Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
325/12.2TBTBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CONTRATO DE MÚTUO
ENTREGA DA QUANTIA
DOCUMENTO

Data do Acordão: 12/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 726º, Nº 2, A), DO ACTUAL CPC (812º-E, Nº1, A), DO ANTERIOR CPC)
Sumário: I – O contrato de mútuo – considerado como um contrato real – apenas se considera concluído com a entrega da coisa ao mutuário, pelo que o acordo de vontades no que toca aos elementos integradores desse contrato, ainda que inclua o valor a mutuar e os termos e condições em que se irá processar a sua restituição, é insuficiente para a sua conclusão e para a constituição da obrigação que dele emerge para o mutuário (de restituição da quantia mutuada), obrigação esta que apenas se constitui com a efectiva entrega da quantia mutuada ao mutuário.

II – Assim, o documento que corporiza um acordo de vontades no que toca aos elementos integradores de um contrato de mútuo – definindo o valor a mutuar e os termos em que se irá processar a respectiva restituição – mas do qual não resulte que a quantia foi efectivamente entregue ou disponibilizada ao mutuário não corporiza, só por si, a constituição de qualquer obrigação pecuniária a cargo do mutuário e, se também não contiver uma qualquer declaração deste no sentido de reconhecer uma obrigação já existente, não constitui título executivo.

III – Configurando-se uma situação de manifesta falta ou insuficiência de título executivo que, nos termos do art. 726º, nº 2, a), do actual CPC (812º-E, nº1, a), do anterior CPC), determinaria o indeferimento liminar do requerimento executivo, nada obsta a que, ao abrigo do disposto no art. 734º do actual CPC (820º do anterior CPC), o juiz conheça oficiosamente dessa questão, determinando, com base nela, a extinção da execução, desde que o faça até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A..., com sede em (...) Londres, veio intentar processo de execução contra B... , residente na Rua (...) , Tábua, pedindo que este lhe pague a quantia de 2.093,15€ e respectivos juros, no valor de 1.381,48€, invocando, para o efeito, um contrato de crédito em conta corrente, no montante inicial de 1.990,00€, que o Executado celebrou com a C... e alegando que, tendo-se comprometido a fazer o pagamento em prestações mensais, o Executado nada mais pagou a partir de 24/12/2005, data em que se encontrava em dívida o valor de 2.093,15€. Mais alega que a C... cedeu o aludido crédito a D..., que, por sua vez, o cedeu à Exequente.

Para fundamentar a execução, junta o contrato de crédito celebrado entre o Executado e a C... , bem como o contrato de cessão de créditos celebrado entre a C... e a D... .

Efectuada a penhora e iniciadas as diligência com vista à venda, veio a ser proferido despacho – em 19/02/2014 – onde se convidou a Exequente a juntar aos autos:

a) Comprovativo documental da disponibilização de capitais ao executado, por ele subscrito ou ratificado;

b) O Anexo I ao contrato de cessão de créditos junto aos autos de onde conste a identificação do alegado crédito sobre o executado como cedido;

c) O contrato de cessão de créditos entre a 1.ª cessionária e ela própria, exequente, exibindo todos os caracteres necessários à sua certificação documental.

Na sequência dessa notificação, a Exequente veio juntar o anexo referido em b), bem como uma procuração irrevogável pela qual a D... , tendo em vista a futura celebração de um contrato de cessão de créditos, concedeu poderes à Exequente para exercer os direitos e faculdades relacionados com os activos constantes do anexo junto, incluindo os poderes para receber, demandar e recuperar (por via judicial ou extrajudicial) os valores vencidos relativamente a cada crédito.

Relativamente ao constante da alínea a) da referida notificação, a Exequente nada juntou, limitando-se a alegar: que ao Executado foi disponibilizado o montante de 1990,00 €, a reembolsar em 48 prestações no montante de 60,85€ cada uma; que, das prestações convencionadas o Executado efectuou o pagamento de várias, conforme resulta da análise do extracto de pagamento do contrato de crédito; que, se o valor não tivesse sido efectivamente disponibilizado, não poderia o contrato de crédito ter sido firmado e, certamente, que o Executado não procederia ao reembolso do valor mutuado como procedeu, concluindo que, em face disso, dúvidas não existem de que o valor foi mutuado ao Executado – facto que ele não negou – pelo que a documentação já junta é suficiente para demonstrar que o montante mutuado foi disponibilizado ao Executado.

Na sequência desses factos, foi proferido despacho que, por falta de título executivo e por não estar demonstrada a posição de cessionária da Exequente, julgou extinta a acção executiva, ao abrigo do disposto nos arts. 46º, nº 1, al. a), do anterior CPC e 726º, nº 2, al. a) e 734º do actual CPC.

Inconformada com essa decisão, a Exequente veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

A) O contrato junto aos autos deve ser considerado como título executivo válido, susceptível de fazer a acção prosseguir.

B) Dele constam todos os elementos exigidos pela lei para tal.

C) O Tribunal de que se recorre fez uma interpretação errada do clausulado do contrato que constitui esse título, para além de ter tomado a decisão baseado em factos não existentes e que não foram alegados pelas partes.

D) Deste modo, o Tribunal ad quo excedeu os seus poderes de cognição, violando o princípio do dispositivo disposto no Artigo 5º do CPC.

E) Por essa razão, nunca poderia o douto Tribunal a quo aplicar o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 812º E e do artigo 820º, n.º 1, do antigo CPC.

Nestes termos, conclui, o recurso deve ser julgado procedente e, em consequência, deve ser revogado despacho de indeferimento liminar do requerimento executivo, proferido pelo tribunal a quo, devendo ainda ser substituído por outro que mande prosseguir os trâmites da presente acção até final.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se os documentos juntos aos autos constituem, isolada ou conjuntamente, título executivo bastante para fundamentar a presente execução e se, como tal, é ou não correcta a decisão que julgou extinta a execução com fundamento na falta ou insuficiência de título executivo.   


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III.

Com relevância para a decisão, importa considerar os seguintes factos:

1. Para fundamentar a presente execução, foi junto com o requerimento executivo um documento que, sendo aí designado por “contrato de crédito”, contém a sigla da C... , bem como a assinatura do aqui Executado.

2. Tal documento contém, numa das páginas, aquilo que aí se designa por “condições particulares do crédito clássico” e onde se alude (em quadrículas aí existentes) ao montante do crédito (1.990,00€), ao número de mensalidades (48), ao montante de cada mensalidade (60,85€) e à sua finalidade (financiamento de produtos para o lar).

3. Além da data, do nº do contrato, do nº do parceiro, ali se mencionam também os dados do cliente, a sua situação familiar e profissional, habitação e rendimentos mensais, contendo ainda uma autorização para débito em conta e uma declaração do Executado no sentido de aceitar o contrato, conhecendo as respectivas condições gerais. 

4. O aludido documento, na folha referente às condições particulares, contém a assinatura do Executado, não contendo, no entanto, qualquer outra assinatura.

5. Numa outra página – contendo a assinatura da C... –, o aludido documento contém as condições gerais do contrato de crédito clássico e conta corrente propostas pela C... , cujo teor aqui se dá por reproduzido, e do qual consta designadamente, o seguinte:

…a) Mediante este contrato o Mutuário poderá diferir o pagamento dos bens ou da prestação de serviços discriminados nas condições particulares do contrato de crédito clássico.

O FORNECEDOR é uma empresa com a qual a C... tem um acordo de parceria e que se dedica à actividade de venda à distância de bens ou serviços, oferecendo aos seus clientes a possibilidade de adquirirem esses bens ou serviços com recurso ao crédito C... .

(…)

Esta proposta é válida pelo prazo de 30 dias desde a dala da sua assinatura pelo Mutuário e poderá converter-se em Contrato nos termos seguintes:

(…)

A C... após recepção do exemplar do contrato que lhe é destinado bem como análise e comprovação das informações prestadas pelo Mutuário, reserva-se o direito de confirmar ou recusar a concessão de crédito, considerando-se como data da conclusão do contrato a da comunicação pela C... da autorização de utilização do crédito.

(…)”.

6. Com o requerimento executivo, a Exequente juntou ainda um documento, nos termos do qual a C... declarou ceder à D... os créditos constantes do respectivo anexo 1, onde se inclui um crédito sobre o aqui Executado no montante de 2.093,15€.

7. Encontra-se ainda nos autos uma procuração irrevogável, de 17/01/2011, por via da qual a D... constituiu a Exequente seu procurador para exercer todos os direitos e faculdades relacionados com os activos constantes do anexo I (activos que estão aqui identificados através de um conjunto de números ou códigos e sem qualquer outro elemento que permita a identificação dos aludidos créditos), incluindo o direito de receber, demandar, processar e recuperar (por via judicial ou extrajudicial) o valor e os juros ou quaisquer valores vencidos relativamente a esses créditos.


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IV.

Entrando na apreciação do objecto do recurso, analisemos, em primeiro lugar, as questões incluídas nas conclusões C), D) e E) das alegações, onde se afirma: que “o Tribunal de que se recorre fez uma interpretação errada do clausulado do contrato que constitui esse título, para além de ter tomado a decisão baseado em factos não existentes e que não foram alegados pelas partes”, que “o Tribunal ad quo excedeu os seus poderes de cognição, violando o princípio do dispositivo disposto no Artigo 5º do CPC” e que, “por essa razão, nunca poderia o douto Tribunal a quo aplicar o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 812º E e do artigo 820º, n.º 1, do antigo CPC”.

Antes de mais, importa notar que o Tribunal recorrido não aplicou o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 812º-E e do artigo 820º, n.º 1, do antigo CPC, mas sim as disposições que (com redacção semelhante) lhe correspondem no actual CPC – os arts. 734º e 726º, nº 2, al. a) -, o que fez, aliás, em plena conformidade com o disposto no art. 6º da Lei nº 41/2013, que aprovou o novo CPC.

Dispõe o citado art. 734º, nº 1, que “o juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do art. 726º, o indeferimento liminar ou aperfeiçoamento do requerimento executivo” e, acrescenta o nº 2 “rejeitada a execução ou não sendo o vício suprido ou a falta corrigida, a execução extingue-se, no todo ou em parte”.

Ora, perante o disposto na norma citada, é inquestionável que, até ao momento aí assinalado (momento que, no caso sub judice, ainda não estava ultrapassado), o juiz podia conhecer oficiosamente (independentemente, portanto, de qualquer invocação ou alegação das partes nesse sentido) de qualquer questão que, nos termos da lei, pudesse ter determinado o indeferimento liminar do requerimento executivo, como era o caso da manifesta falta ou insuficiência do título dado à execução.

Não se compreende, portanto, a alegação da Apelante quando afirma que o Tribunal excedeu os seus poderes de cognição, violando o princípio do dispositivo por se basear em factos não alegados pelas partes.

De facto, o Tribunal limitou-se a apreciar uma questão que era do seu conhecimento oficioso e que, não dependendo sequer da alegação de quaisquer factos, se resumiu a apreciar se o título dado à execução apresentava ou não as características de que a lei faz depender a sua exequibilidade. A decisão não se baseou, portanto, em quaisquer factos inexistentes ou não alegados pelas partes; a decisão limitou-se a analisar as características e o teor do documento em que se fundava a execução, verificando a sua conformidade com os critérios legais referentes à sua exequibilidade. E, tendo sido considerado que esse documento não poderia, só por si, constituir título executivo bastante para a execução, foi a Exequente convidada a juntar outros documentos que o poderiam complementar e, porque a Exequente não correspondeu totalmente ao convite, julgou-se extinta a execução em conformidade com o disposto no art. 734º, nº 2, do CPC.

       

O que importa saber – e é essa a única questão que, com relevância, pode ser aqui colocada – é se os fundamentos em que a decisão recorrida se baseou eram ou não susceptíveis de determinar o indeferimento liminar do requerimento executivo, já que, em caso afirmativo, eles poderiam/deveriam ser conhecidos oficiosamente e poderiam/deveriam determinar a extinção da execução, em conformidade com as disposições legais supra citadas.

A decisão recorrida considerou, em primeiro lugar, que o documento apresentado para fundamentar a execução não constitui título executivo em face do disposto no art. 46º, nº 1, c), do anterior CPC (diploma aqui aplicável tendo em conta o disposto no art. 6º, nº 3, da Lei nº 41/2013, de 26/06), já que, e passamos a citar, “…não possui um conteúdo declarativo constitutivo de uma obrigação ou o reconhecimento de uma dívida, apenas fixando uma moldura obrigacional genérica (contrato-quadro) que, mais tarde, poderia efectivamente vincular o signatário (executado) a uma prestação de reembolso e remuneração, ficando tal efeito jurídico dependente da mobilização de capitais que viesse a suceder, em dados quantitativos”, ali se concluindo que “…o documento em causa não corporiza a certeza de aparência sobre a existência da dívida que se pretende executada, estando dependente da comprovação de todo uma outra constelação factual que se encontra a jusante da subscrição do documento e que apenas pode ser discutida (e comprovada) em acção declarativa a tanto dirigida”, mais se referindo que, convidada a exequente a reforçar a instrução documental dos autos com elementos que permitissem complementar o documento que apresentou e permitissem uma representação da titulação executiva dos autos, nada juntou.

Contestando essa argumentação, diz a Apelante que o documento em causa é título bastante, porquanto resulta claro da letra do contrato que a quantia em causa foi entregue ao Executado, aí estando igualmente consignado o prazo da restituição e o valor a devolver. Mais sustenta que “o Executado ficou, obrigado com a assinatura do contrato junto aos autos, a pagar ao Mutuante os valores que viesse a utilizar, acrescido do custo do crédito” e que “não se trata de uma obrigação de efectuar prestações que apenas no futuro se irão constituir”, tratando-se, pelo contrário, “…de uma obrigação de restituir, que se constitui no momento da celebração do contrato, mas apenas se torna exigível e líquida após o montante ser creditado”.

Analisemos, então, a questão.

Como é sabido e como preceitua o art. 45º do anterior CPC – aqui aplicável, como referimos –, toda a execução tem, por base um título, através do qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.

E, enunciando os documentos que podem servir de base à execução e que, como tal, constituem título executivo, dispõe o art. 46º, nº 1, na sua alínea c) – única que releva aqui por ser evidente que o documento aqui em causa não se integra em nenhuma das outras alíneas – que podem servir de base à execução “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.

 O documento dado à execução é, indiscutivelmente, um documento particular que está assinado pelo Executado (pretenso devedor) e, portanto, o que importa saber é se esse documento importa ou não o reconhecimento ou a constituição de uma determinada (ou determinável) obrigação pecuniária.

O aludido documento é um contrato de crédito que, numa das páginas, contém as respectivas condições gerais, sendo que noutra página e a propósito daquilo que se designa por “condições particulares do crédito clássico”, alude ao montante do crédito (1.990,00€), ao número de mensalidades (48), ao montante de cada mensalidade (60,85€) e à sua finalidade (financiamento de produtos para o lar). Além da data, do nº do contrato, do nº do parceiro, ali se mencionam os dados do cliente, a sua situação familiar e profissional, habitação e rendimentos mensais, contendo ainda uma autorização para débito em conta e uma declaração do Executado no sentido de aceitar o contrato, conhecendo as respectivas condições gerais. 

Como vem sendo entendido e como se refere, designadamente, no Acórdão do STJ de 25/01/2011[1], “…o mútuo é, pela sua própria natureza, um contrato real, no sentido de que só se completa com a entrega da coisa…” sendo que o legislador, mantendo-se fiel à doutrina romanista, “…continua a considerar a tradição como um elemento constitutivo do próprio contrato real em si, e não apenas como condição de eficácia do contrato já existente, não se tratando da execução do acordo, do cumprimento da obrigação, mas antes da existência do próprio contrato”.

Isso mesmo referem Pires de Lima e Antunes Varela quando dizem[2] que “…o mútuo é, de sua natureza, um contrato real, no sentido de que só se completa pela entrega (empréstimo) da coisa”, pronunciando-se no mesmo sentido Inocêncio Galvão Telles[3].

Significa isto, portanto, que o acordo de vontades no que toca aos elementos integradores de um contrato de mútuo, ainda que inclua o valor a mutuar e os termos e condições em que se irá processar a sua restituição, é insuficiente para a conclusão do contrato de mútuo e para a constituição da obrigação que dele emerge para o mutuário (de restituição da quantia mutuada), exigindo-se ainda a efectiva entrega da quantia mutuada ao mutuário.

Com efeito, caracterizando os contratos reais, diz Inocêncio Galvão Telles[4], que “…são aqueles para cuja validade se exige, além dos requisitos comuns a todos os contratos, outro que consiste na transferência da posse – na datio rei. Sem essa transferência o contrato não está constituído: não é válido e, portanto, não produz efeitos”, acrescentando mais adiante que “na definição legal destes contratos, mais ou menos nitidamente, transluz a ideia constante de que é necessária à sua válida formação a transferência da posse, de um contraente para outro, do objecto respectivo”. De facto – diz o citado autor – impõe-se ao mutuário a obrigação de restituir mas não se impõe à outra parte a obrigação de entregar, como teria que acontecer se o contrato se formasse antes e independentemente da entrega e, portanto, se a entrega da quantia mutuada não se dá no cumprimento de uma obrigação que a lei não consigna como efeito do contrato, ela operará necessariamente como requisito de validade ou eficácia do acordo celebrado.

  Assim, porque a obrigação a cargo do mutuário só existe se e quando a coisa mutuada lhe for entregue e porque a obrigação de entrega a cargo do mutuante não está definida na lei como obrigação decorrente do contrato, ter-se-á que concluir que o contrato de mútuo apenas se considera concluído com a entrega da coisa ao mutuário e que a obrigação de restituição a cargo deste apenas se constitui no momento em que a coisa lhe for entregue, sendo, para tanto, insuficiente o acordo de vontades relativamente aos elementos integradores do negócio.

  O documento junto aos autos (no qual se baseia a execução), ainda que contenha os elementos integradores de um contrato de mútuo, ali designado como crédito clássico, nem sequer chegará a configurar, só por si, um verdadeiro acordo de vontades, porquanto, como decorre das condições gerais dele constantes, o mutuante, após a recepção da minuta, reservava-se ainda o direito de confirmar ou recusar a concessão do crédito, ali se referindo expressamente que o contrato apenas se considerava concluído com a comunicação pelo mutuante da autorização de utilização do crédito. Dizendo-se expressamente nas aludidas condições gerais que “esta proposta é válida pelo prazo de 30 dias desde a data da sua assinatura pelo Mutuário e poderá converter-se em contrato nos termos seguintes:…”, parece claro que o aludido documento configura apenas uma proposta de contrato que o mutuante poderia aceitar ou recusar, proposta essa que só se converteria em contrato, com a respectiva aceitação por parte do mutuário que seria corporizada na comunicação de autorização de utilização do crédito e a partir da qual o contrato se consideraria concluído (como se diz expressamente nas aludidas condições gerais).

 Ora, o documento em causa não contém, na parte referente às condições particulares, qualquer assinatura do mutuante, não contendo, portanto, qualquer declaração de aceitação da proposta ali efectuada, aceitação essa que seria necessária para que se considerasse formado e concluído um qualquer acordo de vontades no que toca aos elementos integradores de um contrato de mútuo.

Mas, ainda que assim não fosse – e, portanto, ainda que o documento em causa configurasse a efectiva conclusão de um acordo de vontades das partes envolvidas – isso seria insuficiente para que se considerasse concluído o contrato de mútuo e para que se considerasse constituída a obrigação – a cargo do mutuário – de restituir o valor mutuado, já que, como referimos supra, para que tal acontecesse, era ainda necessário que o mutuante entregasse efectivamente ao mutuário a quantia em causa.

Ora, o documento em causa não contém qualquer indicação no sentido de essa quantia ter sido já disponibilizada ao mutuário (aqui Executado) e, ainda que indique o número e o valor das prestações através das quais o mutuário iria proceder à restituição, não contém sequer a data em que teria início o pagamento dessas prestações (o que, aliás, está em conformidade com as condições gerais a que acima aludimos, das quais resultava que o mutuante ainda teria que aceitar a proposta – tendo, naturalmente, a possibilidade de a recusar –, autorizando a utilização do crédito).

Assim, ao contrário do que sustenta a Apelante, o Executado não ficou obrigado, com a assinatura do aludido documento, a pagar ao mutuante os valores que viesse a utilizar. Em primeiro lugar, porque, para que essa obrigação se constituísse era ainda necessário (como resulta expressamente das condições gerais) que o mutuante aceitasse a proposta de celebração do contrato do mútuo e, em segundo lugar, porque era necessário que a quantia em causa fosse efectivamente disponibilizada e entregue ao mutuário. Refira-se que, ao contrário do que afirma a Apelante, nas suas alegações, o documento em causa não evidencia e nem sequer faz presumir que o capital tenha sido entregue ao Executado no momento da assinatura do contrato, porquanto o que dele resulta – designadamente das condições gerais – é que, após essa assinatura, a mutuante ainda teria que aceitar (ou recusar o contrato) e que, só com essa aceitação, seria autorizada a utilização do crédito.

O documento dado à execução não contém qualquer declaração de aceitação da proposta por parte do mutuante que permita concluir pela efectiva formação e conclusão de um acordo de vontades a propósito dos elementos integradores do contrato de mútuo e não contém qualquer indicação de que o valor nele mencionado (1.990,00€) – ou qualquer outro – tenha sido, efectivamente, disponibilizado ao Executado e, como tal, o aludido documento é insuficiente para determinar a constituição da obrigação pecuniária que, por via da presente execução, se pretende exigir ao Executado.

Neste sentido se decidiu, aliás, no Acórdão da Relação do Porto de 19/12/2000[5], em cujo sumário se lê que “um contrato de crédito ao consumo em que não conste que o montante do crédito concedido tenha sido efectivamente entregue ao vendedor não pode servir de título executivo”, bem como no Acórdão da Relação de Coimbra de 17/12/2014[6] e no Acórdão da Relação de Guimarães de 15/09/2014[7].

E, se é certo que o aludido documento não incorpora, só por si, a constituição de qualquer obrigação pecuniária a cargo do Executado, é igualmente certo que não foi junto aos autos qualquer outro documento que, conjugado com o primeiro, permita concluir pela efectiva constituição da obrigação que está aqui a ser exigida. Com efeito, o documento junto com o requerimento executivo que alude aos diversos movimentos efectuados configura apenas um documento que terá sido elaborado pela própria Exequente (para controlo interno das operações e movimentos efectuados ou eventualmente elaborado com vista à junção aos presentes autos) e que não tem qualquer idoneidade para provar a efectiva realização dos movimentos e operações nele retratados e a efectiva disponibilização do capital ao aqui Executado.

Importa notar, por outro lado, que, além de não importar – pelas razões que aduzimos – a efectiva constituição de uma obrigação pecuniária a cargo do Executado, o documento em que se fundamenta a execução também não incorpora uma qualquer declaração deste que possa ser entendida como reconhecimento da existência de tal obrigação (e nem faria sentido que existisse tal declaração, porquanto, como decorre claramente do aludido documento e, designadamente, das condições gerais que nele são exaradas, no momento em que o Executado apôs a sua assinatura, o valor mutuado ainda não lhe havia sido entregue, na medida em que a conclusão do contrato estava ainda dependente de aceitação do mutuante e da autorização que este haveria de conceder para a utilização do crédito).

Concluimos, portanto, que o documento em causa não importa a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação pecuniária da responsabilidade do Executado, pelo que, face ao disposto no art. 46º, nº 1, c), do anterior CPC, não constitui título executivo bastante para a persente execução.

Consequentemente, tendo em conta o disposto no art. 726º, nº 2, a), do actual CPC, havia fundamento para indeferimento liminar e, como tal, nada obstava a que, ao abrigo do disposto no art. 734º do mesmo diploma e até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados, o juiz conhecesse – como conheceu – oficiosamente dessa questão, determinando, com base nela, a extinção da execução (refira-se que a mesma solução resultaria do disposto nos arts. 812º-E, nº1, al. a) e 820º do anterior CPC).

  

Além do mais, importa referir que a extinção da execução – determinada pela decisão recorrida – não se fundou apenas na circunstância de o documento dado à execução não importar a constituição ou reconhecimento de uma obrigação pecuniária.

De facto, a decisão recorrida também se fundamentou na circunstância de os documentos juntos aos autos não demonstrarem que a Exequente fosse a titular do crédito eventualmente emergente do documento dado à execução e sobre essa questão a Apelante não se pronunciou, nas suas alegações.

E a verdade é que, não figurando como credora no título dado à execução, a Exequente também não fez prova – apesar de, para tal, ter sido convidada – de ter sucedido nesse direito.

Com efeito, não obstante ter junto aos autos o contrato de cessão de créditos por via do qual a C... cedeu à D... um conjunto de créditos, entre os quais se incluía o crédito exigido nos autos, conforme anexo ao aludido contrato que, posteriormente, veio juntar aos autos, a verdade é que não juntou aos autos o contrato de cessão de créditos pelo qual a D... lhe teria cedido aquele crédito. Com efeito, na sequência de convite que lhe foi dirigido para fazer prova desses factos, a Exequente apenas juntou aos autos uma procuração irrevogável por via da qual aquela lhe havia conferido poderes para exercer todos os direitos e faculdades relacionados com os activos constantes do anexo I, incluindo o direito de receber, demandar, processar e recuperar (por via judicial ou extrajudicial) o valor e os juros ou quaisquer valores vencidos relativamente a esses créditos, sendo certo, porém, que o aludido anexo (igualmente junto aos autos) não contém, sequer, qualquer elemento ou indicação que nos permita estabelecer a relação entre o crédito exigido na presente execução e algum dos créditos aí relacionados. Serão correctas, portanto, as afirmações que constam da decisão recorrida (e que a Apelante nem sequer questiona no presente recurso) quando diz que: “A exequente, consequentemente, possui poderes para representar D... em actos referentes aos créditos que titula, parecendo ainda ficar integrada no documento uma promessa de cessão de créditos (art. 410.º do CC), mas pelas declarações que se observam no documento não foi transferida a respectiva titularidade, razão por que a putativa posição de credora persiste na esfera jurídica daqueloutra sociedade e inerentemente a função processual de exequente, nesta acção executiva” e quando afirma que “…o anexo junto ao documento (fls. 24-48) em momento nenhum refere o executado, sendo absolutamente inalcançável (como demonstração de titulação executiva) se reportará a uma posição creditícia sobre o demandado nestes autos, uma vez que em nada mais consiste que a enunciação cabalística de cifras e números de código, que, diga-se, se seriam ineptos para, por si só, poderem demonstrar a realidade de um facto num ambiente instrutório de uma acção declarativa, mais notoriamente não certificarão a aparência de direito que sustenta a acção executiva directa contra o devedor nos termos exigidos pelo art. 46.º/1, al. c) do CPC”.

Em face de tudo o exposto, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – O contrato de mútuo – considerado como um contrato real – apenas se considera concluído com a entrega da coisa ao mutuário, pelo que o acordo de vontades no que toca aos elementos integradores desse contrato, ainda que inclua o valor a mutuar e os termos e condições em que se irá processar a sua restituição, é insuficiente para a sua conclusão e para a constituição da obrigação que dele emerge para o mutuário (de restituição da quantia mutuada), obrigação esta que apenas se constitui com a efectiva entrega da quantia mutuada ao mutuário.

II – Assim, o documento que corporiza um acordo de vontades no que toca aos elementos integradores de um contrato de mútuo – definindo o valor a mutuar e os termos em que se irá processar a respectiva restituição – mas do qual não resulte que a quantia foi efectivamente entregue ou disponibilizada ao mutuário não corporiza, só por si, a constituição de qualquer obrigação pecuniária a cargo do mutuário e, se também não contiver uma qualquer declaração deste no sentido de reconhecer uma obrigação já existente, não constitui título executivo.

III – Configurando-se uma situação de manifesta falta ou insuficiência de título executivo que, nos termos do art. 726º, nº 2, a), do actual CPC (812º-E, nº1, a), do anterior CPC), determinaria o indeferimento liminar do requerimento executivo, nada obsta a que, ao abrigo do disposto no art. 734º do actual CPC (820º do anterior CPC), o juiz conheça oficiosamente dessa questão, determinando, com base nela, a extinção da execução, desde que o faça até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida


[1] Proferido no processo nº 4033/05.2TVLSB.L1.S1 e disponível em http://dgsi.pt.
[2] Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed. Revista e Actualizada, pág. 680.
[3] Manual dos Contratos em Geral, 3ª ed., 1965, págs. 380 e 381.
[4] Ob. Cit., pág. 380.
[5] Com o nº convencional JTRP00031057, disponível em http://www.dgsi.pt.
[6] Proferido no processo nº 295/13.0TBPNI-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.  
[7] Proferido no processo nº 1380/12.0TBEPS-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt.