Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2713/08.0TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 05/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2.º JUÍZO CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 46.º N.º 1 C); 50.º; 812.º - E, AL A);802.º; 830.º DO CPC
Sumário: 1. O título executivo que seja corporizado num documento particular assinado pelo devedor, para o ser, tem de importar a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias.

2. Não constitui título executivo o documento que consubstancia uma mera proposta de concessão de crédito, não constando que o exequente efectivamente o concedeu, a data em que o fez, por que montantes e quais os prazos e montantes em que deveria ser reembolsado

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

“A... Llp”, instaurou a presente execução comum para pagamento de quantia certa, contra B... e C..., com a seguinte alegação:

“o documento junto titula um contrato de concessão de crédito em conta corrente na modalidade de "Conta Certa", no qual se encontra aposta a assinatura dos executados no local correspondente ao nome dos mutuários, constituindo título executivo nos termos da al. c) do art. 46º do CPC;

não obstante para tal interpelados, os executados incumpriram definitivamente as condições de pagamento e respectivo contrato o que implicou o vencimento imediato de todas as demais prestações em dívida  e demais encargos vencidos, quantia que até à presente data se mantém em dívida.

Os restantes factos constitutivos da obrigação constam exclusivamente do título executivo.”.

Peticiona a quantia de 4.088,75 € e a quantia de 1.095, 93 € de juros, a contar da data do incumprimento, 21.11.2005.

Como título executivo junta um formulário com o título "Conta Certa", junto, no seu original, a fl.s 42 e v.º, aqui dado por integralmente reproduzido, do qual constam, nos espaços destinados a serem preenchidos, unicamente os seguintes elementos:

- identificação, data e a assinatura dos executados;

- uma cruz assinalando "Sim, desejo aderir ao conta certa com seguro";

- uma cruz assinalando “3.000,00 €, 90,00 €, 56 meses”

- uma autorização de débito em conta,

- a data de 06.12.2004,

constando do verso de tal formulário as condições gerais (sem qualquer espaço destinado a ser preenchido), e uma assinatura da "D...", com a data de 01.10.2004.

            Conforme despacho de fl.s 43 a 46, a M.ma Juiz a quo, rejeitou a presente execução, por manifesta insuficiência de título, ao abrigo do disposto nos artigos 820.º, 812.º-E, al. a), do CPC, com a seguinte fundamentação (que se passa a transcrever para melhor compreensão da questão a decidir):

“Segundo o art. 45º do Cod. Proc. Civil, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.

E, a execução tem de ser movida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor – nº1 do art. 55º do CPC.

É pelo título que se fixam as partes, a existência e o conteúdo da obrigação.

De entre os títulos executivos previstos no art. 46º do CPC, enumeração que é taxativa, destacam-se os “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto” (nº1 al. c), na redacção do DL 38/2003 de 08.03).

Os documentos particulares para se configurarem como títulos executivos devem obedecer aos requisitos mencionados na al. c) do nº1 do art. 46º, de entre os quais se destaca a necessidade de "importarem a constituição de uma obrigação" – isto é, sejam fonte de um direito de crédito -  ou "o reconhecimento de obrigações" – isto é, que neles se reconheça a existência de uma obrigação já anteriormente assumida.

Vejamos, assim, se o título junto importa a constituição de um direito de crédito (sendo certo que não se trata de reconhecer qualquer dívida anteriormente existente).

Do teor do documento apresentado como "titulo executivo", resulta que tal formulário se destina à celebração de um contrato de crédito em conta corrente pelo qual a D... autorizaria o mutuário a utilizar o crédito a conceder um limite máximo a acordar entre as partes.

Contudo, nenhuma outra assinatura aparece em tal formulário, que tenha sido aposta pela entidade financiadora, para além da assinatura pré-impressa no verso do contrato, datada de 01.10.2004.

Ora, do ponto 1.4. das condições gerais consta que "a D..., após a recepção do contrato que lhe é destinado bem como análise e confirmação das informações prestadas pelo mutuário, reserva-se o direito de confirmar ou recusar a concessão de crédito, considerando-se como data da conclusão do contrato a da comunicação pela D... da autorização da concessão de crédito".

Ora, do teor do documento junto não resulta que a D... tenha aceitado a concessão de crédito, nem que tenha disponibilizado à ora executada a quantia de 3.000,00 € ou qualquer outra quantia.

Ou seja, e em primeiro lugar, de tal documento não se pode aferir que tal contrato se tenha por concluído, e que do mesmo resulte a constituição de qualquer obrigação para os executados.

E, de tal documento não resulta igualmente qual o prazo para a devolução do montante a disponibilizar, nem a data de vencimento das prestações mensais aí previstas.

E, note-se ainda que de tal contrato não resulta que com a aceitação do mesmo a entidade bancária proceda à entrega imediata de qualquer quantia aos titulares, ora executados, mas tão só que “a COFIDIS autoriza o mutuário a utilizar o crédito concedido através da conta corrente Conta Certa até ao limite máximo autorizado no ponto 5 do presente contrato” (cfr. ponto 2.1.).

Como se afirma do Acórdão da Relação de Évora de 18-10-2007, "Uma mera proposta para concessão de crédito dirigida a uma instituição bancária, sem estar acompanhada de qualquer prova de que o crédito tenha sido concedido, qual o montante eventualmente concedido e em que condições, não pode ser entendida como constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação pecuniária e, consequentemente, não é título executivo1".

Em sentido semelhante se pronuncia o Ac. Relação do Porto de 07.02.2008:

“1- Através do contrato de concessão de crédito em conta-corrente, sendo um contrato consensual, o estabelecimento bancário obriga-se a ter à disposição do cliente uma soma em dinheiro que este tem, por sua vez, a possibilidade de utilizar mediante mais operações ou uma segunda operação.

2 – Daí que o documento particular em que se formaliza tal contrato, ainda que assinado pelo devedor, enquanto desacompanhado dos elementos que demonstrem a concretização das operações subsequentes de disponibilização e utilização de capitais, não tem a virtualidade de, por si só, certificar a existência do crédito exequendo, isto é, não constitui título bastante.2”

Ou seja, ainda que se considere que de tal documento resulta a constituição de alguma obrigação para a ora executada, encontrando-se em causa a formalização ou reconhecimento de obrigação pecuniária, exigir-se-ia que fosse líquida ou liquidável por simples cálculo aritmético, ficando excluídas as obrigações pecuniárias que só possam ser liquidadas nos termos do incidente do art. 805º nº4.

Face às considerações expostas, e entendendo-se que o documento junto a fls. 42, por si só, não comporta a constituição de qualquer obrigação pecuniária por parte dos ora executados (e muito menos os peticionados valores de 4.088,75 €, e 1.095,93 €), não reúne tal documento os requisitos necessários a ser considerado título executivo.

Por fim, note-se que a entidade que aparece como mutuante é a COFIDIS, sem que a ora exequente junte qualquer documento comprovativo de uma eventual cessão de créditos a seu favor, cessão que nem sequer alega.”.

           

            Inconformada com tal decisão, interpôs recurso a exequente, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 63), apresentando as seguintes conclusões:

A) A Exequente alega a cessão de créditos no requerimento executivo, não tendo junto o respectivo contrato por mero lapso, podendo, no entanto, este ser junto logo que o Meritíssimo Juiz o requeresse;

B) O documento apresentado à execução titula um contrato, celebrado entre a apelante e os apelados, através do qual a Exequente/apelante concedeu um crédito aos Executados, através do qual estes se obrigaram a reembolsar a Exequente da verba mutuada e efectivamente disponibilizada, mediante o pagamento de prestações mensais iguais e sucessivas.

C) O contrato de concessão de crédito constitui um documento particular assinado pelos Executados, constitutivo de uma obrigação por parte daqueles, de restituição da quantia financiada/mutuada nos moldes acordados, a qual é aritmeticamente determinável;

D) Não obstante interpelados para efectuar o pagamento das prestações em dívida, os Executados não pagaram as mesmas e em consequência, incumpriram definitivamente as condições de reembolso e o respectivo contrato, o que implicou o vencimento imediato de todas as prestações em dívida, nos termos do Art. 781º do Código Civil;

E) Os Executados assumiram a obrigação do pagamento dessa quantia pecuniária mutuada, ainda que diluída num dado período temporal, mediante a oposição da sua assinatura, traduzindo em consequência tal documento, o reconhecimento de uma dívida, por parte dos subscritores, proveniente de um empréstimo em numerário;

F) Pelo requerimento pretende-se obter o pagamento da quantia em dívida, atinente ao reembolso do crédito concedido. Tal reembolso constitui obrigação assumida expressa e pessoalmente pelos devedores no contrato que titula a execução;

G) A propositura de uma acção executiva implica que o pretenso Exequente disponha de título executivo, por um lado, e que a obrigação exequenda seja certa, líquida e exigível, por outro;

H) Do contrato de concessão de crédito resulta a certeza, liquidez e exigibilidade da obrigação exequenda;

I) “O contrato de concessão de crédito, onde vem especificamente indicada a obrigação do beneficiário do mesmo pagar a crédito concedido em prestações iguais, mensais e sucessivas, cujo número e montante se encontra também previamente fixado (...) constitui título executivo nos termos do Art.46º c) do CPC, no caso de incumprimento das prestações acordadas.”;

J) O pagamento das mensalidades ora reclamadas constitui em facto extintivo do direito invocado pela Exequente, pelo que, nos termos do Art.342º, nº2 do CC, o respectivo ónus compete aos Executados, ou seja, àqueles contra quem o direito é invocado, em sede de eventual oposição;

K) A oposição à execução configura-se como uma contra – execução, cuja função essencial no núcleo da acção executiva é obstar aos normais efeitos do título executivo, sob o fundamento, por exemplo, da inexistência da obrigação exequenda.

L) Pelo que, os direitos de defesa dos executados não são prejudicados, agilizando-se uma eventual necessidade de apreciação do mérito da causa, sem perigar os direitos do credor/exequente, na garantia e eventual satisfação do seu crédito.

M) Do documento resulta ainda a aparência do direito invocado pela Exequente, direito que, por isso, é de presumir;

N) O Tribunal recorrido efectuou uma errada interpretação do Direito por si invocado, violando o disposto no art. 46º nº 1 alínea c) do C.P.C., na sua actual redacção, porquanto o contrato sub judice constitui título executivo bastante.

Nestes termos e nos mais de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve a douta sentença ser revogada, prosseguindo a execução intentada os seus termos até final, com as legais consequências, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.

            Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a única questão a decidir é a de saber se deve ou não considerar-se como título executivo o documento de fl.s 42 e v.º, denominado “Conta Certa, Contrato de Crédito em Conta Corrente”.

            Os factos a considerar para a decisão do presente recurso, são os que constam do relatório que antecede.

            Passando à análise da questão de saber se deve ou não, considerar-se como título executivo o documento de fl.s 42 e v.º, denominado “Conta Certa, Contrato de Crédito em Conta Corrente”, importa, num primeiro momento, ter em linha de conta o disposto no artigo 46.º, n.º 1, al. c), do CPC, de acordo com o qual:

            “À execução apenas podem servir de base:

Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.

Por outro lado, como resulta do disposto no artigo 802.º CPC, a obrigação constante do título executivo, tem de ser certa, exigível e líquida, constituindo estas características os pressupostos de carácter material que condicionam a exequibilidade do direito – cf. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, Depois da Reforma, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2004, a pág.s 28 e 29.

Sendo que a obrigação é certa quando se encontra qualitativamente determinada; exigível, quando se encontra vencida ou o respectivo vencimento depende de simples interpelação ao devedor, de acordo com estipulação expressa ou por recurso ao artigo777.º, n.º 1 do CC e é líquida, quando o seu quantitativo já se encontra definido ou apurado.

Como resulta do supra citado artigo 46.º, n.º 1, al. c), o título executivo que seja corporizado num documento particular assinado pelo devedor, para o ser, tem de importar a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias.

Analisando o doc. de fl.s 42 e v.º, não se pode concluir que do mesmo resulte a constituição ou o reconhecimento da obrigação que o exequente pretende ver satisfeita.

Efectivamente, como se refere na decisão recorrida, não se pode extrair do simples cotejo de tal documento, que o empréstimo tenha sido concedido e por conseguinte que exista a obrigação exequenda.

No âmbito de uma execução, apenas compete à exequente introduzir em juízo o respectivo título, presumindo-se existente a obrigação que do mesmo consta.

Mas, para tal, necessário se torna que a mesma se encontre determinada no título que se pretende executar, sem necessidade de recorrer a outros documentos ou elementos.

Ora, salvo o devido respeito, não é isso que se passa no caso de que agora nos ocupamos.

Analisado o supra referido documento, como descrito na decisão recorrida, tem de se concluir que estamos perante uma mera proposta de concessão de crédito, corporizada em impresso pré-preenchido, na sua quase totalidade e em que, como consta expressamente, no seu verso, se diz que “… pode converter-se em contrato, desde que assinada pelo(s)  Mutuário(s), nos termos seguintes:”.

Uma desta condições (1.4), estabelece que:

“A D..., após a recepção do exemplar do contrato que lhe é destinado bem como análise e comprovação das informações prestadas pelo Mutuário, reserva-se o direito de confirmar ou recusar a concessão do crédito, considerando-se como data da conclusão do contrato a da comunicação pela D... da autorização de utilização do crédito.”.

Não consta do documento junto se a D... chegou ou não a conceder o crédito, bem como qual a data em que o fez, por que montantes e quais os prazos e montantes em que deveria ser reembolsado, pelo que e assim sendo, aderindo ao que quanto a tal se referiu na decisão recorrida, não se pode concluir que do documento de fl.s 42 e v.º resulte a constituição de uma obrigação ou o reconhecimento de uma dívida, por se desconhecer se o solicitado empréstimo veio ou não a ser concedido.

Saliente-se que no caso dos documentos particulares assinados pelo devedor, para que os mesmos possam constituir título executivo, o próprio documento tem de revelar a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias, por contraposição aos autênticos ou autenticados, caso em que, conforme artigo 50.º do CPC, se permite a demonstração posterior de que foi concluída a realização do negócio.

Não obstante, como refere Lopes do Rego, in Comentários …, Vol. I. 2.ª Edição, Almedina, 2004, a pág. 83, no caso de exigibilidade da obrigação prevista no artigo 804.º do CPC, se possa fazer a sua prova complementar, defendendo que, em tais condições, pode valer como título executivo o contrato de concessão de crédito, associado a cartão de crédito, determinando-se a real concessão do crédito ainda não pago.

No entanto, no caso presente, não se encontra, nem pelo título, nem por qualquer outro documento a ele associado ou com ele conexo, demonstrada a concessão do empréstimo, pelo que, não pode proceder o recurso em análise.

Por último, de referir que nos Acórdãos que a recorrente cita em abono da sua tese (com exclusão do da Relação de Lisboa de 16/03/2000, que se encontra apenas sumariado, no indicado sítio), tanto quanto nos é possível perceber, trata-se de situações em que estava comprovada a efectiva consumação do negócio, em que as quantias foram efectivamente colocadas (entregues) à disposição dos mutuários.

Como é óbvio, em tal caso, dúvidas inexistem de que o contrato de concessão de crédito pode constituir título executivo.

Só que, reitera-se, no caso em apreço, tal entrega, a conclusão do contrato, não resulta do título, nem foi junto qualquer outro documento que a comprove.

Consequentemente, não se pode reconhecer força de título executivo ao documento de fl.s 42 e v.º, não podendo proceder o presente recurso.

Nestes termos se decide:

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela apelante.


Arlindo Oliveira (Relator)
Emídio Francisco Santos
António Beça Pereira