Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
184/13.8TBTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
RUÍDO
DIREITO AO REPOUSO
COLISÃO DE DIREITOS
Data do Acordão: 09/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - TONDELA - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.17, 18, 25, 66 CRP, 70, 335 CC
Sumário: 1. Numa situação de colisão de direitos a aferição sobre se os direitos em colisão são iguais ou de espécie diferente, embora não prescinda de uma avaliação em abstrato dos bens jurídicos tutelados pela situação em apreço, tem de ser feita em concreto, consoante as circunstâncias do caso.

2. Demonstrado que o ruído emitido por um poste de média tensão e respetivos fios condutores, implantados nas proximidades da casa da autora, afetam o seu sono descanso, e não invocando a ré a existência de qualquer dificuldade, impossibilidade técnica ou mesmo algum inconveniente, na alteração do local de implantação peticionado nos autos, tal pedido será de deferir.

Decisão Texto Integral:        






                                                                                        

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

M (…) intenta a presente ação declarativa sob a forma de processo sumário contra a E (...) , S.A.,

 Pedindo a condenação da Ré a, expensas suas, alterar o local de implantação do poste de média tensão situado a cerca de 3,9 m da casa de habitação da Autora,

alegando, em síntese, que, junto à casa onde reside, existe um poste de média tensão integrado numa linha propriedade da ré que, para além de causar ruído do transporte da energia, causa ruido com o vento e cria campos magnéticos que lhe afetam o descanso e a saúde.

A Ré contesta por exceção, invocando a incompetência material do tribunal, competência que atribuiu ao tribunal administrativo, e por impugnação, alegando que a linha se encontra licenciada, é verificada periodicamente, as emissões magnéticas da linha encontram-se dentro dos parâmetros legais, não causando mais barulho que os restantes objetos que se encontram à volta da casa tais como árvores.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a invocada exceção de incompetência material dos tribunais judiciais, elaborando a Base Instrutória.

Realizada a audiência de julgamento, o juiz a quo proferiu sentença, julgando a julgar a ação procedente, condenando a Ré a remover o poste de média tensão que implantou próximo da casa da autora.

Inconformada com tal decisão, a Ré dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

1 - Não pode, desde logo, a recorrente concordar com a interpretação vertida pelo tribunal a quo no seu douto despacho saneador, maxime, dos artigos 576, nº 2, 577 al. a) do C. P. Civil e artigo 4º do ETAF, que julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal recorrido, quanto à matéria;

2 - Porquanto, de facto e de direito, o que a autora peticionou nos presentes autos se reconduz a uma modificação de um projeto de uma instalação elétrica de serviço público, devidamente aprovado e licenciado por ato de administração pública (Estado Português);

3 - Não tendo, sequer, a autora recorrida peticionado qualquer indemnização pela constituição da servidão administrativa, configurando, sem qualquer dúvida, a ação nos termos de uma relação jurídico-administrativa.

4 - É incontroverso que a competência ou jurisdição de um tribunal se determina pela forma como o autor configura a ação, definida pelo respetivo objeto, tal como se mostra delimitado pelo pedido formulado (pelo efeito jurídico pretendido) e pela respetiva causa de pedir.

5 - Deste modo, face à natureza jurídica da relação material controvertida, seria competente o Tribunal Administrativo e não o Tribunal Judicial, nos termos do artº 18º, nº 1 e 2 da Lei nº 3/99 de 13.01 (LOFTJ), em conjugação com os artigos 66º e 67º do C.P.C

6 – Entendimento que tem sido sufragado pelo Tribunal dos Conflitos, podendo ver-se, a contrario sensu, o recente Acórdão de 19.06.2014 (Processo nº 09/14) – Conflito negativo de jurisdição ou o Acórdão de 10.07.2012 (Processo nº 03/12) – Conflito de Jurisdição.

7 – Neste sentido, não se conforma a recorrente com o entendimento do tribunal a quo que julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, invocada pela ré recorrente na sua contestação, impondo-se, assim, a revogação do despacho saneador e a consequente absolvição da instância da recorrente;

8 – Sem prejuízo do exposto, verifica-se, ainda, uma errónea apreciação da prova produzida nos presentes autos, impondo-se a reapreciação da matéria de facto dada como assente de forma a que conste como Não Provado que do poste emana, de forma permanente, um ruído baixo que aumenta de volume quando faz vento, tornando-se alto;

9 – Discorda a recorrente, igualmente, que se tenha dado como Provado que a Autora acordava várias vezes por noite devido ao descrito ruído, principalmente quando faz vento;

10 – Errou, pois, o tribunal a quo em dar como provado o Ponto 11 da Factualidade Assente, porquanto não ficou demonstrado que a autora recorrida tenha, de facto, acordado várias vezes (ou durma mal) devido ao alegado ruído provocado pelo poste ou linha elétrica da ré recorrente;

11- Porquanto não ficou provado o pretendido efeito causal do poste e rede elétrica sobre a saúde e o repouso da Autora recorrida (conforme, aliás, atestou a perícia médica junta aos autos);

12 – Assim como não ficou demonstrada a existência de evidências científicas de que os campos eletromagnéticos, decorrentes do transporte de energia elétrica, dentro dos valores legais, pudesse ter contribuído para o aparecimento dos problemas cardíacos sofridos pela autora recorrida;

13 - Destarte, deveria o tribunal recorrido, face ao acervo probatório produzido nos presentes autos, ter dado como Não Provado que a recorrente alguma vez tenha colocado em causa o repouso e descanso da autora recorrida, sendo ainda certo que o poste e a rede elétrica, instalada em terreno vizinho, cumpria e cumpre com todas as normas de segurança, nomeadamente com as distâncias regulamentares previstas no Regulamento de Segurança das Linhas Elétricas de Média Tensão (Decreto Regulamentar nº 1/92, de 18.02.);

14 – Por outro lado, a decisão recorrida violou, ostensivamente, o princípio constitucional ínsito no artº 18º da CRP e o normativo constante do artigo 335 do C.Civil, porquanto da ponderação em concreto dos direitos em confronto, à luz do referido princípio da proporcionalidade, não foi escolhido o meio adequado, indispensável e racional para a preservação de ambos os direitos fundamentais;

15 - O tribunal recorrido não fez, pois, uma concreta ponderação sobre os interesses em jogo, nomeadamente, ao não aferir a intensidade da alegada violação do direito ao repouso, optando por não determinar produção de prova pericial que suportasse, objetivamente, a existência de ruídos nocivos provenientes da rede elétrica da recorrente;

15 – Ao decidir como decidiu, o Mmo Juiz fez, assim, errada interpretação dos meios de prova, violando, além do mais, o disposto no artigo 18º, nº 2 da CRP e do artigo 335ºdo C. Civil, bem como os artigos 96, 99, 476, nº 2 e 576, nº2 do C.P.C. , o artº 12º do Decreto Lei nº 29/2006, de 15 de Fevereiro e o Decreto Regulamentar nº 1/92, de 18 de Fevereiro (Regulamento de Segurança de Linhas Elétricas de Alta Tensão);

Nestes termos e nos melhores de Direito, conforme douto suprimento de Vªs. Excelências, deverá revogar-se o douto despacho saneador que considerou improcedente a invocada exceção de incompetência absoluta do tribunal, absolvendo da instância a recorrente, ou, caso assim não se considere, a sentença ora recorrida e, em consequência, ser proferido Acórdão absolvendo a Recorrente do pedido.


*

A Autora apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.
Cumpridos os vistos legais nos termos previstos no nº2, in fine, do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil[1] –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Impugnação da decisão proferida no despacho saneador sobre a competência dos tribunais comuns.
2. Impugnação da matéria de facto.
3. Se é de alterar o decidido.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Impugnação do despacho saneador, na parte em que apreciou a exceção de incompetência material do tribunal.

Com o presente recurso, a apelante pretende, antes de mais, deduzir impugnação à decisão proferida sobre a competência material do tribunal em sede de despacho saneador.

Da decisão do tribunal da 1ª instancia que aprecie a competência absoluta do tribunal (na qual se insere a competência material), cabe recurso autónomo de apelação – artigo 644º, nº2, alínea b), CPC.

Assim sendo, não tendo a Apelante interposto de imediato o correspondente recurso de apelação, tal decisão transitou em julgado, não podendo agora impugnar tal decisão no recurso que interpõe da decisão final.

Pelo exposto, não se conhecerá do alegado nos ns. 1 a 7 das alegações de recurso da apelante.  

2. Impugnação da matéria de facto.

Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm atualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.

Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Para que o tribunal se encontre habilitado para proceder à reapreciação da prova, o artigo 640º, do CPC, impõe as seguintes condições de exercício da impugnação da matéria de facto:

“1 – Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevante;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

A impugnação da matéria de facto que tenha por fundamento a errada valoração de depoimentos gravados, deverá, assim, sob pena de rejeição, preencher os seguintes requisitos:

a) indicação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, que deverão ser enunciados na motivação do recurso e sintetizados nas conclusões ;

b) indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, sobre os pontos da matéria de facto impugnados;

c) indicação, ou transcrição, exata das passagens da gravação erradamente valoradas. 

Estes requisitos visam assegurar a plena compreensão da impugnação deduzida à decisão sobre a matéria de facto, mediante a identificação concreta e precisa de quais os pontos incorretamente julgados e de quais os motivos de discordância, de modo a que se torne claro com base em que argumentação e em que elementos de prova, no entender do impugnante, se imporia decisão diversa da que foi proferida pelo tribunal.

Tais exigências surgem como uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo[2], assegurando a seriedade do próprio recurso intentado pelo impugnante.


*

O Apelante insurge-se quanto à decisão proferida quanto aos pontos 10 e 11 da matéria de facto dada como “provada”, com o seguinte teor:

10. Do poste emana, de forma permanente, um ruído baixo que aumenta de volume quando faz vento, tornando-o alto.

11. A Autora acorda várias vezes por noite devido ao descrito ruído, principalmente quando faz vento.

Segundo o Apelante, quer os vizinhos da autora, quer os técnicos da Ré que se deslocaram a esta residência por força da reclamação da autora, não ouviram qualquer ruído de forma permanente, sendo que o único perito apenas se pronunciou sobe matéria relacionada com os campos eletromagnéticos das linhas elétricas, deduzindo-se de tal alegação que, em seu entender, o facto constante do ponto 10 deverá ser dado como “não provado”.

Quanto ao teor do ponto 11 deveria igualmente ser dado como não provado, porquanto, da conjugação do teor do depoimento de parte da autora com o parecer do perito médico, não se encontra demonstrado o nexo de causalidade entre o facto de a autora acordar diversas vezes e o alegado ruído provocado pelo poste.

O tribunal a quo justificou pelo seguinte modo a convicção a que chegou relativamente à matéria sob impugnação:

(…)

Improcede, assim, a impugnação deduzida pela apelante relativamente à decisão proferida quanto à matéria de facto.


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A. Matéria de facto

É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida e que não foi objeto de qualquer alteração:

1. A Autora reside no imóvel: "casa de habitação de dois pavimentos, com a superfície coberta de quarenta e três metros quadrados e logradouro com a área de quatrocentos e sessenta e sete metros quadrados, sita à (...) , Tondela, inscrita na matriz predial urbana daquela freguesia sob o n.º 796 e registada na Conservatória do Registo Predial de (...) ob o n.º 2760".

2. A casa de habitação era propriedade de seus pais, ambos falecidos.

3. Atualmente, a casa supra identificada é propriedade da Autora.

4. Há cerca de 23 anos, a Ré, ou a sua antecessora, implantou um poste de média tensão à distância de 4,23 metros entre o apoio e a habitação, 7,33 metros de distância entre os seus condutores elétricos e a habitação e 11,73 metros entre os condutores e o solo.

5. As distâncias supra referidas cumprem o disposto nos artigos 27º e 29º do Decreto Regulamentar nº 1/92, de 18.02 – Regulamento de Segurança de Linhas Elétricas de Alta Tensão.

6. Quando a sua mãe ficou viúva, e porque estava doente, a Autora levou-a para viver consigo em Lisboa, onde ficou entre 1997 e 2003.

7. Em 2003, a Autora e sua mãe voltaram para Tondela e instalaram-se no imóvel identificado.

8. A mãe da Autora faleceu corria o ano de 2008.

9. Desde então, e até hoje, a Autora (tal como sua mãe, enquanto viveu) não consegue estar descansada na sua casa de habitação.

10. Do poste, emana, de forma permanente, um ruído baixo que aumenta de volume quando faz vento, tornando-se alto.

11. A Autora acorda várias vezes por noite devido ao descrito ruído, principalmente quando faz vento.

12. Porque não descansa, a Autora sente-se permanentemente cansada, o que lhe causa distúrbios no seu dia-a-dia.

13. Recentemente, teve que se deslocar ao Hospital a meio da noite, em mais do que uma ocasião, por sentir dificuldades respiratórias (falta de ar).

14. Entretanto, foram diagnosticados à Autora diversos problemas cardíacos, mais concretamente, alterações nas válvulas mitral e aórtica, conforme relatório de ecocardiograma de 27 de Abril de 2012.

15. Ante o tamanho do poste de média tensão em causa, a Autora receia que o mesmo caia em cima da sua habitação caso ocorra uma intempérie mais forte.

16. A Autora procurou, junto da Ré, que o poste fosse removido mas obteve resposta negativa, fundada no facto de as normas regulamentares em vigor estarem a ser cumpridas.

17. A referida linha e, consequentemente, o apoio implantado no prédio da Autora encontra-se devidamente licenciada pelo Órgão do Governo com competência para tal efeito, concedidas ao abrigo do Decreto-Lei nº 26 852, de 30 de Julho de 1936 que fixa as normas a seguir para o licenciamento de todas as instalações destinadas à distribuição de energia elétrica,

18. O ramal de Média Tensão supra identificado e o seu apoio nº 6 foram implantados há cerca de 23 anos.

19. O apoio em causa não se encontra implantado em qualquer propriedade da Autora.

20. Os valores de campo eletromagnético medidos são inferiores aos estabelecidos na Recomendação Europeia 519/EC/1999, transposta para a legislação nacional pela Portaria 1421/2004, isto é, 5000 Volts/m para o Campo Elétrico e 100 micro Tesla para o Campo Magnético.

21. Em medição realizada no âmbito dos presentes autos na habitação da autora, forma obtido os seguintes valores:

• Campo elétrico ao nível do solo - 71,5 V/m;

• Campo magnético ao nível do solo: 0, 05 uT.


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B. O Direito

A sentença recorrida, no confronto da colisão de direitos em causa – direito ao repouso e ao sono da autora que se mostra lesado pela atividade exercida pela ré, e o direito de propriedade por parte da Ré – considerou que o primeiro deverá prevalecer sobre o segundo.

Partindo da ideia de que em caso de conflito de direitos fundamentais haverá que se ater não só à natureza dos direitos em confronto, mas também ao grau em que cada um deles, no concreto, possa ser sacrificado se se der prevalência ao outro, a sentença recorrida faz a seguinte reflexão sobre o caso em apreço:

A Jurisprudência do STJ sobre esta questão tem apontado no sentido de que a ilicitude dum comportamento ruidoso que prejudique o repouso, a tranquilidade e o sono de terceiros está no facto de, injustificadamente e para além dos limites do socialmente tolerável, lesar tais baluartes da integridade pessoal. A ilicitude, nesta perspectiva, dispensa a aferição do nível do ruído por padrões legais estabelecidos. (ac. de 17-01-2002, Revista n.º 4140/01 - 7.ª Secção Quirino Soares (Relator))

Pois, habitação é o local privilegiado para o repouso, sossego e tranquilidade necessários à preservação da saúde e, assim, da integridade material e espiritual, nesta perspectiva, as emissões dos prédios vizinhos, designadamente de ruídos elevados e constantes, vibrações, odores e cheiros nauseabundos, que prejudicam substancialmente o uso do andar destinado à habitação das AA., transcendem as meras relações pessoais de vizinhança, envolvendo a tutela dos direitos de personalidade.

Com efeito, o regime de prevenção e controlo da poluição sonora tem por finalidade a salvaguarda da saúde humana e o bem-estar das poluções, aplicando-se ao ruído, nas relações de vizinhança, e às actividade ruidosas, permanentes e temporárias, susceptíveis de criar incomodidade, nomeadamente, a laboração de estabelecimentos, destinados à indústria, comércio e serviços, e a utilização de máquinas e equipamentos.

O comportamento ruidoso que prejudique o repouso, a tranquilidade, o sono e a saúde de terceiros, está eivado de ilicitude pelo facto de, injustificadamente, e para além dos limites do que é, socialmente, tolerável, lesar o princípio da integridade pessoal, ainda que a produção do ruído seja inferior ao, legalmente, permitido, e a actividade donde o mesmo provém tenha sido autorizada pela autoridade competente, provando-se a incomodidade do ruido para o descanso e sono dos autores, impõe-se atribuir aos lesados no direito ao repouso e a um ambiente sadio, uma indemnização, por danos não patrimoniais, com vista à tutela dos seus interesses.

Aqui chegados resulta provado que a autora tem perturbações no sono decorrente do ruído que emana da linha da ré, que tais perturbações além de lhe afectarem o descanso afectam a sua condição de saúde já menos boa.

O bem saúde e vida não são reparáveis, pelo que na ponderação dos interesses em causa exigidos pelo artigo 18º, nº 2 da CRP, exige-se que haja necessidade adequação e proporcionalidade de eficácia máxima dos direitos.

Quanto à necessidade é certo que a autora sempre poderia mudar de habitação, no entanto esse é um direito de conteúdo imaterial, sendo que ré não alega a existência da linha prévia à construção da habitação, pelo que a autora terá que repousar afastada da linha de energia eléctrica.

Quanto à adequação sempre se dirá que não existe outra forma de assegurar o direito à saúde, sono e repouso da autora.

Na compressão recíproca dos direitos fundamentais, ter-se-á que concluir que a saúde, não poderá ser comprimida de modo a que a mesma seja colocada em sério risco, bem como a qualidade do descanso.”

 Insurge-se a apelante contra tal entendimento, argumentando que o tribunal a quo não fez uma adequada e proporcional ponderação dos interesses em causa, nomeadamente sobre se a autora viu, de facto, afetado o uso da sua habitação com o alegado ruído proveniente das linhas elétricas da recorrente, ao ponto de justificar a modificação de uma instalação elétrica de serviço público ali existente e devidamente legalizada há mais de 20 anos. Ainda em seu entender, a ordenada remoção do poste de média tensão implicaria um prejuízo consideravelmente superior (face ao interesse coletivo de fornecimento de energia elétrica) ao dano que se pretendia evitar.

Teremos de discordar da apelante, não nos merecendo a sentença recorrida qualquer censura, sendo que, além do mais, vai no sentido das decisões que, relativamente à questão em apreço, têm vindo a ser proferidas pelos tribunais superiores, nomeadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça.

No confronto entre os dois interesses em causa – e a matéria de facto dada como provada não nos deixa dúvidas sobre o facto de o referido poste, instalado a 4,23 m da casa da autora e os respetivos fios condutores, emitindo um ruído permanente, perturbam o sono e o descanso da autora – teremos de considerar que o direito da autora ao descanso deve prevalecer, não só pela natureza dos bens jurídicos em causa, como ainda pela via dos custos necessários à remoção da lesão de tal direito.

O direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade constituiu uma imanação dos direitos fundamentais de personalidade, nomeadamente à integridade física e moral e a um ambiente de vida sadio, constitucionalmente consagrados nos artigos 17º, 25 e 66º da CRP[3].

Os direitos de personalidade configuram-se como direitos fundamentais, cujas restrições se encontram sujeitas a reserva de lei, devendo limitar-se ao necessário à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (principio da proporcionalidade contido no artigo 18º da CRP).

A produção ou emissão de ruídos constitui uma violação ao direito à integridade física, ao repouso e à qualidade de vida[4].

A relevância da ofensa do direito ao repouso não é afetada pela circunstância de se mostrar respeitado o que se encontra regulamente relativamente ao ruído e de a atividade em causa se encontrar devidamente licenciada, sendo entendimento dominante no STJ de que a ilicitude, nesta perspetiva, dispensa a aferição do nível de ruído pelos padrões legalmente estabelecidos[5].

A par deste direito fundamental e do lado da Ré, deparamo-nos com o exercício de uma atividade com vista à satisfação de um interesse público, pelo que nos encontraremos perante uma colisão de direitos.

O artigo 335º do Código Civil estabelece os critérios que devem presidir à resolução das situações de colisão de direitos:

1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.

2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.

O STJ, pronunciando-se sobre um conflito entre o direito ao repouso e uma atividade de um parque eólico autorizada administrativamente, e reconhecendo, regra geral, a supremacia dos direitos liberdades e garantias sobre outros direitos constitucionalmente protegidos (direitos económicos, sociais e culturais), defendeu que a ponderação dos direitos em conflito deve ser feita em concreto.

Uma vez que a questão envolvida na colisão de direitos contende não com as faculdades que os integram mas com os limites do seu exercício, a aferição sobre se os direitos em colisão são iguais ou da mesma espécie ou desiguais ou de espécie diferente – independentemente de um apuramento em abstrato, em termos axiológicos em função dos interesses que presidem à afetação do bem que é objeto do direito e tendo em conta a sua estrutura e conteúdo –, e a definição dos critérios que presidem à sua resolução tem de ser feita em concreto.

A hierarquização abstrata dos direitos não constituiu o critério definitivo ou único, na determinação do direito prevalente, que tem de ser feita em concreto, segundo as circunstancias do caso[6].

Em igual sentido aponta Elsa Vaz Sequeira[7], afirmando que, embora deva ser feita uma avaliação dos direitos em abstrato pela comparação entre os bens jurídicos tutelados pelas situações em apreço – que constituirá um indício da possível superioridade de um dos direitos ou da igualdade entre ambos –, importa verificar no caso concreto se, em rigor, um dos direitos se apresenta superior ao outro.

Para tal, a referida autora propõe que se atenda a três critérios:

a) Critério do interesse ou fim do exercício em concreto: na graduação dos direitos impõe-se apreciar o interesse a satisfazer com o exercício de cada um dos direitos em confronto. Se em concreto, for de considerar que um dos direitos visa realizar um interesse mais valioso do que outro, então deve aquele beneficiar da prevalência referida no nº2.

b) Critério da minimização dos danos: para aferir da eventual inferioridade de um dos direitos colidentes cabe ainda comparar as consequências negativas do seu não exercício pleno, mormente apurar qual o prejuízo que advém para o titular, devendo dar-se prevalência àquele que sofreria um menor dano caso fosse impedido de exercitar o seu direito;

c) Critério dos lucros do exercício: se o exercício de um dos direitos proporciona ao seu titular um bom lucro e o exercício do outro não, então deve prevalecer aquele.

Na hipótese de se concluir pela superioridade de um relativamente ao outro, deve encontrar-se uma solução que, sem prejuízo de dar prevalência ao superior, acautele na medida do possível um exercício residual e subsidiário do direito preterido.

Concluindo, ainda que se considerasse encontramo-nos perante direitos com igual hierarquia quando observados pelo prisma dos bens jurídicos tutelados, a comparação entre direitos colidentes imposta pelo artigo 335º sempre imporia a verificação, no caso concreto se, em rigor, um dos direitos não se apresenta superior ao outro.

Descendo, assim, ao caso em apreço, e sob o prisma do interesse tutelado em cada um dos lados, temos que os direitos em confronto não são iguais, opondo-se, por um lado, direitos fundamentais de personalidade e, do outro, um direito de administração pública que, além do mais, pode ser exercido de uma outra forma de modo a satisfazer o interesse público subjacente à atividade em causa.

Os interesses conflituantes são, por um lado, o direito ao sossego por parte da autora (direito de personalidade) e, por outro, o direito da Ré de manter a passagem das suas linhas por aquele preciso local (no âmbito ou enquanto atividade de um serviço público).

E, da leitura da contestação da Ré, constata-se que os motivos por si invocados como fundamento de oposição à pretensão da autora – alteração do local de implantação do poste – enquadram-se, tão só, em duas ordens de razões: por um lado, atinentes à negação dos efeitos negativos invocados pela autora relativamente à sua saúde e descanso; e, por outro lado, relacionados com a circunstancia de a instalação do poste e da linha de média tensão ali implantados se encontrar devidamente licenciada e de acordo com os regulamentos em vigor.

Nunca, ao longo da sua contestação, a Ré alguma vez invoca qualquer dificuldade, impossibilidade técnica ou mesmo qualquer simples inconveniente, na pretendida alteração da localização do poste em litígio. Ou seja, a Ré não alega que para a satisfação cabal do interesse público de fornecimento de energia aos cidadãos, o traçado da rede tenha necessariamente de passar por aquele preciso local. Assim sendo, não se trata de colocar em confronto o direito ao sossego por parte da autora e o direito ao exercício de uma atividade de serviço público por parte da Ré, mas tão só, na parte em que a esta toca, o direito de o fazer por aquele preciso local.

E se o cidadão pode vir a ser obrigado a sofrer restrições aos seus direitos na medida em que tal se mostre necessário à satisfação do bem comum, as restrições a impor deverão ser limitadas ao mínimo indispensável, de modo a conciliar as exigências do interesse público com as garantias dos particulares constitucionalmente consagradas.

A Ré implantou o poste de alta tensão a 4, 23 m do imóvel da autora, imóvel este que constituiu a sua casa de habitação, já aí existente aquando de tal implantação.

A autora logrou demonstrar que a proximidade do poste de média tensão e respetivos fios condutores afeta o seu direito ao sono e ao descanso, o que constituiu uma ofensa ilícita a um direito de personalidade.

E o meio adequado e proporcional para a remoção da lesão do direito ao repouso e sossego da autora consiste precisamente na deslocação de tal poste para um outro local, mais afastado de casa da autora, solução que se afigura como a mais simples e de menor custo (sendo inexigível à autora qualquer solução que passasse pela venda da casa e pela aquisição de uma outra noutro local).

Por outro lado, como já se salientou, a remoção do poste para outro local em nada afeta a prestação do serviço público por parte da Ré, refletindo-se, tão só, nos custos necessários à alteração da localização do poste.

Igual ponderação dos interesses em causa tem sido feita pelo STJ, em casos semelhantes de conflito de direitos entre o direito ao repouso e o desenvolvimento de uma atividade que atua na realização de um interesse público[8].

A Apelação é de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela apelante.                      

Coimbra, 12 de setembro de 2017

Maria João Areias ( Relatora)

Vítor Amaral

Luís Cravo

                                                                                   


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. Numa situação de colisão de direitos a aferição sobre se os direitos em colisão são iguais ou de espécie diferente, embora não prescinda de uma avaliação em abstrato dos bens jurídicos tutelados pela situação em apreço, tem de ser feita em concreto, consoante as circunstâncias do caso.
2. Demonstrado que o ruído emitido por um poste de média tensão e respetivos fios condutores, implantados nas proximidades da casa da autora, afetam o seu sono descanso, e não invocando a ré a existência de qualquer dificuldade, impossibilidade técnica ou mesmo algum inconveniente, na alteração do local de implantação peticionado nos autos, tal pedido será de deferir.


[1] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o art. 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16.
[2] Cfr., António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 127.
[3] Neste sentido, entre outros, Acórdão do STJ de 30-05-2013, relatado por Granja da Fonseca, disponível in www.dgsi.pt.
[4] É comum o entendimento de que a produção ou emissão de ruídos lesiva de direitos individuais e/ou coletivos encontra tutela jurídica em três planos distintos: i) tutela do direito de propriedade, seja com incidência no seu carater absoluto (art.1305º CC), seja no domínio das relações de vizinhança (art.1346º CC); a do direito ao ambiente, enquanto direito de natureza análoga aos direitos fundamentais (art.66º CRP); a dos direitos fundamentais de personalidade, como o direito à integridade moral ou física e ao livre desenvolvimento da personalidade (artigos 25º e 26º CRP e 70º CC) – neste sentido, Acórdão do STJ de 02-12-2013, relatado por Bettencourt de Faria, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, entre muitos outros, o já citado Acórdão do STJ de 30-05-2013, e os acórdãos do STJ de 02-12-2013, relatado por Bettencourt de Faria, de 29-11-2016, relatado por Alexandre Reis, e de 29-06-2017, relatado por Lopes do Rego, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] Luís A. Carvalho Fernandes, “Teoria Geral do Direito Civil”, II vol., 5ª ed., Universidade Católica Editora, p. 618 e 619.
[7] “Comentário ao Código Civil”, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa 2014, Coord. de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença, p. 792-793.
[8] Cfr., Acórdão do STJ de 02-12-2013, relatado por Bettencourt de Faria, que se pronunciou no sentido de que sendo tecnicamente viável a remoção da torre e das linhas aéreas que suporta, quer alterando o seu trajeto, quer inserindo-as subterraneamente, resulta clara a prevalência do direito dos réus a impor tal remoção; cfr. igualmente o Acórdão do STJ de 30-05-2013, relatado por Granja da Fonseca, para um caso de conflito de direitos relacionado com a emissão de ruídos e sombras intermitentes por parte de aerogeradores e o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade.