Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
459/10.8T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PRESTAÇÃO SOCIAL
ALTERAÇÃO LEGISLATIVA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 03/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI N.º 23/2010, DE 3º DE AGOSTO E ALÍN. E) DO ART.º 287.º DO CPC
Sumário: I – A Lei n.º 23/2010, de 3º de Agosto, ao alterar o regime relativo à protecção social na eventualidade morte, a favor do membro sobrevivo da união de facto, dispensando a necessidade de alimentos e a prova de não poder obtê-los das pessoas legalmente obrigadas a prestá-los e da prova desse direito mediante sentença judicial, revogou tacitamente os art.ºs 3.º e 5.º do DR n.º 1/94, de 18 de Janeiro;

II – As alterações decorrentes dessa lei são de aplicação imediata à situação jurídica de união de facto constituída à data da sua entrada em vigor, porque ainda subsistentes os seus efeitos;

III – Porque esse diploma legal dispensou a necessidade de sentença judicial para a autora comprovar o seu direito a alimentos, o presente processo, que a isso tendia, tornou-se supervenientemente inútil, impondo a respectiva extinção da instância, nos termos da alín. e) do art.º 287.º do CPC.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

            A..., viúva, propos contra o Instituto da Solidariedade e Segurança Social, IP (ISS)/CNP acção declarativa de simples apreciação positiva com forma de processo ordinário, com vista à declaração do reconhecimento da titularidade de prestações por morte de B..., com quem viveu em união de facto, no âmbito do regime da segurança social, previstas no DL n.º 322/90, de 18.10, no Dec. Regulamentar n.º 1/94, de 18.1 e alín. e) do art.º 3 e art.º 6.º da Lei n.º 7/2001, de 11.5.

            Para tanto, alegou que em 7.11.07 faleceu B..., no estado de divorciado, com quem viveu desde 2001, na mesma habitação, partilhando a mesma cama, relacionando-se afectiva e sexualmente, tomando as refeições em conjunto, passeando e saindo juntos, tendo o mesmo círculo de amigos, cada um contribuindo para as despesas domésticas e cuidando um do outro na doença, vivendo, em suma, como se de marido e mulher se tratasse, não tendo, por outro lado, cônjuge nem descendentes, ascendentes ou irmãos, que lhe possam prestar os alimentos de que carece, nem o falecido deixou bens hereditários.

            Citado, contestou o R., fundamentalmente impugnando a factualidade alegada.

            Foi proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e a controvertida, que não foi objecto de reclamação.

            Instruído o processo e face à entrada em vigor da Lei n.º 23/2010, de 30.8, que veio tornar desnecessária a acção judicial como meio de prova para o pedido em causa, foi proferida decisão a julgar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide e determinado o arquivamento dos autos.

            Inconformado, recorreu o R., apresentando alegações com extensas conclusões que, com utilidade, podem resumir-se nas seguintes:

            a) – A morte do beneficiário ocorreu em 7.11.07 e, por isso, a legislação aplicável é a anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30.8;

            b) – Em consequência, cabe à A. a prova da necessidade de alimentos, da incapacidade dos bens da herança em lhe prestar alimentos por insuficiência ou inexistência e a impossibilidade de os obter dos familiares referidos nas alíns. a) a d) do n.º 1 do art.º 2009.º do CC;

            c) – A sentença recorrida violou as disposições conjugadas dos art.ºs 8.º do DL n.º 322/90, de 18.10, 1.º e 3.º do DR n.º 1/94, de 18.1, 6.º da Lei n.º 7/01, de 11.5 e 2020.º do CC, por estar em causa um evento morte ocorrido antes da entrada em vigor da nova lei da união de facto, sendo que à data da entrada em vigor deste diploma a relação jurídica se extinguiu com o óbito do companheiro da A., facto (óbito) ocorrido em momento anterior à entrada em vigor da Lei n.º 23/10, de 30.8, que, assim, é aplicável por força do disposto no art.º 12.º, n.º 1, do CC.

            A A. recorrida respondeu no sentido da confirmação do decidido.

            Dispensados os vistos, cumpre apreciar, sendo que a única questão a decidir consiste em:

            - Saber se a Lei n.º 23/2010, de 30.8, entrada em vigor na pendência da acção (4.9.10), determinou ou não a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

            Vejamos.


*

2. Fundamentação

            2.1. De facto

            A factualidade relevante é a que acaba de descrever-se no antecedente relatório, para onde se remete.


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2.2. De direito

A necessidade da presente acção radicou no art.º 3.º do DR n.º 1/94, de 18.1 com a redacção dada pelo art.º 2.º do DL n.º 153/08, de 6.8, ao dispor, no n.º 1, que a atribuição das prestações por morte à pessoa que viveu em união de facto com o beneficiário da segurança social há mais de 2 anos e entretanto falecido, fica dependente de sentença judicial que lhe reconheça o direito a alimentos ou, na falta ou insuficiência de bens da herança do beneficiário, a qualidade de titular do direito a alimentos, nos termos do disposto no art.º 2020.º do CC.

Esse direito emergia, por sua vez, do n.º 1 do art.º 8.º do DL n.º 322/90, de 18.10 e dos art.ºs 3.º, alín. e) e 6.º, da Lei n.º 7/01, de 11.5.

Sintetizando o fundamental, esse regime jurídico pressupunha que para que o membro sobrevivo da união de facto pudesse beneficiar de pensão de sobrevivência por morte do companheiro, deveria propor acção de simples apreciação contra a herança e contra a segurança social ou só contra esta no caso de insuficiência ou inexistência de bens hereditários, onde por sentença lhe fosse reconhecido:

a) – A existência da união de facto por mais de 2 anos à data da morte do beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens;

b) – Que o sobrevivo carecia de alimentos;

c) – Que os não podia obter dos vinculados nas alín.s a) a d) do n.º 1 do art.º 2009.º do CC.

Em 4.9.10 entrou em vigor a Lei n.º 23/2010, de 30.8, dela resultando que o membro sobrevivo da união de facto, agora independentemente do sexo:

a) – Já não necessita da sentença judicial para comprovar a união de facto, bastando-lhe, para tanto, qualquer meio de prova, mormente documento da junta de freguesia a atestar a residência há mais de 2 anos e declaração do interessado sob compromisso de honra de que tal ocorria em união de facto, certidão de registo de nascimento sua e certidão de óbito do falecido (n.ºs 1 e 4 do art.º 2.º-A aditado à Lei n.º 7/01);

b) – Foram eliminados os requisitos da necessidade de alimentos e da prova da não obtenção das pessoas legalmente obrigadas à sua prestação (nova redacção dada ao n.º 1 do art.º 6.º da Lei n.º 7/01).

O n.º 2 do art.º 6.º da Lei n.º 7/01 ressalvou, contudo, a possibilidade de a segurança social, face às dúvidas fundamentadas sobre a existência da união de facto poder propor acção judicial com vista à sua comprovação.

Isso, no caso, apenas, de a união de facto não ter durado mais de 4 anos (idem, n.º 3).

Foi perante essa alteração do quadro legislativo que o tribunal a quo considerou imediatamente aplicável à situação da A., nos termos da parte final do n.º 2 do art.º 12.º do CC e com base nele entendeu desnecessária e inútil a presente acção, por isso julgando extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.

A questão é controversa, conforme se comprova pelos divergentes acórdãos proferidos por esta Relação[1], com uma ou outra nuance de cindir, na aplicação da lei nova, as alterações de ordem substantiva ou processual.

Confrontados os argumentos, afigura-se-nos curial a aplicação ao presente processo da lei nova e sufragar, assim, o entendimento da 1.ª instância.

O ponto fulcral das alegações radica na consideração de ser o óbito do beneficiário o factor determinante da aplicação da lei no tempo. Se ocorrido antes de 4.9.10, a lei antiga, se após, a lei nova.

Daí que, dispondo a lei só para o futuro (art.º 12.º, n.º1, do CC), ao presente caso se aplica a lei antiga, pelo menos quanto aos requisitos substantivos do direito às prestações e inerente ónus da prova.

Não o entendemos assim.

Preceitua a 2.ª parte do n.º 2 do art.º 12.º do CC que quando a lei dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entende-se que a lei abrange as próprias relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor, o mesmo é dizer, aplica-se-lhes imediatamente a lei nova.

E é assim dado o interesse em ajustar as situações às novas concepções e valorações da comunidade e do legislador e manter a unidade do ordenamento jurídico, posta em causa pela subsistência de situações jurídicas duradouras de igual conteúdo, parte das quais regidas por lei ab-rogada.[2]

Ora, voltando ao caso dos autos e tal como entendido nos citados acórdãos desta Relação de 23.2.11, não é o óbito do beneficiário que vivia com o sobrevivente da união de facto que fundamenta o direito deste à pensão social em causa. É antes a situação da união de facto, em si mesma considerada, prolongada por mais de 2 anos.

A morte apenas desencadeia o exercício do direito.

Ora, pese embora a situação de a união de facto se haver constituído e perdurado no âmbito do antigo regime jurídico, subsiste ainda à data da entrada em vigor da nova lei 23/10 e continua desde que o pensionista não contraia casamento (art.º 41.º, alín. a) do DL n.º 322/90), lei que dispensa os requisitos substanciais (necessidade de alimentos e prova de não poderem ser obtidos pelos obrigados legais) e formais (sentença comprovativa da união de facto) para a concessão do direito às prestações sociais.

A situação jurídica em causa e com base no paralelo do “direito a alimentos entre pessoas ligadas por uma relação de parentesco”, conforme lição de Baptista Machado[3], reporta-se a factos que mesmo situados no passado, hão-de ser considerados factos do presente, sujeitos, por isso, à lei nova.

Isso permite justificar não só a inutilidade das acções pendentes, como a impertinência de propositura de novas acções com base na lei antiga ab-rogada (em especial art.ºs 3.º e 5.º do DR e anterior redacção da Lei n.º 7/01) relativamente a uniões de facto e óbitos ocorridos antes da entrada em vigor da lei nova n.º 23/10, obviamente se ressalvando as situações apreciadas mediante decisões transitadas em julgado.

A agilidade ou maior facilidade na concessão das prestações sociais em causa por que o legislador optou na lei nova, num crescente reconhecimento dos direito das uniões de facto, a par, quase, do casamento, é factor não despiciendo na sua aplicação imediata aos processos pendentes, como, agora em sede interpretativa, essa se nos afigura ter sido a vontade real do próprio legislador (art.º 9.º do CC), o que, por si, e sem prejuízo do exposto, prejudica qualquer exercício de aplicação no tempo do diploma em causa.

Com efeito, embora a sua publicação não tenha sido acompanhada de qualquer exposição de motivos, cremos que as alterações se inserem num movimento legislativo mais amplo de desjudicialização de matérias não consubstanciadoras de verdadeiros litígios, mais ligadas à justiça social, ou a um pragmatismo que os novos tempos reclamam, que à função jurisdicional própria dos tribunais.[4]

Conclui-se de todo o exposto que nenhuma utilidade tem prosseguir com o presente processo, sendo artificioso considerar que deva continuar para oportunamente ser aplicada a parte substantiva da Lei n.º 23/10 (dispensa da necessidade de alimentos e prova de não poder obtê-los dos obrigados legais) ou para ser apreciada a situação de união de facto por mais de 2 anos com vista a acautelar futura acção, da segurança social, desse modo se defendendo o interesse da autora.

No caso em apreço esta, devidamente patrocinada, conformou-se expressamente com a extinção da instância e arquivamento dos autos e quanto à hipotética acção da segurança social, referida agora no mencionado n.º 2 do art.º 6.º da Lei n.º 7/01 é de outra acção que se trata:

- Não pode ser proposta caso a união de facto tenha durado mais de 4 anos (idem, n.º 3) e o ónus da prova, que antes assentava na autora candidata ao benefício, pertencerá, doravante, à própria segurança social, como assim ela própria sustenta nas alegações recursivas.

Eis por que se formula síntese conclusiva, em jeito de sumário imposto pelo n.º 7 do art.º 713.º do CPC:

I – A Lei n.º 23/2010, de 3º de Agosto, ao alterar o regime relativo à protecção social na eventualidade morte, a favor do membro sobrevivo da união de facto, dispensando a necessidade de alimentos e a prova de não poder obtê-los das pessoas legalmente obrigadas a prestá-los e da prova desse direito mediante sentença judicial, revogou tacitamente os art.ºs 3.º e 5.º do DR n.º 1/94, de 18 de Janeiro;

II – As alterações decorrentes dessa lei são de aplicação imediata à situação jurídica de união de facto constituída à data da sua entrada em vigor, porque ainda subsistentes os seus efeitos;

III – Porque esse diploma legal dispensou a necessidade de sentença judicial para a autora comprovar o seu direito a alimentos, o presente processo, que a isso tendia, tornou-se supervenientemente inútil, impondo a respectiva extinção da instância, nos termos da alín. e) do art.º 287.º do CPC.


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            3. Decisão

            Face a todo o exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelo recorrente.


           

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Francisco M. Caetano (Relator)
António Magalhães
Freitas Neto


[1] V., no sentido da 1.ª instância, os Acs. de 23.2.11 proferidos nos Procs. 1360/10.OT2AVR.C1 (não publicado) e 1029/10.6T2AVR.C1, em www.dgsi.pt , ambos com voto de vencido e, em sentido contrário, os Acs. de 8.2.11, Proc. 986/09.OTBAVR.C1, 15.2.11, Proc. 646/10 e 23.2.11, Proc. 515/09.5T2AVR.C1, em www.dgsi.pt.
[2] V., neste sentido, o Parecer da PGR de 21.12.77, DR, II, de 30.3.78, pág. 1804 e Ac. STJ de 8.6.94, BMJ, 438.º-440.
[3] “Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil”, 1968, pág. 355.
[4] Esse movimento ganhou particular acuidade, p. ex., nos DLs. n.ºs 272/01 e 272/01, de 13.10, com a transferência para o M.º P.º e Conservatórias de processos sem base litigiosa ou, mais recentemente, com a deslocação, em fase de implementação, para as Conservatórias e Cartórios Notariais do processo de inventário, de acordo com a Lei n.º 29/2009, de 29.6.