Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
63/11.3TAMIR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
DOCUMENTO PARTICULAR
PROCURAÇÃO FORENSE
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE MIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 256.º, N.ºS 3 E 4, DO CP; ARTIGO 363.º DO CC; ARTIGOS 83.º, N.º 2, E 85.º, N.º 2, AL. A); DECRETO-LEI N.º 342/91, DE 14-09; DECRETO-LEI N.º 267/92, DE 28-11; DECRETO-LEI N.º 28/2000, DE 13-03; ARTIGO 38.º, N.ºS 1 E 2, DO DECRETO-LEI N.º 76-A/2006, DE 29-03
Sumário: I - A atribuição de competência a advogados, solicitadores, correios, etc., para a prática de actos que, tradicionalmente, estavam na alçada exclusiva de autoridades públicas ou como tal reconhecidas, deve-se mais ao movimento de privatização e simplificação desses actos do que à atribuição de um título que deve ser reservado a agentes do Estado ou reconhecidos como tal.

II - Este alargamento de competência aos referidos agentes deve-se também à presunção de que, em razão dos seus estatutos profissionais, os actos praticados serão verdadeiros.

III - Em relação a advogados, o dever de verdade - ou pelo menos de não violação da lei - deriva do próprio Estatuto da Ordem (cfr. arts. 83.º, n.º 2, e 85.º, n.º 2, al. a).

IV - A qualificação de autoridade pública não dispensa que a respectiva entidade actue no exercício de funções próprias, que se verifica quando existe actuação no âmbito de um regime de direito público, mediante utilização das prerrogativas inerentes.

V - Estes atributos não cabem a todos aqueles - inter alia, os acima descritos - a quem, salvo indicação expressa da lei, está atribuída competência para alguns actos cuja prática estava antes atribuída a agentes do Estado.

VI - Consequentemente, a procuração forense reveste a natureza de documento particular, nomeadamente no plano da definição do crime de falsificação de documento - não qualificado pelas circunstâncias especificadas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 256.º do CP.

Decisão Texto Integral: Conferência na 2.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.  

RELATÓRIO

1 - No Tribunal Judicial de Mira, no processo acima identificado,  na sequência de instrução requerida pela assistente A..., Lda., foi proferida a fls  855 sgs despacho judicial final com o seguinte teor :

- decide-se determinar extinto o procedimento criminal por efeito de prescrição e não pronunciar a arguida B... pela prática em co-autoria material de um crime de falsificação de documento, punido e previsto no artigo 256 n.º 1 do Cód. Penal.

 

2 - A assistente, não se conformando com tal despacho de não pronúncia,  interpôs recurso do mesmo, concluiu do modo seguinte :

Hoje em dia um número considerável de profissionais sem vínculo ao Estado, entre os quais advogados, emitem documentos autênticos em diversos domínios sendo que também os notários deixaram de ser funcionários públicos
Se o legislador conferiu aos advogados fé pública para a prática de actos que não são próprios da sua função natural, é pouco crível que lha não tenha conferido com referência àqueles que a esta pertencem.
O núcleo central da actividade dos advogados constitui, desde sempre, o exercício do mandato forense. Por tal motivo, o legislador, ao longo do tempo, outorgou aos advogados (a par dos advogados estagiários e solicitadores) tal competência exclusiva como já ocorria nos primitivos Estatutos Judiciários e, de modo semelhante ao actual, desde o Decreto-Lei n.º 44278, de 14 de Abril de 1962 (art. 535°,1), pela Lei 38/87 (art. 92.º, 1), pela Lei 3/99 (art. 6.º, 1), pelo DL 49/2004 ( al. a) do art. 5.º), merecendo tal competência consagração constitucional (art. 208.º, 1 CRP).
Imanente a tal consolidado entendimento legislativo está a fé pública que a actividade de advogado, no seu núcleo central (mandato forense) merece comunitariamente. Dir-se-á, pois, que a mera qualidade funcional de advogado é bastante para que um cidadão, por intermédio de tal profissional, suscite a heterotutela pública propiciada pelo Tribunais.
A existência de um vínculo funcional ao Estado não parece, actualmente, constituir o critério para atribuição de fé pública, como disso é drástico exemplo a privatização do notariado já anteriormente aflorada. Assim, a atribuição de fé pública deverá abstrair da existência de uma relação funcional entre o agente e o Estado, centrando-se antes nas características: garantias de verdade e autenticidade.
No quadro da competência exclusiva legalmente instituída, outorgada para satisfação adequada do interesse público da heterotutela judicial, os documentos elaborados e assinados (peças processuais) por advogado no patrocínio forense encontram-se revestidos de fe pública, devendo ser tomados como autênticos.
O legislador outorgou aos advogados o poder/dever de representação dos cidadãos em juízo. Fê-lo não apenas por presumir a sua competência técnica, mas também por entender que o exercício concreto da função de advogado traz, em si, a adequada transposição dos factos e pretensões do concreto cidadão patrocinado. Ou seja, o Estado vê na acção dos advogados uma garantia de verdade e autenticidade. Porque assim é, o mandato deve ser livre. Porém, como a liberdade e o oposto do arbítrio, o adequado exercício profissional obriga a que o mesmo se faça ao encontro de princípios estritos de lealdade, verdade, dignidade e justiça (cfr. a propósito o disposto nos arts. 61.º, 3, 83.º e 85.º EOA).
Ao encontro de um outro paradigma, aquando da redacção do Código Civil em 1966, cabia aos funcionários públicos, mormente aos notários (apenas públicos, então) a emissão de documentos autênticos. Desde então, no entanto, outras águas vieram a correr debaixo das pontes e, bem ou mal (a Historia o dirá), a verdade é que, sobretudo a partir da década de 90 do século passado, deu-se um forte impulso “privatizador” quer das funções do Estado, quer dos próprios actos que este a si reservava.
A entrega de competências públicas notariais aos advogados verificou-se com a abolição do poder legal exclusivamente atribuído aos Notários, enquanto categoria do funcionalismo público, para lavrar ou reconhecer procurações e substabelecimentos forenses, operada pelos DLs 342/91 e 267/92.
A correcta interpretação das normas, operada com recurso à leitura dos respectivos preâmbulos, permite afirmar que se tratou de entregar a profissionais liberais (advogados), a competência legal, ate então exclusivamente pública (o poder público), de dar como autênticas tais categorias de actos.
Dos dois diplomas resulta, salvo melhor opinião que, em razão da fé (pública) de que gozam  os actos praticados por advogados, foram eliminadas tais intervenções notariais, cabendo aos advogados a quem é conferido o mandato atestar a veracidade do mesmo e a extensão dos poderes que lhes são conferidos.
De realçar igualmente que em ambos os diplomas se emprega a terceira pessoa do plural, do presente do indicativo do verbo gozar, o que não é despiciendo e entronca no anterior raciocínio a respeito da fé pública dos advogados no que ao exercício do mandato forense respeita. O legislador, em ambos os diplomas, afirma que os advogados, mesmo antes da aprovação de tais diplomas, já gozavam de fé pública e é essa fé pública que surge como justificativa para a mais célere solução encontrada.
Tratou-se, pois e apenas, de entregar um acto próprio dos Notários dotados de fé pública), aos advogados (dotados de fé pública), em razão da celeridade e comodidade que assim se alcançavam, sem menosprezo das garantias de verdade e autenticidade. (cfr. alínea c), do n.º 2, do art. 85.º EOA). Dúvidas, pois, não podem restar que a outorga de procurações forenses constitui a emissão de documentos autênticos, porque praticados perante profissional (advogado) com competência legal para tal e, quanto a tal matéria investido do necessário poder para conferir fé pública ao documento.
E, mesmo numa visão mais restritiva da fé de que gozam os advogados, porque a fé pública resultante da lavra da procuração ou substabelecimento se mantém no exercício dos poderes aí conferidos é que igualmente as concretas manifestações daí decorrentes, como sejam a apresentação de peças processuais em juízo e de requerimentos em juízo ou fora dele, transportam consigo tal valor acrescido.
Nos presentes autos esta em causa a actividade que os três primitivos arguidos, em comunhão de esforços e com o propósito de impedir a abertura de uma unidade comercial de dimensão relevante (UCDR), sob a insígnia "E...", no lugar de ..., Mira, desenvolveram ao arrepio da lei, com espírito de absoluta impunidade e entrando, bastas vezes, pelo caminho da prática criminosa tout court.
Para tal efeito criaram um ente, F..., que não existe em Portugal seja como português, seja como estrangeiro residente e de que também não há registo que algum dia aqui tenha vindo.
A aqui arguida, em conjunto com os primitivos 1° e 2º arguidos propôs, enquanto advogada e no Tribunal de Mira, a acção 236/04.5TBMIR cujo autor é F..., sendo este um produto da imaginação destes.
Cometeram pois o crime p.p. pelo art. 156.º-1-b) e n.º 3 do CodPenal 

3 - Nesta Relação, o Exmo PGA emitiu douto parecer em que, acompanhando o MP na 1.ª instância, conclui no sentido de que o recurso não merece provimento.


4 - Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência.

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5- FUNDAMENTAÇÃO
A decisão instrutória tem, no que agora interessa, o seguinte teor :

«(...) Nos presentes autos, foi proferido despacho de arquivamento pelo Magistrado do Ministério Público relativamente ao crime de falsificação de documento, p. e p. no artigo 256.º n.º 1 do Código Penal, por ter concluído estar o respectivo procedimento criminal extinto por prescrição à data da participação criminal.

Para o efeito, ancorou-se na data da participação dos factos imputados à arguida, bem como na natureza particular do documento alegadamente falsificado - procuração forense constante dos autos a fls. 146. No seu entendimento, a procuração em causa não tem a virtualidade de pertencer ao elenco dos documentos referidos no n.º 3 do artigo 256.º do Código Penal, na versão anterior ou posterior à Lei 59/2007, de 4 de Setembro, não se tratando de documento autêntico ou de igual força, sendo certo que os factos também não poderão enquadrar-se no estipulado no n.º 4 do mesmo artigo.

Deste modo, e pese embora os factos participados se possam enquadrar numa das alíneas do artigo 256º n.º 1 do Cód. Penal, na versão anterior ou posterior à Lei 59/2007, de 4/9, o certo, alega o MP, é que o crime em causa é punido com pena de multa ou pena de prisão até 3 anos, sendo, por isso, o prazo de prescrição de cinco anos. E, assim sendo, e tendo em conta que a denunciante “ A..., Lda.” apresentou participação criminal contra a denunciada, Dra. B..., em 04/04/2011, o procedimento criminal para efeitos de prescrição, em relação a todos os actos praticados com a sobredita procuração já se encontrava extinto.

Concretizando. O procedimento criminal para efeitos de prescrição, em relação ao acto praticado em 09/04/2004 (invocação da caducidade do procedimento de licenciamento da obra de uma (UCDR), E..., em Mira), extinguiu-se em 09/04/2009; O procedimento criminal para efeitos de prescrição, em relação ao acto praticado em 07/06/2004 (propositura de acção declarativa de condenação, peticionado, para além do mais, o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio rústico onde era edificado a UCDR – E...) extinguiu-se em 07/06/2009; O procedimento criminal para efeitos de prescrição, em relação ao requerimento de 17/04/2004 extinguiu-se em 17/04/2009; O procedimento criminal para efeitos de prescrição, em relação à invocada caducidade da licença por não terem sido realizadas quaisquer obras até ao dia 26/06/2004, requerida em 14/10/2004, extinguiu-se em 14/10/2009.

Não sendo do conhecimento destes autos quando é que a procuração(ões) foi(ram) efectivamente “produzida(s)”, tal significa que apenas se pode ter como referência a(s) data(s) da sua utilização junto do Tribunal e da Câmara Municipal de Mira, pelo que a existir crime este teria se consumado nas datas em que o documento foi utilizado/apresentado.

(...) Conhecendo do objecto da abertura da instrução, este cinge-se, de momento, à seguinte questão:

Se, in casu, a procuração forense (alegadamente falsificada) é um documento autêntico (ou de igual força) ou particular e se se mostra decorrido o prazo prescricional e extinto o procedimento criminal relativamente às condutas imputadas pela assistente à arguida B....

(...) Resulta de fls. 2 dos autos que estes tiveram início com a participação criminal apresentada pela assistente “ A..., Lda.” em 4 de Abril de 2011 contra C..., D... e B..., todos identificados nessa participação.

O documento a que o participante faz referência como sendo documento falso constitui uma procuração forense (vd. fls. 146), com o teor que a seguir se transcreve: “ Procuração : F..., solteiro, maior, portador do Bilhete de Identidade n.º ( ...), emitido em 19/07/2001, na ( ...), Mira, constitui sua bastante procuradora a Dra. B..., advogada com escritório em Cantanhede, a quem, com a faculdade de substabelecer, confere os mais amplos poderes forenses gerais em direito permitidos, incluindo os de receber custas de parte”.

É dito naquela participação criminal que os denunciados criaram a figura de F..., com vista a obstaculizar a abertura do E..., em Mira, e, consequentemente, causar prejuízo à denunciante, pessoa a favor de quem foi atribuída a exploração de uma UCDR. Mais é dito nessa participação que as intervenções do dito F..., descritas no RAI, só puderam vingar devido à acção da arguida Dra. B..., pois todas essas intervenções exigiam conhecimento jurídico.

Dos elementos colhidos decorre que as a(s) procuração (ões) forense(s) assinada(s) por F... foram utilizada(s) nas seguintes datas: 9 de Fevereiro de 2004 (data da alegação da caducidade do licenciamento da obra, por atraso na entrega do projecto da especialidade); 7 de Junho de 2004 (data em que foi intentada acção com vista ao reconhecimento do direito de propriedade a favor de F... do terreno onde foi edificado a UCDR – E... de Mira – proc. n.º 236/04.5TBMIR deste Tribunal Judicial de Mira); 17 de Abril de 2004 ( pedido de suspensão do procedimento camarário enquanto não fosse decidida a acção 236/04.5TBMIR); 14 de Outubro de 2004 (invocada caducidade da licença por não terem sido realizadas quaisquer obras até ao dia 26 de Junho de 2004).

As imputações feitas pela denunciante, bem como o seu relato dos factos, abstractamente considerados, poderão ser susceptíveis de integrar a prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256 n.º 1 do Cód. Penal.

(...) há que qualificar a procuração forense alegadamente falsificada – documento autêntico ou de igual força ou documento particular - pois daí decorre o prazo prescricional de 5 ou 10 anos a aplicar ao caso vertente.

(...) em primeiro lugar, quanto ao que legalmente se deve entender por documento autêntico é o n.º 2 do citado artigo 363º do CodCivil que no-lo diz. Para que os documentos sejam havidos como autênticos exige a lei que se cumpram duas condições básicas:

1) Que sejam lavrados “com as formalidades legais”, isto é, que se cumpram os requisitos, prescrições e solenidades exigíveis, quer como elementos prévios, quer também no próprio momento em que são exarados; e

2) Que provenham de uma autoridade pública nos limites da sua competência, ou do notário, ou ainda, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, de outro oficial público provido de fé pública.

A lei não especifica agora – como fazia o C.C de 1867 no § 1º do art. 2423 – quais são autoridades públicas, mas ter-se-á de entender que são, genericamente, os funcionários da administração central e local, além de magistrados e de agentes detentores de poder público, crendo-se que a desnecessidade de se ter especificado resultará da restrição que logo a seguir é feita: “nos limites da sua competência”.

Ademais, a lei distingue – e bem – a ”autoridade pública” do notário que, exercendo uma actividade pública, não está, todavia, integrado no funcionalismo público nem sequer esteve integrado num “qualquer” funcionalismo público.

A função notarial destina-se a dar forma legal e conferir fé pública aos actos jurídicos extra-judiciais. Compete ao Notário redigir o instrumento público conforme a vontade das partes, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-as do seu valor e alcance.

A intervenção do Notário abrange não só actos jurídicos mas também numerosos factos e actos, que se refletem numa variedade de documentos, e só pode dar-se por vontade das partes, com o acordo de todos os interessados. Desde que o acordo exista, a função do abrange quer documentos particulares com reconhecimento notarial quer documentos autênticos, aos quais o Notário para além de dar forma legal, dá fé pública e confere autenticidade.

Por outro lado, os oficiais públicos quando tenham competência legal para atribuir fé pública aos documentos também se incluem no âmbito de previsão da norma supra-citada, desde que o acto praticado se mantenha dentro da esfera de actividades que lhe é cometida. Por exemplo, um atestado de residência ou de pobreza passado por uma Junta de freguesia é um documento autêntico nos termos deste n.º2, mas já o não é o atestado em que a Junta declare que pagou certa dívida. Não foi exarado dentro do círculo de actividades que lhe é atribuído (cfr. Vaz Serra, Provas, n.º 62).

Com efeito, a fé pública é uma prerrogativa do Estado que, no uso dela, através dos seus agentes confere garantias de verdade e autenticidade aos documentos (e actos) em que intervêm.

(...) Mas vejamos quanto aos advogados.

Os Decs. Lei n.º 342/91, de 14 de Setembro, e n.º 267/92, de 28 de Novembro aos quais a assistente faz alusão, constituem, no nosso modo de ver, medidas de simplificação e de agilização de procedimentos no que respeita à administração da justiça, procurando-se com aqueles mecanismos legislativos conferir celeridade à prática de certos actos pelos advogados, sendo o advogado um elemento essencial à aplicação da justiça e não se compaginando a sua actividade com a existência de formalismos susceptíveis de colocar em causa a razão pela qual lhe é concedido o patrocínio do cidadão em nome de quem a justiça é administrada.

Por sua vez, o Dec. Lei 28/2000, de 13 de Março atribuiu aos advogados e solicitadores a par das juntas de freguesia e dos operadores públicos de correios, CTT – Correios de Portugal SA, a possibilidade de certificar a conformidade de fotocópias com os documentos originais, com o fito de introduzir mecanismos de simplificação de actos de maneira a responder com mais rapidez à prestação do serviço de conferência de fotocópias Ou seja, não se pretendeu, cremos nós, com as medidas enunciadas conferir aos actos praticados pelos advogados a fé pública genérica e abrangente do modo a que aludimos a propósito da função notarial.

Mais tarde, o artigo 38º n.º 1 e 2 do Dec. Lei 76-A/2006, de 29 de Março, deu-lhes, ainda a possibilidade de praticarem determinados actos e certificarem ou autenticarem documentos “nos termos da lei notarial”, para usarmos a expressão do art. 377º do Cód. Civil.

Mas, ainda assim, e mesmo no actual contexto legislativo, onde é bem mais extensa a latitude das faculdades atribuídas aos advogados no que se refere à prática e formalização de actos extra-judiciais do que aquelas existentes à data da prática dos factos, não é admissível o raciocínio da assistente de que a mera outorga da procuração forense constitui emissão de documento autêntico e que tal “dita” autenticidade se estende aos actos subsequentes, nomeadamente às petições iniciais e aos requerimentos em juízo e fora dele.

Com efeito, a intervenção de advogado no exercício de funções forenses não tem a virtualidade de, “per si”, alterar a natureza de um documento que é particular e que a própria lei classifica como tal.

E, na verdade, se atentarmos ao artigo 35º al. a) do CPC (actual 43º do NCPC) , o mandato judicial pode revestir a forma de documento particular, não sendo de exigir a intervenção notarial.

Concretamente, na al. a) do artigo 35º do CPC (actual 43º NCPC) deixou de constar “documento particular, com intervenção notarial, como anteriormente, passando a constar apenas “documento particular”.

Sublinhe-se, a esse propósito, que a intervenção notarial só poderia revestir uma destas modalidades: instrumento público; documento particular escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura feita por notário; documento autenticado, isto é, documento particular, com termo de autenticação lavrado pelo notário ( que consiste na confirmação pelas partes, perante notário, de que o conteúdo daquele documento, de que estão perfeitamente inteiradas, corresponde à sua vontade), cfr. arts. 116º, 150º e 151º, todos do Código do Notariado. E, tal alteração, como já referimos, deveu-se ao facto da intervenção notarial nas procurações emitidas em nome de advogado para a prática de actos que envolvam o patrocínio judiciário, mesmo com poderes especiais, ter sido expressamente dispensada pelo já referido Dec. Lei 267/92, de 28.11 (Nesse sentido, Lebre de Freitas, Código do Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág.77), a fim de eliminar formalismos desnecessários.

Assim sendo, face à factualidade exposta e ao enquadramento jurídico aplicável, conclui-se também (...) que a procuração forense, corporizada no documento junto aos autos a fls. 146, reveste a natureza de documento particular, sendo que a circunstância de ter sido feita por ou perante advogado ou de ter sido por ele utilizada não lhe concede uma natureza distinta daquela que efectivamente tem e que a lei lhe atribui.

Por outro lado, acrescentamos que os factos em causa também não se subsumem ao n.º 4 do artigo 256.º do Cód. Penal por não estar em causa conduta delituosa praticada por funcionário no exercício das suas funções, sendo que o conceito de funcionário está expressamente previsto no artigo 336º do Cód. Penal, não se enquadrando o advogado no âmbito da previsão dessa norma.

Pelo que, e tendo em conta os factos participados e os elementos recolhidos nos autos, bem como considerando as normas legais supra-citadas, conclui-se que a procuração forense assinalada nos autos reveste a natureza de documento particular, razão pela qual o prazo prescricional aplicável é de cinco anos e não de dez anos como defende a assistente (...)».

Nos presentes autos a única questão em causa é a de saber se a procuração forense emitida e que serviu para a prática de actos forenses, a ser falsificada, é um documento particular e integra a previsão do crime p.p. no n.º 1 do art. 256.º do CodPenal, ou, pelo contrário, por dever ser tida como documento autêntico ou com igual força, preenche o crime qualificado p.p no n.º 3 desse mesmo normativo.

A ser correcta a 1.ª resposta, como entendeu a decisão recorrida, é inquestionável que o procedimento criminal para efeitos de prescrição, em relação ao acto praticado em 09/04/2004 (invocação da caducidade do procedimento de licenciamento da obra de uma (UCDR), E..., em Mira), extinguiu-se em 09/04/2009; O procedimento criminal para efeitos de prescrição, em relação ao acto praticado em 07/06/2004 (propositura de acção declarativa de condenação, peticionado, para além do mais, o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio rústico onde era edificado a UCDR – E...) extinguiu-se em 07/06/2009; O procedimento criminal para efeitos de prescrição, em relação ao requerimento de 17/04/2004 extinguiu-se em 17/04/2009; O procedimento criminal para efeitos de prescrição, em relação à invocada caducidade da licença por não terem sido realizadas quaisquer obras até ao dia 26/06/2004, requerida em 14/10/2004, extinguiu-se em 14/10/2009.

No caso de se tratar de documento autêntico ou equiparado o prazo prescricional será de 10 anos, como entende o recorrente e deriva do art. 118.º-1-b) do CodPenal.

No caso de crime de falsificação qualificado a pena é agravada em virtude de um documento autêntico ou com igual força merecer uma especial credibilidade no tráfico jurídico, pois que se trata de um documento emitido por uma autoridade pública com especial força probatória. 

Nos termos do art. 363.º do CodCivil:

«1. Os documentos escritos podem ser autênticos ou particulares.

2. Autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividades que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares.

3. Os documentos particulares são havidos por autenticados, quando confirmados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais».
Mas como refere Helena Moniz ( Comentário Conimbricense do CodPenal tomo II, p. 687), «Considerando que a moldura penal aumentou tendo em conta a especial perigosidade que a falsificação de certo tipo de documentos comporta para o bem jurídico, deverá entender-se por documentos autênticos não só aqueles que como tal são entendidos de acordo com a noção de documento autêntico do Código Civil, mas também todos os outros que tenham origem igualmente numa autoridade pública».
Diz a recorrente que a entrega de competências públicas notariais aos advogados ( por ex., a emissão de procuração forense, como é o caso em apreço ) verificou-se com a abolição do poder legal exclusivamente atribuído aos Notários, enquanto categoria do funcionalismo publico, para lavrar ou reconhecer procurações e substabelecimentos forenses, operada pelos DLs 342/91 e 267/92, ou seja a entrega aos advogados da competência legal, até então exclusivamente pública (o poder público), de dar como autênticas tais categorias de actos. E, por isso, acrescenta « A existência de um vínculo funcional ao Estado não parece, actualmente, constituir o critério para atribuição de fé pública, como disso é drástico exemplo a privatização do notariado (...). Assim, a atribuição de fé pública deverá abstrair da existência de uma relação funcional entre o agente e o Estado, centrando-se antes nas características: garantias de verdade e autenticidade».
A entrega de competências pelo Estado na emissão de documentos que antes estavam atribuídos a funcionários do Estado (notários, etc.) vem na inspiração de um movimento de privatização e simplificação de certo tipo de actos ( documentos, no caso ), supostamente não necessitando de formalidades especiais e de facilitarem a vida corrente aos particulares.
Expressão desse movimento foi a privatização dos notários e a outorga aos advogados e solicitadores da competência para lavrar ou reconhecer procurações e substabelecimentos forenses ( operada pelos DLs 342/91 e 267/92 ), mas também outros diplomas : - Decreto-Lei n.º 28/00, de 13/3: permite a certificação de fotocópias (públicas-formas) a juntas de freguesia, correios, câmaras de comércio e indústria, advogados e solicitadores; - Decreto-Lei n.º 30/00, de 14/3: dispensa a escritura pública na dissolução de sociedade, na constituição da sociedade unipessoal por quotas e na constituição do estabelecimento individual de responsabilidade limitada; - Decreto-Lei n.º 64/00, de 22/4: dispensa de escritura pública em matéria de arrendamento, de trespasse e locação de estabelecimento; - Decreto-Lei n.º 237/01, de 30/8: permite às câmaras de comércio e indústria, advogados e solicitadores a prática dos actos notariais de reconhecimento e tradução.

Em relação aos documentos particulares, colocam-se os problemas de verdade ou autenticidade ( ou da falta dela ) que afectam o escrito particular: verdade formal (ou imediata), a certeza de que são verdadeiros os factos relatados; e verdade substancial (ou mediata ), a segurança de que as declarações das partes correspondem à sua vontade real, esclarecida e não viciada. Ou seja a garantia da autenticidade não existe por definição no documento particular, resultando afectada a segurança jurídica por ser incerta a correspondência entre a declaração e a vontade dos subscritores.

       Em contraponto, o documento autêntico prova-se por si mesmo, autonomamente, e provam-se a si próprios (acta probant se ipsa), nos termos da lei (CódCivil, art. 370.º), reconhecendo-lhe essa mesma lei força probatória plena, quanto ao conteúdo: por um lado, com relação aos factos que se atestam como praticados pelo documentador, por outro quanto aos factos atestados com base nas percepções do autor do documento (art. 371.º).

       Depois, aquela força probatória só pode afastar-se com base em falsidade (art. 372.º), mediante prova do contrário (no documento particular bastará a prova contrária).

      O documento autêntico é, por outro lado, universal, provando o documento com relação a todos, entre as partes e perante terceiros.

       Não parece, como pretende o recorrente, que a atribuição de fé pública aos actos em causa valha como critério para a qualificação dos mesmos como documentos autênticos. Lembremos que no crime de falsificação é a segurança e a confiança do tráfico jurídico, o valor probatório dos documentos, isto é, a verdade intrínseca do documento enquanto tal, a confiança pública ou privada do documento. Ou seja, « não tanto a fé pública dos documentos ... mas antes a verdade intrínseca do documento enquanto tal ou a verdade da prova documental enquanto meio que consente a formulação de um juízo exacto relativamente a factos que possam apresentar relevância jurídica ... » ( F. Dias e Costa Andrade, CJ, ano VIII, t. III, p. 23 ; Helena Moniz, ob. cit., p. 680 ).

A atribuição da competência aos advogados, solicitadores, notários ( agora enquanto privados ), correios, etc de actos que tradicionalmente estavam na exclusiva competência de autoridades públicas ou como tal reconhecidas deve-se mais ao movimento de privatização e simplificação de certos actos do que à atribuição de um título que deve ser reservado a agentes do Estado ou reconhecidos como tal. E aquela atribuição a agentes particulares deve-se também à presunção de que, dado o estatuto profissional dos mesmos, os actos praticados serão verdadeiros.

E concretamente em relação aos advogados, o dever de verdade - ou pelo menos de não violação da lei - deriva do próprio Estatuto da Ordem ( cfr arts. 83.º-2 e 85-2-a) )

       A atribuição da qualificação de autoridade pública não dispensa que a entidade actue no exercício de funções próprias e dá-se ou verifica-se quando a mesma actua no âmbito de um regime de direito público e utiliza prerrogativas de autoridade pública, interesses e garantias estas que não cabem a todos aqueles a quem ---  salvo indicação expressa da lei --- estão atribuídas alguns actos antes incumbidos a agentes do Estado.

       No sentido de que a falsificação de procuração forense constitui a prática de um crime de falsificação simples - embora não abordando especificamente a questão da qualificação jurídica -, o Ac do STJ n.º 03P2623, de 29-10-2003, www.dgsi.pt.

                                                             +

6 - DECISÃO

Pelos fundamentos expostos:

I - Nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

II - Custas pela recorrente, com 3 Ucs de taxa de justiça.

                                                            

                                                            
 (Paulo Valério - relator )

( Frederico Cebola - adjunto )