Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
125/11.7TBFCR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
DECISÃO
Data do Acordão: 02/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 58º DO DEC. LEI 433/82, DE 27/10
Sumário: A fundamentação da decisão administrativa, tal como está estabelecida no art.º 58.º do RGCO, será suficiente desde que justifique as razões pelas quais – atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas, é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões de facto e de direito pelas quais é condenado e, consequentemente, lhe permitam impugnar judicialmente tais fundamentos.
Decisão Texto Integral: I – Relatório.
1.1. W..., Lda., com sede na Rua … , em Figueira de Castelo Rodrigo, foi administrativamente sancionada pelo Sr. Subinspector-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território No uso de competência delegada., no pagamento de uma coima cujo montante se fixou em € 3.000,00, isto porquanto incursa na autoria de uma contra-ordenação ambiental leve, p. e p. através das disposições conjugadas dos art.ºs 11.º, alínea f) e 18.º, n.ºs 3, alínea c) e 4, ambos do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de Março, e 22.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, na redacção introduzida pela Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto.
Inconformada, impugnou-a judicialmente, embora sem ganho de causa, pois que, por despacho adrede proferido, foi mantido o despacho sindicado.
1.2. Porque, todavia, persiste irresignada, recorre agora a arguida para este Tribunal da Relação, extraindo do requerimento por cujo intermédio minutou a discordância, a seguinte ordem de conclusões:
1. A recorrente apresentou oportunamente a sua defesa por escrito, arrolou testemunhas, meio de prova que não foi apreciado nem tido em consideração.
2. Os art.ºs 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa [CRP], e, 50.º, do Decreto-Lei n.º433/82, de 27 de Outubro [RGCO], impõem que a autoridade administrativa antes de aplicar qualquer sanção tenha em consideração a defesa do arguido e toda a prova que pretenda carrear para os autos.
3. A Lei Processual Penal, aplicável subsidiariamente às contra-ordenações por remissão expressa do art.º 41.º do RGCO, comina com a nulidade a “insuficiência de inquérito ou da instrução e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais à descoberta da verdade.”
4. A decisão administrativa nada referiu relativamente aos depoimentos prestados no decurso dessa fase do processo, mormente quanto ao que disseram, e porque motivo foi ou não dada credibilidade probatória aos seus depoimentos.
5. Essa decisão é fundamentada “em bloco” por remissão para todos os elementos probatórios constantes dos autos, que não são minimamente analisados, ponderados e sopesados criticamente à luz das regras da experiência comum (e sendo certo que o auto de notícia, neste âmbito, não faz qualquer fé em juízo em relação aos factos presenciados pelos autuantes, ao contrário do que sucede no âmbito do direito de mera ordenação estradal por força o disposto no art.º 170.º, n.º 3, Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro).
6. Ora, a insuficiência da fundamentação da matéria de facto não pode deixar de considerar-se como fundamento de nulidade da decisão administrativa, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi do art.º 41.º citado – neste sentido os Acórdãos seguintes: do TRP, de 9 de Julho de 2001, in CJ IV, p. 247 e de 25 de Fevereiro de 1998, in CJ I, p. 242; do TRE, de 16 de Dezembro de 1998, in CJ V, p. 286, bem como, na doutrina, Oliveira Mendes/Santos Cabral, in Notas ao Regime Geral das Contra Ordenações e Coimas, Coimbra, 2003, p. 155 e Simas Santos/Lopes de Sousa, in Contra Ordenações, Anotações ao Regime Geral, r. Ed., Lisboa, 2002, p. 334 –.
7. Os princípios da simplicidade e celeridade que norteiam a decisão administrativa não poderão estar acima de direitos constitucionalmente garantidos aos arguidos, sob pena de violação da regra da hierarquia das leis.
8. Decidindo na forma em que o fez, a decisão recorrida violou o disposto nos mencionados art.ºs 32.º, n.º 10, da CRP; 41.º, 50.º e 58.º, todos do RGCO, bem como 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Terminou pedindo que no provimento do recurso seja substituída a decisão recorrida por outra que decrete a sua absolvição.
1.3. Cumprido o disciplinado no art.º 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, respondeu o Ministério Público sustentando o improvimento do recurso.
1.4. Proferido despacho admitindo-o, e cumpridas as formalidades devidas, os autos foram remetidos para esta instância.
1.5. Aqui, no momento processual a que alude o art.º 416.º, do Código de Processo penal, a Ex.ma Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer apontando para idêntica improcedência da oposição.
Foi dado cumprimento ao disciplinado pelo artigo 417.º, n.º 2, do mesmo diploma adjectivo.
No exame preliminar a que alude o n.º 6 ainda deste normativo, considerou-se não ocorrer fundamento determinante à apreciação sumária do recurso, nem nada obstar ao seu conhecimento de meritis, donde que a dever o mesmo prosseguir seus termos, com a recolha dos vistos devidos, o que se verificou, e sua posterior submissão à presente conferência.
Urge, pois, ponderar e decidir.
1.6. Na parte que releva ao objecto deste recurso, a decisão recorrida mostra-se proferida com o teor seguinte:
«Como se sabe, é pelas conclusões de recurso que se fixa o objecto do mesmo e, consequentemente, as questões que devem ser conhecidas pela instância de recurso.
1- Da nulidade da decisão administrativa por não se ter pronunciado sobre toda a defesa apresentada pela ora recorrente:
Em sede de impugnação judicial, a arguida alega que na decisão administrativa não são descritos os factos provados e não provados, nem os mesmos integram a prática de uma contra-ordenação, nem é descrita a exposição concisa acerca dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, não existindo uma única referência às provas que serviram para fundamentar a decisão, pelo que, também por esta via a decisão é nula.
Existe, pois, in casu, para efeitos do disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea b) do RGCO, vício da insuficiência da matéria de facto provada, uma vez que “os factos provados são insuficientes para justificar a decisão de direito” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-02-2005, in www.dgsi.pt.)
Como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-09-2006, Processo n.º 3200/06, disponível em www.dgsi.pt: “ (...) a indicação dos factos imputados com a menção das provas obtidas é uma exigência do artigo 58.º, n.º 1 do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com as garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, por muito sumário ou expedito que se apresente o processo contra-ordenacional, pois a própria Constituição estende a esse tipo de processos essas garantias (artigo 32.º, n.º 10 da CRP). Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito de recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem”.
No que concerne à existência de vícios da decisão administrativa, designadamente vício da falta de fundamentação da matéria de facto provada, importa antes de mais saber se estamos perante um acto decisório inexistente, nulo ou apenas irregular.
A verdade é que o RGCO não prevê a consequência processual para a falta dos requisitos da decisão administrativa elencados no artigo 58.º, pelo que têm entendido a maioria dos autores que se deve aplicar subsidiariamente os preceitos do processo penal ainda que com as devidas adaptações.
Assim, a decisão administrativa será inexistente quando desrespeite, em absoluto, os requisitos estabelecidos no artigo 58.º, do RGCO (v. g., despacho de simples concordo sem qualquer remissão para a fundamentação de facto e de direito constante do relatório do instrutor do processo contra-ordenacional e sem a determinação da coima e respectiva sanção acessória a aplicar), pois não é verdadeira decisão condenatória:
“ (...) Na verdade embora neste art.º 379.º se qualifique a falta de decisão condenatória ou absolutória como uma nulidade, a qualificação conceptualmente adequada a tal vício é a de inexistência jurídica, pois uma sentença, por sua própria natureza, tem que conter uma decisão (...)” Neste sentido Simas Santos e Lopes de Sousa, em Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral pág. 420..
Por seu lado, se a decisão administrativa não respeitar algum ou alguns dos requisitos daquele preceito legal, (como é o caso do artigo 58.º, n.º 1, alínea b) do RGCO), tem-se entendido que essa decisão poderá sofrer um de três vícios: nulidade por força do disposto no artigo 379.º, do Código de Processo Penal (nulidades das sentenças), nulidade por força do disposto no artigo 283.º, n.º 3 do mesmo diploma (nulidades da acusação) – de conhecimento oficioso ou não, ou, apenas irregularidade por força dos artigos 118.º, n.º 1 (à contrário) e 123.º, ambos do Código de Processo Penal.
Para quem defende a existência de mera irregularidade e não de nulidade, o argumento decisivo prende-se com o facto do regime das nulidades, pelo carácter gravoso das suas consequências, dever ser único e é típico ao longo de todo o processo administrativo, como o é no processo penal.
Assim, tem-se entendido que não se pode aplicar o regime das nulidades das sentenças a uma decisão administrativa que após impugnada converte-se em acusação (artigo 62.º, n.º 1 do RGCO), pois no caso seria aplicável o regime das nulidades das acusações. Não obstante, também defendem a não aplicação deste último face ao facto daquela decisão poder nunca chegar a assumir a natureza de acusação (no caso de não haver impugnação).
Ademais, face ao disposto no artigo 118.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a aplicar subsidiariamente ao processo contra-ordenacional, não se vislumbra que a violação dos requisitos do artigo 58.º, do RCCO constitua nulidade, pois não se encontra elencada naquele artigo, o qual faz uma enumeração taxativa dessas situações.
Também aqui, como em todos os casos em que um determinado ramo de direito é subsidiário de outro, é preciso notar se uma determinada solução responde à teleologia e regras gerais daquele último, i.e., é necessário que se conclua efectivamente por uma lacuna.
Face a estas conclusões, esta doutrina entendido que, nestes casos, o que existe é uma mera irregularidade da decisão administrativa, que deverá ser arguida, sob pena de se considerar sanada, nos termos do disposto no artigo 123.º, do Código de Processo Penal, regime segundo o qual se apurará da possibilidade de aproveitamento ou não do processado desde a prolação daquela decisão ou da eventual correcção da decisão nos termos do disposto no artigo 380.º do mesmo Código Neste sentido, António Beça Pereira, considera que a violação do artigo 58.º, n.º 1 não é sancionada com a nulidade, in Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Anotado, Almedina, 7.ª edição, pág. 109 Borges de Pinho, em “Das Contra-ordenações, Breves Notas Sobre o Regime Contra-ordenacional, as Contra-ordenações Fiscais e as Atinentes à Segurança Social”, Almedina, 2004, pg.s 40 e 50, e Gonçalves da Costa em ‘Contra-ordenações”, polic. CEJ, 1995, pg. 64).
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Não obstante nos merecer todo o respeito a posição sufragada por aqueles autores, propendemos para a posição defendida por Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, em Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral e António de Oliveira Mendes (pág. 419 e 420) e José dos Santos Cabral, em Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações, 3.ª edição (págs. 15 e 158).
De facto, cremos que nos casos em que existe vício da insuficiência da matéria de facto provada, estamos perante uma nulidade da decisão, de harmonia com o disposto nos artigos 374.º, n.ºs 2 e 3 e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, a qual deve ser arguida por via de recurso nos termos do disposto no artigo 410.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do Código de Processo Penal, sem prejuízo de poder ser conhecida oficiosamente pelo Tribunal. Pois, embora não configure uma nulidade absoluta (artigo 119.º, do Código de Processo Penal), mas sim fundamento de recurso, é um vício de tal forma grave que deve ser conhecido oficiosamente conforme foi defendido no AUJ do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, publicado no DR n.º 298, 1 Série, de 28.12.1995: “ (...) É oficioso, pelo Tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de Direito (...)”.
Além disso, se as irregularidades da sentença de menor gravidade podem ser conhecidas oficiosamente (artigo 380.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), não se compreende como é que uma nulidade prevista no artigo 379.º, do mesmo Código não deva seguir o mesmo regime.
O mesmo se diga com relação a condenação por factos diversos dos descritos no auto de notícia por aplicação, com as devidas adaptações, do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, porquanto embora não esteja em causa a alteração de factos imputáveis ao recorrente durante a audiência de julgamento, dever-se-á entender que será nula a condenação por factos diversos daqueles sobre os quais o recorrente foi ouvido no processo sob pena de se violar o direito de defesa tal como ele se encontra concebido para o processo contra-ordenacional, designadamente, no artigo 50.º, do RGCO.
Vejamos o caso dos autos.
Verifica-se da decisão administrativa que a mesma refere que:
“Notificada nos termos e para os efeitos do artigo 49.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, a arguida enviou pronúncia por escrito, acompanhada de documentos, tudo aqui se dando, para os devidos efeitos legais, como integralmente reproduzido.
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No âmbito do direito de defesa da arguida, foram devidamente notificadas ouvidas as testemunhas por si oportunamente apresentadas, ……., tendo estas comparecido no dia e hora marcadas para a sua inquirição e cujos depoimentos, constantes dos Autos de Inquirição juntos ao presente processo, também aqui se dão por integralmente reproduzidos.
(...)
Para a prova dos factos acima referidos no Capítulo III da presente decisão, esta Inspecção-Geral fundamentou a sua convicção tendo por base a análise critica, segundo juízos de experiência comum e de normalidade Social, do Auto de Notícia n.º 6/09, lavrado em 11 de Fevereiro de 2009 pelo Serviço de Protecção à Natureza e Ambiente (SEPNA) da Guarda Nacional Republicana (Comando Territorial da Guarda - Destacamento Territorial de Vilar Formoso), bem como da defesa documentos apresentados pela arguida e o depoimento das testemunhas arroladas.”
Nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alínea b) do RGCO, “a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter a descrição dos factos imputados com a indicação das provas obtidas”.
Em face deste preceito legal, é exigida a própria indicação na decisão dos elementos que contribuíram para a fixação da coima. O que se pretende com a exigência de inclusão na decisão de todos os elementos relevantes para aplicação da coima é que o destinatário possa aperceber-se facilmente de todos os elementos necessários para a sua defesa, o que está em sintonia com o direito constitucional à notificação de actos lesivos e à respectiva fundamentação expressa e acessível (artigo 268.º, n.º 3 do Código Processo Penal) e com a garantia do direito à defesa (artigo 32.º, n.º 10 da CRP).
A “indicação das provas obtidas” referida na alínea b), do preceito mencionado, exige a uma exposição tanto quanto possível completa, ainda de concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, que é exigida pelo artigo 374.º, n.º 2 do Código Processo Penal para as sentenças proferidas em processo criminal.
Trata-se, neste artigo 58.º, n.º 1, alínea b), de estabelecer um regime de menor solenidade para as decisões de aplicação de coimas comparativamente com as sentenças criminais. O que exige aquela alínea b), interpretada à luz das garantias do direito de defesa, constitucionalmente assegurado, é que a descrição factual que consta da decisão de aplicação de coima seja suficiente para permitir ao arguido aperceber-se dos factos que lhe são imputados e poder, com base nessa percepção, defender-se adequadamente.
Em boa verdade, a decisão recorrida versa sobre a defesa apresentada de forma crítica indicando que foi na conjugação de todos os elementos probatórios submetidos a regras de experiência comum e segundo juízos de normalidade que formou a convicção sobre os factos provados e com os quais fundamentou a matéria de facto provada que imputa à arguida e onde apoia a condenação na contra-ordenação que é imputada à arguida.
Será que a menção na decisão administrativa em remeter o teor dos depoimentos para os autos de inquirições constitui a referência às provas que serviram para fundamentar a decisão prevista no artigo 58.º, n.º 1 da alínea b) do RGCO?
Cremos que a decisão administrativa sub judice ao remeter para o auto de inquirição permite perfeitamente compreender a motivação de facto não enfermando qualquer ausência de factos ou fundamentação.
A lei impõe, pois, como critério e base essencial da fundamentação da decisão em matéria de facto, o “exame crítico das provas”, mas não define, nem expressa elementos sobre algum modelo de integração da noção.
O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.
Os termos da lei (n.º 2 do artigo 374.º do CPP) não impõem “uma pormenorização excessiva ou desproporcionada” (exposição tanto quanto possível, diz a lei), antes devendo a sentença conter aquele mínimo de referências que persuadam os interessados de que se fez justiça e lhe possibilitem avaliar as probabilidades de recurso, do mesmo modo que possibilite ao tribunal sindicar a decisão, designadamente apreciar os meios de impugnação apresentados. Neste sentido, a sentença assume-se mais como uma arte de bem julgar do que um trabalho científico ou doutrinário.
A tudo isto acresce um regime de menor solenidade para as decisões de aplicação de coimas comparativamente com as sentenças criminais.
Concluindo, a decisão administrativa, ora recorrida não padece de nulidade por violação do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, alíneas a) e b), em conjugação com o artigo 58.º, n.º 1, alínea b) do RGCO, a qual é fundamento de recurso nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 1 e 2, alínea b), todos do Código de Processo Penal ex vi artigo 41.º, n.º 1 do RGCO.
A decisão administrativa evidencia a narração, ainda que de forma sintética devido à simplicidade e celeridade que norteiam a fase administrativa, que permitem à arguida efectuar um juízo de oportunidade sobre a conveniência ou necessidade de impugnar judicialmente a decisão e posteriormente, já em sede de impugnação judicial possibilitam ao Tribunal conhecer e aferir sobre o processo lógico da formação da decisão administrativa e respectivos fundamentos, pelo que tem de improceder o presente recurso
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II – Fundamentação de Direito.
2.1. Atentando-se ao disposto pelo art.º 75.º, n.º 1, do RGCO «Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.», o âmbito do presente recurso apenas pode incidir sobre matéria de direito.
Todavia, como ao processo das contra-ordenações é subsidiariamente aplicável o processo criminal Artigo 41.º, do RGCO:
«1. Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
2. No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma.» , nada impede que se conheça dos vícios da sentença [in casu, a tanto se equiparará o despacho recorrido], mesmo relativos à matéria de facto, desde que resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, e desde que tenham alguns dos fundamentos indicados no n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal. Também nada impede que se conheça de requisito cominado sob pena de nulidade, que não deva considerar-se sanada (n.º 3 deste último artigo).
Ainda de não olvidarmos que o âmbito do recurso é delimitado através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (art.º 412.º, n.º 1, do diploma adjectivo penal).
Tudo conjugado, e sendo certo que não descortinamos fundamento para a aludida intervenção oficiosa, decorre, então, que o thema decidendum consistirá, conforme conclusões da recorrente em aquilatarmos se A decisão recorrida padece da cominada nulidade insuficiência da fundamentação da matéria de facto.
2.2. Atentando-se na impugnação oposta pela recorrente à decisão administrativa [fls. 70/1] e agora àquela que decorre do recurso interposto, constatamos que, se na primeira coloca como tónica da irresignação a violação do seu direito de defesa [rectius, art.ºs 32.º, n.º 10, da CRP, e 50.º, do RGCO], uma vez que, sustentou, não existiu então pronúncia sobre toda a defesa que apresentou, já na segunda (a ora recorrida, não se olvide), pese embora coloque a tónica da desavença na preterição ao art.º 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art.º 58.º, n.º 1, alínea b), do RGCO [especificando, na insuficiência da fundamentação da matéria de facto], não deixa ainda, certo que em menor linha, de repristinar igualmente tal tema. Daí que, sem prejuízo da definição do objecto do recurso presente, tal como expresso supra, façamos uma prévia e breve referência aos termos pelos quais deve ser interpretado aquele art.º 50.º
Para tanto coligimos um aresto do Tribunal Constitucional [n.º 99/09, disponível no site www.tribunalconstitucional.pt] o qual, colhendo orientação firme desse mesmo Tribunal, exarou, a propósito:
«O quadro legal invocado pelo arguido em ordem à invalidação do despacho (…), integrado como é por normas de processo contra-ordenacional e normas processuais penais, remete para o vasto contexto da problemática suscitada em torno das relações entre o direito contra-ordenacional e o direito penal, domínio onde, conforme sabido é, a doutrina vem assinalando uma linha de evolução marcada por sucessivas aproximações do primeiro ao segundo.
Embora o programa político-criminal associado ao Código Penal de 1982 preconizasse a autonomia do ilícito de mera ordenação social aos níveis dogmático, sancionatório e processual (Figueiredo Dias, O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social, Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, V.I, pg. 28), observa-se, nesta perspectiva, que a crescente tendência para o alargamento das áreas de intervenção do Direito de Mera Ordenação Social a circuitos económicos e tecnológicos complexos e o concomitante agravamento dos montantes das coimas, bem como a ampliação do espectro das sanções acessórias aplicáveis, conduziu à instalação de um ambiente favorável ao incremento da componente de garantia do regime do ilícito de mera ordenação social e, por via disso, à criação das condições propiciadoras de uma progressiva aproximação aos institutos e soluções do direito penal, em prejuízo do aprofundamento da autonomia perspectivada originariamente (cfr. Frederico Costa Pinto, O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade, Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, V.I, p. 214-215).
Na síntese deste mesmo autor, ter-se-á criado, «no fundo, uma área jurídica muito heterogénea onde, por razões de segurança e de garantia, se recorreu cada vez mais às categorias e figuras da dogmática penal e aos mecanismos e regras do processo penal» (ob. cit., p. 271-272), recurso esse legalmente viabilizado e tecnicamente mediado pelas cláusulas gerais de direito subsidiário constantes dos artigos 32.º e 41.º do Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO).
Esta linha de evolução conduziu, por um lado, a que, no âmbito doutrinal, se registe na actualidade a tendência para um certo redireccionamento do debate, fixando-se-lhe linhas de progressão dogmática centradas na recuperação dos elementos diferenciadores do direito contra-ordenacional e na reafirmação da respectiva autonomia face ao direito penal, e, por outro, a que, no domínio da interpretação jurisdicional do sistema, incluindo no plano constitucional, se mantenha longe do fim a discussão em torno dos fundamentos e limites da transposição para o direito contra-ordenacional das soluções, substantivas e processuais, previstas para o direito penal, em especial no contexto da identificação das regras e princípios deriváveis da zona de sobreposição reconhecida entre ambos os direitos – natureza sancionatória dos correspondentes procedimentos – e daqueles outros associáveis já à superlatividade ética e aflitiva do direito penal sobre o direito contra-ordenacional e, com tal fundamento, passíveis de serem considerados privativos do primeiro.
No plano processual, em especial no que concerne às garantias de defesa, a indagação dos elementos de aproximação e de demarcação entre o direito contra-ordenacional e o direito penal cruza o plano do relacionamento de um e de outro com a ordem constitucional, remetendo directamente para a consideração do art.º 32.º, n.º 10, da CRP.
Conforme salientado já por este Tribunal, a norma do art.º 32.º, n.º 10, da CRP – introduzida pela revisão constitucional de 1989 quanto aos processos de contra-ordenação e alargada pela revisão de 1997 a quaisquer processos sancionatórios – implica a inviabilidade constitucional da aplicação de qual­quer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qual­quer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defen­der-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), reagindo contra uma acusação prévia, apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cfr. Ac. n.º 659/06 e Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363).
Sem prejuízo dos demais direitos que outras normas constitucionais incluem no conjunto das garantias asseguradas aos arguidos em processos sancionatórios (cfr. art.º 20.º da CRP), o alcance atribuível à norma do n.º 10 do art.º 32.º é, todavia, conforme igualmente acentuado na jurisprudência constitucional, apenas o que se deixou exposto, tendo sido rejei­tada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garan­tias do processo criminal” (artigo 32.º-B do Projecto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, II Série, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541-544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466) [cfr. Ac. n.º 659/06].
Quer isto significar que a configuração constitucional do processo contra-ordenacional, se o subordina ao reconhecimento de um conjunto de garantias inerentes à respectiva natureza sancionatória, não o equipara, contudo, ao processo penal, não conduzindo, por isso, no plano da aplicação do direito ordinário, à directa transposição para o primeiro de todas e quaisquer regras expressamente previstas para o segundo, designadamente em termos de os elementos que este particularmente inclui se tornarem, só por isso, comuns àquele.
Da modelação constitucional do processo contra-ordenacional extraem-se, portanto, duas ideias de sentido aparentemente oposto mas complementar: a de que o processo contra-ordenacional, como sancionatório que é, se encontra subordinado ao reconhecimento de um conjunto de garantias que o aproximam do processo penal; e, a de que tais garantias não são equivalentes ou equiparáveis às garantias asseguradas no âmbito do processo criminal, designadamente em termos de viabilizar a conversão daquela aproximação numa sobreposição integral de regimes.
Tal entendimento encontra-se consolidado na jurisprudência constitucional.
Em vários dos seus arestos, este Tribunal teve já oportunidade de afirmar que “não é constitucionalmente imposta a equiparação de garantias do pro­cesso criminal e do processo contra-ordenacional”, uma vez que a diferença de “princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a legislação das contra-ordenações” se reflecte “no regime processual pró­prio de cada um desses ilícitos”, não se exigindo, por isso, “um automático paralelismo com os institutos e regimes próprios do processo penal (Acórdão n.º 344/93).
No desenvolvimento de tal perspectiva, escreveu-se inclusivamente no Acórdão n.º 581/2004 que “a garantia constitucional dos direitos de audiência e de defesa em processo contra-ordenacional (n.º 10 do art.º 32.º da Constituição) não pode comportar a consagração de um princípio da estrutura acusatória do processo idêntico ao que a Constituição reserva, no n.º 5 do artigo 32.º, para o «processo criminal»”.
Conforme vem sendo igualmente afirmado, a reconhecida inexigibili­dade de estrita equiparação entre processo contra-ordenacional e processo criminal é, contudo, conciliável com “a necessidade de serem observados determinados princípios comuns […], sendo que porventura, um desses princípios, comuns a todos os processos sancionatórios […] será, desde logo, por directa imposição constitucional, o da audiência e correlativa defesa do arguido, inseridos num desenvolvimento processual em que o princípio do contra­ditório deverá ser mantido, como forma de complementar a estrutura acusatória, que não dispositiva, da actuação dos poderes públicos” (Acórdão n.º 469/97).
As garantias constitucionalmente impostas no âmbito do processo contra-ordenacional corresponderão, assim, a um standard representativo e concretizador dos limites constitucionais ao exercício do poder estadual sancionatório, às quais não é por isso possível opor argumentos relacionados com a projecção processual da diferente natureza dos ilícitos em causa ou da menor ressonância ética e consequencial do ilícito de mera ordenação social.
No epicentro de tais garantias encontrar-se-ão, assim, os direitos de defesa e de audiência correlativa assegurados no art.º 32.º, n.º 10, da CRP, e concretizados, para o processo contra-ordenacional, no art.º 50.º do RGCO.
Sob a epígrafe “Direito de audição e defesa do arguido”, estabelece-se aí que “não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.
Esta redacção do art.º 50.º, introduzida pelo DL n.º 244/95, de 14 de Setembro, veio enfatizar e incrementar o direito de audição e de defesa do arguido de modo a assegurar-lhe a faculdade de pronunciar-se sobre a contra-ordenação imputada e a sanção correspondente, atribuindo-lhe um alcance superior ao que resultava da primitiva versão do preceito (aprovada pelo DL n.º 433/82 e mantida pelo DL n.º 356/89) que se limitava a assegurar ao arguido “a possibilidade de se pronunciar sobre o caso”.
Independentemente da questão de saber se os direitos de defesa e de audiência deverão ser reconhecidos no processo contra-ordenacional com intensidade homóloga àquela com que são assegurados no processo criminal – nomeadamente através da automática transposição para aquele dos específicos institutos que neste procedem à respectiva concretização – ou se, pelo contrário, o grau de intensidade com que são reconhecidos no processo penal é indissociável da particular estrutura acusatória que para este se reserva no art.º 32.º, n.º 5 da CRP, parece evidente que tais direitos, nos termos em que os concretiza o actual art.º 50.º do RGCO, têm, por si só, óbvias implicações.
Dos direitos de audição e de defesa consagrados no art.º 32.º, n.º 10, da CRP, e densificados no art.º 50.º do RGCO, extrai-se com toda a certeza que qualquer processo contra-ordenacional deve assegurar ao visado o contraditório prévio à decisão; que este só poderá ser plenamente exercido mediante a comunicação dos factos imputados; que a comunicação dos factos imputados implica a descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, dos elementos imprescindíveis à singularização do comportamento contra-ordenacionalmente relevante; e que essa descrição deve contemplar a caracterização, objectiva e subjectiva, da acção ou omissão de cuja imputação se trate.
Na fórmula utilizada pelo Assento n.º 1/2003 do STJ (DR 21 Série I-A, de 2003-01-25), os direitos de defesa e audiência assegurados no âmbito do processo contra-ordenacional implicarão, em síntese, que ao arguido seja dada previamente a conhecer “a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito”.»
Por outro lado, dispõe o n.º 1 do art.º 58.º do RGCO [na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro], que a decisão que aplica a coima ou sanções acessórias dever conter a identificação dos arguidos [al. a)]; a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas [al. b)]; a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão [al. c)]; a coima e as sanções acessórias [al. d)].
Mesmo em matéria contra-ordenacional, da narração acusatória devem constar os factos relativos à culpabilidade, onde se reconheça o conhecimento (representação) e a vontade de realização do facto material típico – do tipo objecto (elementos objectivos, naturalísticos ou normativos) de uma infracção.
Como referem Simas Santos e Lopes de Sousa, in “Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral”, 3.ª edição, 2006, Vislis Editores, em anotação a tal preceito, «os requisitos previstos neste artigo para a decisão condenatória contra-ordenacional visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão.
Por isso as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos».
Pese embora a lei não defina qual o âmbito ou rigor da fundamentação que aqui se impõe, a jurisprudência tem sufragado que se não exige nela um rigor e extensão equivalente à do art.º 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, por várias razões: por um lado, porque esta é uma decisão administrativa, que não se confunde com a sentença penal, como o ilícito contra-ordenacional não se confunde com o ilícito penal (são realidades distintas, revestindo a sentença penal uma maior solenidade, tendo em conta, precisamente, uma supremacia dos interesses em causa); por outro, porque aquela decisão, quando impugnada, converte-se em acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial (art.º 62.º, n.º 1, do dito RGCO).
Não faz, assim, qualquer sentido que a decisão administrativa – que em caso de impugnação se converte em acusação – tenha de obedecer a um rigorismo de fundamentação semelhante ao da sentença penal. Por um lado, seria incongruente e destituído de qualquer sentido que a fundamentação exigida no artigo em causa tivesse a amplitude prevista no elencado art.º 374.º, n.º 2, relativamente à fundamentação da sentença, quando naquele se estabelecem outros elementos que deve conter a decisão administrativa – essa exigência não faria sentido se ao dever de fundamentar que aí se prevê se atribuísse o alcance que resulta do art.º 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, retirando sentido à exigência contida nas alíneas b) e c) (1.ª parte) daquele art.º 58.º.
Como é referido no Ac. do STJ, de 21 de Setembro de 2006, proferido no processo n.º 06P3200, acessível in www.dgsi.pt., assumindo a decisão prevista no art.º 58.º o carácter de uma sentença condenatória em matéria contra-ordenacional, tem uma estrutura semelhante prevista para a sentença penal no art.º 374.º, embora só aproveitando desta os elementos mais elementares e básicos acima descritos.
O que se compreende se tivermos em consideração que o processo contra-ordenacional é, até à fase judicial um procedimento de cariz administrativo, sujeito a valores de celeridade e simplicidade, diferentes dos que regem as decisões judiciais em matéria penal, não lhes sendo, por isso, aplicável, na sua totalidade e sem a devida adaptação, o disposto neste art.º 374.º.
Como está escrito no recente Ac. desta Relação de Coimbra, de 2 de Março de 2011, in processo n.º 583/09.0 TBOBR.C1, publicado em www.dgsi.pt, relatado pelo Exmo. Desembargador Paulo Guerra, «as contra-ordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta dos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social.
Estas normas, ditas de mera ordenação social (que não devem validar a afirmação de que estaremos perante um “direito de bagatelas penais”), não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contra-ordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.
A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa), mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (art.ºs 32.º, n.º 10, da CRP e art.º 50.º do RGCO).
Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos art.ºs 33.º e ss. do RGCO».
As condutas ou comportamentos contra-ordenacionais, em si mesmos, isto é, independentemente da sua proibição legal, são axiologicamente neutros e, daí que, a coima represente um mal que de nenhum modo se liga à personalidade do agente, antes servindo como mera “admonição”, como especial advertência ou reprimenda conducente à observância de certas proibições ou imposições legais (cfr. Figueiredo Dias, “O movimento de descrimininalização e o ilícito de mera ordenação social”, estudo publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, I (1983, 19/33).
Em razão da génese e teleologia do procedimento contra-ordenacional, a fundamentação, tal como está estabelecida no art.º 58.º do referido diploma, será, pois, suficiente desde que justifique as razões pelas quais – atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas [art. 358.º, n.º 1, alíneas b) e c)] –, é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões pelas quais é condenado e, consequentemente, impugnar tais fundamentos.
Na posse destes considerandos, nenhuma censura urge fazer à decisão recorrida.
Na verdade, compulsando-se os autos o que se surpreende é o levantamento à arguida, pelo Serviço de Protecção à Natureza e Ambiente (SEPNA), de um auto de notícia, por no dia 10 de Fevereiro de 2009, pelas 11:20 horas, não possuir no livro de obra da construção de uma casa particular a que procedia, e conjunto ao mesmo, o registo de dados de RCD (Resíduos de Construção e Demolição); após, a defesa ofertada pela autuada, invocando o desconhecimento completo de tal obrigação e a sua disponibilidade imediata em sanar a omissão; ainda, a inquirição das testemunhas de defesa que apresentou as quais, inquiridas, se limitaram a afirmar o seu desconhecimento da obrigatoriedade de registo do RCD que pensam extensiva ao sócio da arguida; por fim, a decisão administrativa que, se, por um lado, em sede de motivação probatória, menciona ter considerado por provados os factos assacados à mesma recorrente tendo por base a análise crítica, segundo juízos de experiência comum e da normalidade social, do Auto de Notícia (…), bem como da defesa e documentos apresentados pela arguida e o depoimento das testemunhas arroladas, adianta, por outro lado, e em sede do grau de culpa aquilatado, a menção de que a arguida actuou e face à matéria de facto dada por assente, sem a diligência necessária para cumprir com as suas obrigações legais, não se descortinando quaisquer factos que retirem a censurabilidade à infracção por si praticada.
Isto é, cumpridos os mandamentos ordinários decorrentes dos aludidos art.ºs 50.º e 58.º, n.º 1, alínea b), do RGCO (e, por virtude deste do art.º 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal], na interpretação conforme o acima consignado ao citado art.º 32.º, da CRP, uma vez que foi considerada a defesa oposta pela recorrente (concedendo-se que apenas em parte procedente, pois que de um alegado erro sobre a ilicitude, apenas se acolheu uma actuação negligente da arguida), em moldes que possibilitam a tal destinatária a percepção do processo lógico seguido. Arguida a quem foi facultado o exercício efectivo dos seus direitos de defesa, pois que com um conhecimento perfeito dos factos que lhe eram imputados, motivos da sua aquisição processual e das normas legais em que se enquadram.
Tudo como mais se sustenta na decisão impugnada, que se torna despiciendo agora mais desenvolver, dado que de mera redundância se trataria.
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III – Decisão.
Termos, pois, em que se tem por improcedente o recurso interposto e, consequentemente, mantemos a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 UCs.
Notifique.
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Brízida Martins (Relator)
Orlando Gonçalves