Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2404/17.0T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PROVA DO MONTANTE DOS SALÁRIOS AUFERIDOS PELO AUTOR
RECIBOS DE VENCIMENTO
COLISÃO DE VEÍCULOS
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 374.º, 2 E 466.º, 3, DO CPC
ARTIGOS 393.º, 1; 487.º E 829-A, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 64.º, 7 E 8, DO DL 291/2007, DE 21/8
ARTIGOS 3.º, 2; 18.º, 1; 24.º, 1 E 27.º DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário: I- Declarada a inconstitucionalidade orgânica com força obrigatória geral, pelo Acórdão nº 221/2019 de 13 de Maio (Diário da República n.º 91/2019, Série I de 2019-05-13), do nº7, do artº 64 do D.L. nº 291/2007 de 21 de Agosto, os rendimentos salariais percebidos pelo A. podem ser objecto de qualquer meio de prova, não operando a restrição que resultava deste preceito e do disposto no artº 393, nº1, do C.C.

II-O Tribunal só se deve basear montante da retribuição mínima mensal garantida (RMMG) à data da ocorrência, quando não se prove o rendimento salarial auferido pelo lesado, este não tenha profissão certa ou os seus rendimentos sejam inferiores à RMMG (artº 64, nº8 do D.L. 291/2007 de 21 de Agosto).

III- Os recibos de vencimento constituem documentos particulares, pelo que, a prova plena do documento particular, quanto aos factos compreendidos nas declarações atribuídas ao seu autor, na medida em que sejam contrárias aos interesses do declarante, se restringe ao âmbito das relações entre o declarante e o declaratário (artº 374, nº2, do C.C.). Em relação à seguradora, são de livre apreciação pelo tribunal.

IV- Em caso de colisão de veículos, ocorrendo violação de regras estradais por ambos os condutores – obrigação de paragem no sinal Stop e excesso de velocidade e desatenção, respectivamente – causal do evento danoso e dos danos em concreto sofridos, deve ser fixada a responsabilidade a título de culpa, por ambos os condutores, na proporção das respectivas culpas e da sua concorrência para o dano (artº 483 e 570 do C.C.).

Decisão Texto Integral:

Proc. Nº  2404/17.0T8LRA.C1 - Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial ...-Juízo Central Cível ... – J....

Recorrente: A... plc – Sucursal em Portugal

Recorrida: AA

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Teresa Albuquerque

                                        Falcão de Magalhães


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Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

RELATÓRIO

 AA, intentou contra a A... plc – Sucursal em Portugal, acção declarativa de condenação peticionando o pagamento das quantias de 4.134,20€ a título de lucro cessante, 366,82€ a título de danos patrimoniais em strictu sensu, 4000,00€ será o valor devidamente justo a título de indemnização por perda total, € 125 000,00 face à incapacidade total e permanente de 66%, €64 320,00 a título de dano da privação do uso do veículo, € 1.500,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a data da citação e até integral pagamento e, ainda, nos termos do art.º 829º-A do CC, sanção pecuniária compulsória, à razão diária de €50,00, por cada dia de atraso no pagamento.

Alega, para tanto, ter sido vítima de acidente de viação por culpa do segurado da R., tendo sofrido danos que computa nos peticionados.


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Citada, a R. contestou, imputando a culpa pelo acidente ao A. e impugnando os danos alegados nos autos.

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Procedeu-se elaboração de despacho saneador com fixação do objecto do litígio e dos temas de prova.

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Após, realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou “parcialmente procedente a ação e condeno a ré a pagar ao autor:

A- a quantia de € 56 941,02 (cinquenta e seis mil novecentos e quarenta e um euros e dois cêntimos) a título de indemnização, a que acrescem juros vencidos sobre a quantia de 6 941,02 e vincendos sobre a totalidade, até integral pagamento, calculados à taxa prevista para os juros civis.

B- Condeno a ré na sanção de € 50 (cinquenta) por cada dia de atraso no pagamento da indemnização fixada em A.

C- absolvo a ré dos restantes pedidos contra si formulados.


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Não conformado com esta decisão, impetrou a R., recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“1ª. – Pelo presente Recurso de Apelação pretende a ora Recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto nos termos do disposto no artº. 640º. do Código de Processo Civil, tornando-se, por consequência, o recurso extensivo à aplicação da matéria de direito;

2ª. – Salvo o devido respeito, entende a ora Recorrente que, na Sentença proferida, o Tribunal “a quo” não procedeu a uma correta apreciação da prova produzida, visto que determinados factos deveriam ter sido considerados como provados e determinados factos não o deveriam ter sido;

3ª. – Em cumprimento do disposto no artº. 640º. do Código de Processo Civil, a ora Recorrente efetuou a transcrição dos depoimentos das Testemunhas em sede de fundamentação do presente Recurso, sendo que não efetua a transcrição dos mesmos em sede das presentes Conclusões de Recurso, atenta a extensão daqueles;

4ª. – No acidente de viação “sub judice” estiveram envolvidos dois veículos ligeiros de passageiros, a saber:

a) veículo ligeiro de passageiros, de marca ...”, de matrícula IQ-..-.., propriedade do Autor AA e tripulado pelo mesmo na data em que ocorreu o acidente, sendo designado por “Veículo 1” e V1” na participação de acidente de viação elaborada pela G.N.R. e respetivo “croquis”, junto aos Autos como Doc. nº. 2 em anexo à Contestação apresentada pela Ré A...;

b) veículo ligeiro de passageiros, de marca ...”, de matrícula ..-HH-.., propriedade da Sociedade “B..., Lda.”, conduzido, na data e hora em que ocorreu o

acidente supra referido, por BB, sendo designado como “Veículo 2” e “V2” no supra referido documento;

5ª. – O veículo de matrícula ..-HH-.., na data e hora em que ocorreu o sinistro rodoviário discutidos nos presentes Autos encontrava-se segurado na ora Recorrente A..., através de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, sendo o mesmo titulado pela apólice nº. ...79;

6ª. – O Autor alegou na Petição Inicial que circulava na E.N. 109 no sentido Leiria – Figueira da Foz, sendo que o condutor do veículo segurado na A... saiu do local onde funciona uma bomba de gasolina, situada à direita da faixa de rodagem, e não parou no sinal de “stop” existente na saída da mesma, colocando-se à frente do veículo por si tripulado;

7ª. – O acidente de viação supra referido consistiu num embate entre a parte da frente do veículo ...”, propriedade do Autor, na parte traseira do veículo ...” segurado na A...;

8ª. - Face ao teor da participação do sinistro que lhe foi efetuada pela Sociedade sua segurada, a A..., em sede pré-contenciosa, entendeu que a responsabilidade pela ocorrência do mesmo pertencia ao aqui Autor AA, visto que o mesmo tripulava o veículo em velocidade superior à legalmente permitida no local, sem prestar atenção à trajetória dos demais veículos que nesta circulavam, e não conseguiu deter o veículo no espaço livre e visível à sua frente;

9ª. – No entanto, atenta a prova testemunhal produzida na Audiência de Julgamento, a A... entende que resultou provado que o acidente de viação foi causado por culpa de ambos os condutores intervenientes no sinistro;

10ª. – O Tribunal “a quo” proferiu Sentença, atribuindo a culpa da ocorrência do sinistro apenas ao condutor do veículo ...” segurado na A..., visto que o mesmo não parou junto do sinal de “stop” existente na saída da bomba de gasolina da “...”;

11ª. – A ora Recorrente não concorda com tal fixação de responsabilidade, entendendo que foi produzida prova na Audiência de Julgamento de que o Autor circulava em velocidade superior à legalmente permitida para o local onde ocorreu o sinistro e não conseguiu deter o veiculo no espaço livre e visível à sua frente;

12ª. – Na Sentença proferida, a Ré A... foi condenada no pagamento das seguintes quantias ao Autor:

d) 40.000,00 Euros, a título de indemnização relativa a dano biológico sofrido;

e) 10.000,00, a título de indemnização relativa a danos não patrimoniais ocorridos;

f) 4.134,20 Euros, a título de perdas salariais;

c) 306,82 Euros, a título de valor pago pelo Autor em exames, consultas e medicamentos.

d) 2.500,00 Euros a título de valor venal do veículo, sendo desta descontada a quantia de 190,00 Euros relativa ao valor do salvado, totalizando assim a quantia de 2.310,00 Euros, totalizando a quantia de 56.941,02 Euros.

13ª. – Por outro lado, na Sentença proferida, o Tribunal “a quo” absolveu a A... do pagamento ao Autor da quantia de 64.320,00 Euros, peticionada a título de indemnização por alegado dano de privação de uso do veículo, pelo que, no que diz respeito ao alegado dano de privação de uso e respetivo valor peticionado, a Sentença proferida foi ao encontro da tese defendida pela A... na Contestação, e consequentemente, tal parte da Sentença não é objeto do presente Recurso interposto;

14ª. – A ora Recorrente entende que deveria ter sido considerado como provado a primeira parte do facto numerado como 2.6 da matéria considerada como não provada, ou seja, que:

58. “2.6 O Autor tripulava o veículo de matrícula IQ-..-.. distraído, de forma imperita e negligente, sem prestar atenção ao traçado da via nem ao comportamento rodoviário dos demais utentes da mesma.”

15ª. – A velocidade máxima permitida no local não consta da participação de acidente de viação elaborada pela G.N.R. e junta aos Autos como Doc. nº. 2 em anexo à Contestação apresentada pela A..., pelo que, na elaboração da Contestação, a A... socorreu-se do teor

das declarações que lhe foram prestadas pelo condutor do veículo seu segurado após o sinistro lhe ter sido comunicado, tendo sido alegado que a velocidade máxima permitida no local era de 90 kms/hora;

16ª. – No Despacho Saneador proferido nos presentes Autos, foram fixados os temas da prova, e no que diz respeito à velocidade máxima permitida no local do acidente, foi fixado o seguinte tema:

“a) apurar as circunstâncias em que ocorreu o acidente, designadamente o seguinte:

(…)

- No local do acidente a velocidade máxima permitida é de 90 kms/hora.”

17ª. – Na Audiência de Julgamento foi inquirida a Testemunha CC, sendo o mesmo o Militar da G.N.R. que elaborou a participação de acidente de viação junta à Contestação como Doc. nº. 2, tendo sido referido que o local onde ocorreu o sinistro se situa dentro de uma localidade e que a velocidade máxima permitida no mesmo é de 50 kms hora;

18ª. – A tese defendida pela A... na Contestação foi de que o Autor circulava em velocidade superior à permitida no local, e por via de tal, não conseguiu deter o veículo no espaço livre e visível à sua frente, tendo assim colidido com o veículo segurado na ora Recorrente;

19ª. – Seria relevante apurar a velocidade máxima permitida no local, e fazer constar a mesma dos factos considerados como provados, mesmo que não tivesse sido feita prova de que a velocidade máxima era aquela que foi alegada pela A... na Contestação, visto que, foi produzida prova testemunhal nesse sentido na Audiência de Julgamento, tendo sido apurado que a velocidade máxima permitida no local era de 50 kms/hora, sendo que o sinistro ocorreu dentro de uma localidade;

20ª. – Na Audiência de Julgamento, a Testemunha CC – Militar da G.N.R. – informou o Tribunal que a bomba de gasolina da marca ...” situada no local do acidente de viação “sub judice” tinha câmaras de videovigilância, e que, um seu Colega da G.N.R. – DD – havia visualizado as imagens que captaram os momentos que antecederam tal sinistro, pelo que, foi determinado pelo Tribunal a inquirição deste último;

21ª. – A Testemunha DD referiu na Audiência de Julgamento que visualizou as imagens constantes de uma camara de videovigilância da bomba de gasolina da “...”, e que através de tal, foi possível verificar que o condutor do veículo segurado na A... não parou junto do sinal de “stop” existente junto da saída da bomba de gasolina, antes de entrar na E.N. 109;

22ª. – No seu depoimento, a supra identificada Testemunha relatou ainda factos essenciais para o apuramento da dinâmica e etiologia do sinistro aqui discutido, a saber:

a) O local do acidente é uma reta com 300 metros de extensão e sem obstáculos à visibilidade na mesma;

b) Era de noite quando ocorreu o sinistro;

c) Estava bom tempo;

d) O piso da via estava seco;

e) Não existiam rastos de travagem na via;

f) Ambos os veículos circulavam com as luzes de médios ligadas;

g) A câmara de videovigilância não captou o momento do embate, visto que o mesmo se situa fora do angulo em que a mesma poderia filmar.

23ª. – A Testemunha DD referiu que verificou, pelas imagens que visualizou, que o condutor do veículo segurado na A... entrou na E.N. 109, saído da bomba de gasolina da “...”, às 22h19m42s e o embate ocorreu às 22h19m46s, ou seja, quatro segundos depois;

24ª. – No que diz respeito à velocidade a que seguia o veículo tripulado pelo Autor, foi referido o seguinte pela Testemunha DD:

a) A câmara de videovigilância que produziu as imagens visualizadas situa-se junto da entrada da bomba de gasolina da “...”;

b) A distância entre a entrada e a saída de tal bomba de gasolina é de 80 metros;

c) A colisão ocorreu 20 metros depois da saída da bomba de gasolina, atento o sentido de marcha de ambos os veículos (Leiria – Figueira da Foz);

d) Quando o veículo segurado na A... entrou na E.N. 109, o veículo tripulado pelo Autor circulava ainda afastado da entrada da bomba de gasolina da “...”;

e) O veículo tripulado pelo Autor percorreu uma distância entre 100 a 150 metros em 4 segundos;

f) O veículo tripulado pelo Autor não efetuou qualquer travagem, visto que não existiam rastos na via, sendo que o asfalto se encontrava seco, e qualquer travagem efetuada teria deixado rasto atenta a fricção dos pneumáticos com o piso.

25ª. – Atentas as distâncias supra referidas e o tempo que demorou ao veículo tripulado pelo Autor a percorrer as mesmas, poderá ser efetuado o seguinte cálculo:

a) se o veículo tripulado pelo Autor tiver percorrido uma distância de 150 metros em 4 segundos, significa que percorreu 37,5 metros por segundo e que circulava a uma velocidade de 135 km/hora (135 kms/hora = 135000 metros/hora : 60 minutos : 60 segundos = 37,5 metros por segundo);

b) se tal veículo tiver percorrido uma distância de 100 metros em 4 segundos, significa que percorreu 25 metros por segundo e que circulava a uma velocidade de 90 km/hora (90 kms/hora = 90000 metros/hora : 60 minutos : 60 segundo = 25 metros por segundo).

26ª. – Em qualquer dos casos – quer se entenda que o veículo do Autor percorreu 100 ou 150

metros em 4 segundos – verifica-se que o mesmo circularia, no mínimo, a 90 kms/hora, e, tendo sido apurado que a velocidade máxima permitida no local era de 50 kms/hora, terá que se concluir que o Autor circulava a uma velocidade superior à legalmente permitida no local;

27ª. – Quando o condutor do veículo segurado na A... entrou na E.N. 109, após sair do local onde se situa a bomba de gasolina da “...”, o veículo tripulado pelo Autor encontrava- se a uma distância mínima de 100 metros atrás do mesmo;

28ª. – O veículo segurado na A... circulava com os faróis de médios ligados, sendo por isso visível, e a reta por onde circulava o Autor tem uma extensão de 300 metros, não existindo qualquer obstáculo à visibilidade, atento o sentido de marcha deste último, tal como foi referido pelo Militar da G.N.R. DD no depoimento supra transcrito;

29ª. – O Autor não efetuou qualquer travagem ao veículo, não se encontrando nenhum rasto de travagem na via, sendo que estava bom tempo e o piso da via encontrava-se seco;

30ª. – O Autor não evitou que os veículos embatessem, tal como consta do 6º. Facto considerado como provado na Sentença proferida);

31ª. – No que diz respeito à dinâmica do sinistro, face à prova produzida – e atento o teor dos

depoimentos supra transcritos – terá que se concluir o seguinte:

a) O condutor do veículo segurado na A..., antes de entrar na E.N. 109, não parou o veículo junto do sinal de “Stop” existente à saída da bomba de gasolina da “...”.

b) Após a entrada na E.N. 109 por parte do veículo segurado na A..., o veículo tripulado pelo Autor percorreu uma distância entre 100 a 150 metros, sem que aquele tivesse travado ou desviado o veículo, e conseguido deter o mesmo nesse espaço;

c) O Autor circulava a uma velocidade situada entre 90 a 135 kms/hora, quando no local, a velocidade máxima permitida era de 50 kms/hora, por se tratar de uma localidade.

32ª. – O facto de o condutor do veículo segurado na A... ter entrado na faixa de rodagem da E.N. 109, no sentido de marcha do Autor, sem ter antes parado junto ao sinal de “stop” existente à saída da bomba de gasolina contribuiu para a ocorrência do acidente de viação discutido nos presentes Autos;

33ª. – Mas o facto de o Autor circular sem prestar atenção ao traçado da via e à trajetória dos demais veículos que nesta circulavam, tripulando o veículo a uma velocidade superior à permitida no local (entre 90 a 135 kms/hora) – velocidade essa que não lhe permitiu parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (entre 100 a 150 metros) – foi também uma das causas da ocorrência do sinistro rodoviário “sub judice”;

34ª. – Caso o Autor circulasse a uma velocidade inferior a 50 kms/hora, teria conseguido deter o veículo no espaço existente à sua frente (mínimo de 100 metros) e teria conseguido evitar o embate na parte traseira do veículo segurado na A..., pelo que, com tal comportamento rodoviário, o Autor violou o disposto nos Artsº. 3º., nº. 2º., 18º., nº. 1, 24º., nº. 1 e 27º. do Código da Estrada;

35ª. – O veículo segurado na A... era propriedade da Sociedade “B..., Lda.”, sendo conduzido, na data e hora em que ocorreu o sinistro por, BB

. (Cfr. 1º. Facto assente constante do Despacho Saneador, e 1º. facto considerado como provado na Sentença proferida nos presentes Autos)

36ª. – No entanto, naquela data, o mesmo encontrava-se a tripular tal veículo para satisfação das suas próprias necessidades de deslocação, tal como referiu no depoimento prestado na Audiência de Julgamento, pelo que, não será aplicável ao caso concreto a presunção de culpa constante do artº. 503º. do Código Civil;

37ª. – Na Sentença proferida deveria ter sido considerado como provado:

a) a primeira parte do facto constante do nº. 2.6 dos factos não provados;

b) e deveria ainda ter sido considerada como provada a matéria constante do seguinte tema de prova fixado no Despacho Saneador:

“Antes do acidente, o condutor do IQ-..-.. circulava distraído e, ao verificar a presença do ..-HH-.. na via e hemi-faixa de rodagem por onde seguia, não conseguiu deter o IQ-..-.. no espaço livre e visível à sua frente evitando a ocorrência de um embate, nem foi capaz de desviar a trajetória do seu veículo.”

38ª. – Consequentemente, na Sentença proferida, a culpa relativa à ocorrência do sinistro deveria ter sido atribuída a ambos os condutores dos veículos intervenientes no presentes sinistro, e, atento tal facto, deveria ter sido aplicada a norma constante do artº. 570º. Do Código Civil;

39ª. – A ora Recorrente entende que cada um dos condutores contribuiu em 50% para a ocorrência do sinistro “sub judice”, visto que:

a) ambos conduziam veículos ligeiros de passageiros, tal como se poderá verificar pela leitura da participação de acidente de viação junta como Doc. nº. 2 em anexo à Contestação apresentada pela A...;

b) a velocidade a que circulava o Autor, sendo superior à legalmente permitida, e verificando-se que o mesmo não conseguiu deter o veículo no espaço livre e visível à sua frente constitui uma contraordenação muito grave, tal como prevista pelo Código da Estrada;

c) o facto de o condutor do veículo segurado na A... não ter parado junto ao sinal de “stop” existente na saída da bomba de gasolina, constitui também uma contraordenação muito grave, atento tal diploma legal;

40ª. – Atenta a concorrência de culpas, entende a ora Recorrente que deverá ser reduzido o valor em que foi a Ré A... condenada a pagar ao Autor a título de indemnização relativa a danos patrimoniais e não patrimoniais, a saber:

a) indemnização relativa a dano biológico sofrido (40.000,00 Euros);

b) indemnização relativa a danos não patrimoniais (10.000,00 Euros);

c) indemnização relativa ao valor venal do veículo (2.500,00 Euros, sendo deste descontado o valor do salvado avaliado em 190,00 Euros),

d) o valor fixado na Sentença relativamente à quantia peticionada a título de sanção pecuniária compulsória (50,00 Euros por cada dia de atraso no pagamento do valor indemnizatório fixado);

41ª. - Verifica-se em que ocorreu um lapso de escrita na redação do 8º. facto considerado como provado, constando deste o seguinte:

“8. Nessa sequência, o Autor necessitou de ser transportado para o Hospital ..., devido aos ferimentos graves que foram causados, onde permaneceu internado até 24 de Dezembro de 2016.”

(sublinhado nosso)

42ª. – Pela análise do relatório pericial existente nos presentes Autos, verifica-se que o Autor permaneceu internado até ao dia 24 de Dezembro de 2015 e não de 2016, sendo referido o seguinte:

“Teve alta hospitalar a 24/12/2015 com indicação de “marcha sem carga”, medicado com “enoxaparina” e orientado para consulta de ortopedia”;

43ª. – Por outro lado, verifica-se que consta o seguinte do 11º. facto considerado como provado:

“11. O Défice Funcional Temporário Total foi de 21 dias, entre 4/12/2015 e 24/12/2015.”;

44ª. - Requer-se assim a correção de tal lapso de escrita, sendo alterada a redação do 8º. Facto considerado como provado, de:

“8. Nessa sequência, o Autor necessitou de ser transportado para o Hospital ..., devido aos ferimentos graves que foram causados, onde permaneceu internado até 24 de Dezembro de 2016.” (sublinhado nosso)

para

“8. Nessa sequência, o Autor necessitou de ser transportado para o Hospital ..., devido aos ferimentos graves que foram causados, onde permaneceu internado até 24 de Dezembro de 2015.” (sublinhado nosso)

45ª. – A matéria constante dos seguintes factos considerados como provados deveria ter sido considerada como não provada:

“20. O Autor auferia mensalmente a quantia de 640,00€

21. Com despesas médicas e medicamentosas o autor gastou a quantia de 306,82€.”,

46ª. – No que diz respeito ao 20º. facto, o Autor alegou que, na data em que ocorreu o acidente de viação discutido nos presentes Autos, auferia mensalmente a quantia de 640,00 Euros e, para alegada prova de tal, juntou os documentos nºs. 15 e 16 em anexo à Petição Inicial;

47ª. – Tais documentos foram impugnados pela Ré no artº. 110º. da Contestação apresentada, tendo sido alegado o seguinte em tal Articulado:

“110º.

Impugna-se o teor dos seguintes documentos juntos com a P.I.:

(…)

- Docs. nºs. 15, 16, 40, 44 – Tratam-se de documentos particulares, os quais não foram elaborados pela Ré ou a seu pedido, sendo que a mesma não teve qualquer intervenção na sua elaboração.

Face a tal, a ora Ré desconhece – sem obrigação de conhecer, por não se tratarem de factos pessoais, o que equivale a impugnação – se o teor dos mesmos corresponde ou não à realidade.”;

48ª. – A A... requereu que o Autor procedesse à junção aos Autos de declarações de I.R.S. e respetivas notas de liquidação – o que foi parcialmente deferido pelo Tribunal – sendo que o Autor não procedeu à junção de tais documentos aos Autos;

49ª. – Na Sentença proferida o Tribunal entendeu dar tal facto como provado, fundamentando tal decisão da seguinte forma:

“Tiveram-se em consideração os documentos juntos para prova dos rendimentos do autor (recibos e declarações de IRS) e despesas médica e medicamentosas bem como o depoimento da testemunha EE, colega de trabalho do autor e que, com conhecimento direto dos factos, os relatou de modo isento e seguro.”;

50ª. - A Testemunha EE não foi inquirida na Audiência de Julgamento, sendo que, nem a sua presença consta da Ata relativa à Audiência de Julgamento, nem o seu depoimento consta do “cd” de gravação de prova relativo a tal diligência;

51ª. – Não foi produzida qualquer prova documental ou testemunhal relativa aos rendimentos do Autor, pelo que não poderá ser considerado como provado que o mesmo auferisse 640,00 Euros mensais a título de salário;

52ª. – Em virtude de ter sido considerado como provado que o Autor auferia 640,00 Euros mensais, o Tribunal condenou a A... no pagamento da quantia de 4.134,20 Euros a título de

indemnização relativa a perdas salariais do Autor, sendo que tal valor foi alcançado levando em conta dois fatores: o alegado salário mensal do Autor e o período em que o mesmo esteve incapacitado para o trabalho, tal como consta do relatório relativo à perícia médico-legal realizada no âmbito dos presentes Autos;

53ª. – Visto que não foi feita prova de que o Autor auferisse 640,00 Euros mensais, não poderá ser a ora Ré condenada no pagamento da quantia de 4.134,20 Euros, a título de indemnização relativa a perdas salariais, devendo-se antes presumir que o mesmo auferia o salário mínimo;

54ª. – O salário mínimo nacional foi fixado, nos anos de 2015 e 2016, nos seguintes valores:

- Ano de 2015: 505,00 Euros (Decreto-Lei n.º 144/2014, de 30 de setembro);

- Ano de 2016: 530,00 Euros (Decreto-Lei n.º 254-A/2015, de 31 de dezembro);

55ª. – Deverá o cálculo supra descrito ser efetuado com base nos supra indicados valores relativos ao salário mínimo nacional durante o período de 27 dias relativos a Dezembro de 2015 e 188 dias em 2016, levando em conta os valores supra indicados relativos ao salário mínimo nacional, e, posteriormente, ser tal valor reduzido a metade, face à concorrência de culpa por parte do Autor na ocorrência do acidente de viação discutido nos presentes Autos;

56ª. – Não foi feita prova de que o Autor tivesse despendido a quantia de 306,82 Euros em despesas médicas e medicamentosas (21º. facto considerado como provado na Sentença proferida);

57ª. – Na Contestação apresentada, a Ré A... impugnou os documentos 17 a 38 juntos com a P.I., referindo que desconhecia qual a finalidade terapêutica dos itens constantes dos mesmos, e se estavam ou não relacionados com o tratamento de lesões ocorridas no acidente de viação aqui discutido;

58ª. – Não foi produzida prova relativa a tais alegadas despesas ou da alegada relação das mesmas com o tratamento de ferimentos ocorridos no acidente de viação “sub judice”, pelo que, não poderá ser estabelecido o respetivo nexo de causalidade, pelo que, por força da aplicação do disposto no artº. 342º. do Código Civil, deverá a A... ser absolvida do pagamento do valor relativo a despesas médicas e medicamentosas peticionado pelo Autor, uma vez que este último não fez prova de que despendeu tal valor;

59ª. – Deverá ser dado provimento ao presente Recurso, sendo revogada a Sentença proferida e substituída por Douto Acórdão onde a culpa relativa à ocorrência do sinistro seja atribuída a ambos os condutores intervenientes, em percentagem a fixar no Douto suprimento de V.Exas.,

com a consequente:

a) redução das já mencionadas quantias indemnizatórias;

b) e absolvição relativamente ao valor peticionado a título despesas médicas e medicamentosas.

Termos em que, e no muito que V. Exas. se dignarão suprir, deverá o presente Recurso ser julgado procedente, e em consequência, deverá:

a) ser revogada a Sentença proferida, na parte em que atribuiu a culpa na ocorrência do sinistro apenas ao condutor do veículo segurado na A...;

b) ser tal Sentença substituída por Acórdão que atribua culpas concorrentes a ambos os condutores intervenientes no sinistro na percentagem a fixar no Douto Suprimento de V.Exas;

c) ser revogada a parte da Sentença que condenou a ora Recorrente no pagamento dos valores indemnizatórios respeitantes à indemnização relativa a dano biológico (40.000,00 Euros), danos não patrimoniais (10.000,00 Euros), valor venal do veículo (2.500,00 Euros, sendo deste descontado o valor do salvado avaliado em 190,00 Euros), e sanção pecuniária compulsória (50,00 Euros diários), devendo tais valores serem reduzidos, atenta a percentagem fixada de concorrência de culpas dos condutores;

d) ser revogada a parte da Sentença que condenou a A... no pagamento da quantia de 4.134,20 Euros a título de perdas salarias do Autor, devendo ser a mesma substituída por Acórdão onde o cálculo de tal valor seja efetuado por referência ao valor do salário mínimo relativo aos anos de 2015 e 2016 face ao hiato temporal em que o Autor esteve incapacitado temporariamente para o trabalho;

e) ser revogada a parte da Sentença que condenou a A... no pagamento ao Autor de despesas médicas e medicamentosas (306,82 Euros), devendo ser a A... absolvida do pagamento das mesmas, assim se fazendo acostumada Justiça!”


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Não foram interpostas contra-alegações pelo A.

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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO


O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

1. No dia 4 de dezembro de 2015 pelas 20:20h, ocorreu um acidente de viação entre o veículo automóvel de marca ... com a matrícula IQ-..-.. – e o veículo com a matrícula ..-HH-.., propriedade da empresa B... Lda, com sede no Largo ..., ..., ... andar, ... ....

2. O veículo IQ-..-.. encontrava-se segurado pela Ré, sob a apólice n.º ...79.

3. O acidente de viação ocorreu na Estrada Nacional 109, ao km 145,300 – EN no sentido Leiria – Figueira da Foz, perto da localidade da ....

A faixa de rodagem tem dois sentidos e o local do sinistro configura-se numa reta.

Estava bom tempo.

4. O Autor encontrava-se a circular na Estrada Nacional, quando junto ao posto de combustível ..., o Réu que saia do mesmo posto não parou no sinal vertical de STOP que se encontra à saída do posto de abastecimento de combustível, nem olhou para o lado esquerdo da faixa, no sentido de averiguar se algum automóvel se deslocava na mesma.

5. O condutor do veículo segurado na ré passou a seguir pela hemi-faixa de rodagem da direita –atento o sentido de marcha Leiria – Figueira da Foz.

6. O Autor que seguia no mesmo sentido não desviou a sua viatura nem evitou que os veículos embatessem, causando a força desse embate o capotamento do veículo do Autor e o encarceramento deste dentro do veículo.

7. O embate entre os veículos ocorreu dentro da hemi-faixa destinada ao trânsito no sentido Leiria – Figueira da Foz, a 1,30 metros da berma direita, atento tal sentido de marcha.

8. Nessa sequência, o Autor necessitou de ser transportado para o Hospital ..., devido aos ferimentos graves que foram causados, onde permaneceu internado até 24 de Dezembro de 2016.

9. Do acidente em que foi interveniente resultaram para o autor lesões no joelho, na anca e esplenectomia total do baço.

10. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 5/07/2016.

11. O Défice Funcional Temporário Total foi de 21 dias, entre 4/12/2015 e 24/12/2015.

12. O Défice Funcional Temporário Parcial foi de 194 dias, entre 25/12/2015 e 5/07/2016.

13. A Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total foi de 143 dias, entre 4/12/2015 e 24/04/2016 e a Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial foi de 72 dias, entre 25/04/2016 e 5/07/2016.

14. O Quantum doloris é de grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente.

15. O Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica é de 9 pontos.

16. As sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

17. O Dano Estético Permanente é de grau 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

18. A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer é de grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

19. Na sequência do acidente o IQ-..-.. ficou em situação de perda total e, em 23 de dezembro de 2015, a ré informou o autor que lhe atribuiu a esse título o valor de € 2500, correspondente ao valor venal do veículo antes do acidente, e € 190 ao salvado.

20. O Autor auferia mensalmente a quantia de 640,00€

21. Com despesas médicas e medicamentosas o autor gastou a quantia de 306,82€.

22. Para instruir o presente processo judicial gastou a quantia de 60,00€ numa certidão de acidente.

23. O autor precisa do carro para o exercício da sua profissão assim como para todas as deslocações quotidianas.


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2. Factos não provados

2.1. Com consequência do acidente o autor ficou com uma incapacidade total e permanente de 66%.

2.2. O veiculo do Autor encontrava-se em excelente estado de conservação, tendo sido recentemente restaurada.

O Autor colocou dois pneus novos semanas antes do sinistro e tinha grande estima pelo veículo, pois já vinha dos seus antepassados, tanto mais que é um veiculo com bastante procura, por ser considerado um veículo vintage.

2.3. O aluguer de um automóvel com as mesmas características cifra-se em 120,00€ por dia. 2.4. Desde a data do sinistro, que o Autor tem pânico em conduzir qualquer veículo;

Denota, problemas de confiança em si próprio.

Ficou com perturbações no sono, sonhando constantemente com o sinistro automóvel, teve de alterar o seu modo de vida, estando sempre dependente de boleias de amigos e familiares para se poder transportar ou então deslocar-se a pé para o trabalho.

2.5. O condutor do veículo segurado na A... tripulava o veículo a uma velocidade de 50 kms/hora, prestando atenção ao traçado da via e ao comportamento dos demais utentes da mesma.

2.6. O Autor tripulava o veículo de matrícula IQ-..-.. distraído, de forma imperita e negligente, sem prestar atenção ao traçado da via nem ao comportamento rodoviário dos demais utentes da mesma. Tripulava o veículo a cerca de 100 kms/hora. “


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Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Adjuntos, cumpre decidir.

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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar se:

a) se verificam os requisitos para a alteração da matéria de facto e se esta deve ser alterada no sentido propugnado pelo recorrente;
b) dos factos respeitantes à dinâmica do acidente resulta a concorrência de culpas dos condutores dos veículos;
c) a indemnização fixada ao A. pelos danos sofridos deve ser reduzida, na proporção da sua culpa no evento danoso e se a R. deve ser absolvida das despesas médicas e medicamentosas.


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DA REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO


Impetra a apelante que seja alterada a matéria de facto fixada em primeira instância, devendo ser considerado provado:

- a primeira parte do facto não provado sob o nº 2.6, com a seguinte redacçao: “O Autor tripulava o veículo de matrícula IQ-..-.. distraído, de forma imperita e negligente, sem prestar atenção ao traçado da via nem ao comportamento rodoviário dos demais utentes da mesma.”;

 -os factos contantes do tema de prova indicado no despacho saneador, ou seja que “Antes do acidente, o condutor do IQ-..-.. circulava distraído e, ao verificar a presença do ..-HH-.. na via e hemi-faixa de rodagem por onde seguia, não conseguiu deter o IQ-..-.. no espaço livre e visível à sua frente evitando a ocorrência de um embate, nem foi capaz de desviar a trajetória do seu veículo.”

-a velocidade máxima permitida no local onde ocorreu o sinistro era de 50 kms/hora.

Indica como meios de prova destes factos, os depoimentos das testemunhas CC e DD, militares da GNR que se deslocaram ao local do acidente e elaboraram o auto. A última testemunha, em sede de inquérito, visionou as câmaras de segurança da bomba de gasolina em causa e confirmou não só que o veículo ..-HH-.. não parou no sinal Stop, mas que o veículo IQ-..-.. conduzido pelo A. se encontrava pelo menos a 100 mts. da saída das referidas bombas no momento em que o ..-HH-.. entrou na via e que no local não existiam rastos de travagem. Mais afirmou a testemunha DD que decorreram quatro segundos entre o momento em que o ..-HH-.. entrou nesta via e o embate, pelo que se deve concluir que o IQ-..-.. circulava em excesso de velocidade e o seu condutor distraído. Mais refere que a testemunha BB, condutor do ..-HH-.. referiu conduzir com as luzes ligadas, sendo o local uma recta com boa visibilidade e que assim, seria impossível não ser avistado pelo IQ-..-.., não tendo existido qualquer rasto de travagem. Conclui que o A. circularia entre os 90 Kms/hora e os 135Kms/hora, velocidade excessiva para o local, como resulta do depoimento da testemunha CC, que referiu ser o local dentro de uma localidade e não existir indicação especial de velocidade, prevalecendo a norma geral.

Mais considera que não deve ser conferida credibilidade ao depoimento das testemunhas FF que omitiu o facto de ser amigo do A. (testemunha GG) nem ao depoimento da testemunha GG, alegando que não constam do auto de participação como testemunhas presenciais e o condutor do ..-HH-.. referiu que não existiam testemunhas do acidente.

Alega ainda, a existência de um lapso de escrita na data constante do facto nº 8 (24 de Dezembro de 2015 e não de 2016).

  Por último considera que se deveriam considerar como factos não provados os pontos 20 e 21 da matéria assente, objecto de prova por documentos particulares, por si impugnados na sua contestação, tendo aliás requerido, em relação ao ponto 20, que o A. juntasse as suas declarações de IRS o que este não cumpriu.

Decidindo

b) Dos fundamentos de reapreciação da matéria de facto;

Decorre do disposto no artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, no que se reporta aos ónus a observar por parte do impugnante o seguinte:

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios invocados (…) tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

No que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» [3]

Assim, “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.

A saber:

- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;

- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;

- E a decisão alternativa que é pretendida.”[4]

Por outro lado, não basta fazer uma impugnação genérica da matéria de facto, com remissão para meios de prova igualmente genéricos e sem os delimitar em relação a cada facto. As exigências contidas neste preceito impõem que “esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”.[5]

O recorrente cumpre os ónus primários previstos nas diversas alíneas do nº1 do artº 640 do C.P.C., bem como os ónus secundários constantes do seu nº2, indicando os pontos de facto que pretende ver reapreciados e os diversos meios de prova que sustentam a alteração pretendida.

Nada obstando à reapreciação do recurso em causa, decorre do disposto no artº 640 nº2, b) e 662, nº1 e 2 do C.P.C. a garantia de um duplo grau de jurisdição[6] o qual deve ser enquadrado nos princípios contidos no artº 607 nº 4 e 5 do C. P. Civil.

A generalidade das provas produzidas perante o julgador estão sujeitas ao princípio da livre valoração da prova, princípio que se baseia “na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, (n)as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.[7]

Este princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artº 607 nº5 do C.P.C., não significa, no entanto que ao juiz seja lícito “julgar os factos sem prova ou contra a prova; o sistema da prova livre não exclui, antes pressupõe a observância das regras de experiência e critérios da lógica. (…)[8] , devendo o juiz na decisão proferida sobre a matéria fáctica que cv considerou provada ou não provada, fundamentar o seu raciocínio, especificar a valoração que fez da prova produzida.

Por outro lado, mostra-se subtraído a este princípio da livre apreciação da prova, cfr. dispõe o nº5 do artº 607 do C.P.C., aqueles factos para os quais se exija formalidade especial, os que só possam ser provados por documento, os que estejam plenamente provados (nos termos do disposto no artº 371 nº1, 374, 375 e 376 nº1 do C.C. e os resultantes de confissão judicial, ou extra-judicial nos termos previstos no artº 358 nº2 do C.C.

Já no que se reporta à prova testemunhal, o tribunal é plenamente livre de apreciar os depoimentos e valorar a credibilidade das testemunhas tendo por base “a valoração estimada das declarações da testemunha”, com apoio em múltiplos factores “atinentes às características do evento, da testemunha, do comportamento desta e do teor das suas declarações.”[9], devendo o julgador verificar a razão de ciência da testemunha, a parcialidade ou imparcialidade desta mesma testemunha (devido a relações de amizade, trabalho, parentesco ou outras que possam afectar o seu depoimento) e a coerência do seu depoimento, inclusive por contraponto a outros meios de prova (nomeadamente documentos) ou a factos que estejam já assentes.

Assim sendo, a indicação do processo lógico – racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbe a cada uma das partes, conforme o exige o artº 607º, nº 4 do CPC., é imprescindível a um processo equitativo e contraditório, por só através do seu escrupuloso cumprimento se salvaguardar as garantias das partes, possibilitando a sua cabal reacção, em caso de discordância.

Por assim ser, foi proferido despacho pela relatora deste Acórdão, ao abrigo do disposto no artº 662 nº2 c) do C.P.C. para que o Sr. Juiz a quo, fundamentasse o ponto 20 da matéria de facto (impugnado em sede de recurso) tendo em conta a fundamentação que este magistrado fez constar em relação a este ponto, ou seja, que se fundou “(n)os documentos juntos para prova dos rendimentos do autor (recibos e declarações de IRS) e despesas médica e medicamentosas bem como o depoimento da testemunha EE, colega de trabalho do autor e que, com conhecimento direto dos factos, os relatou de modo isento e seguro.” e o facto de, ouvida a totalidade da prova testemunhal, não se ter encontrado qualquer colega de trabalho do A., com este ou qualquer outro nome, que tenha deposto sobre os seus rendimentos. Como não se encontrou rasto das declarações de IRS deste A., mencionadas na fundamentação deste ponto.

Por despacho proferido em 14/12/22, veio o Sr. Juiz a quo fundamentar este ponto da seguinte forma:

Quanto aos rendimentos mensais do autor tiveram-se em consideração o teor dos docs. 15 e 16 juntos com a petição. Apesar de impugnados (art. 49º da contestação), tais documentos, emitidos por terceiro, não tendo sido arguida a sua falsidade (designadamente quanto à sua autoria), demonstram os rendimentos do trabalho do autor naqueles meses, sendo de presumir que tais rendimentos ocorriam, igualmente, nos restantes meses, já que se trata da remuneração por trabalho por conta de outrem que cumpre todas as exigências previstas no art. 276.º, n. 3, do Código do Trabalho. Entendemos que a mera impugnação porque a “Ré desconhece – sem obrigação de conhecer, por não se tratarem de factos pessoais, (…) – se o teor dos mesmos corresponde ou não à realidade” não retira a um documento a sua natureza probatória. Sendo pacífico que um documento particular cuja autoria (assinatura) não se encontra impugnada, tem o valor probatório previsto no artigo 376.º, n.º 1, do Código Civil, ou seja, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova a falsidade do documento.

Assim, deu-se como provado o valor alegado pelo autor, demonstrado pelos recibos juntos como docs. 15 e 16 (que atestam o vencimento base de € 640).”

A esta fundamentação veio o recorrente contrapor que impugnou estes documentos e que “em virtude de tal impugnação dos supra identificados documentos, o seu teor não foi reconhecido nos termos exigidos pelo disposto no Artº. 376º. do Código Civil para que fosse considerado que tais documentos faziam prova plena das declarações atribuídas ao seu autor.”

Definidos os parâmetros pelos quais este tribunal se deve reger na apreciação da prova, acima consignados, passemos à sua apreciação concreta, começando precisamente por estes factos provados sob os pontos 20 e 21, sendo certo que, em relação ao primeiro, considerou o tribunal a quo que se mostravam estes rendimentos provados e plenamente, sem prejuízo da arguição da sua falsidade.

Denote-se que esta fundamentação não é consentânea com a primeira, que fundando-se em meios de prova inexistentes, não considerou que os recibos de vencimento apresentados faziam prova plena dos rendimentos do A. caso em que, fosse essa a sua força probatória, tornaria irrelevante a sua confirmação por outros meios de prova (apesar de, infelizmente e inexplicavelmente a convicção do tribunal se basear em meios de prova que não foram produzidos).  

Não é, no entanto, assim, incorrendo o tribunal recorrido na violação de regras de direito probatório material que sempre imporiam a reapreciação deste ponto 21, ainda que oficiosamente, ao abrigo do disposto no artº 662 nº1 do C.P.C.[10]

Vejamos. É certo que os documentos particulares cuja autoria seja reconhecida fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (artº 374 nº2 do C.P.C.). Nessa medida, ter-se-ão por provados os factos compreendidos na declaração, na medida em que forem contrários aos interesses do declarante. Ora, como se refere em Ac. do STJ de 11/01/11[11]A norma transcrita deve ser interpretada no sentido de que a prova plena do documento particular, quanto aos factos compreendidos nas declarações atribuídas ao seu autor, na medida em que sejam contrárias aos interesses do declarante, se restringe ao âmbito das relações entre o declarante e o declaratário, ou seja, quando invocadas por este contra aquele. Quer dizer, os factos contidos no documento hão-de considerar-se provados na medida em que, como declaração confessória, possam ser invocados pelo declaratário contra o declarante – emanação dos princípios da confissão, com a inerente eficácia probatória plena do documento restrita às relações inter-partes. Relativamente a terceiros – os não sujeitos da relação jurídica a que respeitam as declarações documentadas -, a eficácia probatória plena cederá, para ficar a valer a declaração apenas como elemento de prova a apreciar livremente.”

Quer isto dizer que, perante terceiros (a seguradora), os recibos de vencimento do A. são a apreciar livremente pelo tribunal.

Em relação às despesas médicas e medicamentosas, dadas como assentes no ponto 21, fez o tribunal a quo constar que o relatório pericial era “totalmente compatível com a restante prova documental junta, designadamente quanto à realização de exames, consultas, cirurgias, fisioterapias e períodos de inatividade. De resto, estes danos foram, ainda e no geral, confirmados, circunstanciadamente, pelas testemunhas FF e GG, ambas com conhecimento direto dos danos por terem convivido com o autor antes e depois da ocorrência do acidente, tendo deposto de modo credível, e pelas declarações do autor, coincidentes.”  

Em relação ao salário e às despesas médicas e medicamentosas suportadas pelo A. por causa deste acidente, constantes do ponto 21 da matéria dada como provada, a R. seguradora veio impugnar especificadamente os factos respeitantes quer à retribuição laboral auferida pelo A., quer os montantes suportados com despesas médicas e medicamentosas, nos artºs 49 a 54 da sua contestação, impugnando ainda os documentos juntos para prova destes artigos e bem assim, no que se reporta às despesas médicas e medicamentosas, veio alegar que “desconhece se os actos clínicos e os medicamentos nestes constantes são ou não relativos a tratamentos de alegadas lesões originadas no acidente de viação “sub judice”, desconhecendo assim se existe nexo de causalidade entre os mesmos.”

Os recibos de vencimento que se mostram juntos pelo A. não fazem prova plena de que o A. auferia este rendimento por conta desta entidade patronal. Mostrando-se impugnados os factos alegados pelo A., de que estes documentos serviriam como meio de prova, também eles impugnados, a veracidade das declarações neles contidas é livremente apreciada pelo tribunal.

Relativamente ao ponto 21, ao contrário do (uma vez mais de forma muito infeliz) afirmado incompreensivelmente pelo Sr. Juiz a quo, as testemunhas FF e GG não declararam ter convivido com o autor antes e depois da ocorrência do acidente (pelo contrário a primeira afirmou desconhecer o A. e a segunda conhecê-lo apenas de vista), nem depuseram sequer sobre estes factos, mas apenas sobre o acidente em si, que alegadamente presenciaram.

O único meio de prova que incidiu sobre os factos respeitantes aos rendimentos salarias percebidos pelo A., para além da prova documental a valorar livremente pelo tribunal, consistiu nas declarações do próprio A. que referiu trabalhar na indústria da panificação, como panificador. Não foram comprovadamente juntas as declarações de IRS do A., mas essa não junção não acarreta forçosamente as consequências que a R. pretende retirar e que decorrem do nº 8, do artº 64 do D.L. nº 291/2007 de 21 de Agosto (RSORCA).

Com efeito, a obrigatoriedade de comprovação dos rendimentos fiscais para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais, surgiu por via da introdução pelo D.L. nº 153/2008 de 06/08, de um nº 7 ao artº 64, do D.L. 291/2007, com a seguinte redacção: “Para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado, o tribunal deve basear-se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente que se encontrem fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período, constantes de legislação fiscal".

Conforme resultava do preâmbulo daquele diploma, pretendeu-se evitar os litígios decorrentes do facto de “as seguradoras, em regra, baseiam o respectivo cálculo nos rendimentos declarados pelos lesados à administração tributária, ao passo que os sinistrados, não raras vezes, invocam em juízo rendimentos bastantes superiores, sem qualquer correspondência com as respectivas declarações fiscais. Trata-se, portanto, de uma área que, em razão da potencial litigiosidade que lhe está associada, requer a aprovação de regras mais objectivas, que baseiem o cálculo da indemnização, quanto aos rendimentos do lesado, na declaração apresentada para efeitos fiscais.”

Visou ainda este diploma, “contribuir para acentuar a tendencial correspondência entre a remuneração inscrita nas declarações fiscais e a remuneração efectivamente auferida - sinalizando-se também aqui, o reforço de uma ética de cumprimento fiscal -, e, por outro, aumentar as margens de possibilidades de acordo entre seguradoras e segurados, evitando o foco de litigância que surge associado à dissemelhança de valores que estas situações comportam. A introdução desta regra contribui igualmente para que nestas matérias exista mais objectividade e previsibilidade nas decisões dos tribunais, criando também condições para que a produção de prova seja mais fácil e célere e a decisão mais justa.”

Sendo esta a intenção do diploma, por um lado introduzir um elemento de segurança e fiabilidade, por outro acentuar o cumprimento da ética e da veracidade das declarações fiscais, na realidade impunha uma restrição aos meios de prova admitidos em juízo (por via do disposto no artº 393, nº1, do C.C.), como restringia o direito a uma indemnização correspondente ao dano efectivamente sofrido, pois que não raras vezes os rendimentos fiscalmente declarados (e consentâneos aliás com os recibos de vencimento) eram inferiores aos concretamente percebidos.

Suscitada a inconstitucionalidade deste preceito veio o Tribunal Constitucional, nos seus Acórdãos nºs 383/2012, de 21 de Setembro e 565/2018 de 7 de Novembro, declarar a inconstitucionalidade deste preceito na interpretação de que “nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, que se encontrem fiscalmente comprovados, após cumprimento das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período.”

Considerou-se no primeiro destes acórdãos, no que ao caso importa que a limitação constante ofendia o princípio da tutela jurisdicional efectiva, ao restringir de forma desproporcional o direito à prova dos montantes efectivamente percebidos e de obtenção de uma indemnização justa e proporcional ao dano, sem que os fins visados pelo legislador o justificassem. Na realidade, tal como considerado pelos Srs. Juízes do Tribunal Constitucional, “De tal restrição decorrerá que o incumprimento do dever de verdade do contribuinte, relativamente a tais obrigações declarativas — que, como salienta a decisão recorrida, frequentemente ocorre através de uma declaração inexata, por defeito, dos rendimentos auferidos, por forma a diminuir o valor do imposto a pagar — terá efeitos incontornáveis sobre o cálculo da indemnização que lhe possa vir a ser devida, na sequência de acidente de viação. Desta forma, cria -se uma situação em que danos importantes como a perda de rendimentos provenientes do trabalho, por incapacidade temporária, e sobretudo a perda ou redução da capacidade de ganho, por incapacidade permanente — que frequentemente correspondem à maior fatia do montante global indemnizatório devido por força de acidentes de viação — poderão não ser suficientemente ressarcidos.” Ou seja, a norma beneficiava afinal as seguradoras e impedia que o lesado pudesse efectuar a prova dos seus rendimentos.

A estes Acórdãos seguiu-se a declaração de inconstitucionalidade orgânica com força obrigatória geral, pelo Acórdão nº 221/2019 de 13 de Maio (Diário da República n.º 91/2019, Série I de 2019-05-13), deste preceito “por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.”

Considerou-se neste último acórdão que o direito à tutela jurisdicional efectiva “não implica, porém, que o legislador não possa introduzir restrições ou limitações à admissibilidade de meios de prova, reconhecendo-se-lhe uma «ampla margem de liberdade na conformação do processo» (…) Simplesmente, a limitação só pode ter-se por constitucionalmente admissível mediante o cumprimento cumulativo dos pressupostos de restrição dos direitos fundamentais submetidos ao regime dos direitos, liberdades e garantias - designadamente contidos nos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição. Isto é, «[a] limitação da liberdade probatória - que é diferente da sua regulamentação (por exemplo, quanto ao número de testemunhas ou outros meios de prova a produzir) - significa, em princípio, cercear a possibilidade de demonstrar em juízo que se tem razão, impedindo-se, desse modo, que o tribunal possa chegar a uma apreciação exata da realidade fáctica. Nessa medida, corresponde a uma restrição do direito à tutela jurisdicional efetiva» . Ora, conclui o Acórdão em causa, “Manda a Constituição que a restrição dos direitos fundamentais submetidos ao regime específico dos direitos, liberdades e garantias seja feita por lei ou decreto-lei autorizado, porquanto tal matéria se inclui no domínio de reserva relativa.

Fruto destas decisões, o que importa apurar nos autos são os rendimentos efectivamente percebidos pelo lesado, sem restrições quer quanto aos meios de prova quer quanto aos rendimentos a considerar, pelo que a não junção das declarações de IRS pelo A., não tem a importância que a R. lhe quer conferir. Não são estes ou apenas estes os rendimentos a ter em conta, se não coincidirem os declarados com os efectivamente percebidos. A questão então é apenas de prova, ou de força probatória dos meios apresentados para prova dos rendimentos que o A. declarou na sua p.i. auferir.

Isto porque, conforme decorre do nº 8 do artº 64 do D.L. 291/2007, em relação a lesados que não apresentem declaração de rendimentos, não tenham profissão certa ou cujos rendimentos sejam inferiores à RMMG, o tribunal deve basear-se no montante da retribuição mínima mensal garantida (RMMG) à data da ocorrência.

É este então o critério orientador, para quando não sejam apurados os rendimentos percebidos pelo lesado. [12]

Volvendo ao caso concreto, para além destes documentos juntos pelo A., veio este em declarações de parte declarar que à data do acidente trabalhava na indústria da panificação, como operador de panificação, o que é coerente com o recibo de vencimento apresentado e com o salário médio auferido nesta indústria naquele período, para aquelas funções.[13] Constituindo as declarações de parte um meio de prova a valorar livremente pelo tribunal, nos termos previstos no artº 466 nº 3 do C.P.C., não se pode desvalorizar estas declarações do A. apenas por provirem da parte, pois que consentâneos com estes recibos e com o salário médio desta industria naquele período. Com efeito, a credibilidade destas declarações, sujeitas à livre apreciação do tribunal, deve ser aferida em concreto, em conjunto com outros meios de prova juntos aos autos e efectuando uma análise crítica deste depoimento, sem que o julgador possa desconsiderar estes depoimentos, à partida, por provindos de quem tem interesse na causa, sob pena “de esvaziarmos a utilidade e a potencialidade deste novo meio de prova e de nos atermos, novamente, a raciocínios típicos da prova legal”. [14] [15]

Deve assim manter-se este facto nº 21 como provado, embora com diversa fundamentação.

O mesmo se dirá no que respeita às despesas médicas e medicamentosas. No relatório pericial elaborado, resulta que o A. foi seguido em consultas no centro de saúde, consentâneas, tendo em conta a data do acidente, com as referidas nos docs. nºs 22, 23, 27 e 28 e, em consultas externas naquele hospital, nas datas constantes dos docs. nºs 18, 19, 26, tendo sido pedidas análises sanguíneas referidas no doc. 20, (pág. 3 daquele relatório). As despesas de medicamentos resultam também identificadas naquele relatório, bem como o acompanhamento em fisioterapia referido nos docs. 24 e 25. São todas estas despesas compatíveis com os danos sofridos pelo A. e referenciados neste relatório, sem que seja alegado que correspondam a outros danos que não os decorrentes deste acidente. Constituindo ónus a cargo do lesado, de provar os danos decorrentes do acidente, face a estes documentos quer titulam estas despesas e face ao relatório pericial, cabia à seguradora a contraprova, ou seja, demonstrar que apesar da aparência por eles criada, serviram para outros fins, outros danos que não os decorrentes deste acidente.

Acresce que, sobre estes danos incidiram igualmente as declarações de parte do A., reconhece-se que prestadas de forma algo genérica pois que efectivamente não se referiu a cada uma destas consultas, tratamentos e medicamentos. Confirmou que efectuou tratamentos de fisioterapia, deslocou-se a consultas e teve necessidade de ser medicado, o que é além do mais, compatível com estes danos.

Sendo as despesas médicas e medicamentosas no montante indicado compatíveis com os ferimentos sofridos, decorrendo ainda a sua necessidade do relatório pericial, mantém-se também este ponto de facto.

Relativamente às circunstâncias em que ocorreu este acidente, ao local, velocidade permitida no local, velocidade a que seguia o IQ-..-.. e dinâmica do acidente, pretende a apelante que se aditem os seguintes factos:

- o Autor tripulava o veículo de matrícula IQ-..-.. distraído, de forma imperita e negligente, sem prestar atenção ao traçado da via nem ao comportamento rodoviário dos demais utentes da mesma;

 -antes do acidente, o condutor do IQ-..-.. circulava distraído e, ao verificar a presença do ..-HH-.. na via e hemi-faixa de rodagem por onde seguia, não conseguiu deter o IQ-..-.. no espaço livre e visível à sua frente evitando a ocorrência de um embate, nem foi capaz de desviar a trajetória do seu veículo.

-a velocidade máxima permitida no local onde ocorreu o sinistro era de 50 kms/hora.

Sobre as circunstâncias em que ocorreu este acidente depuseram as testemunhas FF e GG, que declararam ser testemunhas presenciais do acidente, a testemunha BB, condutor do ..-HH-.. e as testemunhas CC e DD, militares da GNR que, no exercício das suas funções, acorreram ao local e procederam após à averiguação do sinistro, com visualização das câmaras de videovigilância das bombas de gasolina existentes no local e de onde saíra o ..-HH-...

No essencial, ouvidos os depoimentos das testemunhas FF e GG, ficou este tribunal na dúvida se efectivamente presenciaram o acidente, sendo certo que a testemunha FF declarou desconhecer o A. (contraditado pela testemunha GG que referiu serem muito amigos) e na ocasião nenhum se apresentou ou identificou perante a GNR como testemunha presencial, apresentando-se alegadamente de forma voluntária posteriormente na GNR, para esse efeito. Não é o habitual e não corresponde ao declarado pelos militares, que na altura ninguém se apresentou como testemunha. Também não colhe o depoimento do condutor do ..-HH-.. que omitiu convenientemente os factos relativos a ter desrespeitado o sinal de STOP, ao reentrar nesta via. Resta o depoimento relevante dos militares da GNR e acima de tudo o que se visualizou nas câmaras de videovigilância do posto de gasolina da ....

Assim, os factos relativos à forma como ocorreu este acidente decorreram do depoimento dos militares da GNR que, pese embora não tenham presenciado o acidente, descreveram o local de embate, as condições do tempo e a visibilidade desta recta, os vestígios existentes no local e a posição dos veículos. No que se reporta à velocidade permitida no local, que não consta da participação, referiu a testemunha CC que o local do acidente se situava no interior de uma localidade, local onde se situa o posto de gasolina da ...[16] pelo que, não existindo outra sinalização em contrário, é aplicável o critério legal de 50 kms/hora como velocidade máxima permitida e não o referido pelo Sr. Juiz a quo, na sua fundamentação.  

No que se reporta às circunstâncias que conduziram a este embate, referiu a aludida testemunha que, para além do que visualizou no local e da ausência no local de rastos de travagem (não mencionados na participação de acidente e efectivamente inexistentes), apurou no âmbito do inquérito realizado pela GNR a este acidente, que o veículo ..-HH-.. teria desrespeitado o sinal de STOP à saída das bombas de gasolina, por visualização das câmaras de vigilância, estas instaladas nas referidas bombas de gasolina, pelo seu colega DD. Do depoimento desta testemunha resultou que, tendo visualizado as filmagens, verificou o seguinte:

-o veículo ..-HH-.. desrespeitou o sinal de STOP à saída das bombas de gasolina da ... antes de entrar na Estrada Nacional 109 (Rua ..., na ...), por onde seguia o IQ-..-..;

-nessa ocasião o IQ-..-.. seguia a cerca de 80, 130 mts. de distância da saída das bombas e que o embate se deu a cerca de 20 mts. após essa saída;

-entre o momento da entrada do ..-HH-.. na Estrada Nacional 109 e o embate do IQ-..-.., mediaram 4 segs;

-ambas as viaturas seguiam com os médios ligados, sendo perfeitamente visíveis tendo em conta as condições do tempo.

É assim forçoso concluir destes elementos, que o veículo IQ-..-.. seguia a velocidade entre os 90 e os 135 Km./hora[17], consoante a distância a considerar seja de 100 a 150 mts, entre o ponto em que o IQ-..-.. se situava quando o ..-HH-.. entrou na Estrada Nacional 109 e o local de embate, calculando que a velocidade se manteria constante e que este não efectuou qualquer travagem.

Assim sendo, não existindo rastos de travagem e resultando dos factos assentes que o A. não tentou sequer desviar-se do ..-HH-.., conclui-se ainda, com recurso a regras de experiência comum que o condutor do IQ-..-.. seguia distraído e que essa distração e a velocidade excessiva a que seguia, explicam o facto de não ter intentado qualquer travagem ou manobra de recurso, nem ter detido o veículo no espaço visível à sua frente.[18] O que, acrescenta-se, lhe teria sido possível se seguisse a 50 k/m hora, em condições normais de tempo seco.

Elimina-se, assim, o ponto 2.6 da matéria de facto não provada e aditam-se os seguintes factos relativos à dinâmica do acidente, com a seguinte redacção:

- a velocidade máxima permitida no local onde ocorreu o sinistro era de 50 kms/hora.

-naquela ocasião o Autor circulava com o veículo de matrícula IQ-..-.., a pelo menos 90 km/hora;

-no momento em que o ..-HH-.. reentrou na Estrada Nacional nº ...09, o IQ-..-.. seguia na mesma via e sentido, a cerca de 80 a 130 mts de distância da saída das bombas de gasolina;

-o A. não efectuou qualquer travagem do seu veículo antes do embate no ..-HH-..;

-o local de embate situa-se a cerca de 20 mts da saída das bombas de gasolina, no sentido Leiria-Figueira da Foz;

-o A. circulava distraído e sem prestar atenção ao comportamento rodoviário dos demais utentes da via.

No demais, que o A. não conseguiu deter o seu veículo resulta já do ponto 6 da matéria assente.

Altera-se igualmente o teor do ponto 3, por em contradição com o facto de o local do embate ser numa localidade e de a velocidade naquele local ser de 50 K/m hora.

Rectificam-se ainda os lapsos materiais constantes da sentença, nos pontos 2 e 8: no ponto 2, onde se diz “IQ-..-..” deve constar “..-HH-..”; no ponto 8 onde se diz “24 de Dezembro de 2016” deve constar “24 de Dezembro de 2015”.


***

           

Nesta sequência, fixa-se a seguinte matéria de facto:

1. No dia 4 de dezembro de 2015 pelas 20:20h, ocorreu um acidente de viação entre o veículo automóvel de marca ... com a matrícula IQ-..-.. – e o veículo com a matrícula ..-HH-.., propriedade da empresa B... Lda, com sede no Largo ..., ..., ... andar, ... ....

2. O veículo ..-HH-.. encontrava-se segurado pela Ré, sob a apólice n.º ...79. (rectificado)

3. O acidente de viação ocorreu na Estrada Nacional 109, ao km 145,300 – EN no sentido Leiria – Figueira da Foz, na localidade da .... (alterado)

A faixa de rodagem tem dois sentidos e o local do sinistro configura-se numa reta.

Estava bom tempo.

3.A- A velocidade máxima permitida no local onde ocorreu o sinistro era de 50 kms/hora. (aditado)

4. O Autor encontrava-se a circular na Estrada Nacional, quando junto ao posto de combustível ..., o Réu que saia do mesmo posto não parou no sinal vertical de STOP que se encontra à saída do posto de abastecimento de combustível, nem olhou para o lado esquerdo da faixa, no sentido de averiguar se algum automóvel se deslocava na mesma.

5. O condutor do veículo segurado na ré passou a seguir pela hemi-faixa de rodagem da direita –atento o sentido de marcha Leiria – Figueira da Foz.

5.A-No momento em que o ..-HH-.. entrou na Estrada Nacional nº ...09, o IQ-..-.. seguia na mesma via e sentido a cerca de 80 a 130 mts de distância da saída das bombas de gasolina; (aditado)

5.B-Naquela ocasião o Autor circulava com o veículo de matrícula IQ-..-.. a pelo menos 90 km/hora. (aditado)

6. O Autor que seguia no mesmo sentido não desviou a sua viatura nem evitou que os veículos embatessem, causando a força desse embate o capotamento do veículo do Autor e o encarceramento deste dentro do veículo.

6.A-O local de embate situa-se a cerca de 20 mts da saída das bombas de gasolina no sentido Leiria-Figueira da Foz. (aditado)

6.B-O A. não efectuou qualquer travagem do seu veículo antes do embate no ..-HH-... (aditado)

6.C-Circulava distraído sem prestar atenção ao comportamento rodoviário dos demais utentes da via. (aditado)

7. O embate entre os veículos ocorreu dentro da hemi-faixa destinada ao trânsito no sentido Leiria – Figueira da Foz, a 1,30 metros da berma direita, atento tal sentido de marcha.

8. Nessa sequência, o Autor necessitou de ser transportado para o Hospital ..., devido aos ferimentos graves que foram causados, onde permaneceu internado até 24 de Dezembro de 2015. (rectificado)

9. Do acidente em que foi interveniente resultaram para o autor lesões no joelho, na anca e esplenectomia total do baço.

10. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 5/07/2016.

11. O Défice Funcional Temporário Total foi de 21 dias, entre 4/12/2015 e 24/12/2015.

12. O Défice Funcional Temporário Parcial foi de 194 dias, entre 25/12/2015 e 5/07/2016.

13. A Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total foi de 143 dias, entre 4/12/2015 e 24/04/2016 e a Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial foi de 72 dias, entre 25/04/2016 e 5/07/2016.

14. O Quantum doloris é de grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente.

15. O Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica é de 9 pontos.

16. As sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

17. O Dano Estético Permanente é de grau 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

18. A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer é de grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

19. Na sequência do acidente o IQ-..-.. ficou em situação de perda total e, em 23 de dezembro de 2015, a ré informou o autor que lhe atribuiu a esse título o valor de € 2500, correspondente ao valor venal do veículo antes do acidente, e € 190 ao salvado.

20. O Autor auferia mensalmente a quantia de 640,00€

21. Com despesas médicas e medicamentosas o autor gastou a quantia de 306,82€.

22. Para instruir o presente processo judicial gastou a quantia de 60,00€ numa certidão de acidente.

23. O autor, precisa do carro para o exercício da sua profissão assim como para todas as deslocações quotidianas.


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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


Insurge-se o recorrente contra a decisão sob recurso que imputou a culpa exclusiva do acidente ao condutor do ..-HH-.., por ter desrespeitado a sinalização existente no local, alegando que o acidente ocorreu por culpa de ambos os condutores, violando o A. as normas previstas nos artºs 3, nº2, 18º, nº1, 24, nº1 e 27 do Código da Estrada.

Pugna pela repartição de responsabilidades entre ambos os condutores na proporção de 50% para cada um. Constitui entendimento jurisprudencial e doutrinal que a violação de normas estradais constitui uma presunção prima facie de culpa na produção do sinistro que só deve ser afastada, quando a norma violada não se destine a proteger o interesse em concreto ofendido.

Assim sendo “a prova da inobservância de leis ou regulamentos de natureza rodoviária faz presumir a culpa na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência”[19], pelo que ao lesante caberá provar que não teve culpa e que, pese embora a violação de normas de direito rodoviário, estas não foram causa adequada do acidente, que se teria produzido, ainda que cumpridos os deveres impostos por estas normas.

No caso em apreço resultaram provados factos que conduzem à conclusão de que existiu por parte dos dois condutores intervenientes no acidente, violação de normas estradais, que deram causa ao acidente e aos danos que dele resultaram. Factos que já decorriam do ponto 6 da matéria considerada assente pelo tribunal recorrido e que mereciam outro enquadramento jurídico, pois que à violação do dever de obediência ao sinal stop por parte do condutor do ..-HH-.., concorreu concomitantemente a violação por parte do condutor do IQ-..-.. do dever de diligência e cuidado exigível a quem circule numa via rodoviária, que inclui o dever de prestar uma atenção permanente ao demais trânsito que circula ou se prepara para entrar na via e o dever de adoptar as medidas prudenciais destinadas a evitar o acidente, seja detendo o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente, seja intentando uma manobra de recurso adequada a evitar o embate.

O ónus de prova da culpa e exclusiva do condutor do ..-HH-.., pertencia ao lesado (artº 487 do C.C.), cabendo-lhe ainda o ónus de alegar e provar que naquela ocasião lhe seria impossível deter o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente, ou mesmo travar ou desviar o seu veículo, nomeadamente por entre o momento em que se apercebeu do ..-HH-.., a entrada deste na via e o local do embate, já não ter tempo de reacção nem espaço para evitar o acidente. Essa prova não foi feita, pelo que sempre se imporia a repartição de culpas na produção do acidente entre os condutores dos veículos intervenientes, mesmo sem a alteração à matéria de facto, e nunca a imputação de culpa exclusiva pela produção do evento danoso ao condutor do ..-HH-...

Ocorre ainda que o tribunal a quo desconsiderou totalmente outros factos que resultaram da instrução da causa, por relatados pelos militares da GNR que procederam à averiguação do sinistro e visionaram as câmaras de videovigilância existentes no local e que demonstram que o A. não só não deteve o seu veículo, nem intentou desviar-se, como não efectuou qualquer travagem antes do embate. Resultou ainda que o A. seguia a cerca de 80 a 130 mts. antes da saída das bombas da ..., no momento em que o ..-HH-.. (re)entrou na Estrada Nacional 109 e que circulava a velocidade excessiva para o local que, ao contrário do considerado pelo Sr. Juiz a quo, se situa dentro de uma localidade (na Rua ...), sendo o limite máximo permitido o de 50 km/hora (cfr. artº 27 do C. da Estrada).

Ainda que assim não fosse, impõe o artº 24 do C. da Estrada que o condutor de um veículo deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores e a quaisquer outras circunstâncias relevantes possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.

Ora o local era uma recta, o tempo estava bom e o IQ-..-.. seguia a cerca de 80 a 130 mts de distância da saída das bombas de gasolina, no momento em que o ..-HH-.. desrespeitando o sinal de STOP entrou na EN ...09. O condutor do IQ-..-.. não poderia ter deixado de avistar este veículo e, assim sendo, impunha-se-lhe que travasse, sendo certo que tinha pelo menos 100 mts para o fazer e que decorreram 4 segs. entre o momento da entrada do ..-HH-.. na Rua ... (EN ...09) e o embate. È tempo suficiente para permitir a reacção de um condutor atento e diligente no sentido de travar e/ou intentar desviar-se do obstáculo que surgiu na sua via.

Conclui-se, assim pela concorrência de culpas entre o condutor do ..-HH-.. e o condutor do IQ-..-... No que se reporta à proporção na repartição a efectuar entre ambos os condutores, resulta que ambos os veículos são da mesma categoria e que ambos desrespeitaram de forma muito grave regras estradais, uma que impunha a um dos condutores que detivesse a sua marcha e apenas a reiniciasse se não avistasse outro veículo a circular na via e outra que impunha uma velocidade máxima para o local (excedida em muito pelo A.) e que impunha ainda o dever de conduzir de forma diligente e atenta e por forma a deter o veículo no espaço livre e visível à sua frente. E assim, perfeitamente justo, a repartição de responsabilidades entre os dois condutores em proporção igualitária, ou seja de 50% para cada um.

Decorrendo a impugnação dos montantes indemnizatórios, da pretendida alteração aos pontos de facto 20 e 21, mantendo-se estes pontos no que se reporta aos rendimentos salariais que o A. deixou de auferir por causa deste acidente e às despesas medicas e medicamentosas suportadas por causa dele, cabe operar apenas a repartição destes montantes de acordo com a culpa de ambos os condutores na proporção deste acidente, ou seja, em metade.

No que se reporta à sanção pecuniária compulsória, o montante fixado não se destina a ressarcir um dano e, portanto o seu montante é autónomo da medida da responsabilidade a atribuir aos condutores intervenientes no acidente.

Dispõe o artº 829º-A do CC, no seu nº 1 que “Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.”, acrescentando no seu nº2 que esta sanção, será fixada segundo “critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.”
Conforme decorre do disposto no artº 829-A do C.P.C., esta sanção não constitui um fim em si mesmo, uma vez que com a ela se visa obter a realização de uma prestação, judicialmente reconhecida, a que o credor tem direito, constituindo, por um lado, uma forma de protecção do credor contra o devedor relapso e por outro, no reforço da tutela específica do direito, induzindo o devedor a cumprir a obrigação a que se encontra adstrito e a obedecer à injunção judicial.

Como ensina Calvão da Silva[20], “A sanção pecuniária compulsória não é, pois, medida executiva ou via de execução da condenação principal do devedor a cumprir a obrigação que deve. Através dela, na verdade, não se executa a obrigação principal, mas somente se constrange o devedor a obedecer a essa condenação, determinando-o a realizar o cumprimento devido e no qual foi condenado“.

Refira-se desde já que a sanção considerada pelo Sr. Juiz a quo nada tem a ver com os juros referidos no nº 4 deste preceito legal de aplicação automática. O que se consignou na sentença foi exactamente o seguinte “porque estamos perante obrigação de pagamento em dinheiro e ter sido pedido há que condenar a ré na referida sanção a qual se fixa no montante diário de 50€, a repartir, em partes iguais, para o autor e para o Estado.”, que corresponde grosso modo a cerca de €18250,00 ao ano, sem qualquer correspondência com os juros fixados no nº 4 deste preceito.

Ora, não sendo objecto de impugnação a fixação de uma sanção pecuniária compulsória neste caso, nos termos do nº1, mas apenas o seu montante que a seguradora pretende reduzir em proporção da culpa na produção do evento danoso, e não estando este montante correlacionado com a medida de responsabilidade pela produção do dano, nem com os danos em si, improcede este segmento do recurso, por estarmos vinculados pelo caso julgado formado no que se reporta à sua fixação que, nosso entender nunca seria de equacionar por não integrada no âmbito do nº1 do artº 829-A do C.C.

 


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DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente a apelação e, nessa medida:
I- Condenam a R a pagar ao A.. a quantia de € 28.470,51 a título de indemnização, a que acrescem juros vencidos sobre a quantia de 3 470,51 e vincendos sobre a totalidade, até integral pagamento, calculados à taxa prevista para os juros civis.
II- Mantêm a condenação da R. na sanção de € 50 (cinquenta) por cada dia de atraso no pagamento da indemnização fixada em A.
III- No demais absolvem a R. do pedido.  

*
Custas da acção e do recurso pela apelante e pelo apelado, na proporção do vencimento (artº 527, nº1, do C.P.C.)

                                                                       Coimbra 14/03/23
                       




[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ana Luísa Geraldes; Ac. STJ de 14.01.2016, proc. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, proc. nº 299/05, Tomé Gomes; Ac. STJ de 22.09.2015, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção, Pinto de Almeida; Ac. STJ, datado de 29/09/2015,proc. nº 233/09, Lopes do Rego; Acórdão de 31.5.2016, Garcia Calejo, proc. nº 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 449/410; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Clara Sottomayor, proc. nº 1060/07.
[4] Ac. STJ. de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S

[5] Ac. do STJ de 05/09/18, relator Gonçalves Rocha, proc. nº 15787/15.8T8PRT.P1.S2; no mesmo sentido vide Ac. do S.T.J. de 27/09/18, relator Sousa Lameira, proc. nº 2611/12.2TBSTS.L1.S1.
[6] Cfr. o Acórdão da Relação de Guimarães de 04.02.2016, no Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «Para que a decisão da 1.ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.»
De igual modo, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016, no Proc.1572/12.2TBABT.E1.S1, disponível na mesma base de dados, decidindo que «O Tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.»
[7] TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Editora Lex, 1997, pág. 347.
[8] Ac. do T.R.Lisboa de 11/03/2010, proferido no Proc. nº 949/05.4TBOVR-A.L1-8 , disponível in www.dgsi.pt
[9] PIRES DE SOUSA, Luís Filipe, Prova Testemunhal, Almedina, 2013, pág. 282.
[10] Neste sentido vide ABRANTES GERALDES, António Santos, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina 2017, pág. 275, constituindo ainda jurisprudência unânime no STJ de que constitui mero exemplo o Ac. de 08/09/2021, proferido no proc. nº 1721/17.4T8VIS-A.C1.S1. de que foi relatora Rosa Tching.
[11] Proferido no Proc. nº 6026/04.8TBBRG.G1.S1, de que foi relator Alves Velho.
[12] Vide a este respeito o Ac. do TRP de 12/01/2023, proferido no proc. nº 639/20.8T8PNF.P1, de que foi relator Ernesto Nascimento.
[13] O salário de um operador de produção no período de 2011, conforme resulta do Boletim de Trabalho e Emprego nº 24/2011, situava-se entre os €530 e os €636 (págs. 2507).
[14] PIRES de SOUSA, Luís Filipe, Prova Testemunhal, 2013, Almedina, págs. 364.
[15] Vidé ainda os Acs. deste Tribunal da Relação ... de 26/04/17, proferido no proc. nº 18591/15....; do TR... de 05/06/18, proferido no proc. nº 1817/08...., no qual se considera que cumpre ao ao julgador algum cuidado na análise crítica e valoração dessas declarações, as quais, no seu final, - e como meio legítimo de prova que são e com a força probatória que é idêntica àquelas outras provas igualmente sujeitas à livre apreciação do tribunal –, tanto poderão merecer do julgador muita, como pouca ou nenhuma credibilidade. (Cfr. nesse sentido, e por todos, Ac. da R... de 02/05/2016, in “proc. 2745/15...., disponível em dgsi.pt); por sua vez em Ac de 13/09/18, proferido no TR..., no proc. nº 159/17.... é aceite que “em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação”.
[16] Confirmável com uma simples busca no Google maps. O local corresponde à Rua ..., na localidade da ... e não como referiu o Sr. Juiz a quo, “perto da ....”
[17] Sendo a velocidade média apurada de acordo com a seguinte fórmula Vm = Km/Distância
                                                                                       Hora/tempo
[18] No que se reporta à consideração de factos resultantes da instrução da causa, conforme refere o Ac. do TR... de 22/10/2020, proferido no Proc. nº 2430/16...., de que foi relator HH, há que referir que “Na economia de casos como os de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, a natural multiplicidade de aspetos que podem ter contribuído para a ocorrência do sinistro potencia que os factos em que essa pluralidade se concretiza se assumam como complementares uns dos outros, de tal forma que, alegados alguns nos articulados, seja admissível a introdução na causa de outros factos atinentes à ocorrência do sinistro que tenham resultado da instrução. Será o caso da “distração” de um dos condutores, adicionada ao “excesso de velocidade” desse mesmo condutor, que havia sido alegado nos articulados.”
[19] Ac. do STJ de 20/11/2003, proferido no proc. nº  03...; no mesmo sentido vide Ac, do STJ de 23/02/2016, proferido no proc. nº 74/12....,  disponíveis in www.dgsi.pt
[20] Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, págs. 417/421