Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
350/09.0T2AND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: REVITALIZAÇÃO
SUSPENSÃO
ACÇÕES
ÂMBITO
ACÇÃO DECLARATIVA
NULIDADE
TRESPASSE
FARMÁCIA
PATRIMÓNIO
Data do Acordão: 02/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ANADIA - JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL - JUIZ 1 -
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 17-A, Nº1, DO CIRE
Sumário: 1. Ao estatuir que o início do processo de revitalização implica a suspensão das acções de cobrança de dívidas e outras com fim idêntico, o disposto no actual art.º 17-E, nº 1, do CIRE não abrange uma acção destinada à declaração de nulidade do trespasse por via do qual o devedor adquiriu um determinado estabelecimento farmacêutico.

2. Com efeito, para que a negociação das dívidas do revitalizando possa ter lugar, não se justifica a suspensão de acções que apenas tenham como fim a exacta delimitação do respectivo património: antes se torna premente que essa delimitação se clarifique.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... instaurou no Juiz 1 do Juízo de Grande Instância Cível da Comarca do Baixo Vouga, sediado em Anadia, uma acção com processo comum sob a forma ordinária contra B... , LDA, e C..., alegando, em síntese:

Em consequência da dissolução e partilha da sociedade D..., LDA, que teve lugar por escritura pública de 30 de Maio de 1972, foi adjudicada à A. a propriedade do estabelecimento comercial àquela pertencente sob a denominação “FARMÁCIA E...”; como nessa altura a A. apenas frequentava o curso de Farmácia foi contratada para directora técnica do estabelecimento a Dr.ª F...; em 21/03/1980, por então ainda não ter concluído o curso, viu-se a A. na contingência de ter de celebrar uma escritura pública de concessão da exploração do estabelecimento à referida directora técnica; por imposição do INFARMED, e com o único fim de evitar a caducidade do Alvará, em 26 de Outubro de 2001 simulou a A. com a mesma pessoa a celebração de um contrato de trespasse da dita farmácia, sem que, apesar do aí declarado, por isso tivesse recebido qualquer preço; vindo a falecer aquela directora técnica em 28 de Fevereiro de 2002, sucedeu-lhe a aqui 2ª Ré, sua mãe; como esta Ré nunca frequentou o curso de farmácia, para obviar a novo risco de caducidade do Alvará foi necessário que em escritura de 26 de Fevereiro de 2004, com a concordância da A., esta Ré simulasse novo trespasse do estabelecimento para a 1ª Ré; o que aconteceu sem embargo de as partes bem saberem que a A. continuava a ser a verdadeira proprietária, visto nunca ter existido a intenção de transmitir o que quer que fosse, nem ter sido pago qualquer preço; sendo os aludidos trespasses simulados, com o único objectivo de obviar à caducidade do alvará da farmácia, são os mesmos nulos, nos termos da lei.

Remata pedindo que se profira sentença de forma a:
A. Ser declarada a nulidade dos contratos de trespasse celebrados entre as partes, nos termos do art.º 240, nºs 1 e 2 do C. Civil;
B. Proceder-se ao cancelamento dos registos efectuados com base na nulidade (…):

Contestaram ambas as Rés excepcionando a litispendência e impugnando a simulação, terminando com a improcedência da acção e a condenação da A. como litigante de má fé.

Replicou apenas para refutar a excepção de litispendência e concluindo como na petição.

Avançou o processo e já com a audiência de julgamento designada, veio a Ré B..., LDA, requerer a suspensão da acção em virtude da instauração de um processo especial de revitalização, invocando o disposto nos art.º 17-E, nº 1, e 17-C, nº 3, al. a), do CIRE, juntando cópia do despacho ali prolatado de nomeação do respectivo administrador judicial provisório.

Ouvida, a A. opôs-se.

De seguida foi proferido o despacho de fls. 295-296, nos termos do qual, por se ter entendido que a acção “contende com o património da Ré B... , Lda, uma vez que visa a declaração de nulidade dos contratos de trespasse do seu estabelecimento comercial, sem o qual esta não poderá exercer a sua actividade”, se determinou “a suspensão da instância até que se conclua o PER da Ré”.

Inconformada, desta decisão interpôs a A. recurso, admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Cumpre decidir.

~

Os pressupostos de facto a ter em consideração são os que defluem do relato que antecede.

                                                                       *

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação, a apelante suscita apenas a questão de saber se, ao invés do que foi entendido no tribunal a quo, a natureza e finalidade da presente acção não se enquadra no âmbito das acções aludidas no art.º 17-E, nº 1 do CIRE.   

Houve contra-alegação em que se pugnou pela confirmação do decidido.

Apreciando.

Tal como decorre do relatório o pedido principal formulado na presente acção é o da declaração de nulidade dos aludidos dois trespasses do estabelecimento de farmácia hoje em poder da Ré B..., LDA.

A norma que é fonte do dissídio da recorrente é a do actual art.º 17-E, nº 1, do CIRE, na redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 16/2012 de 20 de Abril, diploma que introduziu no nosso ordenamento jurídico o chamado PER (Processo Especial de Revitalização).

Reza o preceito em causa:

“A decisão a que se refere a alínea a) do nº 3 do art.º 17-C obsta à instauração de quaisquer acções para a cobrança de dívidas ao devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado o plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”.

Por seu turno, estabelece-se no mencionado art.º 17-C do CIRE:

“1. O processo especial de revitalização inicia-se pela manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, por meio de declaração escrita, de encetarem negociações conducentes à revitalização daquele por meio da aprovação de um plano de recuperação.

2. A declaração referida no número anterior deve ser assinada por todos os declarantes, da mesma constando a data da assinatura.

3. Munido da declaração a que se referem os números anteriores, o devedor, deve, de imediato, adoptar os seguintes procedimentos:

a) Comunicar que pretende dar início às negociações conducentes à sua recuperação ao juiz do tribunal competente para declarar a sua insolvência (…)”.

(…).

Nenhuma dúvida se pode colocar quanto a saber se a presente acção é uma acção de cobrança de dívida: não o é seguramente.

E também temos por inequívoco que não estamos perante uma acção com idêntica finalidade: o fim da acção é apenas o reconhecimento e declaração da invalidade dos negócios que culminaram na aquisição da farmácia pela 1ª Ré.

Ao intérprete importa sobretudo averiguar a que interesses obedeceu a norma do nº 1 do art.º 17-E do CIRE.

E quanto a isso não pode haver qualquer hesitação face ao que sobre o PER, instituído pela já aludida Lei 16/2012, se acha hoje ínsito no art.º 17-A, nº1, do CIRE: permitir ao devedor estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização, facultando-lhe a possibilidade de se manter no seu giro comercial.

Ora nem a A. está exigir um crédito da 1ª Ré, nem dela se afirma, por alguma forma, credora.

Com a instauração da presente acção a A. pretende que, apreciando os negócios translativos de que decorreu a aquisição do estabelecimento de farmácia que a Ré detém e usa, o tribunal decrete a respectiva nulidade.

Nem sequer vem peticionada a entrega do estabelecimento (não há um pedido de restituição).

Por conseguinte, da procedência da acção, em si mesma, ou seja, da declaração de nulidade dos trespasses, não decorrerá um estorvo ao giro comercial da 1ª Ré B..., LDA.

É claro que dessa eventual decisão poderão advir consequências para o funcionamento da empresa, especialmente se aquele estabelecimento for o único explorado por aquela Ré, que poderá ver-se privada da sua organização produtiva essencial.

Mas em tal cenário não seria por virtude da suspensão do andamento da acção que se viabilizaria a revitalização da Ré. Pelo contrário, só tem sentido prosseguir com o processo de revitalização depois de saber se as aquisições operadas pelos trespasses se mantêm de pé, podendo aquela contar com o estabelecimento para a sua recuperação económica e financeira.

Ou seja, o que antes de tudo se apresenta como prejudicial é a definição da propriedade da farmácia, definição que, afinal, pode influir decisivamente na hipótese de revitalização da aludida Ré.

Sem essa definição todos os credores ficam sem um instrumento indispensável para avaliar a evolução futura da empresa e da actividade por aquela Ré prosseguida.

Por isso, é até vincadamente relevante o conhecer-se tão rapidamente quanto possível se a aquisição da farmácia pela Ré foi ou não válida, isto é, que a acção avance de modo a que, com a maior brevidade, os credores se tornem cientes do efectivo acervo patrimonial da devedora e das potencialidades respectivas.     

Em suma, a decisão ora recorrida tem de ser revogada.

Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a decisão de suspender a instância da presente acção, determinando-se o seu imediato prosseguimento.

Custas pela apelada.

                                    

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins