Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6202/18.6T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PENSÃO
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
PROVA
ATESTADO DE RESIDÊNCIA
LIVRE APRECIAÇÃO
Data do Acordão: 10/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - SOURE - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 20, 202 CRP, 371, 393 CC
Sumário: 1. - Em ação judicial (de simples apreciação negativa) intentada pela Caixa Geral de Aposentações, no intuito de obter sentença de não reconhecimento de uma relação de união de facto, o atestado de residência e de vida passado por junta de freguesia, afirmando a existência, por mais de sete anos, de vivência em comunhão de mesa e habitação entre o beneficiário falecido daquela Caixa e a ré, não faz prova plena quanto a essa factualidade afirmada.

2. - Assim, esse documento está sujeito à livre apreciação do Tribunal, sendo permitida a produção e valoração de prova testemunhal, ou outra, destinada a mostrar que a união de facto não existiu ou não perdurou por determinado tempo.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:



***

I – Relatório

“CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES, I. P.”, com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa se simples apreciação, com processo comum, contra

M (…), também com os sinais dos autos,

pedindo que seja declarada a (in)existência de uma união de facto entre a R. e R (…) falecido em 16/12/2017.

A R. contestou, pugnando pelo reconhecimento da existência de uma união de facto entre si e o falecido R (…), afirmando ter vivido em comunhão de mesa e habitação com aquele desde o ano de 2007 e até ao dia do respetivo falecimento, com o consequente reconhecimento do direito à pensão de sobrevivência.

Efetuado o saneamento dos autos – tendo sido dispensada a audiência prévia –, com enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova, foi depois realizada a audiência final, com produção de provas, seguida de prolação de sentença, julgando a ação procedente, por provada, com a consequente declaração de não reconhecimento da “vivência em situação de união de facto entre a Ré M (…) e o beneficiário falecido R (…), à data da morte deste”.

De tal sentença vem a R., inconformada, interpor o presente recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões:

«A) No âmbito dos presentes autos, o Tribunal a quo decidiu “Face ao exposto, julgo a acção procedente, por provada e, em consequência, julgo não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a Ré M (…) e o beneficiário falecido R (…), à data da morte deste.”

B) Todavia, a recorrente não pode concordar com tal decisão, uma vez que, a mesma, viola o disposto nos artigos 342.º, 362.º, 370.º, 371.º do Código Civil.

C) Tal decisão, sonegou prova constante dos autos, designadamente, documento nº 4 junto com a contestação apresentada pela recorrente, a saber, certidão da Junta de Freguesia de (...) .

D) Ao actuar dessa forma, o Tribunal, desconsiderou por completo documento autêntico junto pela recorrente, no âmbito da sua contestação, o qual não mereceu qualquer impugnação por parte da requerida.

E) Conforme dispõem os artigos 362.º, 369.º, 370.º e 371.º do Código Civil, tal documento pertence à categoria dos documentos autênticos e faz, por isso, prova plena dos factos atestados.

F) O Tribunal, a seu bel prazer, sem qualquer fundamentação não pode escolher a prova a considerar e a prova a desconsiderar, tal como sucedeu, in casu, ao sonegar na douta Sentença, apreciar a prova feita mediante documento autêntico, junta com a contestação sob doc.4, a qual não foi sequer impugnada.

G) Gerando a nulidade da douta sentença, por violação do disposto nas als. b), c) e d) do nº1 do art.º 615 do CPC.

H) Assim, e considerando o teor do documento nº 4 junto com a contestação (documento autêntico), o qual não foi impugnado, deveria ter sido dado por provado que:

I) - a Ré viveu em comunhão de mesa e habitação com R (…), desde 2007 e até 16 de Dezembro de 2017 (art. 6º da contestação).

J) - a Ré e o falecido R (…) viveram juntos e com residência comum sita (…)  concelho de (...) , distrito de (...) (art. 9º da contestação).

K) - na residência referida, a Ré viveu com R (…) em comunhão de mesa e habitação (art. 10º da contestação).

L) Factos, esses, que deveriam ter sido sopesados na douta decisão proferida, o que daria origem a uma decisão amplamente diversa daquela que consta da douta Sentença.

M) Porquanto, nos termos do estatuído no artº. 343º do CC sendo sobre a recorrente que impende o ónus da prova dos factos constitutivos direito de que se arroga, o qual passa, pois, pelo ónus de demonstrar/provar que à data da morte, vivia com ele em situação de união de facto, isto é, que nessa altura ambos viviam em condições análogas dos cônjuges.

N) E, percorrendo a matéria de facto apurada, considerando toda a prova produzida, facilmente, a nosso ver, se conclui que entre ambos existia uma comunhão de vida, mesa e habitação, susceptível de enformar o conceito jurídico de união de facto.

Termos em que e nos demais de Direito devem V/Exas. julgando o presente recurso procedente, substituir a decisão recorrida por outra que julgue a acção improcedente, por provada, reconhecida e declarada a existência de uma união de facto entre a Ré e R (…)até à data da sua morte, e o consequente reconhecimento do direito à pensão de sobrevivência.

Assim se fazendo JUSTIÇA» (sic, com destaques retirados – fls. 68 e segs. do processo físico).

A A. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

Este foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo ([1]), tendo neste Tribunal ad quem sido mantidos o regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das recursivas conclusões formuladas – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([2]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([3]) –, cabe saber:

a) Se ocorrem as invocadas nulidades da sentença [al.ªs b), c) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPCiv.];

b) Se existiu erro de julgamento em sede de decisão da matéria de facto, obrigando à alteração do decidido;

c) Se, por força da alteração da decisão de facto, deve reverter-se o juízo de procedência da ação, estando verificada a existência de uma relevante relação de união de facto (de acordo com os requisitos legais), justificando o reconhecimento do direito pretendido pela R./Recorrente.


***

III – Fundamentação

A) Das causas de nulidade da sentença

Invoca a Apelante, nas suas conclusões recursivas, que a sentença recorrida incorreu em violação do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ªs b), c) e d), do NCPCiv., pelo que deve ser julgada nula, tratando-se, assim, dos vícios de falta de fundamentação, contradição e omissão de pronúncia [conclusão G) da apelação].

Cabia, por isso, à Apelante, argumentando sobre o tema, mostrar onde se encontram consubstanciados na sentença apelada aqueles vícios geradores de nulidade da mesma, o que devia ser feito mas conclusões da apelação, já que estas, como dito, definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso.

Na verdade, como se retira do disposto no art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv., cabe ao recorrente, nas suas conclusões, indicar os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

Em seguida se verá se o fez, começando-se pela questão da falta de pronúncia sobre questões que o Tribunal devesse apreciar.

1. - Da omissão de pronúncia

Resulta do art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou, inversamente, conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Vêm entendendo, de forma pacífica, a doutrina e a jurisprudência que somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira ([4]), “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”.

E, segundo Alberto dos Reis ([5]), “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.

Já Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes ([6]), por sua vez, referem que “a observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão”, sendo que “por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”.

Por seu turno, Antunes Varela ([7]) esclarece,
em termos de delimitação do conceito de nulidade da sentença, face à previsão do art.º 668.º do CPCiv., que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.

Na nulidade aludida está em causa o uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender conhecer de questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não se tratar de questões de que deveria conhecer-se (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada.

Como já se mencionou, para apuramento quanto ao vício de omissão (ou excesso) de pronúncia cabe perspetivar as questões em sentido técnico, só o sendo os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, só esses constituindo verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer.

Assim, não são, obviamente, questões para este efeito os factos (alegados ou provados), nem os argumentos apresentados pelas partes, nem as razões em que sustentam a sua pretensão ou defesa, nem as provas produzidas, nem a apreciação que delas se faça em termos de formação da convicção do Tribunal.

Ora, dito isto, a Apelante retira – se bem se interpreta o seu acervo conclusivo, sendo que a sua alegação nada mais clarifica – as nulidades que invoca da circunstância de a decisão recorrida ter, a seu ver, “sonegado prova”, tratando-se do “documento nº 4 junto com a contestação (…), a saber, certidão da Junta de Freguesia de (...) ”, assim desconsiderando “por completo documento autêntico junto pela recorrente (…), o qual não mereceu qualquer impugnação por parte da requerida”, e que “faz, por isso, prova plena dos factos atestados” [cfr. conclusões C) a E)].

Complementa que o “Tribunal, a seu bel prazer, sem qualquer fundamentação não pode escolher a prova a considerar e a prova a desconsiderar, tal como sucedeu, in casu” [conclusão F)].

Assim, o vício assacado é o de se ter desconsiderado, no plano probatório, o dito “documento nº 4 junto com a contestação”, tratando-se de “certidão da Junta de Freguesia de (...) ”, visto como “documento autêntico” ao atestar a vivência do falecido R (…) “em comunhão de mesa e habitação com a sua companheira M (…), há mais de sete anos” (cfr. fls. 32 v.º, tratando-se de declaração datada de 13/10/2014) e mesmo, com base na inquirição de duas testemunhas, terem estas declarado que tal comunhão de mesa e habitação (entre aquele R (…) e a aqui R./Apelante) perdurou até ao falecimento do dito R (…) (cfr. fls. 33 a 35), o que também foi ignorado pelo Julgador, daí derivando as ditas omissão de pronúncia, falta de fundamentação e contradição.

Ora, basta ler a decisão recorrida para se verificar que o documento em causa não foi omitido/desconsiderado ou mesmo “sonegado”.

Na verdade consta da sentença, como provado, que:

«6- A Ré juntou ao requerimento a documentação legalmente exigida: certidão de nascimento do falecido, certidão de nascimento de si própria, declaração sob compromisso de honra e declaração emitida pela Junta de Freguesia de (...) atestando que, à data do óbito, residia em união de facto com o falecido há mais de sete anos)».

Quer dizer, consta expressamente dos factos dados como provados que existe nos autos declaração emitida pela Junta de Freguesia de (...) atestando que, à data do óbito, a R. residia em união de facto com o falecido há mais de sete anos.

Assim, em vez de desconsideração do documento ou de qualquer omissão de valoração ou pronúncia, constata-se ter havido pronúncia, dando-se o facto como provado – o de que existe aquela declaração emitida pela Junta de Freguesia de (...) atestando que, à data do óbito, a R. residia em união de facto com o falecido há mais de sete anos.

Não se descortina, pois, neste âmbito, onde possa o Tribunal ter incorrido em omissão de pronúncia.

Acresce – mesmo que assim não se entendesse – que, como visto, a eventual omissão de tomada de posição quanto a factos ou provas não constitui questão para este efeito de nulidade da sentença, sendo que a errada apreciação das provas, a existir, traduz erro de julgamento de facto, a ser objeto de invocação na impugnação da decisão da matéria de facto, mas nunca causa de nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

Assim, tem de concluir-se que o aduzido pela Recorrente não basta para arguir/corporizar a nulidade, que não é de conhecimento oficioso.

Improcede, pois, por não demonstrada, a invocada causa de nulidade por omissão de pronúncia.

2. - Da contradição e falta de fundamentação

Defende ainda a Recorrente que aquele vício assacado configura também contradição e falta de fundamentação da sentença.

Porém, como visto já, o documento não foi desconsiderado e o respetivo facto foi julgado provado, estando, assim, assente que existe nos autos declaração emitida pela Junta de Freguesia de (...) atestando que, à data do óbito, a R. residia em união de facto com o falecido há mais de sete anos.

A norma da al.ª c) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPCiv. reporta-se à oposição entre fundamentos e decisão ou à existência de ambiguidade ou obscuridade geradoras de ininteligibilidade.

Com efeito, dispõe este preceito legal, desde logo, que é nula a sentença quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”. Trata-se, por isso, de contradição resultante de a fundamentação da sentença apontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto ou direção diferente ([8]), inserindo-se no quadro dos vícios formais da sentença, tal como elencados nos art.ºs 667.º e 668.º do anterior CPCiv. ([9]) – hoje art.ºs 614.º e seg. do NCPCiv. –, sem contender, pois, com questões de substância, que, como tais, já se prendem com o mérito, e não com o âmbito formal.

Cabia, pois, a tal Apelante sinalizar/sintetizar, nas suas conclusões, onde se encontra a oposição/contradição, por forma a evidenciar o vício invocado.

Ora, a Apelante limita-se a invocar a dita “sonegação” de prova documental, a qual já se viu não ter ocorrido, sendo que um eventual erro na valoração dessa prova sempre constituiria, não uma contradição geradora de nulidade da sentença, mas um erro de julgamento de facto, para o que a lei faculta o instrumento da impugnação da decisão da matéria de facto, do qual, aliás, a Recorrente também lançou mão, não se vendo, a esta luz, onde possa encontrar-se qualquer oposição/contradição (entre fundamentação, que apontasse num sentido, e decisão/dispositivo, que seguisse caminho diverso).

E o mesmo se diga quanto a qualquer ambiguidade ou obscuridade de que padecesse a decisão, que não vem sinalizada nas conclusões oferecidas.

E ainda que se considerasse haver contradição entre a(s) prova(s) produzida(s) e os factos dados como provados (ou não provados), designadamente no tocante à fundamentação da convicção probatória, tal traduziria – reitera-se – erro de julgamento de facto, a ser objeto de impugnação recursória da decisão da matéria de facto, e não qualquer causa de nulidade da sentença.

Estar-se-ia, então, como é patente, em face de discordância perante o sentido da decisão, no concernente ao julgamento da matéria de facto, e não qualquer contradição, ambiguidade ou obscuridade da sentença.

No mais, deve dizer-se que a sentença se apresenta fundamentada, sendo consabidas as exigências de fundamentação das decisões dos tribunais (cfr. art.º 154.º, n.º 1, do NCPCiv., tal como o antecedente art.º 158.º, n.º 1, do CPCiv./2007), sejam sentenças ou despachos – em termos de fundamentos de facto e de direito respetivos –, a que se reporta o art.º 615.º, n.º 1, al. b), do NCPCiv. (tal como o anterior art.º 668.º, n.º 1, al.ª b), do CPCiv./2007), e cuja violação, uma vez verificada, é causa de nulidade da sentença ([10]), cabendo naturalmente à Recorrente clarificar onde pudesse ter faltado a decisão à fundamentação devida/exigível, em termos de omissão absoluta de fundamentos, o que in casu não ocorreu.

Com efeito, este Tribunal não logra descortinar onde pretendesse a Apelante ocorrer falta de fundamentação da sentença, ou outra causa de nulidade da mesma, sendo que não se trata de matéria de conhecimento oficioso do Tribunal ([11]).

Donde que seja de concluir pela não verificação dos vícios invocados de nulidade da sentença.

B) Da impugnação da decisão da matéria de facto

A Apelante manifesta inconformismo com a decisão da matéria de facto, pretendendo que, diversamente do decidido na 1.ª instância, seja alterada tal decisão, com base no dito documento autêntico (declaração/atestado da Junta de Freguesia de (...) ).

Assim, pretende que os três primeiros factos do factualismo julgado não provado – extraídos, respetivamente, dos art.ºs 6.º, 9.º e 10.º da contestação – sejam agora julgados como provados, passando a assumir o seguinte teor:

- a Ré viveu em comunhão de mesa e habitação com R (…), desde 2007 e até 16 de Dezembro de 2017;

- a Ré e o falecido R (…) viveram juntos e com residência comum sita (…) freguesia e concelho de (...) , distrito de (...) ;

- na residência referida, a Ré viveu com R (…)  em comunhão de mesa e habitação ([12]).

Constata-se, desde logo, que a R./Recorrente nada requereu quanto à restante factualidade dada como não provada, pelo que não impugnou [cfr., quanto aos ónus a cargo do recorrente/impugnante, o disposto no art.º 640.º, n.º 1, mormente a al.ª a), do NCPCiv.] a seguinte factualidade a que o Tribunal a quo conferiu juízo negativo (de “não provado”):

«- que a Ré e R (…) fizessem as refeições juntos, pagassem em conjunto as despesas da casa, recebessem em casa os amigos de ambos, vivendo em plena comunhão de vida, se amparassem e protegessem mutuamente na sua vida quotidiana, se auxiliassem e assistissem mutuamente em caso de doença, comportando-se e agindo reciprocamente como se fossem marido e mulher (art. 10º da contestação).

- que a Ré e R (…) fossem vistos e considerados por toda a gente, nomeadamente pelos vizinhos e amigos, como se fossem marido e mulher (art. 10º da contestação).».

Do mesmo modo, não deixou impugnado o ponto 11 do factualismo julgado provado, com a seguinte formulação: «11- No dia 16 de Dezembro de 2017, a Ré não se deslocou a casa de R (…) e não encontrou o respectivo cadáver (art. 19º da contestação)».

Assim sendo, por não impugnado, sempre seria de considerar definitivo o juízo probatório do Tribunal a quo quanto a ter – como teve – por não provado que a R./Apelante e o aludido Raúl faziam as refeições juntos, pagavam em conjunto as despesas da casa, recebiam em casa os amigos de ambos, vivendo em plena comunhão de vida, amparando-se e protegendo-se mutuamente na sua vida quotidiana, auxiliando-se e assistindo-se mutuamente em caso de doença, comportando-se e agindo reciprocamente como se fossem marido e mulher; e, bem assim, que tais R. e R(…)eram vistos e considerados por toda a gente, nomeadamente pelos vizinhos e amigos, como se fossem marido e mulher ([13]).

E igualmente definitivo o juízo de provado que no dia 16 de Dezembro de 2017, a R. não se deslocou a casa de R (…) e não encontrou o respetivo cadáver, ao contrário do alegado por aquela na sua contestação (cfr. art.º 19.º desse articulado, onde pretendia fazer crer que a situação de “comunhão” perdurou até ao dia do óbito do mencionado Raúl).

O que logo concorreria para afastar – por conflituante/excludente – a inversão do juízo probatório quanto àqueles concretos factos efetivamente impugnados.

Acresce que a Recorrente apenas funda a sua impugnação da decisão da matéria de facto na aludida prova documental, quando é certo que não deixou de arrolar prova testemunhal – o mesmo tendo feito a A. – e que o Tribunal recorrido fundou, em grande parte, a sua convicção em tal prova testemunhal.

Ora, a considerar-se que o dito documento (atestado de junta de freguesia), como documento autêntico, faz prova plena quanto aos factos de suporte da conclusão no sentido da existência de uma relação de união de facto até ao falecimento do unido beneficiário da CGA, impedida ficaria a produção de prova testemunhal sobre a respetiva matéria/factualidade (cfr. art.ºs 393.º, n.º 2, e 394.º, n.º 1, ambos do CCiv.).

O que vale por dizer que não seria admissível, nestes autos, a prova testemunhal nessa parte, quando é certo que o Tribunal recorrido se fundou decisivamente em tal prova por testemunhas – embora em conjugação com as demais provas, documental e por declarações de parte da R. – para formar a sua convicção, tal como espelhada nos factos julgados provados e nos não provados.

Mas valerá o dito atestado de junta de freguesia, nesta esfera judicial, como documento autêntico com o sentido (e extensão) excludente que a Recorrente pretende conferir-lhe?

É que – apreciando – parece dever distinguir-se o plano das relações administrativas (designadamente, para obtenção de prestações, por morte do beneficiário, da CGA) do plano jurisdicional.

Como é sabido, «a função jurisdicional está constitucionalmente atribuída apenas aos tribunais, determinando o art.º 202.º n.º 1 da CRP que os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo. Está prevista nesta norma a denominada reserva da função jurisdicional cujo exercício compete ao juiz», havendo «que ter sempre em consideração o n.º 2 do art.º 202.º da CRP que estabelece: “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.” ([14]).

Ora, se, à luz do art.º 202.º, n.º 2, da CRPort. pode dizer-se que só os atos materialmente jurisdicionais têm de ser praticados por juízes ([15]), também é certo, por outro lado, que os Tribunais, no exercício da dita reserva da função jurisdicional que compete ao juiz, não podem demitir-se de dirimir os conflitos de interesses públicos e privados, esfera que, noutra perspetiva, não pode ser invadida por outros poderes, visto o estrutural princípio da separação de poderes e correspondentes competências exclusivas.

Assim, ainda que o dito documento/atestado pudesse ser visto como documento autêntico para o efeito administrativo que determinou a sua emissão e o seu uso originário, já não poderá ser visto como portador de força probatória plena, na esfera judicial, para o efeito de se terem como demonstrados os factos concretos de suporte da invocada/questionada relação de união de facto (vida em comunhão de mesa e habitação até ao óbito do falecido beneficiário da CGA).

Isto é, sem prejuízo da autenticidade (e força probatória plena) quanto ao que foi exarado pelo “Presidente da Junta” no respetivo “Atestado” – o documento faz prova plena quanto à autoria e teor do ali declarado –, tem que ser permitido à A./Apelada o acesso ao direito e aos Tribunais para defender o seu invocado direito e regular/dirimir o conflito de interesses assim suscitado.

Doutro modo, estaria aberta a porta para uma regulação definitiva desse conflito de interesses, nos termos em que ora conformado, fora da sede própria, a sede judicial, visto que uma tomada de posição (declaração ou decisão) administrativa (no caso, de órgão da Administração Local) encerraria, em si, a decisão definitiva do conflito, através da emissão de um documento, sem, obviamente, qualquer contraditório prévio.

Quer dizer, sem que a aqui A. pudesse defender-se (ou exercer qualquer contraditório), uma entidade administrativa, através de um documento por si emitido, por dotado de força probatória plena, deixaria regulada ex ante a relação jurídica e os interesses em conflito (em termos definitivos), posto que a CGA ficaria impossibilitada de questionar a existência da dita “comunhão de mesa e habitação” até à morte do beneficiário, visto que nem prova testemunhal em contrário poderia apresenta/produzir em juízo – tal como não o pudera fazer na antecedente esfera administrativa – quanto ao cerne fáctico da questão (cfr. o citado n.º 2 do art.º 393.º do CCiv.).

Tal perspetiva colidiria, a nosso ver, não só com o referido exercício da reserva da função jurisdicional que compete ao juiz, como até, na relação inter partes, com o direito (da A./Apelada) de acesso ao direito e aos Tribunais, constitucionalmente consagrado ([16]), designadamente na vertente da proibição da indefesa, e com os princípios da proporcionalidade e adequação inerentes ao Estado de Direito.

Na verdade, seria também desproporcionado e inadequado, à luz dos valores e princípios do sistema (designadamente, com referência à imposição constitucional de um processo justo e equitativo), que a aqui A./Recorrida não pudesse, em juízo (Tribunais cíveis), socorrer-se da prova testemunhal para demonstrar uma realidade fáctica, do âmbito privado, oposta ao conteúdo do dito atestado, o que equivaleria a não poder contradizer, defendendo-se, por ficar amarrada perante um documento administrativo que, sem contraditório, deixaria regulada no essencial, pela sua força probatória plena, uma relação jurídica conflitual entre interesses de partes opostas.

Donde que, cabendo, obviamente, aos Tribunais dirimir o conflito entre as partes, o dito documento não possa, nesta esfera jurisdicional, assumir força probatória plena quanto aos factos aqui discutidos (sua realidade/veracidade), que se prendem com saber se existiu, ou não, a dita comunhão de mesa e habitação, tendente a ilustrar a união de facto entre a R. e R (…) até à morte deste.

Diversamente, esse documento, nesta sua vertente, tem de ser visto em juízo como estando sujeito à livre apreciação do Tribunal ([17]), tal como o estão as provas oralmente produzidas (por depoimentos testemunhais e declarações de parte).

Ora, se esse documento aponta num determinado sentido, já as demais provas – conjugada e criticamente analisadas – apontam em sentido diverso, como explanou o Tribunal recorrido em sede de fundamentação da convicção, onde foi exarado, sem impugnação da Recorrente (a qual nada disse sobre estas provas e decorrente convicção judicial), o seguinte:

«A testemunha (…), filha de (…) e neta do falecido R (…) afirmou ter conhecimento de que a Ré teve uma relação amorosa com o avô, que começou em 2011/2012, mas que nunca estiveram a viver na mesma casa. A R. vivia em (...) , nunca tendo deixado a casa dela, e o avô na aldeia de (...) . Mais referiu que a R. passava algumas noites em casa do avô, tendo visto algumas roupas dela lá, mas não era todos os dias. A relação durou até Junho/Julho de 2016, porque a queixa apresentada na GNR data de Agosto desse ano. Pensa que o avô morreu de morte súbita, sozinho. Quando foi encontrado estava morto há, pelo menos, 3 dias.

A testemunha (…), filho do falecido R (…) afirmou conhecer a Ré, entre outras mulheres com as quais o seu pai teve um relacionamento sexual, pois eles não viviam juntos: ela vivia em (...) e ele em (...) . Pernoitavam em casa um do outro, mas nunca tiveram contas conjuntas, partilha de despesas e ela nunca teve acesso à chave de casa dele. Após a queixa-crime, não houve qualquer reatamento. Quatro dias antes de a família encontrar o corpo do falecido R(…), o mesmo tinha-se sentido mal e ido ao hospital, tendo regressado a casa de ambulância; a Ré nem sabia que ele tinha morrido.

O próprio relato da Ré, ouvida em declarações de parte, de que ela e R (…) dormiam sempre juntos, quer em casa dele, quer em casa dela, é incoerente com a circunstância de o mesmo ter sido encontrado morto três dias depois do óbito e de a Ré ter tido conhecimento do mesmo através de terceiro (que referiu ter sido a testemunha (…). E que revela a falsidade do afirmado no art. 19º da contestação: ter sido a Ré a encontrar o cadáver de R (…)

Assim, além da própria Ré, nenhuma testemunha – nem as arroladas pela Ré – revelou saber que a Ré e R (…) retomaram a relação amorosa após a queixa-crime de Dezembro de 2016, ou que a mantinham, à data do óbito. M (…) que foi vizinha da Ré desde 2012, afirmou que conheceu R (…) “por andar com a (…)”, desconhecendo, porém, se reataram a relação depois da queixa-crime, pois pouca convivência tinha com ela e nenhuma com ele.

De resto, ainda que assim fosse, a natureza da referida relação nunca assumiu contornos de analogia à dos cônjuges. Efectivamente, ninguém, além da própria Ré, afirmou que tomavam refeições juntos; a própria Ré afirmou que cada um pagava as suas despesas de casa; a própria Ré, ao afirmar que viviam, ora numa casa, ora noutra – “por vezes vivíamos na minha casa, por vezes na dele” – parece confundir os conceitos de residir com o de pernoitar. Até a testemunha M (…), que partilhava casa com a Ré, afirmou que a relação deles “era mais como namorados, do que como marido e mulher”.

Apesar do alegado no art. 10º da contestação, a Ré e R (…) não recebiam em casa (em nenhuma das casas) os amigos de ambos (que se desconhece se existiam), não agindo reciprocamente como se fossem marido e mulher e como tal não eram vistos e considerados por ninguém. Efectivamente, a Ré não arrolou nenhuma pessoa que afirmasse que a relação de ambos tivesse essa natureza, possivelmente, porque não tinha.

Quanto aos demais factos que mereceram resposta negativa tal resultou da ausência de prova sobre essa factualidade, pela parte à qual a mesma incumbia, atentas as regras do direito probatório material.».

Como dito, a R., confiada na pretendida força probatória plena – também quanto à realidade dos factos de suporte da conclusão pela verificação de uma relação de união de facto (“comunhão de mesa e habitação”) – do discutido “Atestado”, nem se preocupou com as provas oralmente produzidas, mormente os mencionados depoimentos testemunhais (foram ouvidas quatro testemunhas, duas arroladas pela A. e outras duas pela R.), não alargando até aí a sua impugnação da decisão de facto.

Assim, por não impugnada a decisão da matéria de facto na parte em que a convicção do Julgador se fundou nessas provas, não cabe à Relação reapreciá-las, antes havendo de se conformar com esse material probatório e com a leitura que dele fez o Tribunal recorrido ([18]).

Resta, então, concluir que, afastada a força probatória plena, quanto à realidade/veracidade dos factos concretamente impugnados no recurso, do documento em que exclusivamente se suporta a Apelante, estando esse documento sujeito, nesta vertente, à livre apreciação do Tribunal, tal como toda a demais prova produzida, tem a impugnação empreendida fatalmente de improceder, por deixar intocada toda a restante prova em que a 1.ª instância baseou, de forma decisiva, a sua convicção.

Isto é, não abrangendo o recurso as ditas provas oralmente produzidas e tendo estas sido relevantes – até decisivas – para a formação da convicção do Julgador, não se mostra que este tenha incorrido em qualquer erro de julgamento de facto, consabido que a Relação, em autónoma convicção, só deve “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (cfr. art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv., com itálico aditado), o que não é o caso.

Em suma, improcede a impugnação da decisão da matéria de facto, tornando-se definitivo o quadro fáctico da sentença recorrida.

C) Da matéria de facto

1. - É a seguinte a factualidade provada a considerar para a decisão:

«1- R (…) faleceu em 16 de Dezembro de 2017, no estado civil de divorciado (vd. assento de óbito de fls. 11).

2- A Ré nasceu em 18-09-1951 (vd. assento de nascimento de fls. 9).

3- A Ré casou com A (…) em 18 de Setembro de 1971 e o casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 4 de Fevereiro de 2013, transitada na mesma data, proferida pelo Tribunal de Soure (vd. assento de nascimento de fls. 9).

4- Em data não concretamente apurada, R (…) e a Ré encetaram um relacionamento amoroso, pernoitando alternadamente em casa de um e do outro, que perdurou até data não concretamente apurada.

5- Em 12 de Março de 2018, a Ré, na qualidade de companheira do falecido, habilitou-se à pensão de sobrevivência junto da A. (art. 2º da p.i.). (Doc.1)

6- A Ré juntou ao requerimento a documentação legalmente exigida: certidão de nascimento do falecido, certidão de nascimento de si própria, declaração sob compromisso de honra e declaração emitida pela Junta de Freguesia de (...) atestando que, à data do óbito, residia em união de facto com o falecido há mais de sete anos (art. 3º da p.i.). (Doc.1)

7- Em 27 de Dezembro de 2017, J (…) requereu o reembolso das despesas de funeral (art. 4º da p.i.). (Doc.2)

8- Em 15 de Maio de 2018 foi enviado ofício a J (…) a solicitar o esclarecimento sobre o motivo pelo qual, aquando o pedido de reembolso das despesas de funeral, informou não existirem familiares com direito a prestações familiares (art. 5º da p.i.). (Doc.3).

9- Por exposição de 28 de Maio de 2018, I (…), na qualidade de filha e procuradora de J (…) veio informar a Caixa Geral de Aposentações do seguinte:

 “(…) à data da morte do meu avô R (…) e desde 2016 o mesmo vivia sozinho, tendo sido encontrado morto em casa, onde já estaria há vários dias.

Mais declara que é do nosso conhecimento que o meu avô manteve uma relação amorosa com a (…), mas que a mesma havia terminado em meados de 2016, conforme comprovam cópias de participação e autos de interrogatório na GNR de (...) ” (art. 6º da p.i.). (Doc.4)

10- À referida exposição foi junto cópia da denúncia apresentada pela Autora junto do Posto Territorial de (...) da GNR e, na qual, entre outros, foram relatados os seguintes factos:

“A denunciante deslocou-se a este posto policial, dando conhecimento de se ter deslocado à residência do denunciado, em virtude de ter vivido com o mesmo cerca de um ano na residência dele e terem ficado lá alguns bens pertença da denunciante, um jogo de lençóis e um edredom.” (art. 7º da p.i.). (Doc.4)

11- No dia 16 de Dezembro de 2017, a Ré não se deslocou a casa de R (…) e não encontrou o respectivo cadáver (art. 19º da contestação).».

2. - E resulta julgado não provado:

«- que a Ré tenha vivido em comunhão de mesa e habitação com R (…) desde 2007 e até 16 de Dezembro de 2017 (art. 6º da contestação).

- que a Ré e o falecido R (…) tenham vivido juntos e com residência comum sita no (…) freguesia e concelho de (...) , distrito de (...) (art. 9º da contestação).

- que na residência referida, a Ré tenha vivido com R (…) em comunhão de mesa, leito e habitação (art. 10º da contestação).

- que a Ré e R (…) fizessem as refeições juntos, pagassem em conjunto as despesas da casa, recebessem em casa os amigos de ambos, vivendo em plena comunhão de vida, se amparassem e protegessem mutuamente na sua vida quotidiana, se auxiliassem e assistissem mutuamente em caso de doença, comportando-se e agindo reciprocamente como se fossem marido e mulher (art. 10º da contestação).

- que a Ré e R (…) fossem vistos e considerados por toda a gente, nomeadamente pelos vizinhos e amigos, como se fossem marido e mulher (art. 10º da contestação).».


***

D) O Direito

Insiste a R./Apelante, escudada na procedência da sua impugnação da decisão da matéria de facto e consequente alteração do quadro fáctico da sentença, que devem considerar-se verificados os requisitos de que depende a conclusão no sentido da existência da invocada relação de união de facto, traduzida numa duradoura “comunhão de vida, mesa e habitação”.

Assim, nada censurou, concretamente, em termos de aplicação do direito, em sede de fundamentação jurídica da sentença, apenas invocando que a visada alteração do quadro fáctico (com passagem de factos relevantes do elenco dos não provados para o dos provados) teria de implicar “uma decisão amplamente diversa daquela que consta da douta Sentença” [cfr. conclusões L) e segs.], isto é, obrigaria à improcedência da ação, como peticionado no recurso.

Porém, como visto, falhou esse pressuposto recursivo, quedando-se inalterada a matéria de facto julgada provada e a não provada.

Donde que, ante o quadro fáctico definitivamente provado (e o não provado) – o único a considerar –, apenas reste concluir, sem considerações de direito ([19]), como na decisão recorrida, onde se exarou que:

«No caso dos autos, não se está perante uma situação de união de facto.

Efectivamente, embora em datas não concretamente delimitadas R (…)e a Ré tivessem relações sexuais e pernoitassem alternadamente em casa um do outro, nenhum traço característico de uma relação conjugal se consegue retirar daquela relação. Nem sequer a dedicação, auxílio, acompanhamento mútuo se provaram, não podendo tal relacionamento (que, ainda para mais, se acredita que já não existia à data do óbito saquele) caracterizar-se como revestindo as características que o tornavam “análogo ao dos cônjuges”.».

Com efeito, apenas se apurou, quanto ao que importa, “um relacionamento amoroso (…) até data não concretamente apurada” (facto provado do ponto 4.).

Tendo, por outro lado, resultado não provada a invocada vivência em comunhão de mesa e habitação (desde 2007 e até 16/12/2017), que a R. e o falecido tenham vivido juntos e com residência comum, que nessa residência a R. tenha vivido com aquele em comunhão de mesa, leito e habitação, fazendo as refeições juntos, pagando em conjunto as despesas da casa, recebendo ali os amigos de ambos, vivendo em plena comunhão de vida, amparando-se e protegendo-se mutuamente na vida quotidiana, auxiliando-se e assistindo-se em caso de doença, em suma, comportando-se e agindo reciprocamente como se fossem marido e mulher, ou, por fim, que ambos fossem vistos e considerados por toda a gente como se marido e mulher fossem um do outro.

Termos em que, e salvo sempre o devido respeito, nada haverá a alterar à decisão da 1.ª instância, a dever, por isso, ser confirmada, assim improcedendo a apelação.

                                                 ***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Em ação judicial (de simples apreciação negativa) intentada pela Caixa Geral de Aposentações, no intuito de obter sentença de não reconhecimento de uma relação de união de facto, o atestado de residência e de vida passado por junta de freguesia, afirmando a existência, por mais de sete anos, de vivência em comunhão de mesa e habitação entre o beneficiário falecido daquela Caixa e a ré, não faz prova plena quanto a essa factualidade afirmada.

2. - Assim, esse documento está sujeito à livre apreciação do Tribunal, sendo permitida a produção e valoração de prova testemunhal, ou outra, destinada a mostrar que a união de facto não existiu ou não perdurou por determinado tempo.

                                                 ***

V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na improcedência da apelação, em manter a sentença impugnada.

Custas da apelação pela R./Recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 08/10/2019

         

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo (1.º Adjunto)

Fernando Monteiro (2.º Adjunto)


([1]) Considerou ainda o Tribunal a quo inexistirem as nulidades da sentença invocadas pela Recorrente.
([2]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([3]) Com entrada em vigor em 01/09/2013 (cfr. art.ºs 1.º e 8.º, ambos daquela Lei n.º 41/2013).
([4]) Cfr. “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9.ª ed., p. 57.
([5]) Vide “Código de Processo Civil, Anotado”, vol. V, p. 143.
([6]) In “Dos Recursos”, Quid Júris, p. 117.

([7]) Cfr. “Manual de Processo Civil”, p. 686.
([8]) Assim o Ac. STJ, de 14/01/2010, Proc. 2299/05.7TBMGR.C1.S1 (Cons. Oliveira Vasconcelos), com sumário disponível em www.dgsi.pt.
([9]) Cfr., por todos, o Ac. STJ, de 23/05/2006, Proc. 06A1090 (Cons. Sebastião Póvoas), em www.dgsi.pt.

([10]) É pacífico o entendimento de que a fundamentação insuficiente ou deficiente da sentença não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, mas apenas a falta absoluta da respetiva fundamentação. Com efeito, a causa de nulidade referida na al. b) do n.º 1 do dito art.º 668.º (atual art.º 615.º do NCPCiv.) ocorre quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido, mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão, violando o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (cfr. art.º 208.º, n.º 1, CRPort., e art.º 158.º, n.º 1, do CPCiv. aplicável). Como refere, a este propósito, Teixeira de Sousa – cfr. “Estudos  sobre o Processo Civil”, pág. 221 –, “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”. Também Lebre de Freitas – cfr. Código de Processo Civil, pág. 297 – esclarece que “há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”. Por sua vez, Alberto dos Reis já ensinava – cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140 – que deve distinguir-se “a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
([11]) A nulidade da sentença, não sendo cominada pela lei como insanável, tem de ser invocada pelas partes, não sendo de conhecimento oficioso – assim, por todos, o Ac. STJ, de 07/07/1999, Proc. 99B536 (Cons. Simões Freire), tal como o anterior Ac. STJ, de 07/12/1995, Proc. 086843 (Cons. Sá Couto), ambos com sumário em www.dgsi.pt.
([12]) Tendo em conta que foi dado como não provado:
“- que a Ré tenha vivido em comunhão de mesa e habitação com R (…), desde 2007 e até 16 de Dezembro de 2017 (art. 6º da contestação).
- que a Ré e o falecido R (…) tenham vivido juntos e com residência comum sita (…), freguesia e concelho de (...) , distrito de (...) (art. 9º da contestação).
- que na residência referida, a Ré tenha vivido com R (…) em comunhão de mesa, leito e habitação (art. 10º da contestação).
- que a Ré e R (…) fizessem as refeições juntos, pagassem em conjunto as despesas da casa, recebessem em casa os amigos de ambos, vivendo em plena comunhão de vida, se amparassem e protegessem mutuamente na sua vida quotidiana, se auxiliassem e assistissem mutuamente em caso de doença, comportando-se e agindo reciprocamente como se fossem marido e mulher (art. 10º da contestação).
- que a Ré e R (…) fossem vistos e considerados por toda a gente, nomeadamente pelos vizinhos e amigos, como se fossem marido e mulher (art. 10º da contestação).” (itálico aditado).
([13]) Factualismo – alegado – tendente a demonstrar a dita vida em “comunhão de mesa e habitação”.
([14]) Assim foi exarado no Ac. TRP de 26/04/2018, Proc. 9995/17.4T8VNG-A.P1 (Rel.            Inês Moura), disponível em www.dgsi.pt.
([15]) Cfr. Ac. por último citado.
([16]) Dispõe o art.º 20.º da CRPort. que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (n.º 1) e que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo (n.ºs 4 e 5).
([17]) Como referem Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (em Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 63), embora possa «admitir-se que a junta de freguesia da residência dos interessados passe atestado comprovativo de que uma pessoa vive ou vivia em união de facto com outra», o certo é que, «Não se tratando, porém, normalmente, de facto atestado “com base nas percepções da entidade documentadora” (art. 371.º, n.º 1, CCiv), o documento não faz prova plena, podendo provar-se que o facto não é verdadeiro, pois a união de facto não existiu ou não existiu durante determinado período.» (itálico aditado).
([18]) Se a Recorrente não chamou à colação qualquer das provas oralmente produzidas, também, naturalmente, não cumpriu, nessa parte, nem nas conclusões nem na antecedente alegação recursiva, os ónus a que aludem os n.ºs 1, al.ª b), e 2, al.ª a), do art.º 640.º do NCPCiv., o que sempre impediria a reponderação quanto a essas provas não objeto de impugnação.
([19]) Que seriam inúteis, atenta a correta fundamentação jurídica da sentença, a que a Recorrente não fez reparo e que se dá aqui por reproduzida.