram dentro do edifício do tribunal, nas circunstâncias descritas, afirma que não resultou provado que o trabalho da srª Procuradora haja sido perturbado (na acepção da palavra que releva para este ilícito!!!); para acrescentar adiante que «entendemos que não resultou que o trabalho da Sra. Procuradora adjunta tenha sido propriamente perturbado (como já referimos, com a densificação que se exige deste conceito), até porque não concretizou a mesma, de forma objectiva e relevante, em que se traduziu tal perturbação, mas antes, e como é normal, que acabou por perder alguma concentração».

Ou seja, não se provou que o trabalho dessa magistrada haja sido perturbado pelo arguido, apesar de se dar como provado que aquela, que se encontrava no seu gabinete a trabalhar, as tenha ouvido, o que a desconcentrou, e que face à manutenção dessa situação, ela se dirigiu ao local onde se encontrava o arguido, pedindo-lhe para se acalmar e parar de falar alto, fazendo-lhe notar o local onde se encontrava e dizendo-lhe que estava a perturbar o normal funcionamento dos serviços; apesar disso, o arguido manteve a sua referida postura.
A conduta do arguido desconcentrou-a no seu trabalho - levando a que ela se haja dirigido junto daquele pedindo-lhe para se acalmar, mantendo-se ele renitente - mas não perturbou o seu trabalho?!
Afigura-se-nos evidente e insanável, nesta sede, a apontada contradição, pois que uma das afirmações nega, ou pelo menos contraria, a outra de forma inultrapassável.
A ‘densificação’ do conceito não há-de ser operada em sede de apreciação da matéria de facto pois que desta operação hão-de estar ausentes quaisquer juízos que possam ser qualificados de conclusivos ou jurídicos, que ‘infectem’ a apreciação da matéria de facto, que se pretende seja restrita à averiguação do modo como sucedeu aquele pedaço da realidade, ficando a sua qualificação criminal para momento ulterior. A operação de fixação da matéria de facto há-de ser levada a cabo num ambiente asséptico, do qual estejam arredados todos os juízos de ordem jurídico-conclusiva, que apenas entrarão em cena em momento posterior. A matéria de facto descreverá objectivamente um episódio da vida com eventual repercussão criminal, deixando para a discussão jurídica da causa a retirada de conclusões e a sua integração típica.
Por outro lado, face a tal materialidade provada, ocorre contradição entre a mesma e a circunstância de se dar como não provado o que consta em 4., v.g. que com a sua descrita conduta «causou o arguido tumultos, desordens e vozearias na secretaria do Tribunal de C..., perturbando o normal funcionamento do Tribunal enquanto órgão de soberania».
Mas, a conduta do arguido, descrita e provada, não perturbou o normal funcionamento do tribunal, por prejudicar o trabalho da referida magistrada e dos funcionários que ali se encontravam, e levando mesmo à intervenção da GNR para o retirar do local?!
Mais uma vez é evidente a contradição.

Na sequência, invoca o recorrente a ocorrência de vício de erro notório na apreciação da prova, pois que apesar dessa factualidade objectiva, o tribunal remeteu para os factos não provados a subjectividade alegada na acusação e complementadora daquela, em termos de previsão típica.
Com efeito, o tribunal deu como não provado que:
Com as condutas descritas causou o arguido tumultos, desordens e vozearias na secretaria do Tribunal de C..., perturbando o normal funcionamento do Tribunal enquanto órgão de soberania.
Bem sabia o arguido que com a sua conduta descrita nos factos provados sob os nºs 1 a 12 perturbava o normal trabalho dos funcionários que aí se encontravam a laborar e bem assim o trabalho da ilustre Procuradora-Adjunta aí a exercer funções, perturbava indevida e ilegitimamente o normal funcionamento do Tribunal, enquanto órgão de soberania.
Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime.

Para fundamentar este segmento da narração probatória, o tribunal denota mais uma vez alguma dificuldade na distinção entre o que é matéria de facto e a sua integração jurídica, ao afirmar:

Com efeito, e como melhor analisaremos também no enquadramento jurídico dos factos, dado que tal matéria está directamente relacionada com o mesmo, entendemos que, por um lado, não se pode concluir que, pelo simples facto do arguido falar em tom de voz alta, mais exaltado (dado que outos factos não se provaram, nem, aliás, constavam enunciados objectivamente na acusação) tenha provocado tumultos, desordens ou vozearia (aliás, conceitos jurídicos e conclusivos), perturbando o normal funcionamento do Tribunal enquanto órgão de soberania.
Consequentemente, não se provou também que fosse esta a intenção do arguido (ou seja, perturbar o funcionamento do Tribunal enquanto órgão constitucional, de soberania), com conhecimento esclarecido e vontade de praticar tais factos e sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal.
Aliás, sempre ficariam dúvidas acerca dessa intenção esclarecida por parte do arguido, atendendo, para além do mais, à circunstância de, como foi confirmado por todas as testemunhas, estar notoriamente embriagado (pese embora, é certo, não se possa concluir que esse estado lhe tenha retirado a liberdade ou a consciência relativamente á prática daqueles que, em termos objectivos, praticou).
Já situação distinta, e que, de facto não se provou, desde logo, porque os actos objectivos praticados pelo arguido não foram, sequer, idóneas a tanto, é o conhecimento e consciência por parte do arguido de perturbar o funcionamento do Tribunal, enquanto órgão constitucional e o conhecimento de que tal conduta seja proibida por lei como crime (que, de facto, em nosso entender, não é).

O juízo descrito, mais do que factual é jurídico e conclusivo.

Por um lado, e apesar de tudo, o arguido sabia perfeitamente o local onde se encontrava, atentas até as razões que ali o conduziram!

Por outro, é sabido que o elemento subjectivo do tipo, por regra, não é passível de extracção directa da prova produzida.

Para poder afirmar o elemento subjectivo do tipo, o tribunal pode socorrer-se de provas indirectas, das quais retirará, após análise dialéctica, aquela conclusão.

Para Cavaleiro de Ferreira “Curso de Processo Penal II”, Reimpressão da Universidade Católica, 1981, pp. 288 a 295.,“a prova indiciária tem uma suma importância no processo penal; são mais frequentes os casos em que a prova é essencialmente indirecta do que aqueles em que se mostra possível uma prova directa”.

Assim, além dos meios de prova directos é possível, no processo penal, usar um procedimento lógico para prova indireta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido – as já mencionadas presunções.

As presunções são legalmente definidas como “as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” - art. 349º do Código Civil.

No processo penal assumem relevo especial as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao julgador concluir pela ocorrência de um facto desconhecido por ilações tiradas a partir de um facto conhecido.

As presunções naturais mais não são, no fundo, do que o produto das regras de experiência - o julgador, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. Nas palavras de Vaz Serra “Direito Probatório Material”, B.M.J. nº 112. p. 190., “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (...) ou de uma prova de primeira aparência”.

A presunção permite, portanto, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência e da lógica, de que normal e tipicamente certos factos são a consequência de outros.

(…)”.

No nosso caso, a dedução do facto desconhecido – aqueles elementos cognitivo e volitivo, integrantes do dolo - por não resultar directamente do mundo natural, da experiência percepcionada e narrada pelas testemunhas, poderá ser retirada a partir de factos indiciários conhecidos, de cuja conjugação seja possível deduzir a sua ocorrência, ainda que não denunciada como fenómeno directamente perceptível pela experiência, mas apenas pela razão.

O juízo crítico final – que o acórdão descreve em termos de fundamentação – resulta assim algo inconsistente, por não ter em consideração este modo de aquisição probatória.

É claro que o arguido sempre teve essa consciência e vontade, reforçados a partir do momento em que é advertido expressamente pela Digna Magistrada, como consta provado em 7 e 8.

Tal integra erro notório na apreciação da prova.

Face a tudo o que atrás se deixou dito, devem os factos não provados relatados em 1 e 4 a 6 ser considerados como provados, passando a ter a seguinte numeração, a partir do facto provado 12:

12-a). Nas circunstâncias referidas em 6. dos factos provados trabalho da Exma. Procuradora Adjunta foi perturbado pelo arguido.
12-b). Com as condutas descritas causou o arguido tumultos, desordens e vozearias na secretaria do Tribunal de C..., perturbando o normal funcionamento do Tribunal enquanto órgão de soberania.
12-c). Bem sabia o arguido que com a sua conduta perturbava o normal trabalho dos funcionários que aí se encontravam a laborar e bem assim o trabalho da ilustre Procuradora-Adjunta aí a exercer funções, perturbava indevida e ilegitimamente o normal funcionamento do Tribunal, enquanto órgão de soberania.
12-d). Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime.

A próxima questão, suscitada pelo recorrente é de direito e prende-se com a interpretação a dar à norma do artº 334º do CP, tomando agora em conta a alteração ora introduzida na matéria de facto provada.

No nosso caso, o arguido vem acusado pela prática, em autoria material, de um crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional, p.p. pelo artigo 334º do Código Penal, que tem as seguintes previsão e estatuição:
Quem, com tumultos, desordens ou vozearias, perturbar ilegitimamente:
a) O funcionamento de órgão referido no n.º 1 ou no n.º 2 do artigo anterior, não sendo seu membro, é punido, respectivamente, com pena de prisão até 3 anos, ou com pena de prisão até 1 ano;
b) O exercício de funções de pessoa referida no n.º 4 do artigo anterior é punido com pena de prisão até 2 anos no caso da alínea a) ou com pena de prisão até 6 meses no caso da alínea b)”.

Está em causa a prática de crime contra órgão de soberania (tribunal – v. o artº 202º, 1, da CRP), pelo que a moldura penal aplicável é a mais gravosa, de prisão até 3 anos.
Na sua fundamentação de direito, o tribunal recorrido procedeu à análise do tipo em questão, de forma completa, e por isso para ali remetemos, deixando apenas para apreciação a questão controversa, que verdadeiramente integra o dissídio, de saber se os factos provados integram perturbação do funcionamento do tribunal, enquanto órgão de soberania.

Contrariamente ao ali decidido, o MP defende uma interpretação mais ampla da norma em causa, de forma a que nela caiba a factualidade averiguada em primeira instância e agora complementada.

Foram tecidas as seguintes considerações, a tal propósito, no acórdão impugnado:

Em anotação a tal artigo da CRP [202º] Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa, Anotada página 791) referem que "(…) os tribunais são órgãos complexos englobando as funções não apenas dos juízes mas também de outros agentes com estatutos muito distintos, como o Ministério Público,, os advogados (que não são agentes públicos), os oficiais de justiça, etc.
Consequentemente o tribunal não se identifica com o juiz, embora haja decisões e actos que só este possa praticar (reserva do juiz).
Não obstante esta interpretação lata do conceito de Tribunal, e desde já adiantando o nosso entendimento, não poderemos deixar de salientar que, quando a Constituição da República Portuguesa confere a Soberania ao Tribunal, esta é corporizada ou representada pelo juiz (pese embora se possa entender tal não signifique, naturalmente, que o órgão constitucional, em si mesmo considerado, se reduza a quem o representa, ou seja, o juiz).
(…)
In casu, importa, desde logo, atentar na factualidade que ficou provada, da qual decorre que os factos praticados pelo arguido (independentemente de serem ou não, em si, e objectivamente, susceptíveis de integrar a prática do ilícito em causa, circunstância a que nos deteremos mais adiante) ocorreu na secretaria do juízo de competência genérica de C....
Com efeito, provou-se que “No dia 3 de Março de 2017, pelas 13h30, o arguido A… dirigiu-se para a Secretaria do Juízo de Competência Genérica de C... – Comarca da Guarda, sita na área de C..., aparentando já se encontrar embriagado.
Aí chegado, o arguido abeirou-se do balcão de atendimento da Secção Central e foi atendido pelo funcionário D…, que o questionou se precisava de algo e logo de seguida, em voz alta e tom alterado e por várias vezes proferiu as seguintes expressões: “como é que eu me chamo?”, “ eu chamo-me Lopes?”, “ eu não sou mentiroso,”, nunca matei ninguém”, “ nunca roubei ninguém” e “andam a brincar comigo”(…).
De tal enquadramento fáctico decorre, pois, que todos os factos praticados pelo arguido, como dissemos, o foram no balcão de atendimento da secretaria do juízo de competência genérica de C... (e não noutro qualquer local, pese embora, como também se provou, a Sra. Procuradora Adjunta, que se encontrava a trabalhar no seu gabinete, também se tenha apercebido do sucedido e se tenha deslocado à secretaria porque ouviu falar alto).
Deste modo, e retomando a questão que já fizemos supra, “poderá o balcão da secretaria de um Tribunal, para efeito do preenchimento deste crime, ser considerado de órgão constitucional, de soberania?”
A resposta a esta questão é, segundo cremos, negativa, na medida em que, em nosso entender, não se poderá fazer uma interpretação de tal modo ampla e lata do conceito de Tribunal, que inclua, sem qualquer restrição, todo e qualquer espaço do edifício e toda e qualquer função nele exercida.
Quer pela Doutrina, quer pela Jurisprudência tem sido aceite que à palavra “Tribunal” possam ser dados vários sentidos e que a determinação do exacto conteúdo do conceito para os efeitos do tipo do artigo 334º do Código Penal (e também do artigo 333º) não se encontra isenta de dificuldades.
Aliás, não olvidamos a existência de jurisprudência em sentido contrário àquele por nós sustentado, com uma interpretação mais lata do conceito, incluindo-se neste tipo legal de crime, designadamente, uma situação ocorrida na Delegação da Procuradoria da República.

Ou seja, o tribunal recorrido, apesar de proceder à distinção entre o órgão tribunal e o juiz, seu titular, acaba por centrar na pessoa deste todo o órgão.
O tribunal, como resulta da jurisprudência e da doutrina mais avisadas, é um órgão de soberania complexo, já que o integram todos os agentes que coadjuvam o juiz, seu titular, na administração da justiça. Este não se confunde com o tribunal e o tribunal não se confunde com ele.
O tribunal, enquanto órgão de administração da justiça, embora encabeçado pelo juiz, é uma entidade dinâmica que, como instituição que é, mantém a sua identidade ôntica, ainda que variem os agentes que a cada momento o compõem.
A existência do tribunal, enquanto instituição, é independente das concretas pessoas que, a cada momento, o integram.
O tribunal é essa entidade abstracta que a cada momento se revela, face á variegada paleta das suas competências e atribuições, considerada até a possibilidade de, pontualmente, ele ser integrado por intervenientes acidentais (jurados, peritos, consultores, etc).
No nosso caso, a perturbação que ocorreu ‘apenas’ afectou uma Magistrada do MP em funções no tribunal e os funcionários que se encontravam na secretaria do mesmo.
O órgão constitucional, que na ocasião se encontrava em labor, com a composição referida, viu o seu funcionamento ser perturbado por força das desordens e vozearias produzidas pelo arguido. Não era essencial ao preenchimento do tipo que fosse também afectada a actividade do juiz, no desempenho da sua função constitucional, pois que a afectação atingiu o órgão institucional.

Neste sentido vai a vasta jurisprudência citada quer pelo recorrente quer pelo acórdão recorrido, v.g. a seguinte:
Decidiu, assim, o Acórdão do STJ de 14-10-1999 (in www.dgsi.pt), que “(…) o Tribunal, como órgão de soberania, para efeito do seu enquadramento - no artigo 334 do Código Penal terá que ser tido, por mais adequado, com o entendimento que deixamos expendido e que é o definido pelos constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira. O juiz para administrar a justiça, em nome do povo, não age sozinho, defendendo o seu labor da laboração dos oficiais de justiça, incluindo os que desempenham funções no departamento do Ministério Público e, obviamente, do respectivo Magistrado do Ministério Público aquém compete representar o Estado, exercer a acção penal e defender a legalidade democrática, bem como os interesses determinados por lei.
Todos eles compõem o "órgão complexo" designado por "Tribunal", pelo que a perturbação do seu funcionamento caí no âmbito da previsão do citado artigo 334 do Código Penal (…).
Em suma o arguido com a sua conduta perturbou o funcionamento da Delegação da Procuradoria da República - onde, aliás, se encontrava além do respectivo magistrado os vários oficiais de justiça - e que é um dos elementos constitutivos do órgão constitucional – Tribunal. Deste modo mostra-se preenchida a função da norma legal, estando provada a perturbação ilegítima dos serviços do Ministério Público, a consciência desse facto e da ilicitude dessa conduta, pelo que se julga verificado o crime de perturbação de funcionamento de órgão constitucional previsto e punido no artigo 334, alínea a) do Código Penal, por cuja prática o arguido, também fora acusado”.
No mesmo sentido, havia já decidido também o Supremo Tribunal de Justiça, no Ac. 27-11-1997 (in BMJ 471-177), que “o órgão de soberania “Tribunais” é uma entidade abstracta que, como tal, embora teoricamente corporizada no respectivo juiz ou juízes, que o representa, funciona como o organismo que constitucionalmente se destina à administração da justiça em nome do povo, nos termos do artigo 205.º da Lei Fundamental, e tem natureza complexa, constituída pelos respectivos juízes, funcionários e Ministério Público (…). É, pois, o funcionamento desse órgão, considerado no seu conjunto, que as disposições legais (artigos 369º, do CP de 82 e 334º, do CP de 95) visam proteger, independentemente de o tumulto, vozearia ou desordem se verificarem na presença ou fora da presença do respectivo juiz”.
Seguindo esta jurisprudência, decidiu também o Tribunal da Relação de Évora, no Acórdão de 16/10/2012 (in www.dgsi,pt) que “(…) É, pois, o funcionamento desse órgão, considerado no seu conjunto, que as disposições legais (artigo 369º, do CP de 82 e 334º do CP de 95) visam proteger, independentemente de o tumulto, vozeria ou desordem se verificarem na presença ou fora da presença do respectivo juiz (…)” - vide BMJ nº. 471, pág. 477). Importa também ter em atenção o que foi decidido no Acórdão do STJ de 14/10/99, no que respeita aos oficiais de justiça, incluindo os que desempenham funções nos Serviços do Ministério Público, e aos Magistrados do Ministério Público, em que considerou que, para efeitos de preenchimento do crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional previsto no artº. 334º do Cód. Penal, se deveriam considerar incluídos no âmbito de protecção da norma: “Tribunal, como órgão de soberania, para efeito do seu enquadramento - no artº. 334º do Código Penal, terá que ser tido, por mais adequado, com o entendimento que deixamos expendido e que é o definido pelos constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira. O juiz para administrar a justiça, em nome do povo, não age sozinho, dependendo o seu labor da cooperação dos oficiais de justiça, incluindo os que desempenham funções nos departamentos do Ministério Público e, obviamente, do respectivo Magistrado do Ministério Público a quem compete representar o Estado, exercer a acção penal e defender a legalidade democrática, bem como os interesses determinados por lei. Todos eles compõem o "órgão complexo" designado por "Tribunal", pelo que a perturbação do seu funcionamento cai no âmbito da previsão do citado artº. 334º do Código Penal (…)”. Para efeitos de enquadramento dos elementos típicos do crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional, não se visa apenas a protecção da função essencialmente jurisdicional. Com tal incriminação, visa-se salvaguardar o órgão de soberania “Tribunais”, em toda a sua extensão, abrangendo todos aqueles cuja função de administrar a “justiça em nome do povo”, possa ser afectada e perturbada no seu normal decurso. Reduzir a protecção jurídica da norma em apreço apenas a essa função de julgar e à figura do juiz, enquanto representante do órgão de soberania, seria impedir os efeitos que se visam proteger com a norma incriminatória, o que o ordenamento jurídico, através das normas que supra se enunciaram não permite, em nosso entendimento, excluir. Nesta conformidade, consideramos que os arguidos, com a sua conduta, perturbaram o funcionamento dos Serviços do Ministério Público no Tribunal Judicial de Lagos - onde se encontravam, além do Magistrado do Ministério Público que atendeu os arguidos e a Procuradora Adjunta Drª SP, que no momento em que ocorreram os factos efectuava uma diligência que teve de interromper, os respectivos oficiais de justiça - e que é um dos elementos constitutivos do órgão constitucional “Tribunal”.

É este o entendimento dominante da jurisprudência dos nossos tribunais superiores e, naturalmente, aquela que adoptamos, face às considerações que já atrás expendemos.
Por isso, temos forçosamente de concluir que a conduta provada do arguido integrou a previsão da norma do artº 334º, a), pelo que se impõe a revogação do acórdão impugnado e a sua substituição por decisão condenatória.
Como afirma a Digna recorrente, na sua conclusão 31, «no sentido axiológico do tipo legal em apreço, perturbar é o acto de impedir que o órgão ou os membros visados exerçam as suas funções nas condições de dignidade e tranquilidade que o seu estatuto lhes confere». E o comportamento provado do arguido comprometeu, de forma irremediável, essa garantia de dignidade e serenidade que é imanente à própria essência do tribunal, enquanto órgão de soberania.

A pena correspondente é a de prisão até 3 anos.

A medida da pena de prisão deverá ser a adequada à culpa do agente e às exigências de prevenção (artº 71º, 1, CP).

Nos termos do n.º 2 do art. 71º CP, no desempenho desse desiderato tomar-se-ão em consideração os elementos que, não fazendo parte do tipo legal, depõem contra ou a favor do agente, entre outros os traduzidos nos índices enumerados nas suas al.as a) a f), melhor enumerados no acórdão impugnado:

- seus problemas de alcoolismo;

- sua actual situação de reclusão;

- apoio familiar de que beneficia;

- ausência de hábitos de trabalho;

- falta de juízo de auto-critica;

- inexistência de condições de reintegração; e

- bom registo prisional, a tudo acrescendo

- os seus antecedentes criminais, com anteriores condenações por injúria agravada (2015, multa substituída por trabalho), violência doméstica (2015, prisão suspensa com regime probatório) e condução em estado de embriaguez (2017, prisão suspensa e inibição).

No nosso caso a personalidade do agente, retratada no modo do surgir dos factos ilícitos, nas suas circunstâncias e os seus antecedentes criminais, fazem indiciar uma personalidade atreita à prática de delitos criminais e uma personalidade com pouco juízo crítico de auto-censura, de indiferença perante a norma.

Por isso, tendo em atenção todas as circunstâncias já referidas, e ainda que a pena concretizada se há-de situar dentro do limite traçado pela respectiva moldura legal, cremos que a pena deverá ser fixada nos impetrados 3 meses de prisão, a qual deverá ser substituída pela correspondente pena de multa, nos termos do disposto no artº 43º, 1, do CP, pois que, dada a sua actual situação de reclusão e o necessário juízo de autocensura que se impõe, o arguido saberá dar um novo rumo à sua vida, assim não se impondo o cumprimento da pena de prisão, por o não exigirem as necessidades de prevenção do cometimento de futuros crimes.

A pena assim encontrada, para além de retribuir a culpa do arguido (vertente interna) procura fazer passar para a sociedade a mensagem de que, em igualdade de circunstâncias, nela incorrerão aqueles que inobservem as regras éticas erigidas em normas criminais (vertente externa).

Quanto à medida da diária dessa multa, dispõe o nº 2 do artº 47º do Código Penal que a mesmo é fixada pelo tribunal em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais entre 5,00€ e 500,00€.

A fixação do montante diário da pena de multa, dentro dos limites legais, “não deve ser doseada por forma a que tal sanção não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade e de impunidade” (Ac. desta Relação de 13-07-95, C.J. XX, tomo 4, pág. 48).

Ora, se atentarmos em que a situação financeira do é praticamente de indigência, logo concluímos que a diária da multa deve ser fixada no seu mínimo, de 5 euros.

Termos em que, nesta Relação, se acorda em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido - cuja matéria de facto se altera nos termos descritos - e condenando o arguido, pela prática de um crime de perturbação de órgão constitucional, p.p. pelo artº 334º, a) do CP, numa pena de 3 (três) meses de prisão, substituída por 90 dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros.

Recurso sem tributação.

As custas do processo serão suportadas pelo arguido, com taxa de justiça fixada no mínimo legal, atenta a sua condenação.

Coimbra, 20 de Junho de 2108

Jorge França (relator)

Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)