Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE FRANÇA | ||
Descritores: | PERTURBAÇÃO DO FUNCIONAMENTO DE ÓRGÃO CONSTITUCIONAL; TRIBUNAL | ||
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Data do Acordão: | 06/20/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | GUARDA (JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA, J-1) | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 334.º, AL. A), DO CP | ||
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Sumário: | I – O tribunal, enquanto órgão de administração da justiça, é uma instituição abstracta independente das pessoas que, a cada momento, o integram. II – No sentido axiológico do tipo legal do artigo 334.º, al. a), do CP, perturbar é o acto de impedir que o órgão ou os membros visados exerçam as suas funções nas condições de dignidade e tranquilidade que o seu estatuto lhes confere. III – Preencheu aquele tipo de crime a conduta do arguido que, ao balcão da secretaria de um tribunal, através de tumultos, desordem e vozearias, perturbou o trabalho normal dos funcionários que ali se encontravam e bem assim o desempenho funcional de uma Procuradora-Adjunta. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA No Juízo Central Cível e Criminal da Guarda, J-1, da Comarca da Guarda, nos autos de processo comum (colectivo) que aí correram termos sob o nº 10/17.9GCALD, foi o arguido A… submetido a julgamento, acusado pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de perturbação de funcionamento de órgão constitucional, p. e p. pelo artigo 334º, 1ª parte, da alínea a), do Código Penal. Levado a efeito o julgamento, viria a ser proferido acórdão, decidindo nos seguintes termos: Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem o Tribunal Colectivo em julgar a acusação deduzida pelo Ministério Público improcedente, e em consequência: Absolver o arguido A… da prática do crime de perturbação de órgão constitucional p. e p. no artigo 334º nº1 a) do Código Penal que lhe vinha imputado. Sem custas Proceda ao depósito do Acórdão (cfr. artigo 372º do CPP). 2 – No entanto, o Tribunal a quo deu como provado, além do mais, a seguinte factualidade: “1.No dia 3 de Março de 2017, pelas 13h30, o arguido A… dirigiu-se para a Secretaria do Juízo de B… – Comarca da Guarda, sita na área de C…, aparentando já se encontrar embriagado. 2. Aí chegado, o arguido abeirou-se do balcão de atendimento da Secção Central e foi atendido pelo funcionário D…, que o questionou se precisava de algo e logo de seguida, em voz alta e tom alterado e por várias vezes proferiu as seguintes expressões: “como é que eu me chamo?”, “ eu chamo-me E…?”, “ eu não sou mentiroso,”, nunca matei ninguém”, “ nunca roubei ninguém" e “andam a brincar comigo”. 3. Nesse momento o funcionário F…, que exerce as funções de Escrivão de Direito, abeirou-se do arguido de molde a indagar o porquê dessa expressão, mantendo o arguido a mesma postura. 4. Apurou-se, entretanto, que a causa de tais afirmações tinha como origem um lapso de escrita no nome do arguido que constava num despacho de acusação. 5. Entretanto, o arguido continuava a proferir em voz alta e tom exaltado as referidas expressões. 6. A ilustre Procuradora Adjunta aí a exercer funções e que se encontrava no seu gabinete a trabalhar ouviu voz alterada e em tom alto, vindo da Secretaria do Tribunal, o que se manteve durante alguns minutos, o que a desconcentrou do seu trabalho. 7. A certa altura, como a situação não cessava, a ilustre magistrada dirigiu- se à Secretaria e pediu ao arguido para se acalmar e parar de falar alto porque estava num tribunal e devia respeito ao local onde se encontravam funcionários que estavam a trabalhar, dizendo-lhe que estava a perturbar o normal funcionamento dos serviços. 8. O arguido manteve a mesma postura de falar alto e proferiu diversas expressões sem sentido e muitas delas impercetíveis e pediu para falar com a referida magistrada, que lhe disse que já lhe tinham sido dadas todas as informações pretendidas, nada mais havendo a esclarecer e que estava a perturbar os serviços e deveria abandonar o Tribunal, sob pena de ser chamada a G.N.R. para o retirar do edifício. 9. Entretanto o funcionário F… convidou o arguido a abandonar as instalações e disse-lhe que havia sido solicitada a presença da patrulha da G.N.R. 10. Passado alguns minutos o arguido deixou em cima do balcão uma nota do BCE de 50€ (cinquenta euros) e repentinamente saiu da Secretaria apressado. 11. Nesse momento o funcionário F… foi no encalço do arguido ordenando que regressasse à Secretaria a fim de recolher a nota de 50€, o que este veio a fazer depois de muitas insistências. 12. Entretanto chegou ao local uma patrulha da G.N.R. de C…, composta pelos Guardas G… e H…, que de imediato disseram ao arguido para abandonar voluntariamente as instalações, o que este recusou, pelo que houve a necessidade de ser usada a força estritamente necessária para retirar o arguido do local.” 3 - Por sua vez, a douta decisão recorrida, deu como não provados os seguintes factos: “1. Nas circunstâncias referidas em 6. dos factos provados trabalho da Exma. Procuradora Adjunta foi perturbado pelo arguido. 2. Nas circunstâncias referidas em 9. dos factos provados, o arguido disse que não saía, e que a G.N.R vinha para lhe bater como era habitual. 3. Nas circunstâncias referidas em 10. dos factos provados o arguido bateu com a palma de uma das mãos com força no balcão, 4. Com as condutas descritas causou o arguido tumultos, desordens e vozearias na secretaria do Tribunal de C…, perturbando o normal funcionamento do Tribunal enquanto órgão de soberania. 5. Bem sabia o arguido que com a sua conduta perturbava o normal trabalho dos funcionários que aí se encontravam a laborar e bem assim o trabalho da ilustre Procuradora-Adjunta aí a exercer funções, perturbava indevida e ilegitimamente o normal funcionamento do Tribunal, enquanto órgão de soberania. 4 – O douto acórdão recorrido considerou que a conduta do arguido não perturbou o funcionamento do Tribunal de C…, mas que “apenas” desconcentrou a Senhora Procuradora Adjunta do seu trabalho. 5 – No ponto 6 dos factos provados, o Tribunal recorrido deu como provado que “A ilustre Procuradora Adjunta aí a exercer funções e que se encontrava no seu gabinete a trabalhar ouviu voz alterada e em tom alto, vinda da Secretaria do Tribunal, o que se manteve durante alguns minutos, o que a desconcentrou do seu trabalho” – sublinhado nosso. 6 – No entanto, no ponto 7, dos factos provados, o Tribunal a quo julgou provado que a “a certa altura e como a situação não cessava, a ilustre magistrada dirigiu-se à Secretaria e pediu ao arguido para se acalmar e parar de falar alto porque estava num tribunal e devia respeito ao local onde se encontravam funcionários que estavam a trabalhar e que estava a perturbar o normal funcionamento dos serviços.”
7 – É para nós manifesto que, se devido à circunstância de o arguido se encontrar na secretaria do tribunal a falar em tom de voz elevado e alterado [aos berros, como aquela referiu nas suas declarações], a Senhora Procuradora Adjunta interrompeu o seu trabalho, deslocou-se à secretaria a fim de se inteirar da situação e procurar pôr termo àquela desordem, o seu trabalho foi perturbado pela atuação do arguido. 8 – Em nosso entender, dos factos julgados provados pelo Tribunal recorrido nos pontos 2, 4, 5, 6, 7, 8 e 12, dos factos provados, impõe-se que o Tribunal dê também como provado que a atuação do arguido perturbou o trabalho da Senhora Procuradora Adjunta bem como a atividade dos Senhores Funcionários Judiciais que se encontravam na secretaria a cumprir os despachos proferidos em diversos processos - como resulta também evidenciado nos depoimentos do Senhor Escrivão de Direito, F…, bem como da Senhora Procuradora Adjunta, I…, nas passagens que se indicam e transcrevem parcialmente, na parte da motivação do presente recurso, e que aqui se dão por reproduzidos. 9 - Da parte da fundamentação da convicção do Tribunal, designadamente das referências aos depoimentos das testemunhas (…), melhor discriminadas na parte da motivação do presente recurso, decorre igualmente que a conduta do arguido em causa nestes autos perturbou o trabalho da Sr.ª Procuradora Adjunta que se encontrava a trabalhar no seu gabinete - a ultimar um despacho de acusação - pois que, a fez interromper o seu labor, deslocar-se à secretaria e entrar em diálogo com o arguido com vista a fazer cessar aquela situação de desordem na Secretaria do Tribunal, o que só foi conseguido com a presença da Guarda Nacional Republicana, que retirou o arguido do Tribunal. 10 – Temos para nós que, na presente situação, a conclusão extraída pelo Tribunal recorrido no sentido que a Sra. Procuradora Adjunta poderia ter continuado a fazer o seu trabalho, e que, a atuação do arguido apenas a desconcentrou, está em manifesta oposição com os factos julgados como provados nos pontos 2, 4, 5, 6, 7, 8 e 12 (dos factos provados), bem como com toda a prova direta produzida e apreciada em audiência de julgamento, sendo certo que, esta ilação também não encontra qualquer apoio nas regras da experiência comum. 11 - Em nosso entender, existe uma patente contradição entre os factos julgados provados, nos pontos 5, 6, 7 e 8 (factos provados) e entre os factos não provados descritos nos pontos 1, 4, 5 e 6 (factos não provados) e bem assim entre estes e a parte da fundamentação da convicção do Tribunal. 12 – A harmonização dos factos provados deverá, na nossa perspetiva, conduzir a que no ponto 6, dos factos provados, passe a constar que o arguido perturbou o trabalho da Senhora Procuradora Adjunta e que sejam julgados como provados também os factos inscritos nos pontos 4, 5 e 6 dos factos não provados, eliminando-se, em conformidade, o ponto 1 dos factos não provados. 13 – Temos para nós que, em face da fundamentação da convicção do Tribunal e mesmo da prova produzida e apreciada, indicada na parte da motivação, o douto acórdão recorrido julgou incorretamente o facto descrito no ponto 6, dos factos provado, e nos pontos 1 e 4, dos factos não provados, na parte em que refere a intensidade de afetação do trabalho da Senhora Procuradora Adjunta e da perturbação do funcionamento do Tribunal de C…, provocado pelo arguido. 14 - A factualidade que consta do ponto 4, dos factos não provados, deve ser julgada provada, na medida em que resulta dos factos provados nos pontos 2, 4, 5, 6, 7, 8 e 12, que com a descrita conduta o arguido provocou tumultos, desordens e vozearias na secretaria do Tribunal de C..., perturbando o normal funcionamento do tribunal enquanto órgão de soberania. 15 - Temos para nós que, a douta decisão recorrida enferma também de manifesto erro na apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, na parte em que o Tribunal considerou como não provados os elementos subjetivos do tipo de crime em apreço.
16 - Na douta decisão recorrida, o Tribunal a quo deu como não provados os elementos subjetivos do tipo de crime em apreço – cfr. pontos 5 e 6, dos factos não provados. 17 - Porém, a mesma decisão deu como provado que a ilustre Magistrada do Ministério Público a exercer funções do Juízo Local de C... dirigiu-se à Secretaria e pediu ao arguido para se acalmar e parar de falar alto porque estava num tribunal e devia respeito ao local onde se encontravam funcionários que estavam a trabalhar, dizendo-lhe que estava a perturbar o normal funcionamento dos serviços – como decorre do ponto 7 dos factos provados. 18 – O Tribunal recorrido deu ainda como provado que o arguido manteve a mesma postura de falar alto na Secretaria do Tribunal e que pela Sra. Procuradora Adjunta foi-lhe novamente pedido para parar de o fazer e comunicado expressamente que ele estava a perturbar o normal funcionamento do tribunal - como resulta do ponto 8 dos factos provados. 19 - Mais resulta, ainda, da douta decisão recorrida, da parte da fundamentação da convicção do Tribunal, que a testemunha I…, Procuradora Adjunta a exercer funções no Tribunal de C..., dirigiu-se ao arguido “dizendo-lhe que não podia continuar assim porque estava a perturbar o trabalho dela e dos funcionários” – cfr. fls. 207. 20 – Se, por hipótese, no momento inicial, o arguido não tivesse o conhecimento esclarecido e a vontade de praticar os factos em causa nos autos, certamente que após a Magistrada o Ministério Público ter informado o arguido que estava a perturbar o funcionamento do Tribunal, explicando que estava a perturbar o trabalho dela e dos funcionários, e tendo o arguido continuado a falar em tom de voz alto - como consta do ponto 8 dos factos provados – não pode existir qualquer dúvida que o mesmo arguido agiu com perfeito conhecimento e consciência de que se encontrava a perturbar o funcionamento do tribunal. 20 - Ora, perante estes factos que provados ficaram e os elementos que os suportam, temos para nós que o Tribunal incorreu em erro manifesto na apreciação da prova ao julgar não provado que o arguido bem sabia que com a sua conduta perturbava o normal trabalho dos funcionários que aí se encontravam a laborar e bem assim o trabalho da ilustre Procuradora Adjunta aí a exercer funções, perturbava indevida e ilegitimamente o normal funcionamento do tribunal, enquanto órgão de soberania e que agiu de forma de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei como crime. 21 - Da valoração dos factos que o Tribunal a quo considerou provados e estes conjugados com as regras da experiência comum, impõe-se que o Tribunal julgue provados os elementos subjetivos do tipo de crime em apreço e, consequentemente, que sejam aditados, à matéria de facto dada como provada, os pontos 5 e 6 dos factos julgados não provados, no douto acórdão recorrido. 22 - Como ensinam os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira "… os tribunais são órgãos complexos englobando as funções não apenas dos juízes mas também de outros agentes com estatutos muito distintos, como o Ministério Público (artigo 221), os advogados (que não são agentes públicos), os oficiais de justiça, etc. Consequentemente o tribunal não se identifica com o juiz, embora haja decisões e atos que só este possa praticar (reserva do juiz) - cfr. Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra Editora, página 791. 23 - Daqui resulta que a Constituição da República Portuguesa confere a soberania ao Tribunal e que esta é corporizada ou representada pelo juiz, mas isso não significa que este órgão constitucional se reduza a quem o representa - o juiz. 24 - Na interpretação e aplicação do disposto no art.º 334º, do Código Penal, a douta decisão recorrida acolheu a interpretação mais restritiva do “tribunal” que não tem sido a perfilhada pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores. 25 - Em nosso entender, na esteira das decisões dos nossos Tribunais Superiores, o tribunal, como órgão de soberania, para efeito do seu enquadramento na previsão do artigo 334º, do Código Penal, terá que ser entendido na aceção mais abrangente tal como é definida pelos constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira. 26 - Como se pode ler no douto acórdão do STJ de 27-11-1997 (BMJ 471-177), «[o] órgão de soberania “Tribunais” é uma entidade abstrata que, como tal, embora teoricamente corporizada no respetivo juiz ou juízes, que o representa, funciona como o organismo que constitucionalmente se destina à administração da justiça em nome do povo, nos termos do artigo 205.º da Lei Fundamental, e tem natureza complexa, constituída pelos respetivos juízes, funcionários e Ministério Público (…). É, pois, o funcionamento desse órgão, considerado no seu conjunto, que as disposições legais (artigos 369º, do CP de 82 e 334º, do CP de 95) visam proteger, independentemente de o tumulto, vozearia ou desordem se verificarem na presença ou fora da presença do respetivo juiz». 27 - De forma idêntica, na formulação do douto Acórdão do STJ de 14.10.1999, como n.º convencional JSTJ 00038312, “o juiz para administrar a justiça, em nome do povo, não age sozinho, dependendo o seu labor da laboração dos oficiais de justiça, incluindo os que desempenham funções no departamento do Ministério Público e, obviamente, do respetivo Magistrado do Ministério Público, aquém compete representar o Estado, exercer a ação penal e defender a legalidade democrática, bem como os interesses determinados por lei”. “Todos eles compõem o "órgão complexo" designado por "Tribunal", pelo que a perturbação do seu funcionamento caí no âmbito da previsão do citado artigo 334º do Código Penal.” 28 - No mesmo sentido se entendeu no douto acórdão do TRE de 16.10.2012, processo n.º 862/10.3TALGS.E1, onde se refere que “para efeitos de enquadramento dos elementos típicos do crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional, não se visa apenas a proteção da função essencialmente jurisdicional.” “Com tal incriminação, visa-se salvaguardar o órgão de soberania “Tribunais”, em toda a sua extensão, abrangendo todos aqueles cuja função de administrar a “justiça em nome do povo”, possa ser afetada e perturbada no seu normal decurso, compreendendo, pois, um elenco de agentes (juízes, magistrados do Ministério Público, funcionários judiciais) e atos desenvolvidos e encadeados que culminam no ato nobre de julgar, esse sim, acometido apenas à figura do juiz ou juízes, que representa o Tribunal.” 29 - A argumentação expendida na douta decisão recorrida, no sentido que uma perturbação no balcão da Secretaria do Tribunal, sem que estivesse a decorrer qualquer diligência presidida pelo Juiz, não integra a prática do crime, não pode ser aceite, por ser demasiado redutora do âmbito da tutela penal da norma jurídica. 30 - Em nosso entender, a melhor interpretação do disposto no art.º 334º, do Código Penal, é a que inclui no âmbito de proteção da norma a perturbação do tribunal, este considerado em sentido mais lato, abrangendo as funções do Juiz, do Magistrado do Ministério Público bem como dos Funcionários Judiciais ou do Ministério Público que aí prestem funções.
31 - No sentido axiológico do tipo legal em apreço, perturbar é o ato de impedir que o órgão ou os membros visados exerçam as suas funções nas condições de dignidade e tranquilidade que o seu estatuto lhe confere. A perturbação pode ser mais ou menos grave. Para o preenchimento do tipo de crime em apreço não é necessário que se verifique um verdadeiro impedimento do funcionamento do órgão ou o exercício de função.
32 - Condutas mais graves, que se traduzem no emprego de violência ou ameaça de violência e que visam impedir ou constranger o livre exercício das funções do órgão de soberania, estão tipificadas como crime de coação contra órgãos constitucionais, no art.º 333º, do Código Penal.
33 - A perturbação, no caso em apreço, é ilegítima pois que não existe qualquer causa de justificação.
34 - Em face do que se deixou dito, entendemos que da prova produzida em audiência de julgamento, resultou provado que o arguido perturbou, como desordens e vozearias, de forma ilegítima, o funcionamento do Juízo de Competência Genérica de C..., com perfeita consciência da ilicitude da conduta e vontade de praticar os factos.
35 - Em nosso entender, a conduta do arguido que ficou provada em audiência de julgamento, determinou uma afetação relevante do bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime previsto no art.º 334º, do Código Penal, tem dignidade penal e, assim, merece a censura penal adequada.
36 – A douta decisão recorrida violou ou interpretou de forma incorreta o disposto nos artigos 110º, n.º 1, e 202º, da CRP, 334º, al. a), do Código Penal, e 127º, do Código de Processo Penal.
37 - Em face do supra exposto, deverá o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que proceda à alteração da matéria de facto, nos termos acima indicados, e condene o arguido A… pela prática do crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional, p. e p. no art.º 334º, do Código Penal, numa pena de três meses prisão, substituída pela correspondente pena multa, nos termos do n.º 1, do art.º 43º, do Código Penal.
Nesta conformidade, entendemos que o douto acórdão recorrido deverá ser revogado, nos termos supra expostos, julgando-se a acusação procedente e condenando o arguido pela prática do crime de que vinha acusado. Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente, nos termos acima expostos. Assim se fazendo JUSTIÇA.
Respondeu o arguido/recorrido, retirando dessa sua peça as seguintes conclusões: 1ª - Deve manter-se na íntegra o douto Acórdão recorrido por o mesmo ter aplicado o disposto na lei e não ter violado qualquer normativo legal. 2ª - Não foi violado qualquer critério de apreciação da prova pelo Tribunal Recorrido. 3ª - Inexistem razões para alteração da matéria de facto dada corno provada e não provada. 4ª - Deve manter-se a absolvição do arguido nos exactos termos decididos pelo Tribunal "a quo ". NESTES TERMOS, nos melhores de Direito e sempre com o douto suprimento de V.as Ex.s, deve negar-se provimento ao Recurso interposto e manter-se o douto Acórdão recorrido.
DECIDINDO: Analisadas as conclusões que a digna recorrente retira da motivação do seu recurso, logo se constata que são essencialmente as seguintes as questões que, através da respectiva formulação, coloca à nossa apreciação: - em primeiro lugar invoca a ocorrência de vício de contradição entre os factos provados em 5, 6, 7 e 8 e os não provados em 1, 4, 5 e 6 e bem assim entre estes e a correspondente parte da fundamentação da convicção do tribunal; - Na sequência invoca também vício de erro notório na apreciação da prova, na parte em que considerou como não provados os elementos subjectivos do tipo (factos não provados 5 e 6); - de seguida passa à análise da previsão do tipo do artº 334º do CP, concluindo que o tribunal acolheu uma sua interpretação restritiva que não encontra apoio na doutrina e na jurisprudência dominantes; - conclui assim pelo respectivo preenchimento e pede a condenação do arguido. Muito embora o recorrente não os nomine de forma expressa, o certo é que, em parte os confundindo com a impugnação da matéria de facto não provada, invoca a ocorrência de vícios do acórdão, a saber, os de contradição insanável da fundamentação (artº 410º, 2, b), CPP) e de erro notório na apreciação da prova (al. c). Com efeito, afirma que considerados os factos provados em 5, 6, 7 e 8, não poderia o tribunal a quo dar como não provados os que enumera em 1, 4, 5 e 6; invoca também a ocorrência de contradição entre estes factos não provados e a correspondente parte da demonstração da formação da sua convicção. Invoca também o vício de erro notório na apreciação da prova, na parte em que considerou como não provados os elementos subjectivos do tipo (factos não provados 5 e 6). A operação de fixação da factualidade, resultante da prova produzida em julgamento, tem natureza complexa e nela se cruzam uma série de considerações que se prendem, por um lado, com o confronto crítico das provas, umas concordantes, outras discordantes entre si, e por outro, na sua conjugação com as regras da experiência, da normalidade do acontecer, tudo coado pelo bom senso, que é o senso comum, que deve presidir à análise lógica traduzida no raciocínio efectuado. E tudo deve ser transparente, por todos perceptível. Dispõe o artº 127º do CPP que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.» Consagrando esta norma o princípio da livre apreciação da prova, devemos todavia acrescentar que o poder/dever que daí resulta não é arbitrário mas, antes, vinculado a um fim que é o do processo penal, ou seja, a descoberta da verdade. Por isso, mostrando-se devidamente fundamentado, o exercício desse princípio torna-se inalterável, desde que se mostre apoiado na prova produzida e não demonstre raciocínios inadmissíveis, ilógicos ou contraditórios, face às regras da experiência comum, da normalidade e do bom senso, que é o senso comum. Por outro lado, é sabido que o processo de formação da convicção do tribunal é complexo e dinâmico, já que nele intervêm simultaneamente a consideração da globalidade das provas produzidas e validadas em audiência, num ambiente de imediação e de oralidade, as regras da experiência e do senso comum, da normalidade do acontecer… de modo a procurar retratar e plasmar um ‘retalho da realidade’. O juízo crítico final – que a sentença descreverá em termos de fundamentação – há-de resultar do confronto entre os diversos meios de prova produzidos e bem assim da valoração intrínseca que, de acordo com as regras processuais aplicáveis e com aquele poder de livre apreciação, o tribunal entenda ser o que decorre de um processo racional e lógico de formação da convicção, no qual terão interferência cambiantes de normalidade, razoabilidade e de senso comum. Muito embora sem delimitar precisamente o seu dissídio, mas ligando-o à questão probatória material, invoca o recorrente a ocorrência dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação. Todos os vícios referidos no nº 2 do artº 410º, para serem atendíveis, devem resultar «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum». Ou seja, o vício há-de ressaltar do próprio contexto da sentença, não sendo lícito, neste pormenor, o recurso a elementos externos – que não aquelas regras da experiência - de onde esse vício se possa evidenciar. Já o vício de contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão, verifica-se quando há uma incompatibilidade, que do texto da própria decisão recorrida se revela, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, seja de concluir que a correcta interpretação daquela conduza a uma decisão contrária à adoptada ou quando, nos mesmos termos, seja de concluir que a decisão não é clara, por se excluírem mutuamente os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido na fundamentação de direito e decidido no dispositivo; e há contradição entre os factos quando os provados e/ou os não provados se contradizem entre si ou estão descritos de forma a constituírem negação uns dos outros Considerado o desenvolvimento do processo formativo da convicção do tribunal, e a sua explanação formal no acórdão, com vista a torná-lo perceptível para os seus destinatários, verificamos que ocorrem os apontados vícios, que naturalmente decorrem da sua descrição fundamentadora probatória. A esse propósito, o tribunal recorrido teceu as seguintes considerações: Nos presentes autos, e atendendo à factualidade em causa, inexistem quaisquer elementos objectivos carreados para os autos, a cujo conteúdo importe atender, pelo que haverá apenas que ponderar o teor da prova produzida em audiência de julgamento.
Começaremos por dizer que tão completa fundamentação é pontuada por desnecessárias narrações descritivas dos depoimentos, desnecessárias porque a prova produzida em audiência foi gravada e a sua impugnação sempre deveria ser feita por referência ao respectivo suporte informático, nos termos prescritos no artº 412º, 3 e 4 do CPP. Pretende o recorrente que ocorre contradição entre o que se provou em 5, 6, 7 e 8 e os factos não provados em 1, 4, 5 e 6 e bem assim entre estes e a correspondente parte da fundamentação da convicção do tribunal. Com efeito, por um lado deu-se como provado que o arguido, dentro do balcão de atendimento da Secção Central do Juízo de C..., proferiu as expressões em causa, por várias vezes, em «voz alta e tom alterado (…) exaltado», o que levou a que a ilustre Procuradora, que ali exerce funções e que se encontrava no seu gabinete a trabalhar, as tenha ouvido, o que a desconcentrou, e que face à manutenção dessa situação, ela se dirigiu ao local onde se encontrava o arguido, pedindo-lhe para se acalmar e parar de falar alto, fazendo-lhe notar o local onde se encontrava e dizendo-lhe que estava a perturbar o normal funcionamento dos serviços; apesar disso, o arguido manteve a sua referida postura. Por outro, deu-se como não assente que o trabalho daquela referida digna magistrada haja sido perturbado pelo arguido e que com as suas condutas descritas o arguido haja causado «tumultos, desordens e vozearias na secretaria do Tribunal de C..., perturbando o normal funcionamento do Tribunal enquanto órgão de soberania». Do confronto entre os referidos factos provados e não provados resulta evidenciada uma dificuldade, aliás já denunciada pelo tribunal recorrido em sede de fundamentação de facto, de distinção entre matéria de facto e matéria de direito. Com efeito, muito embora admitindo que os factos se passaram dentro do edifício do tribunal, nas circunstâncias descritas, afirma que não resultou provado que o trabalho da srª Procuradora haja sido perturbado (na acepção da palavra que releva para este ilícito!!!); para acrescentar adiante que «entendemos que não resultou que o trabalho da Sra. Procuradora adjunta tenha sido propriamente perturbado (como já referimos, com a densificação que se exige deste conceito), até porque não concretizou a mesma, de forma objectiva e relevante, em que se traduziu tal perturbação, mas antes, e como é normal, que acabou por perder alguma concentração». Ou seja, não se provou que o trabalho dessa magistrada haja sido perturbado pelo arguido, apesar de se dar como provado que aquela, que se encontrava no seu gabinete a trabalhar, as tenha ouvido, o que a desconcentrou, e que face à manutenção dessa situação, ela se dirigiu ao local onde se encontrava o arguido, pedindo-lhe para se acalmar e parar de falar alto, fazendo-lhe notar o local onde se encontrava e dizendo-lhe que estava a perturbar o normal funcionamento dos serviços; apesar disso, o arguido manteve a sua referida postura. O juízo descrito, mais do que factual é jurídico e conclusivo. Por um lado, e apesar de tudo, o arguido sabia perfeitamente o local onde se encontrava, atentas até as razões que ali o conduziram! Por outro, é sabido que o elemento subjectivo do tipo, por regra, não é passível de extracção directa da prova produzida. Para poder afirmar o elemento subjectivo do tipo, o tribunal pode socorrer-se de provas indirectas, das quais retirará, após análise dialéctica, aquela conclusão. Assim, além dos meios de prova directos é possível, no processo penal, usar um procedimento lógico para prova indireta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido – as já mencionadas presunções. As presunções são legalmente definidas como “as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” - art. 349º do Código Civil. No processo penal assumem relevo especial as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao julgador concluir pela ocorrência de um facto desconhecido por ilações tiradas a partir de um facto conhecido. As presunções naturais mais não são, no fundo, do que o produto das regras de experiência - o julgador, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. Nas palavras de Vaz Serra “Direito Probatório Material”, B.M.J. nº 112. p. 190., “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (...) ou de uma prova de primeira aparência”. A presunção permite, portanto, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência e da lógica, de que normal e tipicamente certos factos são a consequência de outros. (…)”. No nosso caso, a dedução do facto desconhecido – aqueles elementos cognitivo e volitivo, integrantes do dolo - por não resultar directamente do mundo natural, da experiência percepcionada e narrada pelas testemunhas, poderá ser retirada a partir de factos indiciários conhecidos, de cuja conjugação seja possível deduzir a sua ocorrência, ainda que não denunciada como fenómeno directamente perceptível pela experiência, mas apenas pela razão. O juízo crítico final – que o acórdão descreve em termos de fundamentação – resulta assim algo inconsistente, por não ter em consideração este modo de aquisição probatória. É claro que o arguido sempre teve essa consciência e vontade, reforçados a partir do momento em que é advertido expressamente pela Digna Magistrada, como consta provado em 7 e 8. Tal integra erro notório na apreciação da prova. Face a tudo o que atrás se deixou dito, devem os factos não provados relatados em 1 e 4 a 6 ser considerados como provados, passando a ter a seguinte numeração, a partir do facto provado 12: 12-a). Nas circunstâncias referidas em 6. dos factos provados trabalho da Exma. Procuradora Adjunta foi perturbado pelo arguido. A próxima questão, suscitada pelo recorrente é de direito e prende-se com a interpretação a dar à norma do artº 334º do CP, tomando agora em conta a alteração ora introduzida na matéria de facto provada. No nosso caso, o arguido vem acusado pela prática, em autoria material, de um crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional, p.p. pelo artigo 334º do Código Penal, que tem as seguintes previsão e estatuição: Contrariamente ao ali decidido, o MP defende uma interpretação mais ampla da norma em causa, de forma a que nela caiba a factualidade averiguada em primeira instância e agora complementada. Foram tecidas as seguintes considerações, a tal propósito, no acórdão impugnado: Em anotação a tal artigo da CRP [202º] Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa, Anotada página 791) referem que "(…) os tribunais são órgãos complexos englobando as funções não apenas dos juízes mas também de outros agentes com estatutos muito distintos, como o Ministério Público,, os advogados (que não são agentes públicos), os oficiais de justiça, etc. Nos termos do n.º 2 do art. 71º CP, no desempenho desse desiderato tomar-se-ão em consideração os elementos que, não fazendo parte do tipo legal, depõem contra ou a favor do agente, entre outros os traduzidos nos índices enumerados nas suas al.as a) a f), melhor enumerados no acórdão impugnado: - seus problemas de alcoolismo; - sua actual situação de reclusão; - apoio familiar de que beneficia; - ausência de hábitos de trabalho; - falta de juízo de auto-critica; - inexistência de condições de reintegração; e - bom registo prisional, a tudo acrescendo - os seus antecedentes criminais, com anteriores condenações por injúria agravada (2015, multa substituída por trabalho), violência doméstica (2015, prisão suspensa com regime probatório) e condução em estado de embriaguez (2017, prisão suspensa e inibição). No nosso caso a personalidade do agente, retratada no modo do surgir dos factos ilícitos, nas suas circunstâncias e os seus antecedentes criminais, fazem indiciar uma personalidade atreita à prática de delitos criminais e uma personalidade com pouco juízo crítico de auto-censura, de indiferença perante a norma. Por isso, tendo em atenção todas as circunstâncias já referidas, e ainda que a pena concretizada se há-de situar dentro do limite traçado pela respectiva moldura legal, cremos que a pena deverá ser fixada nos impetrados 3 meses de prisão, a qual deverá ser substituída pela correspondente pena de multa, nos termos do disposto no artº 43º, 1, do CP, pois que, dada a sua actual situação de reclusão e o necessário juízo de autocensura que se impõe, o arguido saberá dar um novo rumo à sua vida, assim não se impondo o cumprimento da pena de prisão, por o não exigirem as necessidades de prevenção do cometimento de futuros crimes. A pena assim encontrada, para além de retribuir a culpa do arguido (vertente interna) procura fazer passar para a sociedade a mensagem de que, em igualdade de circunstâncias, nela incorrerão aqueles que inobservem as regras éticas erigidas em normas criminais (vertente externa). Quanto à medida da diária dessa multa, dispõe o nº 2 do artº 47º do Código Penal que a mesmo é fixada pelo tribunal em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais entre 5,00€ e 500,00€. A fixação do montante diário da pena de multa, dentro dos limites legais, “não deve ser doseada por forma a que tal sanção não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade e de impunidade” (Ac. desta Relação de 13-07-95, C.J. XX, tomo 4, pág. 48). Ora, se atentarmos em que a situação financeira do é praticamente de indigência, logo concluímos que a diária da multa deve ser fixada no seu mínimo, de 5 euros.
Termos em que, nesta Relação, se acorda em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido - cuja matéria de facto se altera nos termos descritos - e condenando o arguido, pela prática de um crime de perturbação de órgão constitucional, p.p. pelo artº 334º, a) do CP, numa pena de 3 (três) meses de prisão, substituída por 90 dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros. Recurso sem tributação. As custas do processo serão suportadas pelo arguido, com taxa de justiça fixada no mínimo legal, atenta a sua condenação. Coimbra, 20 de Junho de 2108 |