Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
162/11.1TTCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
SENTENÇA PENAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 04/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTº 379º, Nº 1, AL. C) DO CÓD. PROCESSO PENAL; 39º, Nº 4 DO RLCOL (REGIME LEGAL DAS CONTRA-ORDENAÇÕES LABORAIS), APROVADO PELA LEI Nº 107/09, DE 147/09
Sumário: I – Pese embora o nº 2 do artº 10º do D.L. nº 273/07 refira que “o empregador é responsável pelas infracções ao disposto no presente Dec. Lei”, tal não dispensa a verificação de um juízo de imputação subjectiva quer a título de dolo quer a título de negligência, sob pena de se estar a violar a constituição e a lei – artºs 30º, nº 3 e 8º, nº 1 do Dec. Lei nº 433/82, de 27/10.

II – A faculdade conferida pelo nº 4 do artº 39º do novo regime legal das contra-ordenações laborais, aprovado pela Lei nº 107/09, de 14/09 (permitindo ao julgador na elaboração da sentença basear-se em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa) apenas é possível quando dessa simples declaração resulte o cumprimento cabal do dever que sobre o julgador impende de fundamentar as suas decisões quanto aos factos e quanto ao direito.

III – A sentença penal será nula, nos termos do disposto no artº 379º, nº 1, al. c) do C. Proc. Penal, por omissão de pronúncia, quando esteja em causa a apreciação de matéria de facto que o arguido questionou na impugnação da decisão administrativa ou que tenha invocado em sua defesa e no julgamento havido não haja pronunciamento acerca dessa matéria.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Nos presentes autos de recurso de contra-ordenação foi a arguida/recorrente condenada pela ACT (Centro Local da Beira Interior) na coima de € 4.590,00, pela prática, a título negligente, da contra-ordenação tipificada como muito grave p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos arts 2º alínea d), 4º nº 1 e 14º nº 3 alínea a) do DL 237/07 de 19/06 e artigo 554º nº 4 alínea c) do Cód. do Trabalho, com referência aos artigos 1º, 2º e 3º da Portaria 983/07 de 27/08 e 222º nºs 1 e 2 do Cód. do Trabalho/09.


***

II - Inconformada com tal condenação, a arguida dela interpôs recurso para o Tribunal do Trabalho de Castelo Branco, o qual veio a ser julgado totalmente improcedente.

É desta decisão que a arguida agora interpõe recurso para esta Relação, formulando na respectiva motivação as seguintes conclusões:

[…]


+

Respondeu o Ministério Público alegando em síntese conclusiva

[…]


+

A Exmª PGA junto desta Relação entende que o recurso não merece provimento porquanto “a decisão a quo não carece (…) de suprimento da aparente nulidade de que enferma, ex vi artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a) do Cód. Proc. Penal e 41º, nº 1 do RGCO, aprovado pelo Dec. Lei nº 433/82 de 27/10, porque a matéria inerente à prática da conta ordenação e à responsabilidade a recorrente pelo pagamento da coima consta da decisão da autoridade administrativa, por remissão para a proposta que antecede esta, tal como a lei prevê (artigo 39º, nº 4 da Lei nº 107/2009 de 14/09).

Acresce que o recurso para o tribunal a quo, a recorrente questionava apenas a responsabilidade pelo pagamento da coima, alegando que não constavam do auto de notícia factos que a responsabilizassem”


+

Corridos os vistos cumpre decidir.

***

III - É pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, sem prejuízo do conhecimento oficioso das questões que a lei imponha.

A 1ª instância fundamentou a sua decisão, tanto no que concerne aos factos como no que concerne ao direito, da seguinte forma:

“Preceitua o art.º 39.º/4 do COL que o juiz fundamenta a sua decisão, tanto no que respeita aos factos como no que respeita ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, podendo basear-se em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa.

Por outro lado, e como é consabido, aqui, como sucede no processo penal, o objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões (Simas Santos e Leal Henriques, In “Recusros em Processo Penal”, 2.ª edic., pág. 42 e Acs. Supremo Tribunal de Justiça de 16.11.1995 e de 31.01.96, Boletim do Ministério da Justiça 451/279 e 453/338), pelo que por estas nos balizaremos na apreciação e decisão da presente impugnação de decisão de autoridade administrativa.

Donde, concordando inteiramente com a fundamentação de facto e de direito e com a fundamentação subjacente à medida da coima, aduzidas pela entidade administrativa, ao abrigo do mencionado preceito legal (art.º 39.º/4 do COL), aderindo às mesmas, decide-se manter a decisão administrativa nos seus exactos termos.”.

Insurge-se a recorrente quanto a esta forma de decidir porquanto entende padecer a sentença assim proferida do vício de omissão de pronúncia, o que determina a sua nulidade nos termos do disposto no artigo 379º nº 1 alínea c) do Cód. Proc. Penal.

A questão a decidir é, pois, a de saber se a sentença proferida em 1ª instância é nula por omissão de pronúncia.

Em causa nos presentes autos a eventual prática pela recorrente de uma contra ordenação traduzida na falta do livrete individual de controlo destinado à publicidade dos horários dos trabalhadores móveis afectos à exploração de veículos automóveis, não sujeitos ao aparelho de controlo no domínio dos transportes rodoviários, propriedade de empresas de transporte ou privativos de outras entidades sujeitas às disposições do Cód. do Trabalho.

Na defesa que apresentou em sede administrativa nos termos do artigo 17º nº 2 da Lei 107/09 de 14/09 a ora recorrente invocou a nulidade do auto de notícia com base no disposto nos artigos 120º nº 2 al. d) e nº 3 al. c) e 122º nº 1 do Cód. Proc. Penal e artigo 41º do RGCO e Assento do STJ 1/2003 publicado no DR de 25/01/03, em virtude daquele auto e a notificação que lhe foi apresentada estarem elaborados de forma vaga e inconclusiva, não permitindo conhecer efectivamente o seu teor, nem as disposições legais que consubstanciam

Na decisão administrativa para a qual o tribunal a quo remeteu quer quanto aos factos, quer quanto ao direito, deu-se como assente a seguinte factualidade:

a) a arguida tem como objecto essencial da sua actividade o transporte rodoviário de mercadorias.

b) No dia 13 de Julho de 2010, a arguida mantinha em circulação, na EN 352, em Alcains – Castelo Branco, o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula (...), de sua propriedade, conduzido por A..., motorista, que não utilizava o livrete individual de controlo exigido pelo artigo 3º da Portaria 983/2007 de 27/08.

c) No exercício económico de 2009 arguida apresentou u volume de negócios de € 3.861.704,65.

No recurso interposto para o tribunal a quo a recorrente, para além de voltar a invocar a nulidade do auto de notícia, alega em síntese que ao seu trabalhador (motorista) foi ministrado formação de acordo com o processo em vigor na empresa, nos termos do Dec. Lei nº 272/89 de 19/08, RGCEE 561/2006e RGCEE 3820 e 3821 de 1985, cujo manual foi entregue ao condutor; o livrete de registo e controlo é fornecido aos motoristas que conduzem veículos não equipados com aparelhos de tacógrafo: a infracção cometida resultou única exclusivamente do comportamento do condutor, que a recorrente não controla, inexistindo da sua parte qualquer comportamento negligente.

Pese embora o nº 2 do artigo 10º do Dec. Lei nº 273/07 refira que “o empregador é responsável pelas infracções ao disposto no presente Dec. Lei”, tal não dispensa a verificação de um juízo de imputação subjectiva quer a título de dolo quer a título de negligência, sob pena de se estar a violar a constituição, responsabilizando contra ordenacionalmente uma conduta em termos puramente objectivos quando só é punível o facto praticado como dolo ou, nos casos expressamente previstos na lei, com negligência (nº 1 do artigo 8º do Dec. Lei 433/82 de 27/10), sendo que a constituição proíbe expressamente a transmissão da responsabilidade penal e também contra ordenacional (nº 3 do artigo 30º da Constituição da Rep. Portuguesa).

Assim sendo, a matéria alegada pela recorrente e acima em resumo referida é importante para se aferir da responsabilidade da recorrente pela prática da infracção pois dela pode depender a afirmação sobre a verificação do elemento subjectivo dessa mesma infracção.

Ora, o tribunal não se pronunciou sobre a aludida factualidade alegada pela recorrente, limitando-se a remeter para a decisão administrativa onde, embora se tenha considerado ser a conduta da arguida passível de um juízo a título de negligência, não foi levada em conta, nem tinha que ser, a factualidade invocada no requerimento de interposição de recurso para o tribunal de 1ª instância.

É certo que o nº4 do artigo 39º do novo regime legal das contra ordenações laborais, aprovado pela Lei nº 107/09 de 14/09 permite ao julgador na elaboração da sentença basear-se em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa.

Não obstante, o preceito, para além de atribuir apenas uma mera faculdade ao julgador, não pode ser interpretado ou lido isoladamente, ou seja, esquecendo-se o sistema legal e constitucional onde o mesmo se encontra inserido.

Por outro lado, a segunda parte do preceito em referência tem de ser lido em ligação com a sua primeira parte.

Queremos com isto dizer que a declaração de concordância com a decisão condenatória da entidade administrativa apenas será possível quando dessa simples declaração resulte o cumprimento cabal do dever que sobre o julgador impende de fundamentar as suas decisões quanto aos factos e quanto ao direito.

Na verdade, nos termos da Constituição ao arguido assiste o direito de defesa, o direito a um processo equitativo que garanta a sua efectiva realização, e bem assim que as decisões judiciais sejam fundamentadas (cfr artigos 20º nº 1, 3 e 5 e 32º nºs 1, 5 e 10 da Constituição da Rep. Portuguesa.

Ora, no caso, tendo a recorrente alegado na impugnação judicial matéria nova, não tida em conta na decisão administrativa, tendo sido realizado julgamento com produção de prova, a simples remissão para a decisão administrativa viola, na nossa opinião, o direito de defesa da recorrente, não sendo lícito ao tribunal omitir pronúncia sobre os factos que a recorrente alegou em sua defesa, pois é incontroverso que o tribunal tem o dever de se pronunciar sobre todos os factos que, com interesse para decisão, tenham sido alegados pelo recorrente no exercício desse seu direito.

A faculdade concedida pelo nº 4 do artigo 39º do RCCOL terá aplicação, dentro do quadro legal em vigor, se apenas estiver em causa questões de direito, mas nunca quando esteja em causa apreciação de matéria de facto que o arguido questionou na impugnação da decisão administrativa ou que tenha invocado em sua defesa e que seja relevante para decisão por se reportar aos elementos constitutivos da infracção ou a outras questões que tenham a ver com a formulação do juízo sob a sua responsabilidade.

Seria incompreensível que, havendo lugar a audiência de julgamento e produção de prova, o tribunal deixasse de estar obrigado a pronunciar-se e a fundamentar a sua a decisão relativamente aos factos invocados através da simples ou mera remissão para a decisão administrativa.

Aliás, ainda que a decisão tenha sido proferida por despacho, existindo matéria de facto relevante para a decisão, o juiz deverá pronunciar-se sobre a mesma dando-a como provada ou não provada fundamentando esta sua decisão.

Revertendo para o caso o que temos vindo a referir concluímos que a sentença recorrida é, nos termos do disposto no 379º nº 1 alínea c) do Cód. Proc. Penal, nula por omissão de pronúncia.

Este vício não gera a absolvição da recorrente.

Antes implica a anulação da sentença recorrida (alínea b) do nº 2 do artigo 51º do Lei 107/0 de 14/09).

E porque a prova produzida em julgamento perdeu já a sua eficácia (artigo 328º nº 6 do Cód. Proc. Penal, aplicável por força do disposto no artigo 60º da Lei 107/09 e 41º do Dec. Lei 433/82), haverá que repetir o julgamento.


***

IV- Termos em que se delibera julgar o recurso procedente, em função do que se decide anular a decisão impugnada e se ordena a repetição do julgamento, na sequência do qual deve ser proferida sentença dizendo, fundamentadamente, quais os factos alegados pela defesa que julga provados ou não provados, decidindo depois de direito de acordo com o julgamento da matéria de facto

*

Sem custas.

*

Joaquim José Felizardo Paiva (Relator)

Manuela Bento Fialho